sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Luz Sobre a Idade Média (Parte III), de Régine Pernoud

Editora: Publicações Europa-América

ISBN: 978-97-2104-279-7

Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 208

Sinopse: Ver Parte I

 

Uma das funções da Igreja e dos seus tribunais é a luta contra a heresia. Toca-se aqui numa característica essencial da vida medieval, que só depois veio frequentemente a fazer escândalo. Para o apreender bem, é preciso compreender que a Igreja é então a garantia da ordem social, e que tudo aquilo que a ameaça atinge ao mesmo tempo a sociedade civil. Tanto mais que as heresias suscitam frequentemente mais violentas reprovações nos laicos que nos clérigos. Temos nos nossos dias dificuldade em retratar, por exemplo, o profundo mal-estar produzido na sociedade pela heresia albigense, simplesmente pelo fato de ela proscrever o juramento. Mas isso consistia em atacar a própria essência da vida medieval, que era o vínculo feudal. Todo o fundamento da feudalidade se encontrava abalado por isso.* Daí as reações vigorosas, excessivas por vezes, às quais se assistiu.

Devem esses excessos ser atribuídos à Igreja? Luchaire, pouco suspeito de indulgência para com ela, vê no papado um “poder essencialmente moderador” na luta contra a heresia. Com efeito, é o que ressalta das relações entre Inocêncio III e Raimundo de Toulouse e da correspondência do Papa com os seus núncios. Por outro lado, o exame de casos particulares revela claramente que pilhagens e massacres, quando se realizam, são ato de uma minoria excitada, que depois é vivamente censurada pela autoridade eclesiástica. Já citamos a carta de São Bernardo aos burgueses de Colônia depois do massacre de heréticos que teve lugar em 1145: “O povo de Colônia ultrapassou os limites. Se aprovamos o seu zelo, não aprovamos de modo nenhum o que ele fez, porque a fé é obra de persuasão e não se impõe”.**

Como acontece frequentemente, os laicos são muito menos moderados nos seus juízos e mais impiedosos que os clérigos. Além disso, neles as preocupações materiais se juntam às preocupações doutrinais, para as agravar. O primeiro soberano que aplica a pena de fogo aos heréticos, condenados a ser entregues ao braço secular, é o imperador Frederico II. Não podemos admirar-nos disso, visto sabermos que o personagem era bem pouco cioso da ortodoxia: um espírito dos mais “modernos”; facilmente cético, nada menos que obrigado a obedecer às objurgações do Papa; e quando faz cruzada, ostenta durante toda ela o mais profundo desprezo pelos seus correligionários, com a mais viva simpatia pelos muçulmanos. É bem provável, desde logo, que a preservação contra as heresias só o devia interessar de um modo muito secundário. Político prudente, no entanto, ele sentira o perigo que os heréticos representavam para a sociedade temporal.

Os massacres de judeus na ocasião da primeira cruzada não são cometidos pelos exércitos de Pedro, o Eremita, ou de Gautier Sans Avoir, mas são ordenados na Alemanha por um senhor laico, o conde Ennrich de Leiningen, depois da partida dos cruzados. Aliás, as expulsões de judeus foram, pelo menos em França, muito menos numerosas do que se tem dito, uma vez que apenas houve três de alcance geral: uma sob São Luís, por ocasião da sua cruzada; as duas outras sob Filipe, o Belo, ordenadas por razões financeiras.

A Inquisição adquiriu a sua deplorável reputação devido a uma ação semelhante dos poderes laicos, desviando esse instrumento em seu favor, para fazer das medidas da Igreja um instrumento de dominação – por vezes, entende-se, com a cumplicidade de certos eclesiásticos isolados. Contudo, ela só teve um caráter verdadeiramente sangrento e feroz na Espanha imperial do início do século XVI. Durante toda a Idade Média, é apenas um tribunal eclesiástico destinado a “exterminar” a heresia, quer dizer, expulsá-la para fora dos limites (ex terminis) do reino. As penitências que impõe não saem do âmbito das penitências eclesiásticas, ordenadas em confissão: esmolas, peregrinações, jejuns. Somente nos casos graves o culpado é entregue ao braço secular, o que significa que incorre em penas civis, como a prisão ou a morte, pois o tribunal eclesiástico não tem o direito de pronunciar ele próprio semelhantes penas.

Segundo declaração de autores que estudaram a Inquisição pelos seus autos — não importa quais sejam as suas tendências — ela apenas fez “poucas vítimas”. Esta é a expressão de Lea, escritor protestante traduzido em francês por Salomon Reinach (Histoire de l’inquisition, t. 1, p. 489). Em 930 condenações produzidas pelo inquisidor Bernard Gui durante a sua carreira, apenas 42 conduziram à pena de morte. Quanto à tortura, em toda a história da Inquisição no Languedoc apenas se assinalam três casos confirmados em que ela foi aplicada, indicando um uso muito longe de ser generalizado. Por outro lado, para que ela fosse aplicada era preciso que houvesse começo de prova, só podia servir para fazer completar confissões já feitas. Acrescentemos que, como todos os tribunais eclesiásticos, o da Inquisição ignora a prisão preventiva e deixa os acusados em liberdade até à apresentação de provas da sua culpabilidade.”

* – A observação foi feita por M. Belperron na sua obra sobre La croisade des albigeois (p. 76)

** – Idem, p. 115.

 

 

Na Idade Média, como em todas as épocas, a criança vai à escola. Em geral, à escola da sua paróquia ou do mosteiro mais próximo. Todas as igrejas agregam a si uma escola, pois o concílio de Latrão, em 1179, faz-lhes disso uma obrigação estrita. É uma disposição corrente, ainda visível na Inglaterra, encontrar reunidos a igreja, o cemitério e a escola. Frequentemente, são também as fundações senhoriais que asseguram a instrução das crianças: Rosny, uma aldeiazinha das margens do Sena, tinha desde o início do século XIII uma escola, fundada por volta do ano 1200 pelo seu senhor Guy V Mauvoisin. Por vezes também, trata-se de escolas puramente privadas, quando os habitantes de um lugarejo associam-se para sustentar um professor encarregado de ensinar as crianças. Um pequeno texto divertido conservou-nos a petição de alguns pais solicitando a demissão de um professor. Não tendo sabido fazer-se respeitar pelos seus alunos, foi por eles desrespeitado, ao ponto de eles o picarem com os seus grafiones (eum pugiunt grafionibus), isto é, os estiletes com os quais eles escrevem nas suas tabuinhas revestidas de cera.

Mas os privilegiados são evidentemente aqueles que podem aproveitar o ensino das escolas episcopais ou monásticas, ou ainda das escolas capitulares, porque os capítulos das catedrais estavam submetidos à obrigação de ensinar o que o referido concílio de Latrão lhes fixara.* Algumas adquiriram na Idade Média uma notabilidade muito particular. Por exemplo, as de Chartres, Lyon, Mans, onde os alunos representavam as tragédias antigas; a de Lisieux, onde no início do século XII o bispo em pessoa se deleitava em ensinar; a de Cambrai, sobre a qual um texto citado pelo erudito Pithou nos informa que elas tinham sido estabelecidas especialmente a fim de serem úteis ao povo na condução dos seus assuntos temporais.

As escolas monásticas tiveram talvez ainda mais renome, como as de Bec e Fleury-sur-Loire, onde foi aluno o rei Roberto, o Piedoso; a de Saint-Géraud d’Aurillac, onde Gerbert aprendeu os primeiros rudimentos das ciências que ele próprio iria levar até um tão alto grau de perfeição; a de Marmoutier, perto de Tours; a de Saint-Bénigne de Dijon, etc. Em Paris encontram-se desde o século XII três séries de estabelecimentos escolares: a escola Notre-Dame, ou grupo de escolas do bispado, cuja direção é assumida pelo chantre para as classes elementares, e pelo chanceler para o grau superior; as escolas de abadias como Sainte-Geneviève, Saint-Victor ou Saint-Germain-des-Prés; e enfim as instituições particulares abertas por professores que obtiveram a licença de ensino, como por exemplo Abelardo.

A criança era aí admitida com sete ou oito anos de idade, e o ensino que preparava para os estudos da universidade estendia-se como hoje por uma dezena de anos. São os números que fornece o abade Gilles de Muisit. Os rapazes eram separados das moças, que tinham em geral os seus estabelecimentos particulares, menos numerosos talvez, mas onde os estudos eram por vezes muito ativos. A abadia de Argenteuil, onde foi educada Heloísa, ensinava às moças a Sagrada Escritura, as letras, a medicina e mesmo a cirurgia, sem contar o grego e o hebraico que Abelardo lá ensinou. Em geral, as pequenas escolas proporcionavam aos seus alunos as noções de gramática, aritmética, geometria, música e teologia, que lhes permitiriam aceder às ciências estudadas nas universidades. É possível que algumas tenham comportado uma espécie de ensino técnico. A Histoire Littéraire cita, por exemplo, a escola de Vassor, na diocese de Metz, na qual, enquanto se aprendia a Sagrada Escritura e as letras, se trabalhava o ouro, a prata, o cobre.**

Os mestres eram quase sempre secundados pelos estudantes mais velhos e mais formados, como atualmente no ensino mútuo. Diz Gilles de Muisit, lembrando as suas recordações de juventude:

 

C’étoit ce belle chose de plenté d’écoliers:

Ils manoient ensemble par loges, par soliers,

Enfants de riches hommes et enfants de toiliers.

 

Que bela coisa ver a quantidade de aprendizes:

Habitavam desvãos e quartos, em comum,

Filhos de homens ricos e filhos de artesãos.

 

De fato, nessa época as crianças de todas as “classes” da sociedade eram instruídas juntas, como o testemunha a anedota célebre de Carlos Magno sendo severo para com os filhos dos barões que se mostravam preguiçosos, ao contrário dos filhos dos servos e de pessoas pobres. A única distinção estabelecida consistia nas retribuições: ensino gratuito para os pobres e pago para os ricos. Esta gratuidade podia prolongar-se por toda a duração dos estudos, e mesmo para o acesso ao ensino, uma vez que às pessoas que têm a missão de dirigir e tomar conta das escolas o concílio de Latrão proíbe “exigir dos candidatos ao professorado uma qualquer remuneração pela outorga da licença”.

Há pouca diferença, na Idade Média, na educação dada às crianças de diversas condições. Os filhos dos vassalos menores são educados na residência senhorial, juntamente com os do suserano, e os dos ricos burgueses são submetidos à mesma aprendizagem que o último dos artesãos, se estes querem futuramente tomar conta da loja paterna. É sem dúvida por isto que temos tantos exemplos de grandes personagens saídos de famílias de condição humilde: Suger, que governa a França durante a cruzada de Luís VII, é filho de servos; Maurice de Sully, o bispo de Paris que mandou construir Notre-Dame, nasceu de um mendigo; São Pedro Damião foi guarda-porcos na sua infância; e uma das mais vivas luzes da ciência medieval, Gerbert d’Aurillac, é igualmente pastor; o papa Urbano VI é filho de um pequeno sapateiro de Troyes; e Gregório VII, o grande papa da Idade Média, era filho de um pobre cabreiro.

Inversamente, muitos dos grandes senhores são letrados cuja educação não devia diferir muito da dos clérigos. Roberto, o Piedoso, compõe hinos e seqüências latinas; Guilherme IX, príncipe da Aquitânia, é cronologicamente o primeiro dos trovadores; Ricardo Coração-de-Leão deixou-nos poemas, assim como os senhores de Ussel, dos Baux e tantos outros. E há casos mais excepcionais, como o do rei da Espanha Afonso X, o Astrônomo, que escreve sucessivamente poemas e obras de direito, faz progredir notavelmente os conhecimentos astronômicos da época com a redação das suas Tables alphonsines (Tabelas afonsinas), deixa uma vasta Chronique (Crônica) sobre as origens da história da Espanha e uma compilação de direito canônico e de direito romano, que foi o primeiro Code (Código) do seu país.

Os estudantes mais dotados tomam naturalmente o caminho da universidade. Fazem a sua escolha segundo o ramo que os atrai, pois cada uma tem algo do que se pode considerar uma especialidade. Em Montpellier, é a medicina. Desde 1181 Guilherme VII, senhor desta cidade, deu a qualquer particular — quem quer que seja, e venha de onde vier — a liberdade de ensinar esta arte, desde que apresente suficientes garantias de saber. Orleans tem como especialidade o direito canônico, e Bologne o direito romano. Mas “nada se pode comparar a Paris”, onde o ensino das artes liberais e da teologia atrai os estudantes de todos os países – Alemanha, Itália, Inglaterra, e mesmo da Dinamarca ou Noruega.

Estas universidades são criações eclesiásticas, de algum modo o prolongamento das escolas episcopais, das quais diferem no fato de dependerem diretamente do Papa, e não do bispo do lugar. A bula Parens scientiarum, de Gregório IX, pode ser considerada a carta de fundação da universidade medieval, com os regulamentos promulgados em 1215 pelo cardeal-núncio Roberto de Courçon, agindo em nome de Inocêncio III, e que reconheciam explicitamente aos professores e aos alunos o direito de associação. Criada pelo papado, a universidade tem um caráter inteiramente eclesiástico. Os professores pertencem todos à Igreja, e as duas grandes ordens que a ilustram no século XIII – franciscana e dominicana – nela vão cobrir-se de glória com um S. Boaventura e um S. Tomás de Aquino. Os alunos, mesmo os que não se destinam ao sacerdócio, são chamados clérigos, e alguns deles usam a tonsura, o que não quer dizer que aí apenas se ensine a teologia, uma vez que o seu programa comporta todas as grandes disciplinas científicas e filosóficas, da gramática à dialética, passando pela música e pela geometria.

Essa “universidade” de professores e estudantes forma um corpo livre. Desde o ano 1200, Filipe Augusto tinha subtraído os seus membros da jurisdição civil — dito de outra maneira, dos seus próprios tribunais. Professores, alunos e mesmo os criados destes dependem apenas dos tribunais eclesiásticos, o que é considerado um privilégio e consagra a autonomia dessa corporação de elite. Professores e estudantes estão, portanto, inteiramente isentos de obrigações relativamente ao poder central. Administram-se a si próprios, tomando em comum as decisões que lhes respeitam, e gerem sua tesouraria sem nenhuma ingerência do Estado. É esta a característica essencial da universidade medieval, e provavelmente aquela que mais a distingue da de hoje.

Esta liberdade favorece entre as diversas cidades uma emulação, da qual teríamos dificuldade em fazer uma idéia atualmente. Durante anos, os professores de Direito Canônico de Orleans e de Paris disputam entre si os alunos. Os registros da Faculdade de Decreto, publicados na coleção dos Documents inédits, formigam de recriminações a propósito dos estudantes parisienses, que vão fraudulentamente concluir a sua licenciatura em Orleans, onde os exames são mais fáceis. Ameaças, anulações, processos, nada surte efeito, e as contestações prolongam-se interminavelmente. Emulação também a respeito dos professores mais estimados ou menos, das discussões apaixonadas das teses, que os estudantes tomam a peito até ao ponto de algumas vezes entrar em greve. A universidade, mais ainda do que nos nossos dias, é na Idade Média um mundo turbulento.

É também um mundo cosmopolita. As quatro “nações” entre as quais estavam repartidos os clérigos parisienses indicam-no suficientemente: havia os picardos, os ingleses, os alemães e os franceses. Os estudantes vindos de cada um destes países eram, portanto, suficientemente numerosos para formar um grupo que tinha a sua autonomia, os seus representantes, a sua atividade particular. Fora disto, assinalam-se correntemente nos registros nomes italianos, dinamarqueses, húngaros e outros. Os professores que ensinam vêm também de todas as partes do mundo. Siger de Brabant e Jean de Salisbury, seus nomes já os identificam; Alberto Magno vem da Renânia; S. Tomás de Aquino e S. Boaventura, da Itália. Não há então obstáculo às trocas de pensamento, e só se julga um professor pela amplidão do seu saber.

Esse mundo matizado possui uma língua comum, o latim, única falado na universidade. É sem dúvida o que lhe evita ser uma nova Torre de Babel, apesar dos grupos diversificados de que é composta. O uso do latim facilita as relações, permite aos sábios comunicar-se de uma ponta à outra da Europa, dissipa de antemão qualquer confusão na expressão, e salvaguarda também a unidade de pensamento.

Os problemas que apaixonam os filósofos são os mesmos em Paris, Edimburgo, Oxford, Colônia, Pavia, ainda que cada centro e cada personalidade lhes imprima o seu caráter próprio. Tomás de Aquino, vindo da Itália, acaba de esclarecer e ultimar em Paris uma doutrina cujas bases concebera em Colônia, escutando as lições de Alberto Magno. Nada se parece menos com um vaso fechado do que a Sorbonne do século XIII. Gilles de Muisit resume deste modo a vida dos estudantes:

 

Clercs viennent à études de toutes nations

Et en hiver s’assemblent par plusiers légions.

On leur lit e ils oient pour leur instruction;

En été s’en retraient moult en leurs régions.

 

Clérigos vêm aos estudos de todas as nações

E no inverno se reúnem em vários grupos.

Fazem-se leituras e escutam, instruindo-se;

No verão regressam muitos às suas regiões.

 

O seu vaivém é perpétuo. Partem para alcançar a universidade da sua escolha, voltam para as suas terras nas férias, põem-se a caminho para aproveitar as lições de um professor de nomeada ou estudar uma matéria na qual determinada cidade se especializou. Já mencionamos as “fugas” dos candidatos aos exames de direito canônico para Orleans, e isto se repete constantemente, por vezes entre cidades muito distantes. Estudantes e professores são freqüentadores das estradas reais. A cavalo e mais freqüentemente a pé, percorrem léguas e léguas, dormindo em celeiros ou na hospedaria. Com os peregrinos e os mercadores, são eles que mais contribuem para a extraordinária animação que na Idade Média reinou nas nossas estradas, e que elas apenas reencontraram no século do automóvel, ou melhor, depois do desenvolvimento dos desportos de ar livre. O mundo letrado da época é um mundo itinerante. A tal ponto que em alguns o movimento se torna uma necessidade, uma mania.”

* - Diz Luchaire: “Em cada diocese fora das escolas rurais ou paroquiais que já existiam, os capítulos e os mosteiros principais tinham as suas escolas, o seu pessoal de professores e de alunos” (La société française au temps de Philippe-Auguste, p. 68).

** - Cf. Livro VII, c. 29, citado por J. Guiraud, Histoire partiale, histoire vraie, p. 348.

 

 

A universidade foi o grande orgulho da Idade Média. Os papas falam com benevolência desse “rio de ciência que, através das suas múltiplas derivações, irriga e fecunda o terreno da Igreja universal”. Nota-se, não sem satisfação, que em Paris a multidão dos estudantes é tal que o seu número chega a ultrapassar o da população.* É-se cheio de indulgência por eles, e gozam da simpatia geral apesar das suas ”gracinhas” e pilhérias, que frequentemente incomodam os burgueses. Algumas cenas da sua vida foram descritas por um dos escultores do portal Saint-Étienne, em Notre-Dame de Paris: Vemo-los a ler e estudar; uma mulher vem perturbá-los, e arranca-os dos seus livros; para a punir, é colocada no pelourinho por ordem da autoridade. Os reis dão o exemplo desse modo de tratar os “escolares” como meninos mimados: Filipe Augusto, depois da batalha de Bouvines, mandou um mensageiro anunciar a sua vitória em primeiro lugar aos estudantes parisienses.

Tudo o que respeita ao saber é assim honrado na Idade Média: “Com desonra morra merecidamente quem não gosta de livro”, dizia um provérbio.** Basta inclinarmo-nos sobre os textos para encontrar sinal das medidas pelas quais qualquer apetite de ciência era encorajado e alimentado. Entre outras, citamos a criação em 1215 de uma cátedra de teologia em Paris, especialmente para permitir aos padres da diocese aperfeiçoarem-se e completarem os seus estudos, o que testemunha a preocupação de manter um grau elevado de instrução, mesmo no baixo clero. O “homem avisado”, esse tipo de homem completo que foi o ideal do século XIII, devia ser necessariamente um letrado.

Nestas condições, podemos perguntar-nos se na Idade Média o povo era tão ignorante como em geral se supõe. Ele tinha ao seu alcance, incontestavelmente, os meios de se instruir, e a pobreza não era um obstáculo, uma vez que o custeio dos estudos podia ser inteiramente gratuito, da escola da aldeia (ou antes, da paróquia) até à universidade. E ele aproveitava-se disso, uma vez que abundam os exemplos de pessoas humildes tornadas grandes clérigos.

Significa isto que a instrução estava tão divulgada como nos nossos dias? Parece que sobre este ponto houve um mal-entendido, pois mais ou menos se confundiu a cultura com a letra, pois para nós um iletrado é fatalmente um ignorante. O número de iletrados era sem dúvida maior na Idade Média do que na nossa época.*** Mas é justo este ponto de vista? O alfabeto pode ser tomado como único critério da cultura? Do fato de a educação se ter tornado sobretudo visual, pode-se concluir que o homem apenas se educa pela visão?

Num capítulo dos estatutos municipais de Marselha, datando do século XIII, depois de enumerar as qualidades exigidas de um bom advogado, acrescenta-se litteratus vel non litteratus (quer seja letrado, quer não). Isto parece muito significativo, pois pode-se ser um bom advogado sem saber ler nem escrever, ou seja, conhecer o costume, o direito romano, o manejo da linguagem e ignorar o alfabeto. Noção que nos é difícil de admitir, mas que contudo é de importância capital para compreender a Idade Média. Era-se mais instruído então pelo ouvido do que pela leitura. Por muito honrados que sejam, os livros e os escritos têm apenas um lugar secundário. O papel de primeiro plano é reservado à palavra, ao verbo, em todas as circunstâncias da vida. Nos nossos dias, oficiais e funcionários redigem relatórios, mas na Idade Média aconselham-se e deliberam; uma tese não é uma obra impressa, é uma discussão; a conclusão de um ato não é uma assinatura aposta ao fim de um escrito, é a tradição manual ou empenhamento verbal; governar é informar-se, inquirir, depois fazer proclamar as decisões. (...)

Nestas condições, podemos perguntar-nos se na Idade Média o povo era tão ignorante como em geral se supõe. Ele tinha ao seu alcance, incontestavelmente, os meios de se instruir, e a pobreza não era um obstáculo, uma vez que o custeio dos estudos podia ser inteiramente gratuito, da escola da aldeia (ou antes, da paróquia) até à universidade. E ele aproveitava-se disso, uma vez que abundam os exemplos de pessoas humildes tornadas grandes clérigos.

Significa isto que a instrução estava tão divulgada como nos nossos dias? Parece que sobre este ponto houve um mal-entendido, pois mais ou menos se confundiu a cultura com a letra, pois para nós um iletrado é fatalmente um ignorante. O número de iletrados era sem dúvida maior na Idade Média do que na nossa época.**** Mas é justo este ponto de vista? O alfabeto pode ser tomado como único critério da cultura? Do fato de a educação se ter tornado sobretudo visual, pode-se concluir que o homem apenas se educa pela visão?

Num capítulo dos estatutos municipais de Marselha, datando do século XIII, depois de enumerar as qualidades exigidas de um bom advogado, acrescenta-se litteratus vel non litteratus (quer seja letrado, quer não). Isto parece muito significativo, pois pode-se ser um bom advogado sem saber ler nem escrever, ou seja, conhecer o costume, o direito romano, o manejo da linguagem e ignorar o alfabeto. Noção que nos é difícil de admitir, mas que contudo é de importância capital para compreender a Idade Média. Era-se mais instruído então pelo ouvido do que pela leitura. Por muito honrados que sejam, os livros e os escritos têm apenas um lugar secundário. O papel de primeiro plano é reservado à palavra, ao verbo, em todas as circunstâncias da vida. Nos nossos dias, oficiais e funcionários redigem relatórios, mas na Idade Média aconselham-se e deliberam; uma tese não é uma obra impressa, é uma discussão; a conclusão de um ato não é uma assinatura aposta ao fim de um escrito, é a tradição manual ou empenhamento verbal; governar é informar-se, inquirir, depois fazer proclamar as decisões.

Um elemento essencial da vida medieval foi a pregação. Nessa época, pregar não era monologar em termos escolhidos perante um auditório silencioso e convencido. Pregava-se um pouco por todo lado, não apenas nas igrejas, mas também nos mercados, nos campos de feira, no cruzamento das estradas; e de modo muito vivo, cheio de calor e de ímpeto. O pregador dirigia-se ao auditório, respondia às suas perguntas, admitia mesmo as suas contradições, os seus rumores, as suas invectivas. Um sermão agia sobre a multidão, podia desencadear imediatamente uma cruzada, propagar uma heresia, preparar revoltas. O papel didático dos clérigos era então imenso. Eram eles que ensinavam aos fiéis a sua história e as suas lendas, a sua ciência e a sua fé; que comunicavam os grandes acontecimentos, transmitia de uma ponta à outra da Europa a notícia da tomada de Jerusalém, ou a da perda de Saint-Jean d’Acre; que aconselhavam uns e guiavam outros, mesmo nos seus negócios profanos. Nos nossos dias são prejudicados nos seus estudos e na vida aqueles que não têm memória visual, a qual no entanto é mais rara, de exercício mais automático e menos racional que a memória auditiva. Na Idade Média a pessoa instruía-se escutando, e a palavra era de ouro.”

* - A afirmação não pode ser tomada à letra, mas não deixa de ter interesse saber que a população parisiense nessa época compreendia pouco mais de quarenta mil habitantes.

** - Renart, Prov. franç., II, 99.

*** - De fato é bem menos do que se disse, uma vez que a maior parte das testemunhas que intervêm nos atos notariais sabem assinar; e entre outros exemplos tem-se o de Joana d’Arc, pequena camponesa que contudo sabia escrever.

**** - De fato é bem menos do que se disse, uma vez que a maior parte das testemunhas que intervêm nos atos notariais sabem assinar; e entre outros exemplos tem-se o de Joana d’Arc, pequena camponesa que contudo sabia escrever.

 

 

Para nós, uma obra literária é coisa pessoal e imutável, fixada na forma que o seu autor lhe deu, daí a nossa obsessão contra o plágio. Na Idade Média, o anonimato é corrente. Uma ideia, uma vez emitida, pertence imediatamente ao domínio público, passa de mão em mão, ornamenta-se com mil fantasias, sofre todas as adaptações imagináveis, e só cai no esquecimento quando dela se esgotaram os múltiplos aspectos. O poema leva uma vida independente do seu criador, é coisa móvel e renasce incessantemente. Qualquer achado literário é retomado, modificado, amplificado, rejuvenescido com o movimento e a animação que caracterizam a vida. O erro dos críticos alemães, vendo na Chanson de Roland uma obra coletiva e impessoal, explica-se ao considerar esse caráter fluido das nossas grandes gestas, e em geral das produções literárias da Idade Média. Na sua origem houve certamente uma atividade precisa, mas elas não deixaram de evoluir, ao gosto dos poetas que as enriqueciam com uma nova seiva, ou simplesmente dos jograis que as recitavam a seu modo e nelas inseriam episódios da sua lavra.”

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