Editora:
Publicações Europa-América
ISBN: 978-97-2104-279-7
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 208
Sinopse: Ver Parte
I
“Uma das funções da Igreja e dos seus tribunais é a luta contra a
heresia. Toca-se aqui numa característica essencial da vida medieval, que só
depois veio frequentemente a fazer escândalo. Para o apreender bem, é preciso
compreender que a Igreja é então a garantia da ordem social, e que tudo aquilo
que a ameaça atinge ao mesmo tempo a sociedade civil. Tanto mais que as
heresias suscitam frequentemente mais violentas reprovações nos laicos que nos
clérigos. Temos nos nossos dias dificuldade em retratar, por exemplo, o
profundo mal-estar produzido na sociedade pela heresia albigense, simplesmente
pelo fato de ela proscrever o juramento. Mas isso consistia em atacar a própria
essência da vida medieval, que era o vínculo feudal. Todo o fundamento da
feudalidade se encontrava abalado por isso.* Daí as reações vigorosas,
excessivas por vezes, às quais se assistiu.
Devem
esses excessos ser atribuídos à Igreja? Luchaire, pouco suspeito de indulgência
para com ela, vê no papado um “poder essencialmente moderador” na luta contra a
heresia. Com efeito, é o que ressalta das relações entre Inocêncio III e
Raimundo de Toulouse e da correspondência do Papa com os seus núncios. Por outro
lado, o exame de casos particulares revela claramente que pilhagens e
massacres, quando se realizam, são ato de uma minoria excitada, que depois é
vivamente censurada pela autoridade eclesiástica. Já citamos a carta de São
Bernardo aos burgueses de Colônia depois do massacre de heréticos que teve
lugar em 1145: “O povo de Colônia ultrapassou os limites. Se aprovamos o seu
zelo, não aprovamos de modo nenhum o que ele fez, porque a fé é obra de
persuasão e não se impõe”.**
Como
acontece frequentemente, os laicos são muito menos moderados nos seus juízos e
mais impiedosos que os clérigos. Além disso, neles as preocupações materiais se
juntam às preocupações doutrinais, para as agravar. O primeiro soberano que
aplica a pena de fogo aos heréticos, condenados a ser entregues ao braço
secular, é o imperador Frederico II. Não podemos admirar-nos disso, visto
sabermos que o personagem era bem pouco cioso da ortodoxia: um espírito dos
mais “modernos”; facilmente cético, nada menos que obrigado a obedecer às
objurgações do Papa; e quando faz cruzada, ostenta durante toda ela o mais
profundo desprezo pelos seus correligionários, com a mais viva simpatia pelos
muçulmanos. É bem provável, desde logo, que a preservação contra as heresias só
o devia interessar de um modo muito secundário. Político prudente, no entanto,
ele sentira o perigo que os heréticos representavam para a sociedade temporal.
Os
massacres de judeus na ocasião da primeira cruzada não são cometidos pelos
exércitos de Pedro, o Eremita, ou de Gautier Sans Avoir, mas são ordenados na
Alemanha por um senhor laico, o conde Ennrich de Leiningen, depois da partida
dos cruzados. Aliás, as expulsões de judeus foram, pelo menos em França, muito
menos numerosas do que se tem dito, uma vez que apenas houve três de alcance
geral: uma sob São Luís, por ocasião da sua cruzada; as duas outras sob Filipe,
o Belo, ordenadas por razões financeiras.
A
Inquisição adquiriu a sua deplorável reputação devido a uma ação semelhante dos
poderes laicos, desviando esse instrumento em seu favor, para fazer das medidas
da Igreja um instrumento de dominação – por vezes, entende-se, com a
cumplicidade de certos eclesiásticos isolados. Contudo, ela só teve um caráter
verdadeiramente sangrento e feroz na Espanha imperial do início do século XVI.
Durante toda a Idade Média, é apenas um tribunal eclesiástico destinado a
“exterminar” a heresia, quer dizer, expulsá-la para fora dos limites (ex terminis)
do reino. As penitências que impõe não saem do âmbito das penitências
eclesiásticas, ordenadas em confissão: esmolas, peregrinações, jejuns. Somente
nos casos graves o culpado é entregue ao braço secular, o que significa que
incorre em penas civis, como a prisão ou a morte, pois o tribunal eclesiástico
não tem o direito de pronunciar ele próprio semelhantes penas.
Segundo
declaração de autores que estudaram a Inquisição pelos seus autos — não importa
quais sejam as suas tendências — ela apenas fez “poucas vítimas”. Esta é a
expressão de Lea, escritor protestante traduzido em francês por Salomon Reinach
(Histoire de l’inquisition, t. 1, p. 489). Em 930 condenações produzidas
pelo inquisidor Bernard Gui durante a sua carreira, apenas 42 conduziram à pena
de morte. Quanto à tortura, em toda a história da Inquisição no Languedoc
apenas se assinalam três casos confirmados em que ela foi aplicada, indicando
um uso muito longe de ser generalizado. Por outro lado, para que ela fosse
aplicada era preciso que houvesse começo de prova, só podia servir para fazer
completar confissões já feitas. Acrescentemos que, como todos os tribunais
eclesiásticos, o da Inquisição ignora a prisão preventiva e deixa os acusados
em liberdade até à apresentação de provas da sua culpabilidade.”
* – A
observação foi feita por M. Belperron na sua obra sobre La croisade des
albigeois (p. 76)
** –
Idem, p. 115.
“Na Idade Média, como em todas as épocas, a criança vai à escola. Em geral,
à escola da sua paróquia ou do mosteiro mais próximo. Todas as igrejas agregam
a si uma escola, pois o concílio de Latrão, em 1179, faz-lhes disso uma
obrigação estrita. É uma disposição corrente, ainda visível na Inglaterra,
encontrar reunidos a igreja, o cemitério e a escola. Frequentemente, são também
as fundações senhoriais que asseguram a instrução das crianças: Rosny, uma
aldeiazinha das margens do Sena, tinha desde o início do século XIII uma
escola, fundada por volta do ano 1200 pelo seu senhor Guy V Mauvoisin. Por vezes
também, trata-se de escolas puramente privadas, quando os habitantes de um
lugarejo associam-se para sustentar um professor encarregado de ensinar as
crianças. Um pequeno texto divertido conservou-nos a petição de alguns pais solicitando
a demissão de um professor. Não tendo sabido fazer-se respeitar pelos seus
alunos, foi por eles desrespeitado, ao ponto de eles o picarem com os seus
grafiones (eum pugiunt grafionibus), isto é, os estiletes com os quais
eles escrevem nas suas tabuinhas revestidas de cera.
Mas
os privilegiados são evidentemente aqueles que podem aproveitar o ensino das
escolas episcopais ou monásticas, ou ainda das escolas capitulares, porque os
capítulos das catedrais estavam submetidos à obrigação de ensinar o que o referido
concílio de Latrão lhes fixara.* Algumas adquiriram na Idade Média uma
notabilidade muito particular. Por exemplo, as de Chartres, Lyon, Mans, onde os
alunos representavam as tragédias antigas; a de Lisieux, onde no início do
século XII o bispo em pessoa se deleitava em ensinar; a de Cambrai, sobre a
qual um texto citado pelo erudito Pithou nos informa que elas tinham sido
estabelecidas especialmente a fim de serem úteis ao povo na condução dos seus
assuntos temporais.
As
escolas monásticas tiveram talvez ainda mais renome, como as de Bec e
Fleury-sur-Loire, onde foi aluno o rei Roberto, o Piedoso; a de Saint-Géraud
d’Aurillac, onde Gerbert aprendeu os primeiros rudimentos das ciências que ele
próprio iria levar até um tão alto grau de perfeição; a de Marmoutier, perto de
Tours; a de Saint-Bénigne de Dijon, etc. Em Paris encontram-se desde o século
XII três séries de estabelecimentos escolares: a escola Notre-Dame, ou grupo de
escolas do bispado, cuja direção é assumida pelo chantre para as classes elementares,
e pelo chanceler para o grau superior; as escolas de abadias como
Sainte-Geneviève, Saint-Victor ou Saint-Germain-des-Prés; e enfim as
instituições particulares abertas por professores que obtiveram a licença de
ensino, como por exemplo Abelardo.
A
criança era aí admitida com sete ou oito anos de idade, e o ensino que
preparava para os estudos da universidade estendia-se como hoje por uma dezena
de anos. São os números que fornece o abade Gilles de Muisit. Os rapazes eram
separados das moças, que tinham em geral os seus estabelecimentos particulares,
menos numerosos talvez, mas onde os estudos eram por vezes muito ativos. A
abadia de Argenteuil, onde foi educada Heloísa, ensinava às moças a Sagrada
Escritura, as letras, a medicina e mesmo a cirurgia, sem contar o grego e o
hebraico que Abelardo lá ensinou. Em geral, as pequenas escolas proporcionavam
aos seus alunos as noções de gramática, aritmética, geometria, música e
teologia, que lhes permitiriam aceder às ciências estudadas nas universidades.
É possível que algumas tenham comportado uma espécie de ensino técnico. A Histoire
Littéraire cita, por exemplo, a escola de Vassor, na diocese de Metz, na
qual, enquanto se aprendia a Sagrada Escritura e as letras, se trabalhava o
ouro, a prata, o cobre.**
Os
mestres eram quase sempre secundados pelos estudantes mais velhos e mais
formados, como atualmente no ensino mútuo. Diz Gilles de Muisit, lembrando as
suas recordações de juventude:
C’étoit
ce belle chose de plenté d’écoliers:
Ils
manoient ensemble par loges, par soliers,
Enfants
de riches hommes et enfants de toiliers.
Que
bela coisa ver a quantidade de aprendizes:
Habitavam
desvãos e quartos, em comum,
Filhos
de homens ricos e filhos de artesãos.
De
fato, nessa época as crianças de todas as “classes” da sociedade eram
instruídas juntas, como o testemunha a anedota célebre de Carlos Magno sendo
severo para com os filhos dos barões que se mostravam preguiçosos, ao contrário
dos filhos dos servos e de pessoas pobres. A única distinção estabelecida
consistia nas retribuições: ensino gratuito para os pobres e pago para os
ricos. Esta gratuidade podia prolongar-se por toda a duração dos estudos, e
mesmo para o acesso ao ensino, uma vez que às pessoas que têm a missão de
dirigir e tomar conta das escolas o concílio de Latrão proíbe “exigir dos
candidatos ao professorado uma qualquer remuneração pela outorga da licença”.
Há
pouca diferença, na Idade Média, na educação dada às crianças de diversas
condições. Os filhos dos vassalos menores são educados na residência senhorial,
juntamente com os do suserano, e os dos ricos burgueses são submetidos à mesma
aprendizagem que o último dos artesãos, se estes querem futuramente tomar conta
da loja paterna. É sem dúvida por isto que temos tantos exemplos de grandes
personagens saídos de famílias de condição humilde: Suger, que governa a França
durante a cruzada de Luís VII, é filho de servos; Maurice de Sully, o bispo de
Paris que mandou construir Notre-Dame, nasceu de um mendigo; São Pedro Damião
foi guarda-porcos na sua infância; e uma das mais vivas luzes da ciência
medieval, Gerbert d’Aurillac, é igualmente pastor; o papa Urbano VI é filho de
um pequeno sapateiro de Troyes; e Gregório VII, o grande papa da Idade Média,
era filho de um pobre cabreiro.
Inversamente,
muitos dos grandes senhores são letrados cuja educação não devia diferir muito
da dos clérigos. Roberto, o Piedoso, compõe hinos e seqüências latinas;
Guilherme IX, príncipe da Aquitânia, é cronologicamente o primeiro dos
trovadores; Ricardo Coração-de-Leão deixou-nos poemas, assim como os senhores
de Ussel, dos Baux e tantos outros. E há casos mais excepcionais, como o do rei
da Espanha Afonso X, o Astrônomo, que escreve sucessivamente poemas e obras de
direito, faz progredir notavelmente os conhecimentos astronômicos da época com
a redação das suas Tables alphonsines (Tabelas afonsinas), deixa uma
vasta Chronique (Crônica) sobre as origens da história da Espanha e uma
compilação de direito canônico e de direito romano, que foi o primeiro Code
(Código) do seu país.
Os
estudantes mais dotados tomam naturalmente o caminho da universidade. Fazem a
sua escolha segundo o ramo que os atrai, pois cada uma tem algo do que se pode
considerar uma especialidade. Em Montpellier, é a medicina. Desde 1181
Guilherme VII, senhor desta cidade, deu a qualquer particular — quem quer que
seja, e venha de onde vier — a liberdade de ensinar esta arte, desde que
apresente suficientes garantias de saber. Orleans tem como especialidade o
direito canônico, e Bologne o direito romano. Mas “nada se pode comparar a
Paris”, onde o ensino das artes liberais e da teologia atrai os estudantes de
todos os países – Alemanha, Itália, Inglaterra, e mesmo da Dinamarca ou Noruega.
Estas
universidades são criações eclesiásticas, de algum modo o prolongamento das
escolas episcopais, das quais diferem no fato de dependerem diretamente do
Papa, e não do bispo do lugar. A bula Parens scientiarum, de Gregório
IX, pode ser considerada a carta de fundação da universidade medieval, com os
regulamentos promulgados em 1215 pelo cardeal-núncio Roberto de Courçon, agindo
em nome de Inocêncio III, e que reconheciam explicitamente aos professores e
aos alunos o direito de associação. Criada pelo papado, a universidade tem um
caráter inteiramente eclesiástico. Os professores pertencem todos à Igreja, e
as duas grandes ordens que a ilustram no século XIII – franciscana e dominicana
– nela vão cobrir-se de glória com um S. Boaventura e um S. Tomás de Aquino. Os
alunos, mesmo os que não se destinam ao sacerdócio, são chamados clérigos, e
alguns deles usam a tonsura, o que não quer dizer que aí apenas se ensine a
teologia, uma vez que o seu programa comporta todas as grandes disciplinas
científicas e filosóficas, da gramática à dialética, passando pela música e
pela geometria.
Essa
“universidade” de professores e estudantes forma um corpo livre. Desde o ano
1200, Filipe Augusto tinha subtraído os seus membros da jurisdição civil — dito
de outra maneira, dos seus próprios tribunais. Professores, alunos e mesmo os
criados destes dependem apenas dos tribunais eclesiásticos, o que é considerado
um privilégio e consagra a autonomia dessa corporação de elite. Professores e
estudantes estão, portanto, inteiramente isentos de obrigações relativamente ao
poder central. Administram-se a si próprios, tomando em comum as decisões que
lhes respeitam, e gerem sua tesouraria sem nenhuma ingerência do Estado. É esta
a característica essencial da universidade medieval, e provavelmente aquela que
mais a distingue da de hoje.
Esta
liberdade favorece entre as diversas cidades uma emulação, da qual teríamos
dificuldade em fazer uma idéia atualmente. Durante anos, os professores de
Direito Canônico de Orleans e de Paris disputam entre si os alunos. Os
registros da Faculdade de Decreto, publicados na coleção dos Documents
inédits, formigam de recriminações a propósito dos estudantes parisienses,
que vão fraudulentamente concluir a sua licenciatura em Orleans, onde os exames
são mais fáceis. Ameaças, anulações, processos, nada surte efeito, e as
contestações prolongam-se interminavelmente. Emulação também a respeito dos
professores mais estimados ou menos, das discussões apaixonadas das teses, que
os estudantes tomam a peito até ao ponto de algumas vezes entrar em greve. A
universidade, mais ainda do que nos nossos dias, é na Idade Média um mundo
turbulento.
É
também um mundo cosmopolita. As quatro “nações” entre as quais estavam
repartidos os clérigos parisienses indicam-no suficientemente: havia os
picardos, os ingleses, os alemães e os franceses. Os estudantes vindos de cada
um destes países eram, portanto, suficientemente numerosos para formar um grupo
que tinha a sua autonomia, os seus representantes, a sua atividade particular.
Fora disto, assinalam-se correntemente nos registros nomes italianos,
dinamarqueses, húngaros e outros. Os professores que ensinam vêm também de
todas as partes do mundo. Siger de Brabant e Jean de Salisbury, seus nomes já
os identificam; Alberto Magno vem da Renânia; S. Tomás de Aquino e S.
Boaventura, da Itália. Não há então obstáculo às trocas de pensamento, e só se
julga um professor pela amplidão do seu saber.
Esse
mundo matizado possui uma língua comum, o latim, única falado na universidade.
É sem dúvida o que lhe evita ser uma nova Torre de Babel, apesar dos grupos
diversificados de que é composta. O uso do latim facilita as relações, permite
aos sábios comunicar-se de uma ponta à outra da Europa, dissipa de antemão qualquer
confusão na expressão, e salvaguarda também a unidade de pensamento.
Os
problemas que apaixonam os filósofos são os mesmos em Paris, Edimburgo, Oxford,
Colônia, Pavia, ainda que cada centro e cada personalidade lhes imprima o seu
caráter próprio. Tomás de Aquino, vindo da Itália, acaba de esclarecer e
ultimar em Paris uma doutrina cujas bases concebera em Colônia, escutando as
lições de Alberto Magno. Nada se parece menos com um vaso fechado do que a
Sorbonne do século XIII. Gilles de Muisit resume deste modo a vida dos estudantes:
Clercs viennent à études de toutes nations
Et en hiver s’assemblent par plusiers légions.
On leur lit e ils oient pour leur instruction;
En été s’en retraient moult en leurs régions.
Clérigos
vêm aos estudos de todas as nações
E no
inverno se reúnem em vários grupos.
Fazem-se
leituras e escutam, instruindo-se;
No
verão regressam muitos às suas regiões.
O seu
vaivém é perpétuo. Partem para alcançar a universidade da sua escolha, voltam
para as suas terras nas férias, põem-se a caminho para aproveitar as lições de
um professor de nomeada ou estudar uma matéria na qual determinada cidade se
especializou. Já mencionamos as “fugas” dos candidatos aos exames de direito
canônico para Orleans, e isto se repete constantemente, por vezes entre cidades
muito distantes. Estudantes e professores são freqüentadores das estradas reais.
A cavalo e mais freqüentemente a pé, percorrem léguas e léguas, dormindo em
celeiros ou na hospedaria. Com os peregrinos e os mercadores, são eles que mais
contribuem para a extraordinária animação que na Idade Média reinou nas nossas
estradas, e que elas apenas reencontraram no século do automóvel, ou melhor,
depois do desenvolvimento dos desportos de ar livre. O mundo letrado da época é
um mundo itinerante. A tal ponto que em alguns o movimento se torna uma
necessidade, uma mania.”
* -
Diz Luchaire: “Em cada diocese fora das escolas rurais ou paroquiais que já
existiam, os capítulos e os mosteiros principais tinham as suas escolas, o seu
pessoal de professores e de alunos” (La société française au temps de
Philippe-Auguste, p. 68).
** -
Cf. Livro VII, c. 29, citado por J. Guiraud, Histoire partiale, histoire
vraie, p. 348.
“A universidade foi o grande orgulho da Idade Média. Os papas falam com
benevolência desse “rio de ciência que, através das suas múltiplas derivações,
irriga e fecunda o terreno da Igreja universal”. Nota-se, não sem satisfação,
que em Paris a multidão dos estudantes é tal que o seu número chega a
ultrapassar o da população.* É-se cheio de indulgência por eles, e gozam da
simpatia geral apesar das suas ”gracinhas” e pilhérias, que frequentemente incomodam
os burgueses. Algumas cenas da sua vida foram descritas por um dos escultores
do portal Saint-Étienne, em Notre-Dame de Paris: Vemo-los a ler e estudar; uma
mulher vem perturbá-los, e arranca-os dos seus livros; para a punir, é colocada
no pelourinho por ordem da autoridade. Os reis dão o exemplo desse modo de
tratar os “escolares” como meninos mimados: Filipe Augusto, depois da batalha
de Bouvines, mandou um mensageiro anunciar a sua vitória em primeiro lugar aos
estudantes parisienses.
Tudo
o que respeita ao saber é assim honrado na Idade Média: “Com desonra morra
merecidamente quem não gosta de livro”, dizia um provérbio.** Basta
inclinarmo-nos sobre os textos para encontrar sinal das medidas pelas quais
qualquer apetite de ciência era encorajado e alimentado. Entre outras, citamos
a criação em 1215 de uma cátedra de teologia em Paris, especialmente para permitir
aos padres da diocese aperfeiçoarem-se e completarem os seus estudos, o que
testemunha a preocupação de manter um grau elevado de instrução, mesmo no baixo
clero. O “homem avisado”, esse tipo de homem completo que foi o ideal do século
XIII, devia ser necessariamente um letrado.
Nestas
condições, podemos perguntar-nos se na Idade Média o povo era tão ignorante
como em geral se supõe. Ele tinha ao seu alcance, incontestavelmente, os meios
de se instruir, e a pobreza não era um obstáculo, uma vez que o custeio dos
estudos podia ser inteiramente gratuito, da escola da aldeia (ou antes, da
paróquia) até à universidade. E ele aproveitava-se disso, uma vez que abundam
os exemplos de pessoas humildes tornadas grandes clérigos.
Significa
isto que a instrução estava tão divulgada como nos nossos dias? Parece que
sobre este ponto houve um mal-entendido, pois mais ou menos se confundiu a
cultura com a letra, pois para nós um iletrado é fatalmente um ignorante. O
número de iletrados era sem dúvida maior na Idade Média do que na nossa época.***
Mas é justo este ponto de vista? O alfabeto pode ser tomado como único critério
da cultura? Do fato de a educação se ter tornado sobretudo visual, pode-se
concluir que o homem apenas se educa pela visão?
Num
capítulo dos estatutos municipais de Marselha, datando do século XIII, depois
de enumerar as qualidades exigidas de um bom advogado, acrescenta-se litteratus
vel non litteratus (quer seja letrado, quer não). Isto parece muito
significativo, pois pode-se ser um bom advogado sem saber ler nem escrever, ou
seja, conhecer o costume, o direito romano, o manejo da linguagem e ignorar o
alfabeto. Noção que nos é difícil de admitir, mas que contudo é de importância
capital para compreender a Idade Média. Era-se mais instruído então pelo ouvido
do que pela leitura. Por muito honrados que sejam, os livros e os escritos têm
apenas um lugar secundário. O papel de primeiro plano é reservado à palavra, ao
verbo, em todas as circunstâncias da vida. Nos nossos dias, oficiais e
funcionários redigem relatórios, mas na Idade Média aconselham-se e deliberam;
uma tese não é uma obra impressa, é uma discussão; a conclusão de um ato não é
uma assinatura aposta ao fim de um escrito, é a tradição manual ou empenhamento
verbal; governar é informar-se, inquirir, depois fazer proclamar as decisões.
(...)
Significa isto que a instrução
estava tão divulgada como nos nossos dias? Parece que sobre este ponto houve um
mal-entendido, pois mais ou menos se confundiu a cultura com a letra, pois para
nós um iletrado é fatalmente um ignorante. O número de iletrados era sem dúvida
maior na Idade Média do que na nossa época.**** Mas é justo este ponto de
vista? O alfabeto pode ser tomado como único critério da cultura? Do fato de a
educação se ter tornado sobretudo visual, pode-se concluir que o homem apenas
se educa pela visão?
Num capítulo dos estatutos
municipais de Marselha, datando do século XIII, depois de enumerar as
qualidades exigidas de um bom advogado, acrescenta-se litteratus vel non
litteratus (quer seja letrado, quer não). Isto parece muito significativo,
pois pode-se ser um bom advogado sem saber ler nem escrever, ou seja, conhecer
o costume, o direito romano, o manejo da linguagem e ignorar o alfabeto. Noção
que nos é difícil de admitir, mas que contudo é de importância capital para
compreender a Idade Média. Era-se mais instruído então pelo ouvido do que pela
leitura. Por muito honrados que sejam, os livros e os escritos têm apenas um
lugar secundário. O papel de primeiro plano é reservado à palavra, ao verbo, em
todas as circunstâncias da vida. Nos nossos dias, oficiais e funcionários redigem
relatórios, mas na Idade Média aconselham-se e deliberam; uma tese não é uma
obra impressa, é uma discussão; a conclusão de um ato não é uma assinatura
aposta ao fim de um escrito, é a tradição manual ou empenhamento verbal;
governar é informar-se, inquirir, depois fazer proclamar as decisões.
Um elemento essencial da vida medieval foi a pregação. Nessa época, pregar
não era monologar em termos escolhidos perante um auditório silencioso e convencido.
Pregava-se um pouco por todo lado, não apenas nas igrejas, mas também nos mercados,
nos campos de feira, no cruzamento das estradas; e de modo muito vivo, cheio de
calor e de ímpeto. O pregador dirigia-se ao auditório, respondia às suas perguntas,
admitia mesmo as suas contradições, os seus rumores, as suas invectivas. Um sermão
agia sobre a multidão, podia desencadear imediatamente uma cruzada, propagar uma
heresia, preparar revoltas. O papel didático dos clérigos era então imenso. Eram
eles que ensinavam aos fiéis a sua história e as suas lendas, a sua ciência e a
sua fé; que comunicavam os grandes acontecimentos, transmitia de uma ponta à outra
da Europa a notícia da tomada de Jerusalém, ou a da perda de Saint-Jean d’Acre;
que aconselhavam uns e guiavam outros, mesmo nos seus negócios profanos. Nos nossos
dias são prejudicados nos seus estudos e na vida aqueles que não têm memória visual,
a qual no entanto é mais rara, de exercício mais automático e menos racional que
a memória auditiva. Na Idade Média a pessoa instruía-se escutando, e a palavra era
de ouro.”
* - A
afirmação não pode ser tomada à letra, mas não deixa de ter interesse saber que
a população parisiense nessa época compreendia pouco mais de quarenta mil
habitantes.
** -
Renart, Prov. franç., II, 99.
*** -
De fato é bem menos do que se disse, uma vez que a maior parte das testemunhas
que intervêm nos atos notariais sabem assinar; e entre outros exemplos tem-se o
de Joana d’Arc, pequena camponesa que contudo sabia escrever.
****
- De fato é bem menos do que se disse, uma vez que a maior parte das
testemunhas que intervêm nos atos notariais sabem assinar; e entre outros
exemplos tem-se o de Joana d’Arc, pequena camponesa que contudo sabia escrever.
“Para nós, uma obra literária é coisa pessoal e imutável, fixada na forma
que o seu autor lhe deu, daí a nossa obsessão contra o plágio. Na Idade Média,
o anonimato é corrente. Uma ideia, uma vez emitida, pertence imediatamente ao
domínio público, passa de mão em mão, ornamenta-se com mil fantasias, sofre
todas as adaptações imagináveis, e só cai no esquecimento quando dela se
esgotaram os múltiplos aspectos. O poema leva uma vida independente do seu
criador, é coisa móvel e renasce incessantemente. Qualquer achado literário é
retomado, modificado, amplificado, rejuvenescido com o movimento e a animação
que caracterizam a vida. O erro dos críticos alemães, vendo na Chanson de
Roland uma obra coletiva e impessoal, explica-se ao considerar esse caráter
fluido das nossas grandes gestas, e em geral das produções literárias da Idade
Média. Na sua origem houve certamente uma atividade precisa, mas elas não
deixaram de evoluir, ao gosto dos poetas que as enriqueciam com uma nova seiva,
ou simplesmente dos jograis que as recitavam a seu modo e nelas inseriam
episódios da sua lavra.”
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