quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Como vejo o mundo – Albert Einstein

Editora: Nova Fronteira
ISBN: 978-85-209-0426-8
Tradução: H. P. de Andrade
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 216
Sinopse: Einstein trata dos problemas fundamentais do ser humano – nos campos social, político, econômico e cultural – e torna clara sua posição diante deles: a de um sábio radicalmente consciente de que, sem a liberdade de ser e agir, o homem, por mais que conheça e possua, não é nada. 



“Minha condição humana me fascina. Conheço o limite de minha existência e ignoro por que estou nesta terra, mas às vezes o pressinto. Pela experiência cotidiana, concreta e intuitiva, eu me descubro vivo para alguns homens, porque o sorriso e a felicidade deles me condicionam inteiramente, mas ainda para outros que, por acaso, descobri terem emoções semelhantes às minhas. 
E cada dia, milhares de vezes, sinto minha vida – corpo e alma – integralmente tributária do trabalho dos vivos e dos mortos. Gostaria de dar tanto quanto recebo e não paro de receber. Mas depois experimento o sentimento satisfeito de minha solidão e quase demonstro má consciência ao exigir ainda alguma coisa de outrem. Vejo os homens se diferenciarem pelas classes sociais e sei que nada as justifica a não ser pela violência.” 


“A pior das instituições gregárias se intitula exército. Eu o odeio. Se um homem puder sentir qualquer prazer em desfilar aos sons de música, eu desprezo este homem... Não merece um cérebro humano, já que a medula espinhal o satisfaz. Deveríamos fazer desaparecer o mais depressa possível este câncer da civilização. Detesto com todas as forças o heroísmo obrigatório, a violência gratuita e o nacionalismo débil. A guerra é a coisa mais desprezível que existe. Preferiria deixar-me assassinar a participar desta ignomínia. 
No entanto, creio profundamente na humanidade. Sei que este câncer de há muito deveria ter sido extirpado. Mas o bom senso dos homens é sistematicamente corrompido. E os culpados são: escola, imprensa, mundo dos negócios, mundo político.” 


“Homens reconhecem então algo de impenetrável a suas inteligências, conhecem porém as manifestações desta ordem suprema e da Beleza inalterável. Homens se confessam limitados e seu espírito não pode apreender esta perfeição. E este conhecimento e esta confissão tomam o nome de religião. Deste modo, mas somente deste modo, soa profundamente religioso, bem como esses homens. Não posso imaginar um Deus a recompensar e a castigar o objeto de sua criação. Não posso fazer ideia de um ser que sobreviva à morte do corpo. Se semelhantes ideias germinam em um espírito, para mim é ele um fraco, medroso e estupidamente egoísta.” 


“Pouco importa em que lugar, em quinze dias, uma campanha da imprensa pode instigar uma população incapaz de julgamento a um tal grau de loucura, que os homens se prontificam a vestir a farda de soldado para matar e se deixarem matar. E seres maus realizam assim suas intenções desprezíveis. A dignidade da pessoa humana está irremediavelmente aviltada pela obrigação do serviço militar e nossa humanidade civilizada sofre hoje deste câncer.” 


“A condição dos homens seria lastimável se tivessem de ser domados pelo medo do castigo ou pela esperança de uma recompensa depois da morte.” 


“Ora, existe um contraste grotesco entre as capacidades e os poderes que os homens me atribuem e aquilo que sou e o que posso. A consciência deste estado de coisas falacioso seria insuportável, se uma soberba compensação não me consolasse. Porque é um sinal encorajador em nossa época, tida por tão materialista, que transforme homens em heróis, quando as finalidades de tais heróis se manifestam exclusivamente no domínio intelectual e moral. Isto prova que o conhecimento e a justiça são, para grande parte da humanidade, julgados superiores à fortuna e ao poder.” 


“O que há de melhor no homem somente desabrocha quando se desenvolve em uma comunidade.”


“O esforço para unir sabedoria e poder raramente dá certo e somente por tempo muito curto.”


“O homem habitualmente evita reconhecer inteligência em outro, a não ser quando, por acaso, se trata de um inimigo.”


“Poucos seres são capazes de dar bem claramente uma opinião diferente dos preconceitos de seu meio. A maioria é mesmo incapaz de chegar a formular tais opiniões.”


“A maioria dos imbecis permanece invencível e satisfeita em qualquer circunstância. O terror provocado por sua tirania se dissipa simplesmente por sua distração e por sua inconsequência.”


“Para ser um membro irrepreensível de uma comunidade de carneiros, é preciso, antes de tudo, ser também carneiro.”


“Quem banca o original neste mundo da verdade e do conhecimento, quem imagina ser um oráculo, fracassa lamentavelmente diante da gargalhada dos Deuses.” 


“Contudo, em primeiro lugar, com Schopenhauer, imagino que uma das mais fortes motivações para uma obra artística ou científica consiste na vontade de evasão do cotidiano com seu cruel rigor e monotonia desesperadora, na necessidade de escapar das cadeias dos desejos pessoais eternamente instáveis. Causas que impelem os seres sensíveis a se libertarem da existência pessoal, para procurar o universo da contemplação e da compreensão objetivas. Esta motivação assemelha-se à nostalgia que atrai o morador das cidades para longe de seu ambiente ruidoso e complicado, para as pacíficas paisagens das altas montanhas, onde o olhar vagueia por uma atmosfera calma e pura e se perde em perspectivas repousantes, que parecem ter sido criadas para a eternidade.” 


“No momento atual, em que situação no corpo social da humanidade se encontra o homem de ciência? Em certa medida, pode felicitar-se de que o trabalho de seus contemporâneos tenha radicalmente modificado, ainda que de modo muito indireto, a vida econômica por ter eliminado quase inteiramente o trabalho muscular. Mas sente-se também desanimado, já que os resultados de suas pesquisas provocaram terrível ameaça para a humanidade. Porque esses resultados foram apropriados pelos representantes do poder político, estes homens moralmente cegos. Percebe também a terrível evidência da fenomenal concentração econômica engendrada pelos métodos técnicos provindos de suas pesquisas. Descobre então que o poder político, criado sobre essas bases, pertence a ínfimas minorias que governam à vontade, e completamente, uma multidão anônima, cada vez mais privada de qualquer reação. Mais terrível ainda se lhe impõe outra evidência. A concentração do poder político e econômico nas mãos de tão poucas pessoas não acarreta somente a dependência material exterior do homem de ciência, ameaça ao mesmo tempo sua existência profunda. De fato, pelo aperfeiçoamento de técnicas requintadas para dirigir uma pressão intelectual e moral, ela impede o aparecimento de novas gerações de seres humanos de valor, mas independentes.
Hoje, o homem de ciência se vê verdadeiramente diante de um destino trágico. Quer e deseja a verdade e a profunda independência. Mas, por estes esforços quase sobre-humanos, produziu exatamente os meios que o reduzem exteriormente à escravidão e que irão aniquilá-lo em seu íntimo. Deveria autorizar aos representantes do poder político que lhe ponham uma mordaça. E como soldado, vê-se obrigado a sacrificar a vida de outrem e a própria, e está convencido de que este sacrifício é um absurdo. Com toda a inteligência desejável, compreende que, num clima histórico bem condicionado, os Estados fundados sobre a ideia de Nação encarnam o poder econômico e político e, por conseguinte, também o poder militar, e que todo este sistema conduz inexoravelmente ao aniquilamento universal. Sabe que, com os atuais métodos de poder terrorista, somente a instauração de uma ordem jurídica supranacional pode ainda salvar a humanidade. Mas é tal a evolução, que suporta sua condenação à categoria de escravo como inevitável. Degrada-se tão profundamente que continua, a mandado, a aperfeiçoar os meios destinados à destruição de seus semelhantes. 
Estará realmente o homem de ciência obrigado a suportar este pesadelo? Terá definitivamente passado o Tempo em que sua liberdade íntima, seu pensamento independente e suas pesquisas podiam iluminar e enriquecer a vida dos homens? Teria ele se esquecido de sua responsabilidade e sua dignidade, por ter seu esforço se exercido unicamente na atividade intelectual? Respondo: sim, pode-se aniquilar um homem interiormente livre e que vive segundo sua consciência, mas não se pode reduzi-lo ao estado de escravo ou de instrumento cego. 
Se o cientista contemporâneo encontrar tempo e coragem para julgar a situação e sua responsabilidade, de modo pacífico e objetivo, e se agir em função deste exame, então as perspectivas de uma solução racional e satisfatória para a situação internacional de hoje, excessivamente perigosa, aparecerão profunda e radicalmente transformadas.”

O bom soldado – Ford Madox Ford

Editora: Alfaguara
ISBN: 978-85-60281-71-8
Tradução: José Rubens Siqueira
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 240
Sinopse: Em O bom soldado, John e Florence Dowell são americanos bem-sucedidos que, em viagem pela Europa, tornaram-se amigos íntimos de um casal inglês que à primeira vista parecem exemplares. Edward Ashbyrnham, ex-militar, é o perfeito cavalheiro britânico, e a elegante Leonora, uma esposa ideal. Mas por debaixo das aparências, ambos escondem um casamento repleto de infelicidade e traições.
Em pouco tempo, os Dowell mergulham nessa rede de falsidades, em uma relação que só poderá levá-los à ruína. A história é contada por apenas um dos envolvidos - um narrador nem sempre confiável, que omite fatos, mostra dúvidas e altera a ordem dos eventos. Aos poucos, a trama se revela, mostrando que há muito mais por trás das aparências do que John e Florence poderiam imaginar. Nem mesmo o seu casamento é o que parece ser.


“Os exemplos de honestidade que se encontram neste mundo são tão incríveis quanto os exemplos de desonestidade. Depois de quarenta e cinco anos nos misturando com nossa própria espécie, devíamos ter adquirido o hábito de ser capazes de conhecer alguma coisa dos nossos próximos. Mas não se conhece.”


“Mas a verdadeira ferocidade do desejo, o verdadeiro calor de uma paixão duradoura e que consome a alma de um homem é a fome de identidade com a mulher que ele ama. Ele deseja ver com os mesmos olhos, tocar com o mesmo sentido do tato, ouvir com os mesmos ouvidos, perder sua identidade, ser envolvido, ser sustentado. Pois seja o que for que se possa dizer da relação entre os sexos, não existe homem que ame uma mulher e não deseje ir a ela para renovar sua coragem, para se distanciar de suas dificuldades. E isso será a mola principal de seu desejo por ela. Nós todos temos tanto medo, nós todos somos tão sozinhos, nós todos precisamos tanto que venha de fora a garantia de nosso próprio valor para existir.”


“E quando alguém discute um caso, um longo e triste caso, vai para trás, vai para frente. A pessoa se lembra de pontos que havia esquecido e os explica com mais minúcias quando reconhece que esqueceu de mencioná-los em seus devidos lugares e que, ao omiti-los, podia ter dado uma falsa impressão.”


“É muito singular que Leonora não tenha envelhecido nada. Suponho que haja certo tipo de beleza e mesmo de juventude afeitas ao embelezamento que vem com o suportar da tristeza. Isso está dito de forma muito elaborada. O que quero dizer é que Leonora, se tudo tivesse prosperado, podia ter ficado dura demais e, talvez, dominadora. Mas o que acontecera foi que se limitara a parecer eficiente, e ainda assim compreensiva. A mais rara de todas as mesclas. E juro que Leonora, à sua maneira contida, dava a impressão de ser intensamente solidária com o outro. Quando ela ouvia você parecia estar ouvindo algum som que vinha de muito longe. Mas mesmo assim ouvia e assimilava o que você dizia, o que, uma vez que a história da humanidade é uma história de tristezas, era, via de regra, alguma coisa triste.”


“Veja bem, não estou pregando nada contrário à moralidade aceita. Não estou advogando o amor livre nem neste nem em nenhum outro caso. A sociedade precisa continuar, suponho, e a sociedade só pode existir se os normais, se os virtuosos e se os ligeiramente enganosos florescerem, e se os apaixonados, os teimosos e os sinceros demais forem condenados ao suicídio e à loucura. Mas acredito que eu mesmo, à minha maneira frouxa, entro na categoria do apaixonado, do teimoso e do sincero demais.”

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Anna Kariênina, de Liev Tolstói

Editora: Cosac Naify

ISBN: 978-85-7503-473-6

Tradução: Rubens Figueiredo

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 816

Sinopse: Liev Tolstói escreveu Anna Kariênina entre 1873 e 1877, prestes a completar 45 anos. Depois de escrever o romance Guerra e paz, entre 1863 e 1869, dedicara-se aos afazeres agrícolas, além de fundar escolas, elaborar e difundir teorias e técnicas pedagógicas polêmicas e estudar o grego com afinco. Ao mesmo tempo, foi acumulando uma impressionante quantidade de informações sobre o tsar Pedro, o Grande. Seu intuito era escrever um romance sobre a época em que Pedro I foi o imperador da Rússia.

Após tentativas obstinadas, Tolstói desistiu do projeto. Por outro lado, nutria a ideia de fazer um relato sobre uma mulher adúltera, da alta sociedade. Durante um tempo, estes dois temas levaram vidas independentes em seu pensamento. Quando a imaginação os uniu, Anna Kariênina começou a nascer. Em janeiro de 1875, a revista Mensageiro russo publicou os primeiros catorze capítulos de Anna Kariênina.

Tolstói distribuiu ao longo do livro os temas que o inquietavam, discutidos pelos personagens - a guerra da Sérvia, a administração agrícola, o regime da propriedade da terra, a relação com os trabalhadores, a decadência da nobreza, a educação das crianças, o casamento, a religião, o serviço militar compulsório, as teorias de Spencer, Lasalle, Darwin e Schopenhauer. Estruturado em paralelismos, o livro se articula por meio de contrates - a cidade e o campo; as duas capitais da Rússia (Moscou e São Petersburgo); a alta sociedade e a vida dos mujiques; o intelectual e o homem prático, etc.

O tema é descentralizado a cada novo episódio. Os dois principais personagens, Liévin e Anna, só se encontram uma vez, em toda a longa narrativa. Mas nem por isso estão menos ligados, pois a situação de um permanece constantemente referida à situação do outro. Anna viaja a Moscou para tentar salvar o casamento em crise de seu irmão. Consegue ajudá-lo, mas acaba pondo a perder o seu próprio, apaixonando-se por um aristocrático militar por quem larga o marido e o filho pequeno. Liévin, um rico e jovem proprietário de terras rurais, vive às voltas com problemas de conflitos de classe de seus lavradores e questionamentos existenciais profundos.

Nesta tradução, Rubens Figueiredo busca preservar ao máximo os traços do original russo. Frases longas foram mantidas em sua integridade, assim como a frequente repetição das palavras. Além das notas de rodapé, elaboradas pelo tradutor, este volume conta com uma árvore genealógica dos principais núcleos familiares e uma lista completa de personagens, que facilitarão muito a leitura deste grande clássico.

 

“Todas as famílias felizes se parecem, cada família infeliz é infeliz à sua maneira.”

 

 

“– O consolo, como naquela prece de que sempre gostei, está em que posso ser perdoado não pelos meus méritos, mas por misericórdia.”

 

 

“– Mas meu irmão, as mulheres são a hélice em torno da qual tudo gira.”

 

 

“– Voltou cedo (pra casa), patrão – disse Agáfia Mikhálovna.

– Cansei, Agáfia Mikhálovna. Na casa dos outros, é bom; mas na nossa casa é melhor.”

 

 

“– Ninguém está satisfeito com os bens que possui, mas todos estão satisfeitos com a inteligência que têm – disse o diplomata, citando o provérbio francês.”

 

 

“De fato, Kitty escondia da mãe seus novos pontos de vista e sentimentos. Escondia não porque não respeitasse ou não amasse sua mãe, mas sim porque era sua mãe.”

 

 

“Konstantin Liévin encarava o irmão como um homem de enorme inteligência e cultura, um homem nobre, no sentido mais elevado da palavra, e dotado da capacidade de agir em prol do bem comum. No entanto, no fundo de sua alma, quanto mais envelhecia e quanto mais intimamente conhecia o irmão, vinha-lhe ao pensamento, de modo cada vez mais frequente, que essa capacidade de agir em prol do bem comum, da qual se sentia completamente privado, talvez não fosse uma virtude, mas sim, ao contrário, a falta de alguma coisa – não uma falta de gostos e de desejos bons, honrados e nobres, mas uma falta de força vital, daquilo que chamam de coração, daquela aspiração que obriga a pessoa a escolher, entre todos os inumeráveis caminhos que se apresentam na vida, somente um e desejar apenas esse. Quanto mais conhecia o irmão, mais notava que Serguei Ivánovitch e muitos outros que agiam em prol do bem comum não eram levados pelo coração a esse amor ao bem comum, mas sim concluíam por força da razão que era bom incumbir-se disso e apenas por esse motivo o faziam.”

 

 

“– De que adianta discutir? Afinal, nunca uma pessoa consegue convencer a outra.”

 

 

“– Por que Marie está de lilás, num casamento? É o mesmo que usar preto – disse Korsúnkaia.

– Com a cor de seu rosto, essa é a única salvação... – respondeu Drubiétskaia. – Eu me admiro que tenham feito o casamento à noite. É coisa de comerciantes.

– É mais bonito. Eu também me casei ao anoitecer – retrucou Korsúnkaia, e suspirou, ao lembrar como estava graciosa naquele dia, como seu marido estava ridiculamente apaixonado e como agora tudo era diferente.

– Dizem que quem é padrinho de casamento mais de dez vezes não se casa; eu quis ser padrinho, agora, pela décima vez, para me pôr a salvo, mas a vaga já estava ocupada – disse o conde Siniávin à bela princesa Tchárskaia, que tinha pretensões quanto a ele.

Tchárskaia respondeu apenas com um sorriso. Olhava para Kitty e pensava em como e quando estaria, ao lado do conde Siniávin, na mesma posição de Kitty, e como ela, nesse momento, lembraria a ele o seu gracejo de agora.”

 

 

“Só então, pela primeira vez, Liévin compreendeu com clareza aquilo que não havia compreendido quando, após o casamento, a conduzia para fora da igreja. Compreendeu que ela não era apenas íntima dele, mas que agora ele não sabia onde ela terminava e ele começava. Compreendeu-o graças à torturante sensação de desdobramento que experimentava nesse minuto. Ofendeu-se, no primeiro instante, mas no mesmo segundo sentiu que não podia ofender-se por causa de Kitty, pois ela era ele mesmo. Experimentou no primeiro instante uma sensação parecida com a de um homem que de repente recebe uma pancada pelas costas, volta-se com raiva e com desejo de vingança, para enfrentar o culpado, mas verifica que ele próprio se machucou por descuido, que não há contra quem ter raiva e que é preciso suportar a dor e amenizá-la.”

 

 

“Podemos ficar sentados durante várias horas, com as pernas dobradas na mesma posição, quando sabemos que nada nos impede de mudar de posição; mas se sabemos que somos obrigados a ficar sentados desse jeito, com as pernas dobradas, logo virão as câimbras, as pernas irão repuxar e pressionar na direção em que queremos estendê-las”.

 

 

“Porém, como dizia para Kitty, quanto mais ficava sem fazer nada, menos tempo lhe restava”.

 

 

“Para que se tome alguma decisão na vida conjugal, é necessário ou uma discordância completa entre os cônjuges, ou uma harmonia amorosa. Quando as relações entre os conjugues são indeterminadas, e não há nem uma coisa nem outra, é impossível decidir qualquer questão.

Muitas famílias permanecem durante anos nas antigas condições, odiosas para ambos os conjugues, só porque não há plena discórdia nem plena harmonia.”

 

 

“O respeito foi inventado para encobrir o lugar vazio onde devia estar o amor”.

 

 

“É horrível que não se possa arrancar o passado pela raiz. É impossível arrancar, mas é possível silenciar a sua memória. E vou silenciar.”

Cândido ou O Otimismo, de Voltaire

Editora: Martins Fontes

ISBN: 978-85-3361-727-8

Tradução: Maria Ermantina Galvão

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 208

Sinopse: Cândido foi publicado no início de 1759 sem indicação do nome do autor, obtendo imediatamente um sucesso prodigioso. Ninguém duvidou de que o autor fosse Voltaire. Naquele mesmo ano, mais de vinte edições saíram na França e várias traduções apareceram na Inglaterra e na Itália. Os governos tentaram em vão bloquear, ou pelo menos frear, a difusão do livro. Desde o título, as aventuras de Cândido são um testemunho contra o otimismo, particularmente o leibniziano do “melhor dos mundos possíveis”, que tentava conciliar a crença na existência do mal e a crença na justiça divina.



“Nada era tão belo, tão lento, tão brilhante, tão bem ordenado como os dois exércitos. As trombetas, os pífaros, os oboés, os tambores, os canhões formavam uma harmonia tal como nunca houve no inferno.”

 

 

“– O que é o otimismo?, indagou Cacambo.

– Bem, disse Cândido, é a ânsia de sustentar que tudo vai bem quando se está mal.”

 

 

“– Nunca esteve na França, senhor Martinho? – perguntou Cândido.

– Já, respondeu Martinho, percorri várias províncias. Algumas há em que a metade dos habitantes é louca, algumas onde são matreiros demais, outras onde são comumente bastante afáveis e tolos, outras onde se fazem de cultos; e, em todas, a principal ocupação é o amor; a segunda, a maledicência; e a terceira, dizer tolices.

– Mas, senhor Martinho, esteve em Paris?

– Sim, estive em Paris, onde existem todas essas espécies; é um caos, é uma azáfama em que todos buscam o prazer e em que quase ninguém o encontra.”

 

 

“– Mas com que finalidade este mundo foi então formado? – perguntou Cândido.

– Para nos enfurecer, respondeu Martinho.”

 

 

“– Acredita, perguntou Cândido, que os homens sempre se tenham massacrado mutuamente, como o fazem hoje? Que sempre tenham sido mentirosos, velhacos, pérfidos, ingratos, malfeitores, fracos, volúveis, covardes, invejosos, gulosos, bêbados, avarentos, ambiciosos, sanguinários, caluniadores, devassos, fanáticos, hipócritas e tolos?

– O senhor acredita, indagou Martinho, que os gaviões sempre comeram os pombos quando os encontravam?

– Claro, sem dúvida, anuiu Cândido.

– Pois bem! concluiu Martinho, se os gaviões tiveram sempre o mesmo caráter, como quer que os homens tenham mudado o deles?”

 

 

“Recém-chegado ao seu albergue, Cândido foi acometido por uma leve doença causada pela fadiga. Como trazia no dedo um enorme diamante, e como haviam percebido em sua bagagem um pequeno cofre prodigiosamente pesado, teve no mesmo instante a seu lado dois médicos que não mandara chamar, alguns amigos íntimos que não o deixaram, e duas devotas que lhe esquentavam os caldos. Martinho dizia: ‘Lembro-me de também ter adoecido em Paris na minha primeira viagem; eu era muito pobre, por isso não tive amigos, nem devotas, nem médicos, e sarei.’

Entretanto, à força de medicamentos e sangrias, a doença de Cândido se agravou. Um padre assistente do bairro veio com toda a brandura pedir-lhe uma letra pagável ao portador no outro mundo; Cândido não quis saber. As devotas garantiram-lhe que era uma moeda nova. Cândido respondeu que não era um homem na moda. Martinho quis atirar o padre pela janela. O clérigo julgou que não enterrariam Cândido (em solo sagrado). Martinho jurou que enterraria o clérigo se ele continuasse a importuná-los. A discussão acalorou-se; Martinho agarrou-o pelos ombros e escorraçou-o rudemente; isso causou grande escândalo, do qual foi lavrado um auto.

Cândido sarou-se, e durante a convalescença teve ótima companhia na ceia. Jogavam alto. Cândido ficava muito espantado de que nunca lhe viessem ases; e Martinho não se espantava.”

 

 

“– É verdade que em Paris estão sempre rindo? indagou Cândido. 

– É, respondeu o abade, mas é de raiva; pois queixam-se de tudo às gargalhadas, praticam-se rindo as mais detestáveis ações.

– Quem é, perguntou Cândido, aquela besta que falava tão mal da peça em que tanto chorei, e dos atores que tanto me agradaram?

– É um trapaceiro, respondeu o abade, que ganha a vida falando mal de todas as peças e de todos os livros; odeia qualquer pessoa que faça sucesso, como os eunucos odeiam os capacitados; é uma das serpentes da literatura que se alimentam de lama e veneno; é um folicular*.

*: Palavra criada por Voltaire, e que desde então designa um jornalista necessitado e malévolo. Folículo não é uma folhinha, mas uma pequena bolsa. Voltaire preferiu a vulgaridade expressiva à exatidão.

 

 

“A ceia foi como a maior parte das ceias em Paris: primeiro o silêncio, em seguida um rumor de palavras indistintas, depois gracejos em sua maioria insípidos, boatos, maus argumentos, um pouco de política e muita maledicência; falaram até de livros novos.”

 

 

“– Desejo, disse Martinho, que ela faça a sua felicidade um dia, mas é essa a minha maior dúvida.

– O senhor é muito duro, disse Cândido.

– É que vivi, disse Martinho.”