sexta-feira, 7 de junho de 2019

História e filosofia: uma introdução às reflexões filosóficas sobre a história (Parte II) – Antônio José Pereira Filho e Rodrigo Brandão

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-120-1
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
Sinopse: Parte I



A filosofia política de Maquiavel
Nicolau Maquiavel desenvolveu um tipo de pensamento político que se diferenciava do praticado na era medieval, encarregando-se de reformular a política do seu tempo, sua aliança com a ética e com os valores cristãos.
Enquanto, para os cristãos, o bom governante era aquele indivíduo que apresentasse virtudes cristãs e agisse de acordo com elas, o bom governante (o príncipe) de Maquiavel é aquele que faz o que for necessário para chegar ao poder e nele se manter, incluindo, se for preciso, violar os valores cristãos pregados em seu tempo. Ele criticou o direito divino de governar de seus predecessores e valorizou o desenvolvimento de algumas qualidades indispensáveis para aqueles que pretendiam ocupar o cargo de líder político: qualidades como a virtú e a capacidade de lidar com a fortuna.
O objetivo da política para Maquiavel é realizar a manutenção do poder com vistas ao bem comum e, para manter esse poder, o príncipe deve lutar com todas as suas forças. Justamente por conta disso é que os valores morais cristãos, tão apregoados em seu tempo, tornam-se obstáculos ao alcance desse propósito, isto é, cedo ou tarde, para não deixar de lado seu objetivo fundamental, o príncipe tem de abrir mão daqueles valores. Um príncipe não pode manter sua palavra (princípio moral cristão), por exemplo, se ela se voltar contra ele em suas decisões políticas ou forçar o surgimento de situações que o obriguem a tomar uma atitude contrária ao seu desejo. Se assim ocorrer, ele deve abrir mão de tal valor, como meio para a realização dos fins propostos. Da mesma forma, o príncipe deve, quando necessário, mentir para o povo, utilizar a força para repreendê-lo, enganá-lo (se não for possível dizer a verdade em determinados momentos) e fazer tudo o que for preciso para manter a ordem e o poder.
A manutenção da ordem e do poder é necessária para que o bem comum seja preservado. Os meios empregados serão honrosos e louvados se os fins forem alcançados por parte dos líderes políticos. Nesse sentido, vale ressaltar aqui que, para Maquiavel, o importante não é que o príncipe seja bom, basta que pareça bom; ele não precisa falar a verdade, basta que pareça estar dizendo a verdade; ele não precisa agir realmente de maneira justa, basta que pareça ao povo que sua atitude é justa. Essa diferença entre a essência (ser) e a aparência (parecer) é um elemento indispensável para um líder que queira manter o bem comum acima de tudo.
Essa nova forma de fazer política mostra que Maquiavel foi um pensador muito além do seu tempo e responsável por realizar a cisão entre o “ser” e o “dever ser” na política (Reale, História da filosofia, 2005, p. 93-94). Ele procurou pautar-se especificamente por um realismo político que procurava excluir toda e qualquer característica especulativa do dever ser, pois o príncipe (líder político de seu tempo) alcançaria sua ruína no momento em que deixasse de fazer aquilo que fazia para fazer aquilo que deveria fazer: um homem que quer em todo o lugar ser bom atrai ruína entre tantos que não são bons. Decorre disso que o príncipe que quer se manter no poder deve aprender os meios de não ser bom (apenas parecer bom já é suficiente) para, quando foi necessário, utilizar-se deles. Segundo Maquiavel, o líder ainda deve adotar remédios extremos para males extremos, ou seja, não deve fazer sempre o mal — deve fazer o bem quando possível e o mal apenas quando realmente for necessário.

A ética maquiavélica
No tocante à ética, vale destacar que Maquiavel reformula o conceito de virtude cristã vigente em sua época, baseada em princípios. Enquanto para os cristãos medievais o príncipe deveria ser portador das virtudes cristãs, ser bom, praticar sempre a temperança, falar a verdade aos seus súditos etc., a virtude a que Maquiavel se refere é exatamente a qualidade que o príncipe deve ter para chegar ao poder e nele se manter, o que ele chama de virtú. Ela é apreendida por Maquiavel em um sentido grego de “força, vontade, habilidade, astúcia e capacidade de dominar a situação” (Reale, 2005, p, 94). A virtú é a capacidade de derrotar a sorte e o acaso: segundo o autor italiano, metade das coisas que acontecem ao ser humano é proveniente da sorte, e a outra metade é de responsabilidade de cada indivíduo.
Diante dessa nova concepção de virtude, Maquiavel cria também uma nova ética, específica para todos aqueles que desejarem entrar para a vida política. Essa nova ética se preocupa não com os princípios (cristãos), mas com as consequências que as ações dos líderes políticos (os príncipes) terão sobre o povo, é uma ética de consequências que visa sempre à ação que beneficie o bem comum e o coletivo. Sempre que houver situações que fogem dos objetivos definidos pela República, o príncipe deve pensar quais serão as consequências que melhor atenderão ao bem comum e ao coletivo. Se as atitudes do príncipe não forem condizentes com os princípios dos indivíduos — no tempo de Maquiavel, eles eram os princípios cristãos da bondade, da verdade, da honra etc. — ele não deve deixar de realizá-las, pois é a consequência da ação que deve ser levada em conta. Portanto, se, para alcançar seus objetivos, o príncipe precisar matar, roubar, saquear, destruir, mentir, manipular, explorar, entre outras ações, ele deve fazê-lo, contanto que a consequência da ação seja para o bem comum de seu povo e a manutenção da ordem. Justamente por isso é que pensadores posteriores procuraram resumir todo o seu pensamento político com a seguinte frase: “Os fins justificam os meios”. Se a finalidade é o bem comum, não importa de quais meios o príncipe se utilize, assim ele deve fazer. O príncipe não pode se dar ao luxo, para conquistar seus objetivos, de agir politicamente tomando como base princípios (o homem comum, na vida privada, pode se dar ao luxo disso); deve agir levando em conta as consequências que suas ações trarão ao seu país. Desse modo, contra todos aqueles que consideram Maquiavel um sujeito sem ética (os que afirmam isso o fazem considerando que a ética cristã é a ética válida universalmente), um de seus intérpretes, o filósofo Isaiah Berlin, no livro Estudos sobre humanidade: uma antologia de ensaios (2002), mais especificamente no ensaio intitulado “A originalidade de Maquiavel”, afirma que existem duas éticas: uma baseada em princípios (a ética cristã), que prega a salvação da alma, e outra baseada nas consequências, que valoriza a cidade, o mundo e as ações dos políticos que estão na organização desse mundo (é a ética criada por Maquiavel).”


“Todavia, no início do que chamamos de contemporaneidade, Nietzsche revolucionou a forma como compreendemos o papel da razão na formulação de nossas concepções e valores morais, entendendo-a como algo que nos conduz a uma vida de valorização do nada (niilismo), de negação de nossos impulsos vitais, que é nossa vontade de poder, e, portanto, nos faz viver uma vida ética própria da classe dos escravos e ressentidos.
A razão, portanto, na concepção contemporânea, deve ser deixada de lado por não favorecer nossa liberdade, ou melhor, nossa vontade livre, pois, ao contrário, ela coloca limites e proibições a nossa conduta em vista de princípios metafísicos (niilistas). Com efeito, o fato de entendermos a razão sem a hipocrisia iluminista nos faz compreender que uma vida ética excelente é aquela que nos permite maior grau de liberdade e, por consequência, de responsabilidade pelos nossos atos, valorizando os impulsos vitais inerentes ao homem, contrariamente ao que pensavam os cristãos, que negavam esses impulsos, trocando-os pela promessa do paraíso, do céu, ou seja, de valores válidos universalmente e que são impostos a todos como deveres.”


Id, ego e superego
Em sua obra O ego e o id (1976a, p. 14), que é o último dos seus grandes trabalhos teóricos, Freud “oferece uma descrição da mente e de seu funcionamento que, à primeira vista, parece nova e até mesmo revolucionária”. Ele elabora uma teoria da mente mais sofisticada em comparação com as anteriormente propostas, aprimorando e clarificando sua grande descoberta teórica — que o lançou ao hall dos grandes pensadores de todos os tempos a saber, que nós não somos senhores de nossa própria casa, mas governados por nossos impulsos e desejos que ficam guardados no inconsciente*.
Formamos a ideia de que em cada indivíduo existe uma organização coerente de processos mentais e chamamos a isso o seu ego. É a esse ego que a consciência se acha ligada: o ego controla as abordagens à motilidade — isto é, à descarga de excitações para o mundo externo. Ele é a instância mental que supervisiona todos os seus próprios processos constituintes e que vai dormir à noite, embora ainda exerça a censura sobre os sonhos. (Freud, 1976a, p. 28)
Freud relaciona o ego com a parte do aparelho mental que é consciente. No aprofundando a análise, ele percebe que há no próprio ego algo que é também inconsciente, “que se comporta exatamente como o reprimido — isto é, que produz efeitos poderosos sem ele próprio ser consciente e que exige um trabalho especial antes de poder ser tornado consciente” (1976a, p. 30, grifo do original). É com base nisso que Freud passa a caracterizar o aparelho mental e suas divisões com outras denominações mais sofisticadas, preservando a originalidade principal. Nesse contexto, surgem os termos id, ego e superego.
Wilson Castello de Almeida (Defesas do ego, 1996, p. 15) explica de forma clara e didática esses conceitos.
O chamado Id (Isso) nomeia a instância virtual da personalidade correspondente à carga instintiva radicada na estrutura constitucional da espécie humana, exigindo respostas imediatas para suas necessidades básicas, elementares e vitais: pulsões de autoconservação, por exemplo. [...] Do Id sairiam os impulsos, passíveis de serem modificados pelo Ego, tarefa que este consegue através dos mecanismos de defesa. [...] O Ego (Eu) formar-se-ia do Id, seria mesmo uma parte dele, surgindo através de um processo de diferenciação. Se fosse possível situá-lo espacialmente, ocuparia uma zona entre o Id e a realidade do mundo externo. O Ego poderá inibir ou modificar o Id e também permitir-lhe transformar-se diretamente em ação; e registraria os impulsos do Id projetando-os sobre os objetos externos em forma de sentimentos e afetos.”
Em relação ao superego, Almeida (1996, p, 16) nos mostra que se formaria a partir do processo de identificação das figuras parentais que se inicia durante a fase de alimentação dos recém-nascidos. A partir dessa fase de desenvolvimento da criança, surge o superego, o qual tem a função de representar internamente as exigências normativas que a sociedade impõe a todos os sujeitos por meio dos códigos morais e éticos, que cumprem o papel de disciplinar, coagir e punir aqueles que não se enquadram no sistema social.
*: Esse foi o terceiro grande golpe que a humanidade sofreu em seu narcisismo. O primeiro golpe foi a criação da teoria do heliocentrismo por Nicolau Copérnico, que tirou a Terra do centro do Universo (e, consequentemente, 0 homem). O segundo golpe foi dado por Charles Darwin com sua teoria do evolucionismo: com ela, o homem passou a estar no mesmo nível dos outros animais, deixou de ser uma criatura especial, criada imagem e semelhança de Deus, e passou a ser uma criatura que provém de um processo evolutivo de outras criaturas, de outros animais.

Ética e psicanálise
O superego cria nossa consciência moral e nos leva a seguir as regras e normas sociais. Ele procura introjetar os valores morais em nós e nos obriga a cumpri-los sob pena de punição.
Claro que esse cumprimento nem sempre é feito de maneira pacífica pelo aparelho psíquico do indivíduo, e o superego, por vezes, é tomado como a instância que pune o próprio sujeito por não conseguir se adequar às regras e aos valores sociais. Como efeito dessa punição, surge o que Freud designa como culpa. Foi observado por Freud (1976a, p. 65) que, em muitos casos, a culpa era o mais poderoso obstáculo à cura de uma enfermidade. (...)
Uma das questões éticas que Freud procura resolver durante essa análise é o porquê de o superego desenvolver tanta rigidez para com o ego, introjetando neste valores e ideias morais que exigem a repressão dos instintos vitais de maneira radical. Segundo Freud, isso ocorre porque existem no ser humano basicamente dois impulsos básicos: os instintos de vida, ou instintos sexuais (de amor), Eros, e os instintos de morte, ou de agressividade, Thanatos.
Freud compreende que o objetivo primário de todo homem é a satisfação integral de suas necessidades. A partir do momento em que isso não ocorre, acontece um fenômeno interessante: os instintos voltam-se para trás, para o interior, para dentro do próprio homem. É aí que residem as doenças estudadas por Freud, é nessa repressão dos instintos básicos do homem, por meio da introjeção dos ideais e dos valores morais pelo superego ao ego, que surge a culpa e, como efeito desse poderoso sentimento, surgem a neurose e outras doenças psíquicas.
Freud, em sua obra O mal estar na civilização (1974b, p, 146), afirma que a agressividade que o ego gostaria de ter descarregado sobre outros indivíduos — sobre o pai, no caso do complexo de Édipo — é introjetada, internalizada, mandada de volta para o lugar de onde proveio, no sentido de seu próprio ego, sob a forma do superego.
A tensão entre o severo superego o ego, que a ele se acha sujeito, é por nós chamada de sentimento de culpa; expressa-se como uma necessidade de punição. A civilização, portanto, consegue dominar o perigoso desejo de agressão do indivíduo, enfraquecendo-o, desarmando-o e estabelecendo no seu interior um agente para cuidar dele, como uma guarnição numa cidade conquistada. (Freud, 1974b, p. 147)
O sentimento de culpa seria, portanto, fruto da ação desse guardião da moral internalizado em nós na forma de superego. Este tem a função de formar nossa consciência moral e fazer com que nossas ações estejam em concordância com as leis sociais. Com efeito, vemos que, na concepção formulada por Freud, nós somos impulsos e desejos inconscientes, não somos senhores de nós mesmos se nossa razão não consegue nos governar. Para a ética, isso tem consequências graves, pois, se não somos senhores de nossas ações, como podemos ser responsáveis por elas? Nesse caso, não somos livres, pois não conseguimos manter uma vontade livre que aja em conformidade com os deveres sociais.
Quando descrevemos as reflexões éticas elaboradas ao longo de toda a história, procuramos demonstrar como cada pensador, em seu tempo histórico, buscou contribuir com esse estudo e apresentar soluções para conflitos de ordem moral, mostrando-nos o caminho para uma vida virtuosa — a qual anseia pelo bem, pela verdade — e que, de certa forma, foi cristalizado em forma de leis, que devem ser seguidas por todos, leis que são frutos da autonomia moral e de uma liberdade que visa a trazer benefícios para os seres humanos como um todo. Todavia, diante da proposta de reflexão apresentada por Freud, vemos alguns problemas surgirem: o que produzimos é fruto do nosso inconsciente ou de nossos impulsos e instintos, mas a razão não tem autonomia sobre eles e muito menos consegue controlá-los. A razão, nesse caso, seria uma ficção moderna criada para iludir os indivíduos.
Da mesma forma, ao entendermos que a repressão dos impulsos vitais causa uma série de prejuízos ao homem (como a culpa ou as doenças de ordem psíquica), não podemos falar de autonomia moral que seja capaz de criar regras e deveres possíveis de serem cumpridos na prática, possíveis de serem realizados: a moral seria apenas um elemento criador de doenças e nunca um elemento virtuoso que visa à construção de uma sociedade harmoniosa e à felicidade.
Justamente por isso é que a psicanálise fundada por Freud nos mostra que praticar atos que ao longo da história foram considerados delitos ou violações de regras morais não podem ser tomados como tal:
Do ponto de vista do inconsciente, mentir, matar, roubar, seduzir, destruir, temer, ambicionar são simplesmente amorais, pois o inconsciente desconhece valores morais. Inúmeras vezes, comportamentos que a moralidade julga imorais são realizados como autodefesa do sujeito, que os emprega para defender sua integridade psíquica ameaçada (real ou fantasmagoricamente). Se são atos moralmente condenáveis, podem, porém, ser psicologicamente necessários. (Chaui, 2000, p. 458)”


“Aparentemente, a concepção dos direitos humanos apoia sua ideia de dignidade humana sobre a própria noção antropológica que indica, ou seja, sobre a afirmação de que nós, como seres racionais e autoconscientes, detemos uma condição única no mundo. Tal entendimento nos deve permitir constatar que a condição humana se determina como sendo digna na medida em que efetiva o seu ser no mundo, ou seja, por meio das experiências vivenciadas que possam humanizá-la. Se assim for, devemos compreender eticamente o ser humano mediante seu caráter volitivo, que sempre busca aperfeiçoar as condições de sua existência.
Os direitos humanos têm como objetivo sintetizar os mais variados referenciais éticos desenvolvidos ao longo da história para nos ajudar a compreender a existência humana como um processo, ou seja, para nos mostrar que o homem é um ser que está em constante transformação e que, por isso, precisamos estar atentos para que, em meio a essas mudanças, não percamos de vista alguns elementos essenciais que nos tornam humanos. Em outras palavras, mesmo que as sociedades produzam transformações inimagináveis para a espécie humana, devemos sempre preservar o que nos humaniza. Assim, a ética que ancora os direitos do indivíduo em transformação adota o existir da espécie humana sob desenvolvimento constante. Dá-se então que, humanamente, existimos sobre um solo axiológico, para o qual servem de base os direitos humanos como cabedal teórico/prático, impelindo nossa vontade — como capacidade de escolha racional — a superar nossos instintos de amor próprio, por vezes prejudiciais à vivência comunitária.”

História e filosofia: uma introdução às reflexões filosóficas sobre a história (Parte I) – Antônio José Pereira Filho e Rodrigo Brandão

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-8212-364-5
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 204
Sinopse: Ao retratar os principais conceitos e problemas que envolvem as concepções de história na perspectiva ­filosó­fica, esta obra visa reunir, brevemente, alguns dos fi­lósofos que contribuíram para analisar esse tema. De Santo Agostinho a Vico, de Kant a Hegel, passando pelas considerações iluministas até chegar a Marx e Walter Benjamin, o leitor é convidado a captar o saber histórico como instrumento para entender o nosso tempo e, assim, poder refletir sobre o atual horizonte histórico em que estamos inseridos. Aqui se apresentam indagações que possibilitarão uma compreensão mais profunda do real signifi­cado da história, levando o leitor à reflexão sobre a vida dos homens em sociedade, sobre o que somos e fazemos e, sobretudo, sobre como modi­camos ou influenciamos a história e somos influenciados por ela.



“A visão agostiniana não está preocupada com questões metodológicas acerca do estatuto do conhecimento histórico, ou seja, Agostinho não investiga os fundamentos da história como disciplina teórica nem está interessado no modo como se escreve a história; na verdade, sua preocupação é fornecer uma resposta para o problema do sentido da história universal. Nesse caso, diferentemente do que acontecia no mundo pagão, a história não se resume a narrativas que pertencem aos contextos isolados desta ou daquela nação, mas ganha contornos mais amplos, podendo ser vista como o palco em que se desenrola o drama de toda a humanidade. Na visão teológica agostiniano, a história é definida nos termos de um progresso espiritual, no qual por trás dos acontecimentos, aparentemente irracionais e desconexos, atravessados por guerras e catástrofes, há uma coerência e um sentido que só podem ser revelados peta fé, nunca exclusivamente pela razão humana.”


“Conforme argumenta Pierre Bayle, citado por Cassirer (A filosofia do iluminismo, 1994, p. 281):
todos os que conhecem as leis da história estarão de acordo que um historiador, se cumprir fielmente suas funções, deve despojar-se do espírito de adulação e de maledicência e colocar-se o mais possível na posição de um estoico, a quem nenhuma paixão agita. Insensível a todo o resto, só deve estar atento para os interesses da verdade, sacrificando a essa o ressentimento de uma injúria, a lembrança de um benefício e até mesmo o amor à pátria. Deve esquecer que está num certo país, que foi instruído numa certa comunhão, que é devedor de gratidão a este ou aquele, que tais e tais são seus progenitores ou seus amigos.
O que podemos observar, porém, é que Bayle tem em vista apenas a história considerada sob o viés da crítica historiográfica, ou seja, da história entendida como narrativa que obedece a normas rigorosas para a reconstrução do material histórico (fontes). Bayle em nada nos adverte a respeito de um processo histórico, ou seja, de um processo racional que recobre o curso das coisas humanas como um todo, configurando-lhe um sentido. Desse ponto de vista, a realidade histórica se apresenta a Bayle, conforme esclarece Cassirer (1994, p. 275), como um “amontoado monstruoso de escombros e faltam todos os meios para se assenhorear dessa massa de materiais”. Desse modo, Bayle recusa a possibilidade de uma lógica no interior dos fatos históricos, que são vistos como um agregado de escombros que o cartesianismo, em sua seriedade, rigor, transparência discursiva, coerência e unidade, sempre rejeitou. Mas é preciso notar que Bayle é impedido de seguir na direção de uma visão filosófica da história não apenas devido a questões de ordem metodológica, mas em razão de ele ter uma visão cética e pessimista, que o afasta da possibilidade de descobrir na história um plano coerente, um sentido que permita a verificação de um todo racionalmente organizado.
Na concepção de Bayle, se examinarmos os fatos de frente, sem preconceitos, uma simples olhada para a história real da humanidade é mais do que suficiente para nos curarmos de todas as especulações e construções totalizantes, ensinando-nos que essa história nunca foi outra coisa senão um rosário de crimes e desgraças do gênero humano. Para Bayle, citado por Cassirer (1994, p. 269-281), quanto mais dirigirmos um olhar lúcido para a descrição de um fato singular, mais leremos motivos para renunciar ao conhecimento do todo e reduzir a nada nossa esperança de compreensão de um sentido total da história. Apesar de não acreditar que possamos encontrar um sentido para a história, Bayle colocou uma importante questão para o historiador ao mostrar que a remissão aos fatos não é uma atitude simples. Em vez de estes serem tomados, de modo direto e apressado, como a fonte do conhecimento histórico, a atitude do historiador perante os fatos deve ser cautelosa. Ele deve tomar todo o cuidado para que ele mesmo, com seus ideais, educação e preconceitos, não interprete à sua maneira os fatos históricos que estão sendo investigados.”


“Segundo Giambattista  Vico, ainda que muitas vezes o material historiográfico tenha se mostrado fragmentário, obscuro e parcial, ele pode servir aos propósitos de uma ciência que possui mais coerência do que as ciências que investigam a natureza, como é o caso da física e da astronomia. Isso porque, para Vico, os homens são os autores de sua própria história e por isso podem conhecê-la por dentro, investigando seus desdobramentos no tempo, ao passo que a natureza só pode ser conhecida de modo superficial pela mente humana, pois não foi feita pelo homem.”


“Vico foi o primeiro autor a reconhecer a importância dos mitos para a história e mostrar que aquilo que aparentemente não passa de lenda é uma forma de expressão reveladora da mentalidade mais arcaica. Assim, a figura de Hércules, por exemplo, não representa um indivíduo de qualidades excepcionais, mas o modo como os povos primitivos, que ainda não pensavam em termos racionais, podiam expressar-se quando queriam significar o mundo do trabalho. Do mesmo modo, o herói Ulisses não é uma figura lendária de especial sabedoria, mas encarna o tipo de mentalidade astuciosa, desenvolvida na época em que floresceram, na Grécia, as grandes cidades e o mundo do comércio. Nesse sentido, os mitos expressam uma “verdade”, não são simples obras de ficção. Só muito mais tarde, na fase humana, ou racional, é que os mitos assumem um caráter lendário, de ficção, de narrativas impróprias feitas para iludir e enganar os homens. Na sua origem, eles não são nada disso.
É interessante observar, no entanto, que Vico não acredita que as formas expressivas de caráter mítico de uma sociedade primitiva desaparecem ou são superadas definitivamente com o advento da razão, como se o progresso estivesse justificado para sempre. Ao contrário, tanto os traços positivos quanto os aspectos negativos da vida arcaica ainda perduram na história. Assim, o temor dos deuses e as religiões mais diversas acabam sempre reaparecendo de diferentes maneiras no curso que percorrem as nações; do mesmo modo, a capacidade de imaginar mitos permanece presente, de alguma forma, na mentalidade dos povos, que continuam criando lendas e inventando narrativas que não podem ser ignoradas por quem deseja escrever a história. Por outro lado, nada garante que uma razão formal pode livrar completamente os homens da sua condição natural, como mostra a recorrência da barbárie, do medo, da superstição e de seus males ao longo das épocas.”


“Para Voltaire, o trabalho do historiador não é narrar tudo, todos os detalhes. Se fosse assim, diz ele, a história se tornaria algo tedioso demais. O historiador deve se ater àquilo que possa contribuir para que ele capte o espírito de um povo ou de uma época. O que ele quer dizer com isso? Que o historiador deve tentar captar aquilo que caracteriza um povo, aquilo que o torna particular e distinto dos demais. Daí porque Voltaire aparece como um autor importante para a historiografia moderna – ele se preocupou em mostrar que esta tarefa de captar o espírito de um povo deve levar em conta inúmeros aspectos da vida em sociedade: a religião, a língua, o clima, as leis e o governo, bem como os costumes em geral.
O historiador deve também ter muito cuidado com suas fontes e documentos. Quando possível, deve comparar testemunhos diferentes e buscar mais de uma perspectiva sobre o evento. A preocupação que Bayle tinha com os fatos é compartilhada por Voltaire, mesmo que hoje suas narrativas nos pareçam algumas vezes demasiado frágeis em termos documentais e muito parciais quanto ao sentido e à importância dos eventos. Ademais, o historiador deve evitar as fábulas. Aqui está um ponto normalmente criticado na perspectiva de Voltaire: ele seria incapaz de perceber que as fábulas e os mitos têm valor histórico. Algumas vezes ele chega a narrar como um mito pode ter surgido, como algum elemento religioso pode ter uma história, mas julga essas narrativas como algo negativo, como algo distante da razão. Todo o passado é medido pelo crivo da razão; assim, mitos e fábulas são relegados ao âmbito do irracional e do absurdo. Será apenas a partir do desenvolvimento da antropologia, da sociologia e do historicismo, inaugurado mais tarde pelos alemães, leitores de Vico, que as fábulas e os mitos ganharão importância para a história.”


“Além da diferença entre ser e dever ser, entre o fato histórico e a ideia de história, Kant lança mão de outra distinção muito importante, qual seja: o homem não pode ser visto simplesmente como uma criatura totalmente racional nem como um animal que se orienta por seus próprios instintos, paixões e interesses particulares. Na verdade, segundo o filósofo, o homem participaria de dois mundos: o mundo sensível, no qual ele segue suas paixões, e o mundo inteligível ou racional, no qual, de acordo com o princípio da autonomia e da liberdade da vontade, ele dá fins para si mesmo, podendo aperfeiçoar-se moralmente e não agir simplesmente com base em seus instintos. Como os homens, de um ponto de vista factual, não agem moralmente nem seguem planos estabelecidos, Kant pretende mostrar que há, sim, um plano oculto ou secreto por trás das ações humanas, o que permitiria ver a história como um sistema, uma espécie de organismo em que as partes estão naturalmente ligadas, de modo que, por mais que as ações humanas pareçam sem sentido, haveria um progresso sempre rumo ao melhor.
De modo resumido, o argumento de Kant (Ideia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, 2003) é o seguinte:
• É impossível falar de um sentido da história se ficarmos apenas no nível dos indivíduos e suas ações particulares, mas é perfeitamente possível supor um sentido na história do ponto de vista do desenvolvimento da espécie humana como um todo.
• Haveria um plano secreto na própria natureza que, deixando os homens agirem livremente, buscando somente o que lhes interessa, acaba por levá-los a uma meta, objetivo ou fim racional mais elevado.
Em outros termos, por trás dos impulsos naturais, como a inveja competitiva, o desejo de possuir e dominar dos indivíduos que pensam apenas em si mesmos e nunca no outro, haveria a necessidade de se estabelecer a ordem; caso contrário, os homens se destruiriam uns aos outros numa guerra sem fim. Surge daí a ideia de associação política, a necessidade de viver em comunidade, de se instaurar a paz entre os indivíduos, que leva, necessariamente, à formação dos Estados. Estes, por sua vez, também competem entre si, dando origem a guerras e discórdias; todavia, são forçados naturalmente a pôr um limite nessas competições e passam a associar-se em ligas de nações, assumindo, assim, um ponto de vista cosmopolita, quer dizer, um ponto de vista de uma comunidade política universal.”


“Coube ao filósofo alemão Georg W. F. Hegel (1770-1831) esquadrinhar o problema dessa tensão entre a imposição da lei externa e a liberdade interna do indivíduo, entre uma justiça meramente formal e a autonomia do sujeito. Segundo Hegel, tendo em vista o desenvolvimento da modernidade, é complicado pensar uma liberdade de ação focada exclusivamente no indivíduo isolado, pois “ele nunca deixa de fazer parte, para qualquer lado que se volte, de uma ordem social estabelecida, e longe de ser uma representação total, individual e vivente desta sociedade, não passa de um membro dela com possibilidades muito limitadas” (Hegel, Estética, 1996, p. 204). O filósofo quis dizer com isso que, na modernidade, é inevitável pensarmos o indivíduo como uma peça dentro da máquina estatal e que, se nos fixarmos apenas na vontade do indivíduo considerado isoladamente, aí, sim, teremos uma visão abstrata e parcial das coisas, pois com o desenvolvimento do Estado de direito não há mais espaço para uma liberdade que parta espontaneamente do indivíduo e se cumpra integralmente nele. Ao contrário, nossas ações estão circunscritas num contexto. Assim, só somos livres, por exemplo, dentro dos limites prescritos pela lei. Com efeito, no âmbito da burocracia estatal moderna, “quando um representante da justiça se comporta e age como lhe exigem a função e o dever, não faz mais do que cumprir uma obrigação determinada de acordo com a ordem estabelecida pelo direito e pela lei” (Hegel, 1996, p. 205). Como pensar, então, uma forma de sociabilidade que garanta a autonomia do sujeito (a liberdade) e, ao mesmo tempo, permita o pleno desenvolvimento da humanidade em seu conjunto?
Kant havia dito que os homens são racionais, autônomos, porque dão fins a si mesmos e agem conforme o dever que a razão prescreve. Mas como conciliar os fins racionais do Estado moderno se nele o indivíduo nunca é absolutamente livre, se sua liberdade aparentemente é sempre limitada e parcial? A resposta de Hegel retoma de Kant a ideia de que o homem não pode ser livre sozinho, de que ele vive com seus pares e de que o desenvolvimento da autonomia do sujeito só é possível nos limites de uma sociedade organizada. Mas, ao contrário de Kant, cuja filosofia da história, como vimos, se apresenta sob a forma de um dever ser, como uma ideia da razão, em Hegel (1996), ao contrário, a própria razão vai tomando forma concreta na história humana. Se Kant pensa a história a partir da construção do reino da moralidade, isto é, das ações morais feitas conforme a autonomia do sujeito, situando esse plano de moralidade no âmbito do dever ser, Hegel, ao contrário, procura trazer a razão para o plano da efetividade histórica. Nesse sentido, ele supera a distinção kantiana entre ser e dever ser, mostrando que a racionalidade vai se cumprindo, de fato, em cada fase da história do espírito humano, no seu desdobrar-se. A liberdade não é, pois, uma ideia situada no infinito de uma história apenas possível, tampouco se encontra apenas na interioridade do sujeito isolado; ao contrário, ela vai se moldando em instituições objetivas, reais, concretas, como a família, a sociedade civil e o Estado, absorvendo, assim, os indivíduos tomados isoladamente num processo de caráter universal.”


“Ora, segundo Hegel, nada fica completamente perdido na história, pois esta não é vista como oposição radical entre os polos opostos da vida e da morte, da beleza e da ruína, do ser e do não ser e é, antes de tudo, processo, devir, o desdobrar-se da razão no tempo. É justamente a isso que Hegel chama de dialética, a busca de reunir num todo processual o que parece fragmentário e solto na história. Assim, a filosofia da história de Hegel pode ser vista pelo modo como a razão vai constituindo o domínio do espírito em diferentes momentos. O que Hegel chama de domínio do espírito tem semelhança com a distinção que Vico havia estabelecido entre natureza e história. Hegel parte da mesma distinção: “o reino do espirito compreende tudo que é produzido pelo homem” (Hegel, La raison dans l’historie, 1965, p. 71). Surge, assim, o mundo da cultura, dos artefatos, dos feitos humanos, de tudo aquilo que pode ser visto como tendo um sentido ou significado, posto ser produzido com intenção humana, isto é, com liberdade. Segundo Hegel, o espírito se define justamente por uma atividade livre situada acima das determinações inconscientes da natureza. Liberdade é aqui, justamente, atividade, superação: “a liberdade do espírito não é, pois, uma existência imóvel, mas uma negação constante de tudo que contesta a liberdade [...]. As coisas naturais não são por si mesmas, por isso não são livres” (Hegel, 1965, p. 76). O espírito, ao contrario, “é seu próprio produto, ele é seu começo e seu fim”. Isso equivale a dizer que o espírito é livre porque tem consciência de sua própria atividade, mas, para saber-se livre, o espírito deve experimentar a sua própria liberdade, o que é o mesmo que dizer que “é somente a experiência da liberdade que libera o espírito” (Hegel, 1965, p. 76). Numa palavra, o espírito humano só se reconhece livre na história, pois ele próprio é história, processo, devir. A liberdade é, assim, algo que se conquista na história concretamente, não algo que nasce de uma dádiva divina, ou de uma mera visão contemplativa e estática do universo, nem deve ser confundida com as ações arbitrárias de um indivíduo isolado.
É preciso dizer, portanto, que o domínio do espírito de que fala Hegel “não é aquele de um indivíduo humano singular” (Hegel, 1965, p. 80). Para ele, “é verdade que o espírito é essencialmente indivíduo; mas, no elemento da história universal, não temos de levar em conta as pessoas reduzidas à sua singularidade particular”. Na história considerada sob uma perspectiva filosófica, o espirito é um indivíduo ao mesmo tempo universal e determinado, a saber: um povo. É o espírito do povo (Volksgeist) que deve ser levado em conta pela consideração filosófica da história; todavia, os povos são diversos, de modo que o grau de liberdade de um pode ser medido pelo grau de apreensão que ele faz de si mesmo no seu desdobrar-se temporal. É dentro desse elemento, também, que deve ser encarado o certo nível de consciência que o indivíduo tem de si mesmo, bem como dos seus limites históricos. Daí os infortúnios de um indivíduo que perde a consciência do seu papel na história, que fica, por assim dizer, deslocado do contexto. Esse é o caso de Dom Quixote, que deseja reviver os antigos valores da cavalaria da Idade Média, ou seja, os ideais de justiça baseados nas relações pessoais, como o favor e a amizade, não percebendo que um novo tempo surgiu (o tempo do Estado moderno), uma época que converteu a antiga forma de vida em ruína, mas abriu uma nova etapa no desenvolvimento do espírito humano.
Neste ponto, podemos perceber claramente por que o verdadeiro sujeito da história não é, para Hegel, o indivíduo. É que este sempre age na história tendo em vista seus próprios interesses, seguindo suas próprias paixões. Todavia, para se revelar o sentido da história, é preciso admitir um sujeito agente, ativo, criador. A questão é que o indivíduo, tomado isoladamente, não pode ser esse sujeito. O significado do curso da história ultrapassa sempre a ação dos indivíduos. Hegel admite que os interesses e as paixões são a fonte ou o motor da história, o que aparentemente levaria a pensar na falta de sentido ou na “desrazão” da história. Entretanto, há para o filósofo um verdadeiro sujeito agindo sobre as costas ou ações dos homens isolados, servindo-se de suas ações como “meios e instrumentos de uma coisa mais elevada, mais vasta e que eles realizam inconscientemente” (Hegel, 1965, p. 110). Esse sujeito é o que Hegel chama de espírito do mundo, ou seja, a encarnação da razão no âmbito da história universal.
Para Hegel, a razão caminha sempre com astúcias: deixa os homens agirem na espontaneidade dos seus interesses privados somente com o intuito de atingir um fim ou objetivo mais elevado. Assim, ao buscarem satisfazer seus próprios interesses, os indivíduos vão promovendo o progresso do espírito e da liberdade, superando o caráter arbitrário que motivou suas ações. Hegel observa que a consciência dos indivíduos é sempre motivada por interesses particulares, de modo que, nessa perspectiva, os homens não fazem a história com autonomia, mas apenas executam seus negócios. Há, porém, determinados indivíduos que superam esse nível, convertendo-se em agentes históricos efetivos, embora também suas ações sejam motivadas por interesses egoístas e nunca em prol do bem comum. O filósofo toma como exemplo a luta de César pelo poder. Foi uma ambição pessoal que levou César a destruir a forma tradicional do Estado romano, mas, assim agindo, ele destruiu uma forma de vida que havia caducado e deu origem a uma forma de organização política mais racional. Do mesmo modo, Napoleão Bonaparte, ao levar o Estado moderno para os quatro cantos da Europa, não o fez de modo racional ou por livre escolha, mas apenas pelo desejo de domínio e para provar que era o maior estrategista de todos os tempos.
Hegel considera indivíduos como César e Napoleão a encarnação do “espírito do mundo”, quer dizer, guiados por um instinto inconsciente que a própria época deles exige. Eles são os heróis que, apesar de não saberem completamente o que fazem, rompem com as velhas formas de vida, promovendo a mudança, o progresso e a liberdade. Como agentes históricos universais, os heróis aparecem no momento em que uma forma de vida está morrendo, em que o espírito humano está estabilizado, tornando-se inativo, e, por isso, essa forma de vida deve ser substituída por outra. Desse ponto de vista, a ideia de uma razão astuciosa agindo por intermédio dos heróis cumpre uma função vital para a inteligibilidade do aspecto orgânico da vida social, e coincide com um processo intencional que sempre ultrapassa a ação do indivíduo isolado em benefício do bem comum. Esse processo, ao conciliar o conflito entre as paixões imediatas do indivíduo, cria a ordem racional no interior das sociedades, além da justiça e das virtudes necessárias para o desenvolvimento da liberdade humana na história. (...)
Nesse sentido, a história é vista como palco do conflito dramático entre o velho e o novo. Como já assinalamos, sob um certo ponto de vista, a história desperta o sentimento de tristeza, de ruína, pois os indivíduos levam uma vida infeliz, já que trabalham arduamente, mas depois morrem. Entretanto, de outro ponto de vista, o fruto do seu sacrifício individual fica para a posteridade; seu sofrimento e fracasso contribuem, assim, para o desenvolvimento da liberdade e do progresso. Isso está conforme a astúcia da razão, de que fala Hegel. Essa razão astuciosa vai moldando a necessária concatenação racional dos acontecimentos, absorvendo o mal, o fracasso, a desordem, vistos como momentos parciais, mas necessários, para a construção do reino da liberdade, que só se realizaria com o advento do Estado moderno. A filosofia da história de Hegel pode, portanto, ser vista como a construção de um enredo que mostra a coerência ou a racionalidade inerente a esse processo.
É preciso dizer que a tarefa a que Hegel se propõe na construção do seu grande enredo dramático da história universal consiste, em primeiro lugar, em isolar os povos, as épocas e os heróis que realmente contribuíram para a efetivação do reino da liberdade. O filósofo vai mostrando, passo a passo, como se deu o desenvolvimento do espírito desde os povos do Oriente, passando pelos gregos e romanos, até chegar a sua própria época, quando os homens já se encontram no interior de um Estado juridicamente constituído, passando a ser senhores autoconscientes de sua existência e a viver conforme as prescrições da razão. A história pode ser vista, assim, como a realização ou efetivação da ideia de liberdade ao longo do tempo, atingindo sua plenitude justamente na forma do Estado moderno, que supera a visão da liberdade vista em termos abstratos.”


“No que concerne a Hegel, podemos perceber até mesmo certo recuo em face do processo crítico que ele próprio identificou no interior da história. De fato, o filósofo se esforça em mostrar que a história já teria alcançado, em seu tempo, o pleno desenvolvimento da atividade espiritual, ao assumir a forma do Estado de direito. Com efeito, o Estado é uma instância completamente espiritual, uma conquista do pensamento humano, algo que não se pode agarrar com as mãos, mas cuja força podemos sentir pesando sobre nossas cabeças, pondo freios a nossa liberdade. Mas, além de nos limitar, o Estado também faz a mediação dos interesses privados, preservando os interesses conflitantes da sociedade no âmbito do poder legislativo, que vai articulando as leis necessárias à preservação da ordem pública. É possível concluir que, com o desenvolvimento dessa forma de Estado, a história universal, concebida por Hegel, teria chegado a seu pleno desenvolvimento, atingindo sua mela, fim ou sentido. Isso não quer dizer que a história de fato terminou, mas todos os seus possíveis avanços se darão sempre a partir desta última conquista histórica.”

Tópicos Especiais em Filosofia Contemporânea – Valdinei Caes

Editora: InterSaberes
ISBN: 978-85-5972-509-4
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 214 

“Conforme Melani (Diálogo, 2013, p. 178), “Marx dedicou sua vida a organizar a luta dos trabalhadores e a refletir teoricamente sobre a política, a economia e a filosofia da época em que viveu, período em que o capitalismo se estabelecia plenamente”. O capitalismo no século XIX já estava consolidado e a exploração era seu sinal mais vigoroso. No entendimento de Marx, “capitalismo significa não apenas um sistema de produção de mercadorias, como também um determinado sistema no qual a força de trabalho se transforma em mercadoria e se coloca no mercado como qualquer objeto de troca” (Catani, O que é capitalismo, 2011, p. 8), privilegiando um pequeno grupo e extorquindo a maioria da população. É contra esse sistema que supervaloriza o ter em relação ao ser que Marx dedicou sua vida. Transformar ou até mesmo abolir essa realidade de exploração constitui um dos fundamentos do pensamento marxista.
O capitalismo, como forma de exploração do homem pelo próprio homem, só existe porque aqueles que detêm a concentração da propriedade dos meios de produção exploram a classe para a qual a venda da força de trabalho é a única fonte de subsistência. O sistema capitalista, na visão de Marx, estrutura-se de tal forma que aquele que vende sua força de trabalho na condição de mercadoria não tem como não se submeter à lógica do sistema, uma vez que precisa do necessário para sobreviver, nem que para isso tenha de trabalhar sob condições inadequadas e em troca de ordenados injustos. (...)
Nesse sentido, a fim de esclarecermos a crítica de Marx ao capitalismo, julgamos necessário recorrer ao entendimento de Huberman (História da riqueza do homem, 1986, p. 212) a respeito do assunto:
Talvez o princípio básico mais importante para todos os sonhadores de utopias fosse a abolição do capitalismo. [...] No sistema capitalista viam apenas males. Era desperdiçado, injusto, sem plano. Desejavam uma sociedade planificada, que fosse eficiente e justa. [...] Surgiu então Karl Marx. Também ele era socialista. Também ele desejava melhorar as condições da classe trabalhadora. Também ele desejava uma sociedade planificada. Também ele desejava que os meios de produção fossem propriedade de todo o povo. Mas — isso é muito importante — não planejou nenhuma utopia. Praticamente nada escreveu sobre a sociedade do futuro. Estava tremendamente interessado na sociedade do passado, em como evoluiu, desenvolveu-se e decaiu, até se tornar a sociedade do presente. Estava tremendamente interessado na sociedade do presente porque desejava descobrir as forças que nela provocariam a modificação para a sociedade do futuro. Mas não gastou seu tempo nem se preocupou com as instituições econômicas do amanhã. Passou quase todo o seu tempo estudando as instituições econômicas de hoje. Desejava saber o que movimentava as rodas da sociedade capitalista onde vivia.
Para Marx, esse capitalismo em que “o trabalhador é forçado a bastar-se com o mínimo vital, para não perder o emprego” (Catani, 2011, p. 30) não surgiu do nada, ele se desenvolveu historicamente, considerando-se as quatro grandes fases (primitiva, escravista, feudal e capitalista). O fator comum que permeia todas essas fases é o trabalho. O homem não trabalha porque quer trabalhar, ele trabalha porque tem necessidades básicas que devem ser supridas, como alimentar-se, ter uma moradia, dormir e vestir-se. Nesse sentido, a comunidade primitiva trabalhava pouco, indubitavelmente, porque tinha poucas necessidades, isto é, não se preocupava em acumular bens, vivia com o mínimo necessário.
As necessidades básicas evoluíram com a evolução do homem e da vida complexa em sociedade. Com essa evolução, que perpassa todas as fases, as necessidades básicas cederam lugar às necessidades sofisticadas. Assim, o homem passou a não se satisfazer mais com qualquer tipo de alimento. Surgiu certo refinamento e ele começou a fazer uma seleção daquilo que ingeria. Dessa forma, gosto, textura e sabor, por exemplo, passaram a ocupar lugar privilegiado nesse cenário.
Outro aspecto que podemos citar para exemplificar essa ideia diz respeito ao vestuário. Na sociedade primitiva, o homem vestia-se com peles de outros animais para se proteger do frio e usava poucas roupas. Com a evolução e a sofisticação, as peles rústicas foram substituídas por tecidos confeccionados pelo homem, variando de época para época e de cultura para cultura, segundo o poder aquisitivo de cada classe social. Além disso, os tecidos, que antes serviam apenas para encobrir os corpos, aquecê-los e protegê-los das intempéries, passaram a ter um valor simbólico, pois meramente vestir-se não era mais suficiente, tornou-se fundamental ostentar uma marca específica. O status social passou a ser determinado por aquilo que se possuía e pelas vestes que se usavam. A vaidade passou a ocupar um lugar de destaque na sofisticada vida em sociedade.
A propriedade privada, inexistente na fase primitiva, porém presente nas demais fases, sobretudo na capitalista, tornou-se um fator de extrema relevância, porque demonstrava a importância e a posição social que o indivíduo ocupava em determinada sociedade. Para Marx, “a propriedade privada não é dado absoluto que se deva pressupor em toda argumentação. Ela é muito mais “o produto, o resultado e a consequência necessária do trabalho do trabalhador expropriado” (Antiseri; Reale, História da filosofia, 2005, p. 174), fruto das relações entre os homens marcadas pela exploração.
Das relações entre os homens nasceram a riqueza, a pobreza e muitos males que assolam a humanidade até hoje. Marx entendia que à “máxima produção de riqueza corresponde o empobrecimento máximo do operário” (Antiseri; Reale, 2005, p. 174). Como esclarece Herculano (Em busca da sociedade, 2006, p. 6), “para sobreviverem, os homens entram em relação com a natureza, transformando-a, e em relação com os outros. Assim, ao mesmo tempo em que produzem a sua sobrevivência, produzem também a sociedade”, que, historicamente, dada a sua evolução, foi valorizando o ter e menosprezando o ser.
Esse sistema no qual tudo se torna válido em nome da riqueza, inclusive o empobrecimento máximo, representa o capitalista, que Marx condena. “No capitalismo, os poucos que não trabalhavam viviam com conforto e luxo, graças à propriedade dos meios de produção” (Huberman, História da riqueza do homem, 1986, p. 212). Na lógica do sistema capitalista, muitos perdem e poucos ganham. O acúmulo de capital não deve ser acessível a todos, pois, se assim fosse, não haveria a concentração de capital nas mãos de poucos. O capital é, para Marx, “a propriedade privada dos produtos do trabalho alheio” (Antiseri; Reale, 2005, p. 174, grifo nosso). É essa realidade que deve sofrer interferência e ser transformada, pois todo homem tem direito de desfrutar daquilo que seu trabalho produz.
Marx buscava entender os meandros do capitalismo para poder transformar a realidade capitalista, diminuindo ou erradicando a exploração. Fica claro que Marx compreendia bem o sistema, mas não conseguiu, contudo, transformá-lo. Os mecanismos de exploração foram ficando cada vez mais sofisticados. As pessoas se mostram cada vez menos conscientes da exploração que sofrem, e a educação está a serviço do sistema, reproduzindo e legitimando a desigualdade social. Para Marx, não é a educação que transforma a sociedade: a educação transforma as pessoas e elas é que podem transformar a sociedade, desde que não sejam vítimas de uma educação a serviço das finalidades do sistema.
Nas Teses sobre Feuerbach, mais precisamente na terceira tese, Marx (1999, p. 5) afirma:
A teoria materialista de que os homens são produto das circunstâncias e da educação e de que, portanto, homens modificados são produtos de circunstâncias diferentes e de educação modificada esquece que as circunstâncias são modificadas precisamente pelos homens e que o próprio educador precisa ser educado. Leva, pois, forçosamente, à divisão da sociedade em duas partes, uma das quais se sobrepõe à sociedade [...]. A coincidência da modificação das circunstâncias e da atividade humana só pode ser apreendida e racionalmente compreendida como prática transformadora.
É importante ressaltar, com base no exposto, que Marx nunca apostou que a educação seria o instrumento que iria pôr fim à realidade capitalista. Sem dúvida, trata-se de um instrumento significativo no processo de conscientização da exploração, mas não é o fator que gera o fim da exploração. O que poderia barrar a exploração gerada pelo sistema capitalista é a conscientização da classe trabalhadora quanto à exploração sofrida, a união e o uso da força para expropriar das mãos da classe dominante os meios de produção.
O ideal marxista, que consistia na supressão da exploração de um indivíduo por outro, bem como da exploração de uma nação por outra (Marx; Engels, Manifesto do Partido Comunista, 2015, p. 86), não vigorou, não se fortaleceu, e a exploração continua: o homem está explorando cada vez mais o próprio homem, assim como fazem as nações entre si.
Nessa realidade hostil à vida – em que o menos favorecido é explorado e ganha apenas o essencial para a própria subsistência, enquanto o mais favorecido enriquece e usufrui dos benefícios do lucro acumulado e da riqueza produzida à custa do suor e do sangue alheio –, a igualdade não conquista espaço, porque há uma fissura longa e profunda que separa a sociedade em classes: aquela que detém o capital e os meios de produção e aquela que possui apenas a força de trabalho e deve vendê-la para sobreviver aos efeitos do sistema.
No mundo capitalista, o detentor dos meios de produção não se contenta em explorar ao extremo; ele cria mecanismos para retirar do explorado o pouco que lhe foi concedido, em forma de pagamento, por seus serviços prestados, muitas vezes em condições insalubres. Nesse sentido, Marx e Engels (2015, p. 72) ressaltam que, “terminada temporariamente a exploração do operário pelo fabricante, na medida em que recebe o seu salário em dinheiro, logo lhe caem em cima os outros setores da burguesia, o senhorio, o varejista, o agiota etc”,
Em outros termos, a exploração é incessante. O capitalista não enxerga limites, o que significa que será tirado daquele que quase não tem até o que ele possui. Isso, para Marx, é inadmissível, pois é preciso que cada indivíduo tenha acesso ao que for necessário, segundo sua capacidade e suas necessidades, a fim de construir uma vida digna. Esse sistema que explora a maioria para garantir uma vida de opulência, conforto e luxúria para uma minoria deve ser transformado com base na conscientização acerca da exploração e da luta para evitá-la. Desse modo, seria possível construir uma sociedade em que todos os cidadãos tivessem uma vida digna.”


“Não há história sem conflitos, assim como não há conflitos que estejam fora da história. Na maioria das vezes, a consciência gera o conflito, o conflito gera a revolta, e a revolta conflitante, dados os interesses inconciliáveis, é o fator gerador de mudanças na sociedade.”


“Com Marx, o capitalismo é entendido como uma consequência histórica relacionada ao homem, ao trabalho, ao produto do trabalho e à economia. Com o advento do capitalismo e da exploração do homem pelo próprio homem, Marx intentou a edificação de uma sociedade em que o produto do trabalho não fosse mais valorizado do que o sujeito histórico que o produziu.”


“Ao tomarmos como base a Grécia antiga, podemos ressaltar que as origens do pensamento predominante no Ocidente surgiram com a filosofia de Platão. Sua proposta estava vinculada a uma racionalização da vida, o que a distanciava de toda visão cosmológica adotada por seus antecessores. Ele deslocou a primeira motivação da filosofia, que estava centrada na noção de arché (com ênfase na natureza), para a segunda perspectiva, segundo a qual o homem ocupa uma posição privilegiada, com destaque para a alma. Assim, Platão elabora, no interior da história da filosofia, a dicotomia corpo versus alma. Platão via o corpo como uma prisão da alma, aquilo que impedia o homem de alcançar o conhecimento do bem e da verdade. Ele valorizava a alma em detrimento do corpo, pois queria destacar uma sobreposição de um “eu”, um sujeito, um ser racional, ou seja, a essência humana.
Friedrich Nietzsche (1844-1900), ao contrário de Platão, via no corpo aquilo que é o homem, o fio condutor* da própria vida. Além disso, o filósofo alemão entendia as configurações platônicas como apenas uma interpretação humana, mas advinda de um erro, de uma ficção. (...)
A única realidade existente é a física em detrimento de todas as causas mentais ou espirituais.
O corpo passou a ser visto, então, como o labirinto no qual o indivíduo se confronta. Para Nietzsche (2005b, Humano, demasiado humano, p. 119), “se quiséssemos e ousássemos uma arquitetura conforme a natureza de nossa alma (somos covardes demais para isso!) – então o labirinto seria o nosso modelo”. O pensador lança mão da metáfora do labirinto para demonstrar que a vida não tem essa racionalidade pensada por Platão. Isto é, se nos encontrássemos em um lugar com muitos obstáculos e pensássemos como Platão, possivelmente desejaríamos sair, mas, para o filósofo alemão, a intenção é não racionalizar a vida, não mensurá-la, e a meta aqui apresentada “é não ter meta, mas oportunizar o experimento e a vida” (Lacerda, 2015, p. 127), ou simplesmente vivê-la, não fugir dela e do incremento de prazer que carrega consigo. (...)
Em A gaia ciência, Nietzsche (2004a, p. 10) se questiona “se até hoje a filosofia, de modo geral, não teria sido apenas uma interpretação do corpo e uma má-compreensão do corpo”, que foi apresentada de forma dogmática levando o homem a eximir-se de qualquer explicação ou questionamento sobre si mesmo. Podemos afirmar que Nietzsche vai apontar o corpo para expressar um rompimento do dualismo entre corpo e alma. O que Nietzsche pretende com sua crítica é desmistificar as crenças que nascem no âmago da metafísica desde Platão e “em contraposição a este, mostrar que a sabedoria não está em conquistar o conhecimento sobre o que é fixo (aos moldes da ideia e do conceito), mas no que é, justamente, passageiro como se apresenta a ideia do andarilho” (Lacerda, A noção de metafísica a partir do arcabouço teórico do segundo período da obra nietzschiana, 2014, p. 157, grifo do original).
Seu escopo é valorizar o devir, o fluir de todas as coisas, e mostrar que elas têm uma história e não são dadas como miraculosas, como propõe a filosofia metafísica.
Conforme Nietzsche, em sua obra O nascimento da tragédia, o grego era aquele que, na época trágica, experimentava a vida em sua forma natural, vivendo intensamente os valores inerentes à sua natureza. A dicotomia de um mundo aparente e outro verdadeiro não passa de um sintoma de decadência, associada à ideia de não saber valorizar a vida com alegria. “Pois ‘a aparência’ significa, nesse caso, novamente a realidade, mas numa seleção, correção, reforço... O artista trágico não é um pessimista — ele diz justamente Sim a tudo questionável e mesmo terrível, ele é dionisíaco...” (Nietzsche, Crepúsculo dos ídolos, 2006, p. 19, grifo do original). Assim, ele pode experimentar a si mesmo e reconhecer-se com base na “satisfação consigo” (Nietzsche, 2004a, p. 173), o que o levará a ter um novo olhar sobre tudo o que é humano.
*: O corpo deve ser tomado como “fio condutor” (KSA 11, 40 [15], p. 634) porque é através dele que se exprime tudo aquilo que caracteriza a vida e todas as suas relações de força.


 “A proposta fundamental da fenomenologia é que o filósofo se volte para as próprias coisas. Para além de construções e teorizações aparentemente justificadas, o fenomenólogo deve construir uma filosofia que se fundamente sobre dados indubitáveis, isto é, sobre evidências estáveis. Sem evidências, não há ciência, como afirma Husserl em suas Pesquisas lógicas. Os limites das evidências apodíticas revelam as limitações do saber. Assim, é preciso buscar fenômenos tão evidentes que não se possa negá-los.
Esse, portanto, é o pano de fundo da fenomenologia: a epoché fenomenológica, isto é, pôr em parênteses as percepções filosóficas, os resultados da ciência e as certezas embotadas das crenças naturais que se impõem em determinada visão de mundo e das coisas.
Em outras palavras, é essencial suspender os juízos sobre tudo o que não é apodítico nem controverso até que se consiga encontrar aqueles dados que resistem aos assaltos da epoché.”


“Para Kierkegaard, o “esteta”, a rigor, não tem como meta “possuir” todas as vítimas de suas conquistas; seu deleite mais profundo consiste em conquistar e logo em seguida abandonar a jovem conquistada. Dessa forma, talvez seja necessário nos perguntarmos: Por que o esteta tem mais prazer em conquistar do que em possuir o objeto de sua conquista? Por que a conquista é mais importante do que usufruir daquilo que foi conquistado? Talvez porque o esteta é demasiadamente cauteloso e ciente de sua posição, pois seu escopo consiste em fazer-se amar antes de amar.
Eu sou um esteta, um erótico, que apreendeu a natureza do amor, a sua essência, que crê no amor e o conhece a fundo, e apenas me reservo a opinião muito pessoal de que uma aventura galante só dura, quando muito, seis meses, e que tudo chegou ao fim quando se alcançam os últimos favores. Sei tudo isto, mas sei também que o supremo prazer imaginável é ser amado, ser amado acima de tudo. Introduzir-se como um sonho na imaginação de uma jovem é uma arte, sair dela, uma obra-prima. Mas esta depende essencialmente daquela. (Kierkegaard, Diário de um sedutor – Temor e tremor – O desespero humano, 1979, p. 51)
Percebe-se, portanto, que a satisfação do esteta não atinge seu ápice no momento de se apropriar do objeto de sua conquista, mas na hora de seu abandono, sem lhe dar direito a palavras, razões ou justificativas para deixar aquilo que se empenhara em conquistar. O esteta, ao ter a certeza de que a jovem é “capaz de tudo lhe sacrificar”, chega ao momento mais sublime para ele: o instante em que tudo se rompe sem que tenha feito sequer uma declaração ou uma promessa. Prevalece apenas o silêncio.
Embora o esteta esteja envolvido com suas afecções, é por demais racionalista. Isso o impede de se envolver para além daquilo que tinha sido arquitetado para suas vítimas. “No entanto, algo ficara impresso nela, como uma marca, ou seja, o rompimento sem direito a satisfações”. (...)
O esteta está em paz consigo, pois tudo não passa de “uma conduta simulada” na qual as promessas e as juras não são mais do que meras palavras desprezíveis, desprovidas de sentido, verdade e compromisso. Por outro lado, para a pobre jovem rejeitada, as promessas são verdadeiras e, por isso,
difícil será reencontrar a paz. Ela perdoa-lhe, do mais fundo do seu coração, mas não encontra repouso porque a dívida regressa; foi ela quem acabou o noivado, foi ela a culpada da desgraça, foi o seu orgulho que aspirou ao que foge ao banal. Ela arrependeu-se, mas não encontra repouso, porque os pensamentos acusadores a desculpam; foi ele quem, pela sua astúcia, lhe introduziu na alma tal projeto. E então odeia-o, o seu coração alivia-se em maldições, mas, uma vez mais, não encontra repouso; censura-se por tê-lo odiado, ela, que é afinal uma pecadora; censura-se porque, apesar de todas as perfídias por ele praticadas, sempre será culpada. (Kierkegaard, 1979, p. 7)
No uso de sua liberdade irrestrita, o esteta, sob o invólucro do desejo da conquista pela conquista, desperta no âmago do alvo a ser conquistado um dos mais nobres sentimentos que o ser humano pode nutrir: o amor. Ele se realiza no “fato de entregar-se ao gozo das sensações imediatas” (Farago, Compreender Kierkegaard, 2006, p. 121). O esteta, ao perceber que esse sentimento que “habita no secreto, ou se acha escondido no mais profundo do coração” (Kierkegaard, citado por Farago, 2006, p. 73) do ser humano está se fortalecendo no interior de sua vítima, deixa-a desamparada. Nesse momento, o sentimento de culpa aloja-se no interior da jovem e não a abandona. Enquanto isso, o esteta está continuamente distanciando-se do objeto de sua conquista sem remorso algum.
No estádio estético, o homem da sensualidade, isto é, o esteta, o Don Juan, encontra-se tão voltado para si próprio que se torna incapaz de se abrir para a relação com o outro. Nesse estádio, o esteta não se compreende como alguém capaz de partilhar sua existência com outrem. Desse modo, após a conquista, o abandono torna-se iminente.
Por um lado, o grande objeto de conquista do esteta não é apenas uma ou outra bela e bem-educada jovem, mas a própria vida: uma razão pela qual possa lutar, viver e morrer. Por outro lado, ainda falta ao esteta, mesmo depois de ter colecionado uma série de conquistas, um sentido para seu existir, o que o coloca diante do vazio, de dúvidas e, sobretudo, do desespero. Isso ocorre porque,
cortado de si mesmo, ele se isola cada momento do tempo para dele fazer uma totalidade intensiva que lhe serve de eternidade. Esta vida, feita de uma série de momentos contraditórios, cada um dos quais pretende realizar um absoluto gozo, corresponde a esta fuga do homem para frente procurando separar-se de sua sombra, sem conseguir jamais. (Farago, 2006, p. 120)
Na fuga incessante de si mesmo, o esteta, o homem de extremos e insensível, esconde o desespero e sacrifica tudo “à busca do prazer imediato” (Farago, 2006, p. 122), que o leva ao encontro com o outro, mas não à realização de si mesmo. Essa situação “condena-o ao desespero” (Farago, 2006, p. 122). E, uma vez mais, o esteta, tentando fugir do desespero que o envolve, depara-se com a esfera estética da existência. Assim, cada conquista consumada na esfera estética se resume a uma atualização do presente, que visa “restaurar a imediatez do instante vivido sendo ao mesmo tempo um ato refletido” (Farago, 2006, p. 122). Mesmo se tratando de um ato refletido a cada conquista, o esteta olha para si próprio e diz: “Minha vida está totalmente nua de sentido [...]. Assim comigo, diante de mim, [há] sempre um espaço vazio; [...] é cruel e insuportável... ” (Farago, 2006, p. 122).
A consciência do vazio e da angústia experimentados pelo esteta acentua o limite da esfera estética da existência, o que exige um novo modo de vida, a fim de que o fardo da existência se torne suportável. O vazio culmina no desespero da existência do esteta, caracterizado pela falta de sentido com a qual se depara em seu existir, envolvido pela angústia, que “é a realidade da liberdade enquanto possibilidade para a possibilidade” (Kierkegaard, O conceito de angústia, 2010, p. 45), ou, ainda, “como o mostrar-se da liberdade para si mesma na possibilidade” (Kierkegaard, 2010, p. 119). Essa realidade da liberdade, que Kierkegaard denomina angústia, coloca o homem diante do nada quando ele valoriza apenas o prazer, o efêmero, o fugaz, enquanto atualização do instante. A possibilidade consiste em ser capaz de se tornar o que se almeja ser. Assim, o indivíduo, sob a ótica kierkegaardiana, é mais do que a imediatez do prazer; ele é aquilo que faz de si na realidade da liberdade enquanto possibilidade de ser capaz de ser o que deseja ser.
O vazio e a angústia que envolvem o esteta abrem espaço para a vivência do estádio ético da existência. “O instante tem sempre uma importância capital, pois o que lhe diz respeito é sempre uma aparência. [...] O instante é tudo” (Kierkegaard, 1979, p. 96). É nele que o homem se deleita de sua conquista, mas é nele também que ele se depara com o vazio em sua existência e percebe “como a vida é cheia de mistérios” (Kierkegaard, 1979, p. 93). Então, esse estilo de vida não se sustenta mais. Para continuar a viver, torna-se fundamental realizar a passagem do estádio estético para o estádio ético e, assim, apaziguar o desespero que o invade. A existência no modo estético chega ao fim quando o esteta esgota todas as possibilidades de significar sua existência, ao apostar em suas conquistas, mas sem encontrar o verdadeiro sentido de existir nelas, dada a fugacidade do prazer.”


“Se no estádio estético o homem vivia segundo suas paixões, em busca de uma nova vítima para conquistar, no estádio ético o que o conduz não são seus desejos, mas, sobretudo, a razão. Isso não significa que as paixões não existam — elas existem, mas estão subordinadas ao intelecto.
Como se sabe, na dimensão estética o indivíduo atua de acordo com seu instinto à procura desinibida pelo prazer, pela beleza e pela felicidade. Antagonicamente, na dimensão ética ele deixa de agir sem refletir, pois suas ações visam um fim com perspectivas de futuro; fato que no primeiro estádio não se é pensado devido à ação sem ter em vista algo de futuro, no entanto, almejando, em suma, uma conquista presente. (Caes, O indivíduo segundo a caracterização kierkegaardiana em contraposição ao indivíduo hegeliano, 2012, p. 92)
Nesse estádio, o homem não está mais apenas preocupado ou comprometido com o presente. Ele já compreendeu que as ações no presente podem comprometer o futuro. Por esse motivo, antes de tomar quaisquer decisões, a reflexão precede os sentimentos e os controla, uma vez que a escolha realizada acarretará consequências, sejam elas positivas, sejam negativas.”


“Para Sartre, o homem, quando compreende que sua escolha não é apenas para si, mas envolve a humanidade inteira, assimila e assume essa responsabilidade e, por isso, angustia-se. A angústia, por sua vez, sendo oriunda do sentimento de responsabilidade que todo homem tem para com a humanidade, não coloca o sujeito em estado de inércia – ao contrário, exige dele uma escolha que o leva a agir. E a consequência dessa ação é o próprio homem quem deve decidir e julgar como boa ou má.
No caso do chefe militar, Sartre (2014, O existencialismo é um humanismo, p. 30) ressalta:
Quando, por exemplo, um chefe militar assume a responsabilidade de atacar e envia um certo número de homens à morte, ele faz uma escolha, e a faz, no fundo, totalmente só. Sem dúvida há ordens que vêm de cima, mas elas são amplas e precisam de uma interpretação, que será dada por ele, e dessa interpretação depende a vida de dez, quatorze ou vinte homens. É inevitável que ele tenha, ao tomar essa decisão, uma certa angústia. Todo chefe militar conhece essa angústia. Isso não os impede de agir, pelo contrário, é a condição mesma de sua ação, pois supõe que eles vislumbrem diversas possibilidades e, quando optam por uma delas, percebem que ela só tem valor por ter sido escolhida. E essa espécie de angústia, que é a que descreve o existencialismo, [...] não é uma cortina a nos separar da ação, mas antes, faz parte da ação em si.
O chefe militar, ao decidir atacar o inimigo, envia seus soldados à batalha. Em combate, alguns perecerão, enquanto outros viverão a glória da conquista pela destruição do inimigo. O chefe militar tinha consciência das vidas que seriam perdidas e assumiu a responsabilidade por elas, pois não havia como se esquivar das exigências da escolha realizada. “O que quer que ele faça, não tem como não assumir a total responsabilidade diante dessa situação” (Sartre, 2014, p. 51). Isso acontece porque “fazemos escolhas perante os outros” (Sartre, 2014, p. 54, grifo nosso), embora as escolhas sejam nossas. A escolha foi de Abraão pelo sacrifício de seu filho, ao ouvir a suposta voz do anjo que lhe exigia tal feito; a escolha foi do chefe militar pelo envio de seus soldados ao combate, mesmo sabendo que muitos não retornariam vivos, depois de receber a mensagem de instância superior.
O que Sartre almeja demonstrar, em ambas as situações, é que o homem não pode eximir-se da responsabilidade pela consequência da escolha, que faz parte da ação. Toda ação é precedida por uma escolha, que nunca será impedimento para a ação, mas condição para sua concretização.
Nesse ponto, havendo clareza de que a angústia surge do sentimento de total e profunda responsabilidade sobre a humanidade, o sujeito da ação, isto é, o homem, depara-se com a necessidade de decidir, sendo, portanto, livre para escolher da maneira que quiser. A escolha pela não escolha, assim como a procrastinação da decisão, a incapacidade ou a recusa de assumir os riscos que estiverem aliados à escolha, coloca, por sua vez, em estreita relação a angústia e a má-fé.
A má-fé, segundo Sartre (A idade da razão, 1996, p. 95), está relacionada à indecisão e à contradição: talvez uma das melhores definições de má-fé apresentadas por Sartre é aquela segundo a qual o homem sabe, mas, ao mesmo tempo, não quer saber – ou seja, é uma contradição interna do sujeito, algo que se manifesta como aquilo que ele sabe que é, mas que não gostaria de saber. Por isso, não se decide e passa a viver de forma indecisa e contraditória – não em relação aos outros, mas em relação a si próprio. Quando Sartre ressalta que a má-fé é, também, mentira, é no sentido de uma mentira que se conta para si mesmo, e não para outra pessoa, numa tentativa de fugir de si próprio.
Além disso, a ocultação da verdade, as desculpas e a ação descomprometida com o outro, associada à incapacidade de admitir a angústia ou à tentativa de evitá-la mesmo sabendo que é iminente, não deixam de ser facetas da má-fé – especialmente quando vinculadas ao ingênuo pensamento de que é possível, ao agir, comprometer apenas a si próprio. E o principal desses pontos é o erro. “Ao definirmos a situação humana como sendo de uma escolha livre, sem escusas e sem auxílios, todo homem que se refugia por trás da desculpa de suas paixões, todo homem que inventa um determinismo, é um homem de má-fé. [...] A má-fé é, evidentemente, uma mentira [...], um erro” (Sartre, 2014, p. 54).
Enquanto, de um lado, a angústia se apresenta como expressão autêntica da liberdade do homem na busca pela realização última da própria liberdade em cada circunstância concreta, a má-fé, de outro lado, manifesta-se como uma rejeição que o sujeito faz de sua liberdade ao se refugiar em suas paixões e desculpas, numa tentativa de evitar ou mascarar a angústia que o insere imediatamente na vida, em função de sua liberdade.”


“Na primeira fase de Wittgenstein, mais influenciada pelo pensamento de Russell e representada pelo Tractatus Logico-Philosophicus, Wittgenstein se dedica à busca por uma estrutura lógica que caracterize o funcionamento da linguagem, que é concebida como o espelho do mundo, de tudo aquilo que existe. O que não pudesse ser dito pela linguagem de forma clara cairia no campo metafísico, isto é, no campo do indizível, restando apenas à filosofia criticar esses equívocos. Em termos teóricos, só haveria a possibilidade de conhecer o mundo por meio da linguagem. Portanto, “toda filosofia é crítica da linguagem” (Wittgenstein, Tratado lógico-filosófico, 1987b, § 4.0031). Por isso, o filósofo remete à seguinte asserção: “Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo” (Wittgenstein, 1987b, § 5.6).
Em sua segunda fase, Wittgenstein deu o chamado giro de 180º e distanciou-se do entendimento de que a proposição e sua verdade devem ser verificadas na experiência do mundo real. Nesse período, passou a afirmar que há uma impossibilidade legítima entre um conceito lógico (da linguagem) e um conceito empírico (da realidade).
Em outros termos, a linguagem não se limitaria a uma capacidade conceitual da realidade, isto é, não seria a reprodução fiel do objeto, o espelho do mundo, mas uma atividade, um jogo, e os jogos de linguagem adquirem seu significado no social, na intersubjetividade, nos diferentes modos de ser e de viver nos quais a fala está inserida. Dessa forma, de certa maneira, é a linguagem que passa a determinar a concepção que adquirimos acerca da realidade.”


“Ao longo da história, a humanidade criou maneiras para aprender a lidar com suas perguntas. Tais formas surgiram das necessidades impostas pelos problemas cotidianos, por dificuldades que se apresentavam em determinado contexto ou época.
O próprio surgimento da filosofia ocorreu dessa maneira, como tentativa de situar o homem no mundo, de compreender os fenômenos da natureza, de encontrar respostas para as perguntas que pareciam não ter solução ou aquelas que o pensamento mítico já não conseguia responder satisfatoriamente.
A razão humana, considerada no período do surgimento da filosofia, era capaz de agir sobre o próprio ser humano e suas formas de organização, mas não sobre a natureza, com a qual o homem precisa se entender, uma vez que não dispõe de meios para transformá-la. Por esse motivo, no surgimento da filosofia, conhecer a natureza, seus limites e suas possibilidades era fundamental para contextualizar as questões humanas.
Diante disso, é possível afirmar que a filosofia, desde o seu surgimento, é uma forma de pensamento sistemático, organizado, que exige profundidade e que busca uma compreensão dos contextos nos quais se insere. Assim, não é possível dissociá-la do mundo, tampouco da vida. A filosofia, para Jaspers, deve retirar o homem da zona de conforto, isto é, levá-lo a uma inquietação profunda, distanciando-o da situação de anestesia perante os problemas do mundo. Ela, portanto, deve questionar essa postura e obrigar cada um a olhar o processo a partir do qual constrói seu pensamento e que lhe serve de base para concluir o que conclui.
A filosofia, portanto, não é um pensar descontextualizado, uma viagem ao mundo de ideias fantasiosas. Ela se constrói a partir de conceitos que têm uma gênese e um contexto. Pressupõe que se tenha um profundo conhecimento de si e da realidade para que se possa pensar com fundamentos sólidos acerca de questões e problemas fundamentais que envolvem a existência humana.”