Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-146-8
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 256
Sinopse: Ver Parte
I
“Lukács, como tantos outros, a principiar por
Engels e Lenin, em modos e graus peculiares a cada adepto ou intérprete,
considera o ideário marxiano sob os influxos da atmosfera gnosioepistêmica que
havia se constituído em horizonte da cientificidade por volta da rotação do
século XIX ao XX e por este afora. Isto refere, designadamente, o postulado,
então em vigência absoluta e consagrada, do primado da questão cognitiva sobre
o exercício concreto da cognição. Dessa óptica, o discurso sobre o objeto é
subsumido ao discurso sobre o próprio discurso. Aquele passa a valer menos pelo
que contém do que pelo certificado de garantia previamente expedido pelo
segundo, no mais das vezes uma simples auto-chancela protocolar. Todavia, foi
uma guerra prolongada, e nesse pugilato cartorial dos saberes, os contendores
dos cenáculos político-gnosiológicos, internos e externos ao âmbito marxista,
pressionaram muito sobre o estatuto científico da obra marxiana. Basta lembrar
a propósito do extenso debate transcorrido ao tempo da Segunda Internacional.
Com efeito, muitos fatores contribuíram para que Marx fosse convertido em
objeto de investigações epistêmicas, porém, antes de tudo, o espírito do tempo
de uma dada época científico-filosófica, que predominou inclusive sobre os mais
compenetrados discípulos do pensamento marxiano, por isso mesmo perversamente
desentendido.
Lukács – no curso de uma obra das mais ricas
e significativas, entre História e consciência de
classe e a Estética, isto é, entre seu
momento protomarxista e o tempo da mais ampla realização de seu marxismo proto-ontológico
(digamos assim, e não apenas por homologia terminológica) – é a mais alta
expressão filosófica dessa subsunção marxista de toda uma época ao diktat
gnosioepistêmico, ou mais estritamente, à força de sua irradiação como
princípio normativo da verdadeira cientificidade, atmosfera sob a qual o
marxismo principiou a perder, desde muito cedo e sob dimensão fundamental,
nessa precisa batalha não travada, a guerra teórica do século XX, na qual
acabou destroçado.
Tanto a dialética entre universal, particular
e singular, como súmula do denso vínculo lógico entre Marx e Hegel,
quanto a teoria do em-si gnosiológico são exemplos muito importantes dessa rota
enviesada que desfigura e até mesmo banaliza o pensamento marxiano. Apesar de
não refletirem, nem de longe, o todo do pensamento lukacsiano no vasto
período indicado, não são, de outra parte, reles momentos infelizes ou
equívocos fortuitos de uma grande jornada intelectual. Tomadas aqui enquanto
evidências da enorme dificuldade com que Lukács transitou para a ontologia
marxiana, não constituem ocorrências dispersas, isoladas uma da outra, como se
fossem tropeços ocasionais em caminhadas independentes. Ao contrário, combinam
muito bem, conceitualmente, e por sua articulação podem ser vistas como o eixo
em torno do qual girou boa parte da imagem lukacsiana da obra de Marx. Sob tal
alinhavo, a dialética entre as categorias de universalidade, particularidade e singularidade,
pela letra e pelo espírito de seu próprio enunciado, é a encarnação do vínculo
lógico com Hegel, bem como, por conseguinte, do método científico, enquanto
o em-si gnosiológico é o artefato fundante da cientificidade da
doutrina.
Que essas fórmulas estejam em franca
dissonância e até em contradição, sob distintas maneiras, com o que há de mais
substancial na obra lukacsiana não é apenas um fato importante, que exija pura
e tecnicamente um grifo forte, mas ocorrência tão decisiva que, em verdade,
deve ser mesmo celebrada, pois a grandeza do pensamento marxista de
Lukács se manifesta, precisamente, na enorme esfera reflexiva que desenvolveu
para além e de costas para o complexo da exterioridade, ao qual, no
entanto, estava subordinado. Que essa debilidade prejudicou seu pensamento é
também um fato palpável, que sua imagem global do pensamento marxiano foi por
isso mesmo significativamente afetada em pontos de extrema relevância, não resta
dúvida, mas esse foi o seu caminho, assim é que transitou, por fim, ao ambiente
da ontologia marxiana, antes e mais apropriadamente do que ninguém. E aqui é
disso que se trata, precisamente dessa jornada, em especial de formulações errôneas
das quais, à época, Lukács não se deu conta; de problemas cujo enfrentamento e
retificação parciais só vieram a ocorrer na empreitada pela Ontologia,
que, apesar de inconclusa, não apenas na forma, mas nas próprias concepções,
renovou a perspectivação de conjunto, a qual, embora não tenha dirimido por completo
as obliquidades e irresoluções de seu próprio trabalho, proporciona finca-pés e
o direcionamento geral para uma nova abordagem crítica, aqui desenvolvida em torno
de aspectos de sua própria obra. Sob esse prisma, trata-se, então, de uma crítica
a Lukács a partir de Marx, gerada pela inspiração ou a própria mediação do
último Lukács.
Vistas à luz dessa contraditoriedade
englobante, talvez cause mais espécie ou aversão, como grave impropriedade, a
formulação lukacsiana do em-si do que o próprio rebaixamento de nível pelo qual
é sustentada a dialética do universal, particular e singular. De fato, como é
possível admitir, num suposto e almejado quadro de referência marxista, que uma
simples abstração levada ao extremo seja a resposta satisfatória para o
estabelecimento da precisa distinção entre ser e consciência? Ainda mais do que
rigorosamente débil e formalista, o em-si epistêmico, definido como princípio
de objetividade, como garantia da existência material e autônoma do objeto e
deste como ponto de partida da ciência, ressoa, sobretudo, enquanto ideação
artificiosa. A conversão dessa noção vazia em alicerce, do qual passam a pender
e depender a realidade e também a ciência, sugere uma ginástica conceitual de
acomodação em torno de um suposto vácuo, de um não-sabido, e da tradição
filosófica, lida ademais com ênfase excessiva recaindo sobre a continuidade
histórica das ideias. E o conjunto desses e de outros tantos passos frouxos de
tal arcabouço conceitual é radicalmente acentuado em sua gratuidade e incongruência
tão logo seja comparado à genuína reflexão marxiana correspondente.
Já pelas teses “Ad Feuerbach” – e por vários
dos demais aforismos, assim como por reflexões em toda a obra marxiana que
multiplicam esta evidência – compreende-se que em Marx qualquer forma da
coisa-em-si abstrata e especulada cede lugar ao complexo ontoprático, que
compreende a globalidade das determinações da atividade sensível, tanto
sob a figura do objeto quanto do sujeito, e em plena atualização objetiva de
suas formas de existência. Ou seja, os objetos específicos são confirmados em
suas existências específicas, independentes, isto é, na objetividade própria
aos seres-em-si, o mesmo ocorrendo com os sujeitos, duplamente confirmados por
sua vez, pois identificados ao mesmo tempo como agentes sensíveis e
cognoscentes. Diante desse complexo repleno, opulentamente determinado, que
falta pode fazer ou que papel restaria ao puro em-si abstrato, na pobreza de conteúdo
que é toda a sua virtude? Nenhuma, é óbvio, só podendo servir como ilustração
de um grave equívoco, cuja inferioridade teórica traduz, ao contrário do
pretendido, o esvaziamento epistêmico da realidade, em contraste com a farta conquista
ontológica da mesma levada a cabo por Marx.
Tão embaraçante e comprometedora é essa linha
marxista de sustentação da doutrina marxiana, derivada da subsunção ao
complexo da exterioridade, que ela tisnou inclusive certas figuras
marcantes do elenco conceitual lukacsiano, admiradas no passado como
reconsiderações temáticas exponenciais, e que até hoje, acrítica e
desavisadamente, ainda chegam a mover dadas elaborações marxistas mais tópicas
e nominalistas. Tome-se, por exemplo, a proeminente categoria da totalidade,
que em certas versões lukacsianas, é antes de tudo uma figura do cenário epistêmico,
e como tal homóloga à ênfase conferida ao método, isto é, à dialética entre
universalidade, particularidade e singularidade, e também ao em-si abstrato. É
esclarecedor, ainda a propósito da crítica a este último, acompanhar algumas
das vicissitudes da noção de totalidade no pensamento lukacsiano, pois elas
abarcam extensa parte da obra do pensador húngaro.
O ensaio dedicado a Rosa Luxemburgo em 1921,
o segundo de História e consciência de
classe, começa por uma afirmação metodológica
taxativa:
O que diferencia decisivamente o marxismo da ciência burguesa não é a
tese do predomínio dos motivos econômicos na explicação da história, mas o
ponto de vista da totalidade. A categoria de totalidade, o domínio onímodo e
determinante do todo sobre as partes, é a essência do método que Marx tomou de
Hegel e transformou de maneira original para fazer dele o fundamento de uma
nova ciência.184
Quase meio século depois, no importantíssimo “Prefácio”
de 1967 ao volume II de suas Obras, no qual, ao lado de outros textos menores,
História e consciência de
classe foi republicada pela primeira vez, Lukács,
ao inventariar os erros e acertos da obra, faz ele mesmo a crítica daquela
formulação:
Sem dúvida, é um grande mérito de História e consciência de
classe ter retomado a categoria de totalidade,
perdida no esquecimento pela “cientificidade” do oportunismo social-democrata,
para lhe atribuir de novo a posição metodológica central que sempre teve na
obra de Marx. Porém, [...] eu produzi uma exageração hegeliana, ao contrapor a
posição metodologicamente central da totalidade ao econômico.
Transcreve, em seguida, o texto estampado
acima e acrescenta: “Esse paradoxo metodológico ainda se agudiza pelo fato de
que a totalidade era entendida como portadora categorial do princípio
revolucionário na ciência: ‘O domínio da categoria da totalidade é portadora do
princípio revolucionário na ciência’”185. Lukács não explicita o
teor do paradoxo, mas se entende com facilidade que a denúncia e o descarte da
contraposição têm por conteúdo, precisamente, o reconhecimento da concepção
marxiana, segundo a qual a economia política é a própria anatomia da
totalidade, jamais uma simples parte ao lado de outras, à qual a totalidade como
instância última e superior deva ser, metodologicamente, contraposta. Portanto,
sua autocrítica reporta uma correção substancial. Todavia, há um segundo
equívoco na formulação primitiva, muito importante para a discussão em curso,
sobre o qual não se encontra uma única palavra no “Prefácio” de 1967: a
totalidade é definida, explicitamente, como ponto de vista. E não apenas
na passagem transcrita, mas também no próprio “O que é marxismo ortodoxo?”, onde
se pode ler que o “ponto de vista da totalidade, que aprendemos a reconhecer como
problema central, como condição primordial do conhecimento da realidade, é um
produto da história num duplo sentido”186. Que, no contexto dado,
esse ponto de vista seja o do proletariado, enquanto sujeito e objeto
idênticos “do conhecimento da realidade social”, apenas acentua que· a
totalidade é concebida como uma configuração da consciência, simplesmente como
um prisma ou ângulo visual, embora privilegiado, mas não altera em nada que se trata
de uma identificação equivocada da mesma, pois, ainda que o proletariado seja o
portador da visão da totalidade, ele não é a própria totalidade social, de modo
que seu privilégio seria o de poder ver e não de ser a totalidade. É o que importa
demarcar aqui, exclusivamente: a totalidade é reduzida aos contornos de uma
simples potência mental ou possibilidade cognitiva.
Ocorre que, no capítulo 13 da Estética,
algo semelhante – ou um resíduo dessa acepção – está presente, embora despojado
dos ademanes do sujeito-objeto idênticos, e diretamente vinculado à tematização
do em-si epistêmico e do para-nós. Vejamos alguns dos passos constitutivos
dessa nova figura da totalidade. Para Lukács,
[...] como o para-nós representa o contrapolo subjetivamente coordenado
com o em-si, o destino de sua determinação é inteiramente paralelo ao processo
aqui descrito: a concepção do em-si contém um modelo do comportamento subjetivo
para com ele, e determina portanto, ao mesmo tempo, o modelo do para-nós. [...]
Por essas razões se pode dizer que a tipologia do para-nós, no que toca a seus
traços mais essenciais, está contida na do em-si. Isso determina antes de tudo
a forma do para-nós no reflexo científico, a forma adequada ao método
desantropomorfizador.187
Quanto à repentina opulência dessa
arquitetônica, para os efeitos aqui buscados, basta indagar como é possível que
um conjunto tão grande e decisivo de determinações seja garantido, de alguma
forma e em algum momento, pela pobreza virtuosa do em-si epistêmico?
Independentemente dessa dificuldade irrevogável, o que importa é algo bem mais
circunscrito. Consiste em deixar assinalado simplesmente que, numa exposição
bastante entrecortada e que não prima pela clareza, a elaboração lukacsiana, no
que seria a sua reconfiguração do caminho marxiano do abstrato ao concreto,
bastante afetada pela presença do em-si abstrato, volta a compor a categoria da
totalidade como algo próximo a um arquétipo da subjetividade, mesmo que
funcionalizado como aspiração de objetividade, à semelhança do caso primitivo.
De sorte que, no caso da ciência, “a transformação do em-si em um para-nós
aspira oferecer acima de tudo uma reconfiguração adequada do em-si real”188.
Deixando de lado que, a seguir, é afirmado que “isso tem por consequência que a
questão epistemológica, tão decisiva no tratamento do em-si, passe aqui ao último
lugar, pois, cada para-nós é o reflexo de um fato concreto real objetivo, de uma
conexão de fatos, de suas relações etc.”189, o que no mínimo é
intrigante, há que reter que, “enquanto no caso do em-si a colocação se refere
a toda realidade, no caso do para-nós a totalidade se forma com um número
infinito de reflexos concretos singulares, ou com a síntese teorética daqueles
que se referem a um determinado complexo factual”190.
E intercalando mais uma vez, para deixar
igualmente de lado, fique o registro de que “a propósito desses detalhes e
dessas generalizações concretas, a questão epistemológica, tão decisiva no
estudo do em-si, não constituirá mais do que um fundamento geral”191,
o que denota obstáculo intransponível para a homogeneização de ordens
excludentes de fundamentação. Retomando o fio da meada: na ciência, almejando a
reconfiguração mais adequada do em-si real, através da totalidade dos reflexos
concretos, tem-se que
A transformação do em-si em um número infinito de reflexos diversos na
forma do para-nós coloca em cada caso um duplo problema: o fenômeno refigurado
– singular, particular ou universal – tem que ser reproduzido do modo mais
adequado possível, e a reprodução tem que se encontrar ao mesmo tempo em
harmonia com os demais reflexos. [...] Também segue disto que – do ponto de
vista rigorosamente epistemológico – a única que pode ser considerada
contrapolo concreto do em-si é a totalidade do para-nós conduzido à síntese.
Porém,
Tomado com esse rigor, essa exigência de totalidade é [...] um mero
postulado. [...] Mas, apesar disso, o postulado de totalidade da teoria do
conhecimento tem grande importância prática e, por isso, filosófica [...]. Do
ponto de vista filosófico todos os para-nós constituem um todo conexo, ainda
que este não se realize nunca completamente na prática científica; e só nesta
forma constituem um contrapolo real, formado na consciência cognitiva, do em-si
epistemológico unitário; somente nessa totalidade transformam sua abstração na
madura totalidade concreta do mundo conhecido.192
Não há como velar a confusa fisionomia desse
discurso, mistura desafinada de planos e abordagens discrepantes, condicionada
basicamente pela tentativa de fundir o aparato da exterioridade
gnosioepistêmica com a analítica marxiana de caráter ontológico, ou, nos termos
empregados pelo discurso lukacsiano, o abstrato fundamento do em-si
gnosioepistêmico com a perspectiva do concreto em-si real, que brigam entre si
transparentemente nessas formulações lukacsianas, desatendendo e prejudicando
visceralmente a ambos. Mas desse cipoal interessam apenas, de imediato, os
elementos relativos à noção de totalidade, centro da atenção neste segmento.
Embora insista de início, sem maiores explicações e sob forma teórica
igualmente estranha ao pensamento marxiano, que “a concepção do em-si contém um
modelo do comportamento subjetivo, [...] razão pela qual a tipologia do
para-nós, nos traços mais essenciais, está contida na do em-si”, e que isso “determina
antes de tudo a forma do para-nós no reflexo científico”, Lukács termina, de
acordo com os fragmentos do parágrafo anterior, por configurar a totalidade,
literalmente, como um postulado da teoria do conhecimento. Chega, pois, no
suposto de elaborar sob parâmetros marxianos, a uma bizarra configuração da
ciência ou da atividade cognitiva, que mais não seria do que o movimento dos
reflexos que transformam o em-si abstrato em um todo relativo do pensamento sob
a inalcançável postulação da totalidade. É um involuntário, mas sensível
depauperamento epistemológico das possibilidades de conhecimento da realidade,
embora engendrado no propósito mesmo de firmar e reger a cognição por
determinações da própria realidade. Traçado pelo qual, de partida, o em-si
real, a totalidade efetiva, é pulverizada na diversidade dos reflexos, e assim,
isolada de sua efetividade concreta, despojada de sua existência independente
das formas de consciência, só resta ou é convertida em norma de procedimento,
isto é, em uma espécie de inatingível dever-ser da cientificidade.
Em suma, o ponto de vista da
formulação primitiva é transformado em postulado na equação mais
recente. Pressuposto do conhecimento da realidade na primeira e princípio
epistêmico na segunda, em ambas a totalidade é estreitada e expressa como forma
da subjetividade que sobrepaira à realidade. E tanto mais graves se mostram as
latências dessas agudas impropriedades, quando se considera que Lukács, já em
pleno vértice do “Prefácio” de 1967, transcrevendo literalmente de “O que é
marxismo ortodoxo?” o afamado trecho da canonização do método, reafirma-o
enquanto identidade do pensamento marxiano:
[...] as observações introdutórias do primeiro artigo oferecem uma
determinação da ortodoxia no marxismo que, segundo minhas convicções atuais,
não apenas é objetivamente verdadeira, mas que também hoje, na véspera do
renascimento do marxismo, poderia ter uma importância considerável.193
Ora, a categoria da totalidade, tanto como
formação real quanto ideal, preenche espaços vitais no pensamento marxiano, mas
não é jamais ponto de vista ou postulado. Dessas formações já se
tratou em vários momentos ao longo deste trabalho, bastando agora uma breve
rememoração. Na escala infinita das entificações reais da totalidade, desde a
singularidade de um simples objeto ou relação à universalidade dos mesmos em
suas respectivas completitudes, o complexo repleno da mesma, a totalidade
propriamente dita, é integrado pelas figuras da atividade sensível – o
multiverso das coisas e a pluralidade dos sujeitos, na diversidade das formas
de interatividade orgânica em que o conjunto delas é produzido e reproduzido,
peculiarmente, em cada patamar de existência historicamente efetivado. Como
tal, forma ontoprática de existência, a totalidade é a formação real e concreta
na multiplicidade de seus traços e movimentos efetivos, ou seja, o todo funcional
e contraditório que engendra e vive sua lógica específica. É a realidade enquanto
realidade, material e espiritual, antes, durante ou depois de pensada, ou seja,
o locus e a substância de toda atividade sensível e de toda atividade
ideal nela embutida; e nessa concretude o ponto de partida da ciência, isto é,
como diz Marx, da “elaboração da intuição e da representação em conceitos”.
Tomada, para efeito analítico, em sua plenitude ou por suas partes
constitutivas, legitimamente destacadas ou iluminadas em suas reais
configurações unitárias, ou seja, encarada como objeto da atividade cognitiva,
na qual é reproduzida pelo pensamento, a totalidade assume a feição da
concretude pensada. São as duas formas da totalidade reconhecidas nos textos
marxianos: de um lado, o concreto real, de outro, o concreto ideal, tal como
expostas classicamente na parte 3 da “Introdução de 1857”:
O concreto é concreto porque é a síntese de muitas determinações, isto
é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece no pensamento como o
processo de síntese, como resultado, não como ponto de partida, ainda que seja
o ponto de partida efetivo [...] é a maneira de proceder do pensamento para se
apropriar do concreto, para o reproduzir como concreto pensado. [.... ] O todo,
tal como aparece no cérebro, como um todo de pensamentos, é um produto do
cérebro pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível.194
O processo cognitivo é, pois, a transposição
de um concreto a outro, a reconfiguração do real no ideal, isto é, a
recomposição do todo real em todo conceitual. Dito de outro modo, conhecer é
precisamente capturar e expor a totalidade real da única maneira pela qual isso
é possível, ou seja, na forma da totalidade pensada. Não há lugar, pois, para
uma acepção da totalidade enquanto ponto de vista ou postulado, mesmo porque
ambos são por natureza, meramente, uma espécie de autoimperativo da
subjetividade, quando, marxianamente, o único imperativo a ser cumprido pela
subjetividade cognitiva é posto pela esfinge do objeto.
Que a decifração ou reprodução ideal de um
objeto possa se delongar por milênios, tome-se o exemplo histórico do valor,
ou que o conhecimento se faça por aproximações, rupturas e reviravoltas são
outros aspectos ou problemas, nos quais, por sinal, Lukács se embaraçou, tanto
que, nas várias oportunidades em que traz à tona excertos da parte metodológica
da “Introdução de 1857”, ele o faz preponderantemente em arrimo de
considerações que ressaltam esses traços do andamento sócio-histórico da
cognição, e não a propósito do modo pelo qual o “cérebro pensante se apropria
do mundo”, produzindo uma “totalidade concreta como totalidade de pensamentos”,
que é o conteúdo explícito das reflexões marxianas nessas que são a esse
respeito as suas páginas mais elaboradas. Trata-se de um profundo lapso da
análise lukacsiana, ou antes de uma pronunciada incorreção; constitui, em
verdade, um dos sintomas mais claros e fortes de uma lacuna muito maior, algo
que sinaliza para aquilo que, mais atrás, foi aludido como um não sabido,
que condicionou, ao menos até a Estética, parte considerável da analítica
lukacsiana, e que envolveu a admissão de um suposto vácuo no pensamento
marxiano, cujo preenchimento tentou-se levar a cabo em subordinação à exterioridade
do complexo gnosioepistêmico. Em termos bem gerais e sumários, tudo se passou nesse
arcabouço falaz como se o pensamento marxiano demarcasse uma prática
metodológica, mas não contivesse a sustentação teórica da mesma e, menos
ainda, de sua fundamentação gnosiológica. Donde todo o vasto quiproquó posto em
cena.”
184 Georg Lukács, História e consciência
de classe, cit., p. 105.
185 Idem, “Prefácio” (1967), em História e
consciência de classe, cit., p. 20- 1.
186 Idem, “O que é marxismo ortodoxo?”, cit.,
p. 100.
187 Idem, Estética, cit., p. 299.
188 Idem.
189 Idem.
190 Ibidem, p. 300.
191 Idem.
192 Ibidem, p. 301.
193 Georg Lukács, “Prefácio”, cit., p. 29.
194 Karl Marx, “Introdução de 1857”, em Karl
Marx (São Paulo, Abril Cultural, 1974, Coleção Os Pensadores), p.122-3.
“Em síntese, de posse da resolução
ontoprática da problemática do conhecimento e da teoria das abstrações, Lukács
disporia de meios para sustentar marxianamente a independência do ser em face
da consciência, a possibilidade do saber científico e a prioridade do objeto
como ponto de partida da ciência, sem lançar mão do débil estratagema do em-si
epistêmico; da mesma maneira, teria compreendido o modo pelo qual a cabeça se
apropria da realidade por meio do concreto de pensamentos, sem forçar à
existência uma herança hegeliana pela reiteração sem brilho da tese do vínculo
lógico entre Marx e Hegel, que em outras mãos acaba mesmo por se converter em
dependência lógica do primeiro em relação ao segundo, o que é ainda mais despropositado.
Tratadas por essas vias extrínsecas à concepção marxiana, as relações entre
esses dois grandes autores findam inteira e perversamente obscurecidas, contra as
melhores intenções analíticas, inclusive as de seus mais sofisticados
praticantes.”
“Recusar a tese do vínculo lógico e criticar
a impropriedade da formulação da lógica do universal, particular e singular
como método marxiano de extração hegeliana, não implica a inexistência de
qualquer tipo de nexo entre Marx e Hegel, mas o deslocamento de quaisquer
vínculos possíveis à devida esfera secundária das influências, ressonâncias e
absorções difusas, que se deram por certo em mais de um plano. Assimilações de
maior ou menor monta, porém, sempre integradas à ruptura de fundo, levada a
cabo na própria instauração do pensamento marxiano e jamais reconsiderada.
Não se trata aqui de enveredar por esse
território, nem mesmo simplesmente de inventariar as principais ocorrências
desse tipo, mas de tecer apenas, sob o diapasão dessa ordem de influências,
considerações finais sobre a propositura da dialética entre universal,
particular e singular, para ressaltar, em primeiro lugar, que esta enquanto preenchimento
do não sabido referente à teoria das abstrações antes tolda do que esclarece,
mais afasta do que aproxima o procedimento marxiano da lógica de Hegel, pois
sob tal feição opera sem notar uma substituição radical e indevida, tornando impossível
investigar, por dissolução do objeto, que ressonâncias hegelianas mais ou menos
distantes poderiam ecoar no genuíno procedimento de Marx, concebido e reiterado
por ele próprio como oposto ao hegeliano. A diferença diametral – “meu método
dialético não só difere do hegeliano, mas é também a sua antítese direta” (“Posfácio”
da segunda edição de O capital, 1873) – sabemos qual é: no mesmo lugar é
declarado que o processo do pensamento é hegelianamente transformado num
demiurgo do real, enquanto que na concepção marxiana o ideal não é nada mais do
que o material transposto e traduzido na cabeça do homem. Ou seja, a diferença
antitética é de caráter ontológico: o ser é prioritário em relação ao
pensamento e este é um concreto pensado, não um produto autônomo. Isso não
impede, todavia, que no mesmo “Posfácio”, Marx reconheça a propósito da
dialética, como em diversas outras oportunidades e sempre praticamente do mesmo
modo, que Hegel “tenha sido o primeiro a expor as suas formas gerais de
movimento, de maneira ampla e consciente”, na qual reconhece também um “cerne
racional”. De modo que nada impede que os movimentos de concreção da teoria das
abstrações, a síntese de múltiplas determinações, contenha
subsidiariamente a contribuição de momentos da determinação dessas formas
gerais do movimento, sempre que imanentes ao objeto e nunca a ele atribuídos
pelo pensamento. Nesse sentido, na medida em que todo processo de concreção
analítica sempre se move, necessariamente, nos três níveis, reais e ideais, de
generalização, uma dialética de universal, particular e singular sempre estará
presente como o momento mais remoto e abstrato do processo determinativo. Sob
essa condição, uma lógica ou dialética do universal, particular e singular será
o feixe – “o elemento comum que é ele próprio um conjunto complexo, um conjunto
de determinações diferentes e divergentes” (“Introdução de 1857”) – mais abstrato das abstrações razoáveis, que enquanto tal não
determina nenhum objeto concreto. Dada a generalidade máxima dessa mais
abstrata das abstrações razoáveis ela é dizível de qualquer objeto, é a voz abstrata
mais tênue, uma generalidade tão universal que não quebra a mudez do singular,
apenas lembra ou assinala que isso é possível, e nesse sentido pode servir de
guia distante para a formulação das abstrações razoáveis, e do mesmo modo para
os passos da concreção. Donde o lugar e o sentido precisos de uma dialética do
universal, particular e singular, no âmbito da reprodução ideal dos objetos,
são dados precisamente pela teoria das abstrações, fora da qual e em particular
como sua forma substitutiva é uma extração sub-hegeliana, convertida em
contrafação marxista do procedimento marxiano.
Reconhecer, pois, influências e ressonâncias
hegelianas no pensamento de Marx, não conduz nem obriga a fazer deste um
herdeiro ou dependente daquela vertente, seja no campo da lógica ou em qualquer
outro. Diante do porte e da significação histórica da obra hegeliana,
incompreensível seria mesmo se dela não houvessem irradiado alguns nódulos ou
certos estímulos e referenciais para a grande empreitada marxiana. Considere-se
de novo a menção explícita de Marx às “formas gerais do movimento”, mas agora
não a respeito dos processos analíticos de concreção, e sim remetidas aos
movimentos do ser. Por certo, na esfera ontológica as irradiações hegelianas no
pensamento de Marx devem ser mesmo mais expressivas do que no plano lógico,
independentemente da fusão entre ambos no ideário de Hegel. Figurações
conceituais relativas à historicidade, processualidade, ao ser matrizado pela
contradição, ou seja, à universal contraditoriedade do mundo, e assim por diante,
são aquisições de tal ordem que têm de ser retidas independentemente da forma e
dos meios pelos quais foram originariamente concebidas. Repercutem por seu
próprio peso, de maneira que o melhor será dizer que Marx terá se apropriado de
alguns resultados, mas contra os rumos e os meios pelos quais certas conquistas
hegelianas se efetivaram; apropriação, em especial, de lineamentos ontológicos isolados
e desinseridos de seus contextos, à semelhança do que fizera em relação a Feuerbach,
na instauração de seu próprio modo original de conceber e elaborar a reprodução
intelectual do complexo de complexos da mundaneidade dos homens. Desde logo
porque um dos traços mais característicos da posição ontológica instaurada por
Marx é a ruptura com a especulação ou qualquer modo apriorista de elaboração
teórica, pois, como diz Mészáros com muita acuidade,
[...] a metodologia do apriorismo não brota de uma árvore
filosófica especial, advinda de um solo composto a partir do nada, mas das
contradições insolúveis de um determinado ser social, que é forçado a reverter,
em sua imaginação, as relações estruturais reais da sociedade de modo a produzir
uma “prova a priori” da “ordem racional” da sociedade descrita de cima
para baixo, da história concebida ao contrário. Isso é claramente evidente nas
construções hegelianas.198
Ruptura que é uma passada crucial e
essencial, não um simples ajuste ou retoque, nem mesmo uma purificação mais
completa de uma herança grandiosa mas problemática, visto que, em
[...] sua nova síntese, estruturada em oposição consciente aos sistemas
filosóficos de seus predecessores [...] a concepção marxiana da dialética foi
além de Hegel, precisamente desde o momento inicial, em dois aspectos
fundamentais, embora Marx continuasse a considerar a dialética de Hegel como a
forma básica de toda dialética. Em primeiro lugar, a crítica da transformação
hegeliana da dialética objetiva em construção conceitual especulativa [...]
estabelecia a ação recíproca de forças objetivas como a verdadeira estrutura da
dialética e como o terreno real da determinação dos mais mediatizados fatores
subjetivos. E, em segundo lugar, a demonstração dos determinantes ideológicos
da dialética conceituai-especulativa de Hegel – a “dissolução e restauração do
mundo empírico” como construção anistórica, que contradiz as potencialidades
profundamente históricas da própria concepção hegeliana – pôs em relevo, de uma
maneira enfática, o dinamismo irreprimível dos desenvolvimentos históricos
reais, juntamente com uma indicação precisa das alavancas necessárias com as
quais o agente revolucionário está em condição de intervir, de acordo com seus
objetivos conscientes, na manifestação positiva da dialética objetiva.199
De sorte que, conclusivamente, a inspiração e
o uso de certas categorias hegelianas não se dão
[...] no sentido de alguma influência problemática que deixaria um
elemento estranho no corpo do pensamento marxiano, mas categorias consideradas
como ‘Daseinsformen’, na estrutura de uma teoria profundamente original,
são transferidas de Hegel para o universo do discurso de Marx e aí reativadas
com um sentido qualitativamente diferente.200
Donde a simples noção ou a mera hipótese de
herança hegeliana ou vínculo lógico, bem como outras do gênero,
transparecerem, em face da natureza do pensamento marxiano, como um engano
radical, que induz a vastos descaminhos analíticos, promotores do
desentendimento da obra de Marx em vários planos.
Uma avaliação mais ampla das impropriedades
teóricas lukacsianas durante a longa duração de seu marxismo proto-ontológico
não entra nem longinquamente, é óbvio, nas cogitações da crítica aqui
pespontada. Contudo, a natureza comum dos conjuntos problemáticos abordados
permite assinalar que a grande dificuldade encontrada por Lukács, na
identificação do pensamento marxiano, é da mesma ordem daquela que transpassa
toda a história da ontologia, cujo tratamento sempre esteve, de algum modo,
embaraçado por questões lógicas e gnosiológicas em geral. Basta observar que
Lukács, somente à época da preparação da Ontologia, e isso não terá
ocorrido por mera casualidade, se deu conta ou tratou abertamente de aspectos
dessa questão, mesmo que limitando o enfoque ao panorama dos dois últimos
séculos, que demarcam a face mais aguda do problema, quando já está em curso a
própria desqualificação e excludência da ontologia como prática teórica fundante.
Foi apenas nessa oportunidade que explicitou o problema sob a forma da
contraposição entre critério ontológico e critério gnosiológico.
Ocorreram, então, mudanças fundamentais. A crítica a Hegel foi elevada
acentuadamente, chegando ao ponto mais agudo nos Prolegômenos para a
ontologia do ser social, segunda e última versão da empreitada. Em nenhum
dos dois textos a rematização da dialética entre universalidade,
particularidade e singularidade foi retomada, e a “mais importante descoberta
metodológica de Hegel”201 passou a ser a das determinações reflexivas
[Reflexionsbestimmungen] – capítulo sobre Hegel, 2. É claro, a lógica cedeu
lugar à ontologia, posta agora no centro da rematização, que em Hegel foi vista,
criticamente, segundo o diagnóstico de uma dupla ontologia, a verdadeira e a
falsa, ambas expressas na forma de categorias lógicas: estas, no primeiro caso,
são “componentes dinâmicos do movimento essencial da realidade, como graus ou
etapas no caminho do espírito para realizar a si mesmo”202; enquanto
que, no segundo, as conexões reais são constrangidas pelas conexões lógicas, de
tal modo que “a ontologia sofre a violência conceitual da lógica”203,
ou seja, se torna uma resultante deformada “pelo predomínio metodológico dos
princípios lógicos”204. Já no que tange a Marx, agora este se
distingue de maneira mais nítida, tanto de Hegel quanto de sua imagem
lukacsiana do período proto-ontológico:
A ciência se desenvolve a partir da vida e, na vida, quer saibamos e
queiramos ou não, somos obrigados a nos comportar espontaneamente de modo
ontológico. [...] Acreditamos que, agindo assim, Marx criou uma nova forma
tanto de cientificidade em geral quanto de ontologia; uma forma destinada a
superar no futuro a constituição profundamente problemática, apesar de toda a
riqueza dos fatos descobertos, da cientificidade moderna.205
Sem dúvida, a partir da identificação do
caráter ontológico do pensamento marxiano, houve transformações substanciais na
elaboração lukacsiana, mas o processo não chegou à integralidade, nem dispôs do
tempo necessário de maturação para, talvez, vir a se completar. Assim, embora
tenha havido uma grande inflexão, restaram ainda no sentido mais geral, apesar
de tudo, uma espessa aura hegeliana e uma ênfase praticamente irretocada sobre
a questão metodológica, mesmo sob o novo diagrama da subordinação dos problemas
gnosiológicos ao plano ontológico, bem como se manteve um grande conjunto de
dissonâncias em relação a Marx, que vão desde suposições exóticas como os “experimentos
ideais da abstração”, entendidos enquanto meios de investigação científica, até
a pétrea insensibilidade para a mais extraordinária das concepções marxianas
sobre a esfera política – a sua determinação ontonegativa da politicidade.
Porém, tudo isso e muito mais é, simultaneamente, um universo inaugural e o
ponto de arribação de um itinerário longo e tortuoso, que demandam exame
específico e detalhado, e que não pode ser confinado aos parágrafos finais de
uma abordagem desenhada por outros objetivos.”
198 lstván Mészáros, Filosofia, ideologia e
ciência social (São Paulo, Boitempo, 2008), p. 81.
199 Ibidem, p. 113-4.
200 Ibidem, p. 116-7.
201 Georg Lukács, “A falsa e a verdadeira
ontologia de Hegel”, em Ontologia do ser social, cit., p. 77.
202 Ibidem, p. 27.
203 Ibidem, p. 55.
204 Ibidem, p. 65.
205 Georg Lukács, Os princípios
ontológicos fundamentais de Marx (São Paulo, Ciências Humanas, 1979), p.
27.
“Agora é só cuidar da conclusão, anotando que
nem mesmo nos escritos da Ontologia a teoria das abstrações foi
advertida por Lukács, o que dimensiona bem a incompletude da transição
lukacsiana ao marxismo ontológico. Impercebido que é o responsável principal
pelo feitio demasiado abstrato do tratamento lukacsiano das questões
metodológicas, que tendem a ser resolvidas, apesar do lugar proeminente que
sempre ocupam, ao nível rarefeito dos princípios ou dos grandes
condicionamentos históricos, sem que os procedimentos analíticos que perfazem a
captura ideal dos objetos sejam mais efetivamente tocados. Com efeito, outra
não poderia ter sido nesse campo a tendência predominante de seu pensamento, em
face da ausência, nele constatada, do urdume peculiar à investigação marxiana
que reproduz as determinações reais, identificado e sintetizado pela teoria das
abstrações, uma vez que esta, ou seja, o método marxiano, tomado por
seus momentos estruturais, pode ser reconhecido e enunciado como o modo de
produção de concretos de pensamentos a partir da destilação prévia de
abstrações razoáveis. Procedimento no qual a decantação preliminar é, por assim
dizer, errante, um trabalho de sapa em que a força de abstração
confronta de saída e sem qualquer ponto de arrimo a imediatez do todo sensível
do objeto, uma aproximação cognitiva, pois, que se defronta com a face lisa,
desprovida da textura de mediações que faz do objeto ou de conexões únicas de
objetos singularidades efetivas, mas que está oculta na totalidade muda
com que os mesmos se apresentam na abstratividade própria e incontornável à
relação imediata do sujeito com o concreto indecifrado. É o momento do trânsito
entre a afirmação e a dissolução da certeza sensível imediata: “Parece que o
correto é começar pelo real e pelo concreto, que são a pressuposição prévia e
efetiva”, mas que desemboca numa “representação caótica do todo”. Todavia, a
partir disso, “através de uma determinação mais precisa, através da análise,
chegaríamos a conceitos cada vez mais simples”, ou seja, às abstrações
razoáveis, com e por meio das quais tem início “a viagem ao inverso”1,
isto é, o caminho cientificamente exato da concreção ou particularização; em
suma, a rota seguida pela cabeça no desvendamento da lógica das coisas.
Processo em dois tempos não apenas enunciado, mas confirmado e reiterado
inúmeras vezes por Marx, tanto no exercício de seu trabalho reflexivo quanto
através de esclarecimentos e depoimentos específicos, aos quais Lukács, à
semelhança de tantos outros, dá as costas, nem mesmo os aludindo, como se
inexistissem ou fossem ignoráveis, mas que contrariam frontalmente os vieses
gnosioepistêmicos de uma infinidade de intérpretes, fazendo com que estes, por
isso mesmo, restem sempre desafiados pela vigorosa presença daqueles, patentes
na condição e qualidade de fatos teóricos indeléveis, enquanto tais decisivos,
pois indissoluvelmente integrados à argamassa da arquitetônica marxiana, para
cuja delucidação imanente são, no mínimo dos mínimos, pistas da mais alta
relevância.”
1 Karl Marx, “Introdução de 1857”, em Karl Marx (São Paulo, Abril Cultural, 1974, Coleção Os
Pensadores), p. 122.
Atos de recolha, simples latências sem rosto
antes da apropriação, inertes em si e ativos pela subsunção à matéria
recolhida, assim, por sua irresolução analítica se comprovam, agora
negativamente, as figuras operativas listadas pela teoria das abstrações. Mas o
que é a irresolução analítica das figuras da teoria das abstrações, senão
a evidência probante da presença resolutiva da analítica da reta prospecção
do objeto, diante da qual todos aqueles perfis são, ao mesmo tempo,
presenças necessárias e impotentes, ou seja, descrições genéricas de atos
cognitivos que só tomam forma efetiva na direta reprodução de conteúdos
específicos, distribuídos estes por toda gama real entre a mais simples e a
plena complexidade do concreto maturado? Complementares entre si, a irresolução
analítica da teoria das abstrações e o caráter resolutivo da analítica
da reta prospecção do objeto são os termos de uma unidade – cada um deles é
a outra face de seu completivo – que traduz o estatuto ontológico do pensamento
marxiano, ou seja, numa obra dessa natureza, qualquer dimensão metodológica,
enquanto mobilização e orientação da subjetividade cognitiva, não pode, nem
deve ser mais do que a indicação genérica dos passos da atividade mental na
escavação das coisas, em subsunção da qual o pensamento se realiza, no empenho
de capturar o ente enquanto ente, vale dizer, sem contaminar a coisa com
exterioridades de qualquer origem ou natureza, incluídas as do próprio pensamento.
Em franco contraste com as vertentes que advogam, diante da empreitada
analítica, o prévio municiamento lógico ou a preliminar organização epistêmica
da subjetividade – redundando sempre, ontologicamente, estranguladas e
estrangulantes por seus fundamentos, comprometidos estes desde a origem pelo
arrasto do critério de verdade do universo objetivo ao plano subjetivo ou das idealidades
– é extremamente preciso e confortável no pensamento marxiano, a sustentação do
clássico e autêntico ideal do conhecimento ontológico, pois, como já foi
rematizado, para a analítica marxiana a questão da possibilidade do saber é, desde
logo, resolvida nessa esfera, ou seja, ontopraticamente, de modo positivo e categórico,
sendo reconhecida a solução, por sua patente radicalidade, como base de toda
atividade filosófica e científica.”
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