segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Vidas secas – Graciliano Ramos

Editora: Record
ISBN: 978-85-0106-734-0
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 178
Sinopse: Vidas Secas, lançado originalmente em 1938, é o romance em que Graciliano alcança o máximo da expressão que vinha buscando em sua prosa. O que impulsiona os personagens é a seca, áspera e cruel, e paradoxalmente a ligação telúrica, afetiva, que expõe naqueles seres em retirada, à procura de meios de sobrevivência e um futuro.



“[Fabiano] Vivia longe dos homens, só se dava bem com animais. Os seus pés duros quebravam espinhos e não sentiam a quentura da terra. Montado, confundia-se com o cavalo, grudava-se a ele. E falava uma linguagem cantada, monossilábica e gutural, que o companheiro entendia. A pé, não se aguentava bem. Pendia para um lado, para o outro lado, cambaio, torto e feio. Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a mesma língua com que se dirigia aos brutos - exclamações, onomatopéias. Na verdade falava pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez perigosas.”


“Seu Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e livros, mas não sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem remediado ser cortês. Até o povo censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam a ele. Ah! Quem disse que não obedeciam?
Os outros brancos eram diferentes. O patrão atual, por exemplo, berrava sem precisão. Quase nunca vinha à fazenda, só botava os pés nela para achar tudo ruim. O gado aumentava, o serviço ia bem, mas o proprietário descompunha o vaqueiro. Natural. Descompunha porque podia descompor, o Fabiano ouvia as descomposturas com o chapéu de couro debaixo do braço, desculpava-se e prometia emendar-se. Mentalmente jurava não emendar nada, porque estava tudo em ordem, e o amo só queria mostrar autoridade, gritar que era dono. Quem tinha dúvida?”


“[A cachorra] Baleia detestava expansões violentas: estirou as pernas, fechou os olhos e bocejou. Para ela os pontapés eram fatos desagradáveis e desnecessários. Só tinha um meio de evitá-los, a fuga. Mas às vezes apanhavam-na de surpresa, uma extremidade de alpercata batia-lhe no traseiro – saía latindo, ia esconder-se no mato, com desejo de morder canelas. Incapaz de realizar o desejo, aquietava-se.”


“Comparando-se aos tipos da cidade, Fabiano reconhecia-se inferior. Por isso desconfiava que os outros mangavam dele. Fazia-se carrancudo e evitava conversas. Só lhe falavam com o fim de tirar-lhe qualquer coisa. Os negociantes furtavam na medida, no preço e na conta. O patrão realizava com pena e tinta cálculos incompreensíveis. Da última vez que se tinham encontrado houvera uma confusão de números, e Fabiano, com os miolos ardendo, deixara indignado o escritório do branco, certo de que fora enganado. Todos lhe davam prejuízo. Os caixeiros, os comerciantes e o proprietário tiravam-lhe o couro, e os que não tinham negócio com ele riam vendo-o passar nas ruas, tropeçando. Por isso Fabiano se desviava daqueles viventes. Sabia que a roupa nova cortada e cosida por Sinhá Terta, o colarinho, a gravata, as botinas e o chapéu de baeta o tornavam ridículo, mas não queria pensar nisto.
– Preguiçosos, ladrões, faladores, mofinos.
Estava convencido de que todos os habitantes da cidade eram ruins. Mordeu os beiços. Não poderia dizer semelhante coisa. Por falta menor aguentara facão e dormira na cadeia.”

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

O Livreiro de Cabul – Åsne Seierstad

Editora: Record
ISBN: 978-85-01-07287-0
Tradução: Grete Skevik
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 322
Sinopse: Por ter vivido três meses com uma família afegã, na primavera de 2002, logo após a queda do regime talibã, a jornalista norueguesa Åsne Seierstad pôde produzir esta narrativa ímpar que mostra aspectos do país que poucos estrangeiros testemunhariam. Como ocidental, mulher e hóspede de Sultan Khan, um livreiro de Cabul, obteve o privilégio de transitar entre o universo feminino e masculino de uma sociedade islâmica fundamentalista. Preso e torturado durante o regime comunista, Sultan Khan teve sua livraria invadida e parte dos livros queimados, mas alimentava o sonho de ver seu acervo de 10 mil volumes sobre história e literatura afegã transformar-se no núcleo de uma nova Biblioteca Nacional.
Apesar da situação estável, a família do livreiro, dividia uma casa de quatro cômodos em uma cidade que se recuperava da guerra e de trágicos reflexos políticos. Os integrantes da família acostumaram-se à presença da autora sob uma burca. Assim, ela pôde observar relatos das rixas do clã; da exploração sexual das jovens viúvas que esperavam doações de alimentos das organizações de ajuda internacional; da adúltera sufocada com um travesseiro pelos três irmãos sob as ordens da mãe; do exílio no Paquistão da primeira esposa de Sultan Khan, após um segundo casamento com uma moça de 16 anos, do filho adolescente do livreiro obrigado a trabalhar 12 horas por dia sem chance de estudar.
A autora apresenta uma coleção de personagens comoventes que reflete as contradições do Afeganistão, e nos emociona sobretudo ao apresentar a rotina, a pobreza e as limitações impostas às mulheres e aos jovens do país. O protagonista, mesmo sendo um homem de letras, é um tirano na orientação familiar, nos negócios, e pautado pelo radicalismo. Prova disso é que, indignado com o trabalho da autora, o livreiro de Cabul que inspirou o personagem Sultan Khan foi à Noruega com o propósito de pedir reparação judicial.



“Uma manhã, enquanto tomava uma xícara de chá fumegante na livraria, ele percebeu que Cabul voltava à vida. Enquanto fazia planos de como realizar seu sonho, pensou numa citação do seu poeta favorito Firdausi. ‘Para se ter êxito, algumas vezes é preciso ser lobo, outras vezes cordeiro’. Estava na hora de ser lobo, Sultan pensou.”


“O divórcio nunca foi uma alternativa para Sharifa. Quando uma mulher pede o divórcio, ela praticamente perde todos os seus direitos. Os filhos seguem o marido e ele pode até impedi-la de vê-los. A mulher se torna uma vergonha para a família, é muitas vezes expulsa, e todos os seus bens cabem ao marido.”


“No Afeganistão, mulher apaixonada é tabu. É proibido pelos conceitos de honra rigorosos do clã e pelos mulás. Os jovens não têm o direito de se encontrar para amar, não têm o direito de escolher. Amor tem pouco a ver com casamento, ao contrário, pode ser um grave crime, castigado com a morte. Pessoas indisciplinadas são mortas a sangue-frio. Caso apenas um dos dois tenha de ser castigado com a morte, invariavelmente é a mulher.
Mulheres jovens são, antes de mais nada, um objeto de troca e venda. Um casamento é um contrato entre famílias ou dentro de uma família. A vantagem que o casamento pode ter para o clã é o que determina tudo – sentimentos raramente são levados em consideração. Durante séculos, as mulheres afegãs têm suportado a injustiça cometida contra elas. Mas em canções e poemas as próprias mulheres dão seu testemunho. São canções para ninguém ouvir, e até o eco permanece nas montanhas ou no deserto.
Elas protestam “se suicidando ou cantando”, escreveu o poeta afegão Sayed Bahoudin Majrouh num livro de poemas das próprias mulheres pashtun. Ele reuniu os poemas com a ajuda da cunhada. Majrouh foi assassinado por fundamentalistas em Peshawar, em 1988.
Os poemas ou rimas são passados oralmente de umas para as outras próximo ao poço, no caminho para o campo ou ao lado do forno de pão. Falam de amores proibidos, do ser amado como outro homem, nunca o marido, e do ódio ao marido, frequentemente muito mais velho do que elas. Mas expressam também o orgulho de ser mulher e a coragem demonstrada por elas. Os poemas são chamados de landay, que significa curto.
Consistem de poucas linhas, curtas e ritmadas, “como um grito ou uma facada”, escreve Majrouh.

Pessoas cruéis veem um velhinho
a caminho da minha cama
E ainda me perguntam por que choro e arranco os cabelos.

Meu Deus! De novo me mandastes a noite escura E de novo tremo da cabeça aos pés por ter que subir na cama que odeio.

Mas as mulheres nos poemas também são rebeldes, arriscando a vida por amor, numa sociedade onde a paixão é proibida e o castigo é impiedoso.

Dá-me tua mão, meu amor, vamos nos esconder no campo
Para amar ou sucumbir às facadas.

Mergulho nas águas, mas a correnteza não quer me levar. Meu marido tem sorte, meu corpo sempre volta à beira do rio.
Amanhã de manhã estarei morta por tua causa. Não diga que não me amou.

A maioria dos “gritos” é de desapontamento, por uma vida não vivida. Uma mulher pede a Deus para na próxima vida ser uma pedra em vez de mulher. Nenhum desses poemas fala de esperança, ao contrário — reina a desesperança de não se ter vivido o suficiente, de não se ter aproveitado a beleza, a juventude, os prazeres do amor.

Eu era bela como uma rosa.
Debaixo de ti fiquei amarela como uma laranja.

Eu não conhecia o sofrimento.
Por isso cresci reta, como um pinheiro.

Os poemas também estão cheios de ternura. Com uma sinceridade brutal, a mulher glorifica seu corpo, o amor carnal e o fruto proibido – como querendo chocar os homens, provocar sua virilidade.

Põe tua boca sobre a minha,
Mas deixa minha língua livre para poder falar de amor.

Pegue-me primeiro nos teus braços, me segure!
Depois te amarre às minhas coxas de veludo.

Minha boca é tua, devora-a, não tenhas medo!
Não é feita de açúcar, que se dissolve e
desaparece.

Minha boca, eu te dou com prazer. Por que
me atiças? – Já estou molhada.

Vou te fazer em cinzas.
Se eu, por um só momento, olhar na tua direção.”


O paraíso negado
Quando o Talibã assumiu o poder em Cabul em setembro de 1996, 16 decretos foram transmitidos pela Rádio Sharia. Uma nova era estava começando.
1. É proibido às mulheres andar descobertas.
É proibido aos motoristas aceitar mulheres que não estejam usando burca. Se o fizerem, o motorista será preso. Se mulheres assim forem vistas na rua, suas casas serão encontradas e seus maridos punidos. Se as mulheres vestirem roupas insinuantes ou atraentes, desacompanhadas de parentes próximos do sexo masculino, o motorista não poderá levá-las no carro.

2. Proibição contra a música.
Fitas cassetes e música são proibidas em lojas, hotéis, veículos e riquixás. Caso sejam encontradas fitas de música numa loja, seu proprietário será preso e a loja fechada. Se uma fita for encontrada num veículo, este será apreendido e o motorista será preso.

3. É proibido barbear-se.
Aquele que se barbear ou cortar a barba será preso até que a barba tenha crescido até o comprimento de um punho.

4. Oração obrigatória.
As orações devem ser observadas em horários fixos em todos os distritos. A duração exata da oração será anunciada pelo Ministério da Promoção da Virtude e Prevenção do Vício, Todo transporte fica estritamente proibido nos 15 minutos antes da oração. É obrigatório ir à mesquita durante o horário da oração. Se jovens forem vistos em lojas, serão imediatamente presos.

5. É proibido criar pombos e promover rinhas de aves.
Este passatempo deve ser reprimido. Pombos usados em jogos e rinhas serão mortos.

6. Erradicação das drogas e de seus usuários.
Usuários de drogas serão presos e o vendedor e seu estabelecimento investigados. O estabelecimento será fechado e ambos os criminosos, proprietário e usuário, serão presos e punidos.

7. É proibido soltar pipas.
Soltar pipas tem consequências nefastas, assim como o fomento a jogos de azar, mortes entre crianças e ausência do aluno nas escolas. Lojas que vendem pipas serão fechadas.

8. É proibido reproduzir imagens.
Fotos e retratos em veículos, lojas, casas, hotéis e outros lugares serão retirados. Os proprietários destes estabelecimentos devem destruir todas as imagens existentes. Veículos com imagens de seres vivos serão detidos.

9. Estão rigorosamente proibidos os jogos de azar.
Os estabelecimentos serão fechados e os jogadores ficarão detidos por um mês.

10. É proibido usar cortes de cabelo no estilo americano ou inglês.
Homens com cabelos compridos serão presos e levados para o Ministério da Promoção da Virtude e Prevenção do Vício para cortarem o cabelo. O criminoso pagará o barbeiro.

11. São proibidos empréstimos a juros, taxas de câmbio e de transações.
Estes três tipos de transação financeira estão proibidos no Islã. Caso as regras sejam quebradas, o criminoso ficará preso por um período indeterminado.

12. É proibido lavar roupa à margem dos rios.
Mulheres que desobedecerem a esta lei serão retiradas de maneira respeitosa do local e levadas para suas casas, onde seus maridos serão duramente punidos.

13. Música e dança são proibidos em festas de casamento.
Caso esta proibição seja desobedecida, o chefe da família será preso e punido.

Allahu akbar – Deus é grande.


“Mulheres de burca são como cavalos com antolhos, só podem ver numa direção. Nas laterais, a rede do véu se fecha, impedindo olhares de soslaio. É preciso virar a cabeça inteira. Outro truque dos inventores da burca: um homem deve saber quem ou o quê sua mulher persegue com os olhos.”


“Mas para a grande massa pouco mudou. Nas famílias, a tradição é tudo: são os homens que decidem. Apenas uma minoria das mulheres de Cabul largou a burca, e a maioria nem sabe que suas ancestrais, mulheres afegãs do século passado, desconheciam esse traje. Foi durante o regime do rei Habibullah, entre 1901 e 1919, que a burca foi introduzida.
Ele impôs às duzentas mulheres do seu harém o uso da burca, para que não tentassem outros homens com seus belos rostos quando estavam fora dos portões do castelo. O véu que cobria tudo era de seda com bordados elaborados, e as princesas de Habibullah tinham até burcas bordadas com fios de ouro. Assim, virou um traje para a classe alta, para protegê-las dos olhares do povo. Nos anos 1950, o uso da burca já estava difundido no país inteiro, principalmente entre os ricos.”


“Os dois filhos seguintes morreram ainda pequenos. Um quarto das crianças do Afeganistão morre antes de completar cinco anos. O país tem o maior índice de mortalidade infantil do mundo. Crianças morrem de sarampo, caxumba, resfriado, mas principalmente de diarreia. Muitos pais acreditam que não se deve dar nada às crianças com diarreia, porque será posto para fora de qualquer maneira. Acreditam que é possível “secar” a doença. Um desconhecimento que tem custado a vida de milhares de crianças. Bibi Gul não lembra mais do que os dois filhos morreram. “Eles apenas morreram”, ela diz.
Veio então Sultan, o amado e respeitado Sultan. Quando Bibi Gul finalmente teve um filho homem que vingou, sua posição na família do marido melhorou muito. O valor de uma noiva está no hímen, o valor de uma esposa está em quantos filhos homens ela põe no mundo.”


“Os líderes guerreiros em combate também ganharam lugar no palanque, Atta Muhammad e o general Abdul Rashid Dostum. O tadjique Atta Muhammad é quem governa a cidade, o uzbeque Dostum é quem pensa que devia estar governando. Os dois inimigos ferrenhos estão lado a lado ouvindo os discursos. Atta Muhammad de barba no estilo talibã. Dostum, corpulento como um boxeador precocemente aposentado. Eles se aliaram a contragosto durante a última ofensiva contra o Talibã. Agora há novamente uma barreira hostil entre eles. Dostum é o mais mal-afamado membro do novo governo e foi incorporado unicamente para que não caísse na tentação de sabotá-lo. O homem que agora pisca contra o sol, com as mãos pacificamente cruzadas diante do corpo volumoso, é um dos afegãos a respeito de quem correm histórias das mais cruéis. Como punição por uma ofensa podia amarrar seus soldados a um tanque de guerra e pô-lo em movimento, até os corpos virarem trapos sangrentos. Numa ocasião, milhares de soldados talibãs foram levados ao deserto e colocados em contêineres, que foram trancados e abandonados. Quando foram abertos dias depois, os prisioneiros estavam mortos e carbonizados pelo calor ardente. Dostum também é conhecido como um mestre na traição, já serviu a diversos líderes e traiu a todos. Lutou ao lado dos russos quando estes atacaram, dizia-se ateu e um grande bebedor de vodca. Hoje mostra-se reverente a Alá e prega o pacifismo.”

sábado, 9 de outubro de 2010

Saramago – Biografia – João Marques Lopes

Editora: Leya
ISBN: 978-85-62936-29-6
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 248
Sinopse: A biografia de um dos escritores mais importantes do século XX! Esta é a primeira biografia de um dos escritores mais importantes da história da literatura. Nela podemos acompanhar a vida de José Saramago, desde o seu nascimento na aldeia portuguesa da Azinhaga, Golegã, até a sua mudança para a ilha de Lanzarote, Espanha. E descobrimos toda a sua obra, desde as crônicas de “A Capital” e do “Jornal do Fundão”, até seu livro “Caim”.
Saramago passou a se dedicar definitivamente à escrita ficcional aos 53 anos e, em 1980, lança “Levantado do Chão”. Com esse romance, surge o que viria a ser conhecido como o “estilo saramaguiano”: o narrador “oraliza” a escrita como se estivesse de viva voz, como numa roda de amigos, e desrespeita ostensivamente as regras sintáticas e a pontuação.
Mas é o romance “Memorial do Convento”, de 1982, que o consagra definitivamente. Em outubro de 1998, Saramago ganhou o Prêmio Nobel de Literatura, tornando-se o primeiro e único escritor de língua portuguesa a obter tal distinção. Mais de uma década depois, Saramago continuou a escrever e a gerar polêmica até sua morte, em 2010.

“Contudo [a mudança para Lisboa] seria rapidamente manchada por uma tragédia irremediável. No quarto volume dos Cadernos de Lanzarote, de 1996, José Saramago se referiria várias vezes ao infausto evento: no fim do ano, mais especificamente em 22 de dezembro de 1924, seu irmão e primogênito da família morreria de broncopneumonia. Contava apenas quatro anos. O escritor veria nessa tragédia a causa de certa secura que a mãe lhe dispensaria durante a infância, chegando mesmo a ponto de renegar os beijos que lhe pedia e de compará-lo desfavoravelmente com o irmão falecido em tenra idade.”


“‘Levantado do chão fala de trabalhadores. Aprendamos um pouco, isso e o resto, o próprio orgulho também, com aqueles que do chão se levantaram e a ele não tornam, porque do chão só devemos querer o alimento e aceitar a sepultura, nunca a resignação’.”


“No plano das ideias, a nova situação foi traduzida por um obscuro funcionário da administração Bush (pai) como “fim da história”, e da mídia estadunidense transitaria para o globo como a perpetuação conjunta da democracia burguesa e da economia liberal ante o enterro definitivo da alternativa comunista. Na verdade, e de maneira sofisticada, alguma filosofia já vinha cunhando desde o fim dos anos 1970 a inviabilidade de uma contracivilização oposta ao capitalismo sob a forma da teoria da “pós-modernidade”. Jean-François Lyotard e outros argumentavam: a dinâmica racionalista globalizante e emancipadora das Luzes e da Revolução Francesa de 1789 estava morta; as narrativas universais da educação em Humboldt, do espírito absoluto em Hegel ou do proletariado em Marx rumo a uma racionalização paradigmática e progressista não tinham mais sentido; a razão global especializara-se e perdera de vista o todo em uma sociedade de consumo, legítima e democrática, razão por que vivia agora de fragmentos, de multiplicidades e instabilidades bem distantes da verdade global, única e emancipadora, provinda em essência das Luzes setecentistas. Como conjunto, a ciência, a ética e a estética já não eram governadas necessariamente por essa Razão que a própria burguesia invocara para cavar a cova do feudalismo e que os marxistas subverteram a serviço do proletariado como único sujeito histórico que levava a sério a necessidade de difundir os valores formais da Igualdade, da Justiça e da Fraternidade para a realidade concreta das relações sociais.
Para centenas de milhões de homens e mulheres de várias gerações, esse entendimento da Razão, fosse na versão setecentista das Luzes, fosse nas versões idealistas do século XIX ou na marxista, fora válido. Mesmo no liberalismo havia quem o reclamasse. O keynesianismo dera-lhe um mínimo de cobertura. O “socialismo” havia sido o nome da utopia em atualização. Saramago e as gerações portuguesas atuantes até a primeira metade dos anos 1980 acreditam diversificadamente em tal racionalidade. Agora era dada como falida, indefinida, partida em cacos e incapaz de se afinar com a própria realidade, até mesmo nas ciências exatas. Parecia mais um contrassenso do que qualquer outra coisa.
Ora, será provavelmente na conjunção de todos esses fatores que se encontram as causas determinantes das alegorias distópicas saramaguianas que vão de Ensaio sobre a cegueira a Ensaio sobre a lucidez.”


“A ideia de Ensaio sobre a cegueira ocorrera subitamente a Saramago quando almoçava no restaurante lisboeta Varina de Madragoa e não teria sido nenhum efeito direto do problema com o deslocamento da retina, mas sim uma das iluminações que lhe aparecem sob a forma de título e vão amadurecendo pouco a pouco em resultado da sua maneira de entender o mundo, em algum lugar entre o racionalismo crítico das Luzes e o materialismo histórico. Estava-se então em setembro de 1991 e seria necessário esperar por agosto de 1995 para que o livro fosse dado como terminado. Os quatro anos de espera parecem ter decorrido não tanto de alguns outros trabalhos em que esteve envolvido (In Nomine Dei e vários dos volumes dos Cadernos de Lanzarote), da mudança de casa para as Ilhas Canárias, das andanças pelo exterior ou de uma nova cirurgia nos olhos, mas mais da própria dureza da matéria ficcional. Ao Expresso, por exemplo, referiria que: ‘O tempo da escrita, sobretudo nos últimos tempos, foi de sofrimento, de momentos em que me sentia incapaz de aguentar aquilo que estava a escrever. [...] A certa altura, cheguei a dizer: não sei se consigo sobreviver a este livro. Foi como se tivesse dentro de mim uma coisa feia, horrível, e tivesse que sacá-la. Mas não saiu, está no livro e está dentro de mim’.”


“Por que este fim de ciclo e esta abertura para a esperança (em seus livros)? A bem da verdade, não haverá respostas definitivas. Pelas entrevistas e artigos de José Saramago, e por especulação própria, talvez se possa afirmar o seguinte: o materialismo dialético e histórico é uma grelha de interpretação e intervenção na realidade que transporta consigo a negação da estabilidade, a transformação do mesmo no outro e a sedimentação de pequenas quantidades erosivas em agregados aparentemente sólidos rumo a uma mudança qualitativa; o triunfo planetário do neoliberalismo à custa da falência do “socialismo real” e do keynesianismo pode assim ser lido como movimento transitório e contraditório aberto a uma outra ordem – não é nenhum “fim da história”; em 2004, a ofensiva neoliberal já tinha perdido muito do seu fulgor do início da década de 1990, pois o movimento antiglobalização havia ganho parte significativa da opinião pública internacional nos próprios centros imperialistas, e o neoliberalismo tinha devastado de tal modo países latino-americano como a Argentina, a Bolívia ou a Venezuela que acabou por ficar desacreditado por completo em meio a revoltas populares conducentes à derrocada de governos democraticamente eleitos ou de mudanças eleitorais rumo à centro-esquerda ou a populismos esquerdistas; na sua voracidade beligerante, a administração Bush (filho) enfrentou pela primeira vez uma campanha pacifista que ganhou a cidadania mundial contra a sua retórica belicista, e na Espanha o escritor foi parte ativa desse movimento que congraçou por duas vezes vários milhões de pessoas nas ruas e chegou a alcançar uma porcentagem de mais de 80% das pessoas em oposição ao apoio de Aznar à segunda guerra no Iraque. Enfim, a geopolítica internacional não estava mudada, mas a nuvem cinzenta asfixiante dos anos 1990 comportava agora pequenas luzes de esperança. Provavelmente, elas estariam mais ou menos (in)conscientemente relacionadas ao uivo coletivo de Ensaio sobre a lucidez.”


“A Bíblia é um manual de maus costumes, um catálogo de crueldade e do pior da natureza humana.”


“De um artigo de Eduardo Galeano: ‘Nunca foi menos democrática a economia mundial, nunca o mundo foi mais escandalosamente injusto. Em 1960, 20% da humanidade, a parte que mais bens possuía, era trinta vezes mais rica que os 20% mais necessitados. Em 1990, a diferença entre a prosperidade e o desamparo tinha subido para o dobro, e era de sessenta vezes. [...] E nos extremos dos extremos [...] 100 multimilionários dispõem atualmente da mesma riqueza que 1.500 milhões de pessoas’. [Cadernos de Lanzarote, 11 de julho de 1996]
Alguns números para a história do nosso maravilhoso século XX: 1.300 milhões de pessoas vivem abaixo do nível de pobreza absoluta; um terço delas subsiste com menos de 150 escudos diários; 750 milhões de pessoas estão desnutridas; mais de metade da população da Ásia vive na miséria; uma de cada duas pessoas ao sul do Saara está condenada à penúria; 15 milhões de crianças com menos de cinco anos morrem anualmente por doenças que poderiam evitar-se; dos 2.800 milhões de pessoas que constituem a mão-de-obra no mundo, 700 milhões estão subempregados e 120 milhões procuram trabalho em vão; há 1.000 milhões de analfabetos, dois terços dos quais são mulheres adultas; nas zonas rurais há 550 milhões de mulheres pobres, o que significa mais de 50% da população camponesa mundial... Hoje é o Dia Internacional para a Erradicação da Pobreza. Que a todos faça bom proveito. [Cadernos de Lanzarote, 23 de outubro de 1996].”

Uma breve história da justiça distributiva – Samuel Fleischacker

Editora: Martins Fontes
ISBN: 978-85-3362-319-4
Opinião★★☆☆☆
Páginas: 266

“A “justiça distributiva”, em seu sentido moderno, invoca o Estado para garantir que a propriedade seja distribuída por toda a sociedade de modo que todas as pessoas possam se suprir com certo nível de recursos materiais. As discussões sobre justiça distributiva tendem a se concentrar na quantidade de recursos que se deve garantir e no grau em que essa interferência estatal é necessária para que esses recursos sejam distribuídos. Estas questões são relacionadas. Se a quantidade de bens que cada pessoa deve ter é baixo o suficiente, é possível que o mercado possa garantir uma distribuição adequada; se todos devem ter uma ampla proteção ao seu bem-estar, o Estado poderá ter de redistribuir bens para corrigir as imperfeições do mercado; e se o que cada pessoa deve ter é uma parcela igual de todos os bens, é provável que a propriedade privada e o mercado tenham de ser inteiramente substituídos por um sistema estatal de distribuição de bens. Portanto, a justiça distributiva é entendida como necessária a qualquer justificação de direitos de propriedade, e de tal forma que pode até mesmo implicar a rejeição da propriedade privada. Uma minoria pequena, mas influente, de teóricos e cidadãos, supondo que a proteção de direitos de propriedade constitui a tarefa central da justiça, questiona se as exigências distributivas realmente pertencem ao domínio da justiça.”


“Em resumo, dado o significado geral de “justiça”, pelo menos as seguintes premissas são necessárias para se chegar ao conceito moderno de justiça distributiva:
1.           Cada indivíduo, e não somente sociedades ou a espécie humana como um todo, tem um bem que merece respeito, e aos indivíduos são devidos certos direitos e proteções com vistas à busca daquele bem;
2.           Alguma parcela de bens materiais faz parte do que é devido a cada indivíduo, parte dos direitos e proteções que todos merecem;
3.           O fato de que cada indivíduo mereça isso pode ser justificado racionalmente, em termos puramente seculares;
4.           A distribuição dessa parcela de bens é praticável; tentar conscientemente realizar essa tarefa não é um projeto absurdo nem é algo que, como ocorreria caso se tentasse tornar a amizade algo compulsório, solaparia o próprio objetivo que se tenta alcançar; e
5.           Compete ao Estado, e não somente a indivíduos ou organizações privadas, garantir que tal distribuição seja realizada.”
“É encorajador o fato de que a maior parte das culturas pareça ter considerado os seres humanos como iguais em algum sentido fundamental. É desencorajador o fato de que essa crença não signifique muita coisa no que diz respeito à igualdade de status social, econômico ou político.”


         “Locke contribuiu com algo que viria a se tornar importante para a justiça distributiva moderna – uma poderosa formulação da intuição de que o trabalho constitui a fonte primária do “mérito”, que permite a qualquer um reivindicar legitimamente o direito a bens materiais”.


         “Adam Smith (...) enfatiza ainda mais as formas pelas quais os sistemas de propriedade privada sobrecarregam os pobres. Em suas Lectures on Jurisprudence, Smith começa suas discussão sobre a economia política com uma dramatização vívida da injustiça que parece estar envolvida na divisão entre ricos e pobres:
     De 10.000 famílias que se sustentam umas às outras, talvez 100 não trabalhem e nada façam para a ajuda comum. As demais têm de sustentar estas últimas, além de a si próprias, e... têm um quinhão de tranquilidade, conveniência e abundância muito menor do que aquelas que, em absoluto, não trabalham. O comerciante rico e opulento, que nada faz além de dar algumas ordens, vive em uma propriedade, em um luxo e uma tranquilidade muito maiores... do que seus empregados, que fazem todo o serviço. Também estes últimos, exceto por seu confinamento, encontram-se em um estado de tranquilidade e fartura muito superior ao do artesão cujo trabalho foi necessário para que essas mercadorias lhes fossem fornecidas. O trabalho deste homem também é bastante tolerável; ele trabalha sob um telhado protegido da inclemência das intempéries, e obtém o seu sustento de uma maneira que não é desconfortável, se o compararmos com o trabalhador pobre. Este tem de lutar contra todas as inconveniências do solo e da estação, e está continuamente exposto, ao mesmo tempo, à inclemência das intempéries e ao trabalho pesado. Desse modo, aquele que, por assim dizer, sustenta a estrutura toda da sociedade e fornece os meios para a conveniência e para a tranquilidade de todos os demais só tem, ele próprio, um quinhão muito modesto e está enterrado na obscuridade. Ele suporta em seus ombros a humanidade toda, e, incapaz de aguentar o peso, acaba sendo por ele empurrado para as partes mais fundas da Terra.
O trabalhador pobre é Atlas, que carrega em suas costas o universo humano.”


         “Smith nos oferece uma justificativa para as desigualdades que é essencialmente a mesma que John Rawls viria a propor dois séculos mais tarde: elas são justificáveis se, e somente se, as pessoas que se encontram em pior situação sob um sistema de desigualdade estiverem em melhor situação do que estariam sob uma distribuição igualitária de bens.”


         “Como Hume observou, onde não há escassez, não há necessidade de justiça.”


         “Mas, o problema mais profundo com a “caridade por inclinação” está na hierarquia implícita que ela cria entre o doador e o beneficiário. Quando distribuo caridade, eu me bajulo pensando que sou melhor do que a pessoa que estou ajudando. Desse modo, ainda que a ajude materialmente, eu a degrado moralmente. Atos virtuosos não devem expressar, e muito menos criar, tal hierarquia. Ao contrário, faz parte da essência de toda virtude, para Kant, que ela expresse e ajude a criar uma comunidade de seres racionais iguais, uma comunidade que respeita o valor absoluto e igual de cada indivíduo a que ela pertença. Violo algo fundamental à moralidade quando me julgo superior a outros; em vez disso, tenho de considerar cada um dos demais seres humanos como um fim em si mesmo, que tem exatamente tanto direito quanto eu tenho a uma vida boa. Por essa razão, é melhor que eu me concentre nos direitos de outros do que em suas necessidades, e Kant considera que o dever primário da beneficência é um respeito apropriado por tais direitos. Todo ser humano “tem um direito igual às coisas boas que a natureza propicia”, ele diz. Supõe-se que daí se segue que até mesmo o dever de ajuda material a outros deve ser interpretado como uma resposta a direitos que as pessoas têm. A caridade deve ser vista “como uma dívida de honra, e não como uma exibição de bondade ou generosidade” e, com efeito, como uma “trivial... compensação pela dívida que temos” para com outros.”


         “Como já observei, não é fácil encontrar um bom argumento para sustentar a alegação segundo a qual os direitos de propriedade são mais essenciais à liberdade daqueles que possuem propriedade do que uma redistribuição de propriedade o é para aqueles que são destituídos de propriedade.”


         “‘Positivismo’ é um rótulo genérico para uma variedade de concepção, que têm em comum uma avaliação extremamente elevada da ciência e uma tendência correspondente a reduzir todos os demais modos de pensamento (ética, religião, metafísica) a um empreendimento científico, ou então para ridicularizá-los como irracionais ou vazios. O termo foi cunhado pelo conde de Saint-Simon e pelo seu seguidor, Augusto Comte, que se alinharam a críticas proto-socialistas da ênfase do capitalismo no indivíduo e o tratamento impiedoso dispensado aos pobres. Porém, tanto eles como os positivistas que vieram depois deles preferiram desenvolver uma ciência social que fosse capaz de dizer aos elaboradores de planos de ação política como transformar a sociedade que viam ao seu redor mais do que fazer um esforço para analisar exatamente por quetal sociedade era moralmente criticável. (...)
         [Os positivistas] diferiam muito acentuadamente dos hegelianos com respeito à natureza separável dos fatos: mesmo quando entendiam, como foi o caso de Comte, que uma ciência se construía a partir de outras, eles se mantinham atomistas, convictos de que peças elementares da ciência poderiam ser conhecidas cada uma por si própria, e não simplesmente como partes de um sistema abrangente de pensamento. (...) O positivismo sempre foi atomista e sempre considerou a observação, e não o pensamento abstrato, como o modo paradigmático, talvez o único modo, de apreender cada fato individual.”


         “No mundo marxista ideal, não sacrificaríamos nossa individualidade pelo todo social maior – colocar a questão dessa maneira é prender-se a uma oposição entre indivíduo e sociedade. Em vez disso, a própria distinção entre indivíduo e sociedade desapareceria: as sociedades agiriam em prol de seus membros individuais, mesmo quando esses membros agissem para promover o bem da sociedade. Tal como os três mosqueteiros, seriam todos por um e um por todos.
Na prática, isso significa, no meu entender, que se tornaria natural para cada pessoa ter em mente o bem de outras pessoas até mesmo ao preparar comida, procurar parceiros para procriação ou cuidar da própria saúde – e, do mesmo modo, os vizinhos também se preocupariam o tempo todo com essa pessoa, com sua saúde e felicidade. Atos privados aparentemente essenciais, como, por exemplo, comer, beber ou procriar, são “funções genuinamente humanas”, diz Marx, somente quando são integradas com todas as outras atividades humanas e quando essas atividades são realizadas de uma forma social, e não somente pela própria unidade biológica isolada, e em benefício dela. Existe até mesmo uma maneira propriamente humana, vale dizer, social, de ter sensações – de “ver, ouvir, cheirar, saborear e sentir”. “Os sentidos do homem social são distintos do homem não-social. Consequentemente, não somos capazes de alcançar nem a forma mais elevada de arte (gratificação sensual) nem a melhor ciência empírica enquanto permanecemos presos a modos de vida individualistas, em vez de modos de vida socializados. Por fim, modos de vida individualistas só podem ser adotados por pessoas que se tornam cegas à própria condição que torna possível tal adoção: só podemos adotar o individualismo, e de fato só o adotamos, se, e somente se, as normas de nossa sociedade nos encorajam a fazê-lo. Pois nós somos produtos de nossas relações sociais: nos é impossível ser qualquer outra coisa, e o próprio individualismo nada mais é do que uma doutrina gerada por uma certa história social. Na verdade, diz Marx, “a época que produz essa perspectiva, a do indivíduo isolado, também é precisamente aquela que até agora mais desenvolveu as relações sociais”.
Foi essa concepção completamente socializada dos seres humanos que exerceu o mais profundo impacto sobre a história subsequente da justiça distributiva. Muitos pensadores que divergem vigorosamente de Marx em outros aspectos compartilham de sua crença em que praticamente todas as características daquilo que poderia parecer nossa natureza são, na realidade, instiladas em nós pela estrutura de nossa sociedade. A ideia de uma natureza humana imutável e substancial, subjacente à história humana, exerce pouca atração desde a época de Marx, e se considera pouco surpreendente o fato de que até mesmo um pensador liberal e claramente não-marxista como John Rawls trata os talentos e a disposição de uma pessoa para “fazer esforço” como, em grande medida, produto de influências sociais. Mais do que qualquer outro antes dele, Marx trouxe à tona o imenso poder que a sociedade exerce sobre cada um de nós, a imensa medida em que as formas sociais, e não somente as leis ou os governos, modelam os indivíduos.”


         “O próprio ímpeto do utilitarismo, para muitos de seus partidários, estava no fato de que ele ofereceria uma abordagem compreensiva de todas as nossas diferentes virtudes e normas, de modo tal que já não se precisava mais tratar nenhuma virtude com veneração incondicional e nem cultuar nenhuma norma ética. Em vez disso, podemos perguntar de qualquer pretensa virtude ou norma moral: “Será que essa virtude ou norma contribui para uma felicidade humana maior, ou será que ela perpetua o sofrimento?”. E se concluirmos que a virtude ou norma perpetua o sofrimento, vemos de imediato que ela pode e deve ser alterada ou descartada. A reverência tradicional devotada a direitos de propriedade, e a uma concepção de justiça para a qual direitos de propriedade são centrais, é um exemplo perfeito de algo que os utilitaristas querem submeter a esse teste. Para os utilitaristas, é difícil tolerar um sofrimento profundo e de longa duração para qualquer segmento as sociedade, especialmente quando parece que esse sofrimento pode ser mitigado a um custo, em felicidade, relativamente pequeno para as pessoas que já são abastadas. À medida que uma insistência em direitos individuais preserva uma tal condição, essa insistência se afigura, para os utilitaristas, como um verniz para a crueldade.”


         “Ao afirmar enfaticamente a importância da individualidade humana e, consequentemente, a necessidade de a sociedade proteger os indivíduos até mesmo contra os interesses maiores dela própria, Rawls parte assim do lugar correto para definir, finalmente, a noção moderna de justiça distributiva. (...)
         “Uma concepção de justiça é um conjunto de princípios que nos permitem escolher entre os arranjos sociais que determinam [a] divisão [dos benefícios produzidos por uma sociedade] e subscrever um consenso com relação aos quinhões distributivos apropriados”. (...) E para Rawls, assim como para Sidgwick, a sociedade como um todo é um empreendimento coletivo, com regras e maneiras de agir que seus membros podem controlar. Rawls torna essa concepção de sociedade bastante explícita: “A sociedade é um empreendimento cooperativo para o benefício mútuo”.”


         “Relato todos esses desenvolvimentos sem comentá-los; não é a minha intenção endossá-los. Mas acredito que cada um deles deriva do complexo básico de argumentos que permitiram a formulação de Rawls da justiça distributiva. Se (como Smith, Rousseau e Kant enfatizaram) todos os seres humanos são igualmente merecedores de respeito, e se (como Kant argumentou) respeitar os seres humanos significa promover sua capacidade de agência livre, e se (como Kant também argumentou) todos os seres humanos têm capacidade para a agência que precisam ser desenvolvidas, e se (como Marx sustentou) a sociedade modela o grau até onde os seres humanos podem desenvolver essas capacidades e o faz, em particular, tornando os recursos disponíveis a eles, e se, por fim (como Marx, Sidgwick e muitos outros sustentaram), a sociedade é um empreendimento cooperativo que podemos modelar e remodelar se assim o quisermos, então nós podemos refazer a distribuição de recursos em nossa sociedade de modo que ela ajude melhor todos os seus membros a desenvolver suas capacidades, e nossa obrigação de respeitar outros seres humanos implica que devemos fazê-lo.”


         “É claro que aqueles que acreditam na justiça distributiva não endossam necessariamente cada uma de suas conotações históricas. O significado de uma ideia jamais coincide com sua genealogia. Mas ideias tendem a ser expressas em termos que veiculam conotações vindas de seu passado, além de, e independentemente da, maneira como são “oficialmente” definidas em cada período de suas história. As ideias políticas também se prestam a muitas funções ao mesmo tempo. As pessoas são atraídas para uma causa – um slogan, um candidato, um partido ou um movimento – por várias diferentes preocupações e experiências. Elas podem se tornar socialistas porque se sentem indignadas com a condição dos pobres, mas também podem se tornar socialistas porque lhes desagrada o consumismo que associam ao capitalismo; ou porque são pacifistas, e os socialistas que elas conhecem descrevem o capitalismo como uma fonte de guerras; ou porque veem o socialismo como um aliado de movimentos que lutam por igualdade racial e sexual ou por amor livre; ou simplesmente porque os socialistas que conhecem lhes parecem “modernos”, ou “esclarecidos” ou “profundos”. De fato, o socialismo tem sido um movimento crítico do consumismo, da guerra, da desigualdade racial e sexual, do casamento e da cultura burguesa, em parte porque muitos movimentos socialistas diferentes existiram, e em parte porque os pensadores que tentaram desenvolver mais exaustivamente uma teoria completa do socialismo argumentaram, corretamente ou não, que todas essas causas aparentemente distintas tinham um fundo comum. Quando uma pessoa hoje se proclama socialista, ou, conversamente, quando ataca o socialismo ou determinadas políticas socialistas, é um erro avaliar o que ela está propondo com base apenas em alguma suposta doutrina essencial, alguma “essência” do socialismo. Antes, a palavra é propriamente utilizada para designar um aglomerado de projetos que estão relacionados uns com os outros por aquilo que Wittgenstein denominou “semelhança de família” e que não estão encarcerados em nenhuma fronteira definida. Algo similar acontece com as doutrinas do livre-comércio e com quaisquer outros movimentos políticos. As ideias que esses movimentos sustentam estão ligadas entre si por vias complexas, e nunca é inteiramente claro que pontos de vista específicos constituem “as” razões para a crença que uma dada pessoa tem no movimento, mesmo para a própria pessoa que tem essa crença. O socialismo “é” a totalidade de ideias diferentes que se acomodam mais ou menos sob essa denominação, embora algumas delas sejam claramente mais importantes do que outras (ajudar os pobres é mais importante que o amor livre, por exemplo). Além disso, qualquer debate específico entre socialistas e seus oponentes pode enfatizar mais uma questão do que outra, e em semelhantes contextos “socialismo” pode significar alguma coisa que é periférica àquilo que significa em outro contexto; pode, por exemplo, significar amor livre em alguns contextos, mesmo que algures existam muitos socialistas que rejeitam o amor livre. De modo que os debates efetivos nos quais as pessoas recorrem a uma determinada doutrina política têm importância crucial para aquilo que essa doutrina significa. (Pode-se formular um argumento wittgensteiniano afirmando-se que o debate traz à tona o que qualquer ideia significa, e que todas as reivindicações somente ganham significado graças àquilo que, na prática, elas excluem.) Desse modo, sem conhecer os debates específicos nos quais tenham sido utilizados de fato, não conhecemos nossos termos políticos.”


         “E o que poderia pensar [uma pessoa] nesse momento decisivo? Que a justiça distributiva só faz sentido caso se acredite na igualdade moral de todos os seres humanos, na necessidade que todos os seres humanos, têm de liberdade individual, no fato de que tal liberdade depende de determinados bens materiais e na viabilidade de o Estado garantir a distribuição desses bens? É pouco provável. A maioria das pessoas se sentirá tocada, por exemplo, pelas circunstâncias opressivas sofridas pelos pobres nas áreas mais antigas e decadentes das metrópoles norte-americanas, e, em sua empatia, descobrem na “justiça distributiva” uma boa maneira de expressar aquilo que gostariam que fosse feito por eles. Ou então se sentirão indignadas diante de fotos de crianças sem-teto ou de histórias nos jornais sobre pessoas que morrem de doenças que seriam facilmente curáveis se tivessem assistência médica. Ou ainda, elas se sentirão indignadas diante da ultrajante riqueza ostentada por algumas pessoas em Beverly Hills ou em Manhattan. E o que elas querem dizer, então, com a “justiça distributiva” que apoiam? Podem não saber exatamente. Com certeza, querem dizer que ninguém deveria viver, geração após geração, nas condições que os pobres têm de enfrentar nas metrópoles norte-americanas, que todas as crianças deveriam ter um teto sobre suas cabeças, ou que o luxo desmesurado é injustificável quando outros mal conseguem sobreviver, mas não é preciso que disponham de uma teoria elaborada para explicar como os males que veem se conectam uns aos outros ou deveriam ser curados. Conforme cada pessoa se junta à corrente histórica daqueles que acreditaram na justiça distributiva (ou que desacreditaram nela), essa pessoa não precisa saber exatamente o que é aquilo a que se vinculou. A história da ideia, assim como seu uso mais amplo no momento em que tal pessoa se agarra a ela, lhe confere conotações de que ela não precisa compartilhar conscientemente.
Eu não pretendo com isso endossar uma concepção plenamente emotiva de nossos compromissos morais, mas grande parte da verdade a respeito daquilo em que acreditamos moralmente está, com certeza, no fato de que sentimos que certos objetivos, ou ações ou princípios são bons e que outros são maléficos.”