ISBN:
978-85-7559-438-4
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 816
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Sinopse: Ver Parte I
“Nas
23 páginas originais do Manifesto
Comunista, Marx e Engels articulam uma argumentação que se desenvolve
de modo cristalino, didático e linear. Não nos preocupemos em detalhar essa
argumentação – tratemos tão só de aludir a ela para observar sobretudo aspectos
que consideramos mais relevantes na apreciação do seu texto.
Na
abertura, os autores esclarecem que a razão de ser do panfleto é expor
abertamente as concepções e os objetivos assumidos pelos comunistas. Seu
primeiro capítulo apresenta uma notável síntese histórica do papel revolucionário
da burguesia na construção de um novo mundo; depois de sumariar a grandiosidade
do protagonismo burguês, Marx e Engels assinalam as contradições da ordem
social por ele constituída e a necessidade da sua superação, postas as novas
lutas de classes que nela emergem. No segundo capítulo, abordam a relação dos
comunistas com a força social que opera mais consequentemente no sentido dessa
superação, a classe operária, formulando uma teoria do partido dos
comunistas, concebido não como uma organização à parte ou como um segmento
especial ao lado de outros partidos operários, e sim como a fração mais
decidida deles, peculiarizada por compreender teoricamente as condições do
movimento proletário e representar sempre o interesse desse movimento na sua
totalidade; fazem a crítica das instituições da sociedade burguesa e apontam
como alternativa a revolução do proletariado, que concretiza “a conquista da
democracia pela luta”, e aí formulam, em dez tópicos, as medidas que configuram
o programa econômico-social dos comunistas. O terceiro capítulo
discute e critica as tendências que, à época, incidiam no movimento operário. O
último capítulo trata da relação dos comunistas com os outros partidos e
agrupamentos políticos de oposição ao status quo.
Note-se
que o Manifesto
se inscreve numa tradição histórica e política: a própria forma manifesto
não era original em 1848. Se, no plano político, ele não aparece como um raio
em céu sereno – de fato, o movimento dos trabalhadores já realizara grandes
mobilizações (por exemplo, na Inglaterra, das ações luddistas às greves
organizadas pelos cartistas; na França, a insurreição dos trabalhadores da seda
em Lyon, em 1831; na Alemanha, a rebelião dos tecelões da Silésia, em 1844) –,
no plano programático ele recolhe reivindicações que já estavam generalizadas
entre os operários (por exemplo, a demanda da educação pública e gratuita). Por
outro lado, muitas das críticas à sociedade burguesa apresentadas no Manifesto
já tinham sido avançadas por representantes do chamado socialismo utópico (por
exemplo, Fourier).
O Manifesto,
todavia, conjuga a sua vinculação à tradição do movimento dos trabalhadores e
dos precursores do socialismo com dimensões e características realmente
inéditas – ele é, em realidade, tanto um coroamento e uma
continuidade daquela tradição quanto uma ruptura em relação a ela.
São tais dimensões/características inéditas que, subordinando os componentes de
continuidade, fazem dele um documento – teórico e político – objetivamente
revolucionário.
A
primeira inovação do Manifesto, a meu juízo, é a consideração das
lutas de classes como força motriz da dinâmica sociopolítica da sociedade
burguesa. Se os historiadores românticos da revolução francesa já a haviam
interpretado à luz do confronto entre classes, é no Manifesto
que elas são tomadas como centrais nos processos de transformação social.
Inscrito na tradição dos manifestos, que vinha pelo menos de Babeuf (Molon, Graco
Babeuf, 2002), o documento de 1848 foi o primeiro elaborado a partir da
perspectiva de classe do proletariado como dinamizadora da ação política
de massas vocacionada a promover transformações revolucionárias – a
revolução não é projetada como resultante de golpes de mão de heróis
conspiradores (tradição que vinha de Babeuf e encontrava um sucessor da
importância de Blanqui): resultante da intervenção sociopolítica das massas, a
revolução proletária não é um movimento de minorias, mas da imensa maioria.
A
segunda inovação introduzida é que, pela primeira vez, o programa
anticapitalista da classe revolucionária é proposto não como a expressão de
vontades e desejos generosos e, menos ainda, como um receiturário formulado por
visionários ou profetas. O programa da Liga dos Comunistas, resumido nos dez
pontos apresentados no Manifesto, vem embasado nas tendências de
desenvolvimento inferíveis da realidade da sociedade burguesa: é da análise
dessa sociedade que Marx e Engels extraem a viabilidade do programa que propõem[136].
Não há na sua proposição o lastro voluntarista/subjetivista que até então
marcava as propostas dos grandes reformadores sociais; a inspiração e o
espírito utópicos são deslocados pela investigação teórica de tendências reais
e pela prospecção das alternativas concretas nelas contidas – muitos anos
depois, Engels observará que esse deslocamento corresponde ao trânsito do “socialismo
utópico ao socialismo científico”. Essa concepção, já expressa em momentos
anteriores das suas pesquisas[137], é inequivocamente retomada no Manifesto:
As proposições teóricas dos comunistas não se baseiam,
de modo nenhum, em ideias ou em princípios inventados ou descobertos por este
ou aquele reformador do mundo. São apenas expressões gerais de relações
efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento histórico que se
processa diante de nossos olhos.
De
fato, até seus últimos anos de vida, Marx e Engels recusaram claramente
qualquer veleidade utópica, antes ancorando-se no mais profundo senso de
realidade. Estreitamente vinculada ao realismo político próprio do
pensamento de Marx e Engels – mas realismo que contempla o papel ativo e
criador dos sujeitos sociais concretos – está também uma terceira inovação
que faz do Manifesto um texto verdadeiramente revolucionário. Antes do
documento de 1848, os reformadores sociais e os revolucionários procuravam
sustentar as suas propostas ou num determinismo histórico que imaginava
a humanidade em marcha inexorável no rumo do progresso, ou numa
concepção voluntarista que supunha que a vontade dos homens atuaria
livremente, sem quaisquer limites objetivos. Marx e Engels superaram esses dois
pontos de partida tradicionais. De um lado, no documento de 1848, rechaçaram o “determinismo
do progresso”: recusaram nitidamente a ideia de que a revolução proletária e/ou
a nova sociedade (comunista) seriam necessariamente vitoriosas – basta ler,
logo nos primeiros parágrafos do capítulo I do Manifesto, o que
escreveram: as lutas de classes terminaram sempre “ou com uma
transformação revolucionária de toda a sociedade ou com a destruição das
classes em luta”. Mais claro, impossível: a resultante das lutas de classes pode
ser um avanço social, mas igualmente pode redundar na mútua destruição
dos antagonistas. De outro lado, também abandonaram qualquer concepção apoiada
na ideia da onipotência da vontade humana: é visível no texto de 1848,
sobretudo no seu primeiro capítulo, que o movimento operário e a sua fração
revolucionária atuam a partir do desenvolvimento objetivo do modo de produção
capitalista (o nível alcançado pelas forças produtivas, a
constituição do mercado mundial etc. nos marcos da propriedade privada burguesa[138]).
A vontade revolucionária se constitui nos marcos e limites reais
postos pelas condições vigentes na sociedade capitalista (seus coveiros
são também produto da burguesia); mas a vontade organizada dos
trabalhadores, conhecendo aqueles marcos e limites, pode conceber um factível
projeto de transformação social radical e estrutural. Alguns anos depois da
publicação do Manifesto, num texto de 1852 (O
18 de brumário de Luís Bonaparte), Marx sintetizou em fórmula célebre
as ideias subjacentes a essa concepção da relação entre os limites e as
possibilidades dos sujeitos políticos:
Os homens fazem a sua própria história; contudo,
não a fazem de livre e espontânea vontade, pois não são eles quem escolhem as
circunstâncias sob as quais ela é feita, mas estas lhes foram transmitidas
assim como se encontram. (Marx, 2011b, p. 25)
A
relação determinada que o Manifesto atribui aos homens e suas
circunstâncias (na sua posição de autores/atores) tem direta conexão com o
caráter do documento: simultaneamente, é expressão teórica do movimento
operário e a convocação para a sua organização política; é tanto
construção de natureza cognitiva quanto apelo à ação revolucionária. Enfim,
cumpre destacar outro traço pertinente e definidor do Manifesto: a
concepção internacionalista que satura a sua teoria revolucionária[139].
Com Marx e Engels, a demanda da revolução transcende os espaços nacionais – emerge
das contradições postas na sociedade burguesa pelo modo de produção capitalista
em macroescala. É evidente que essa concepção não desonera os revolucionários
das suas tarefas nacionais: no documento, lê-se que “o proletariado de cada
país tem, naturalmente, que começar por resolver os problemas com a sua própria
burguesia”; entretanto, a própria dinâmica capitalista promove o
desaparecimento “[d]os isolamentos e [d]as oposições nacionais dos povos” e “o
domínio do proletariado fá-los-á desaparecer ainda mais depressa”, porque,
mediante a revolução que liquidará o antagonismo das classes no interior das
nações, desaparecerá “a hostilidade entre as nações”. Por isso, o Manifesto
insiste em que a “unidade de ação do proletariado, pelo menos dos países civilizados,
é uma das primeiras condições da sua libertação”.
Escrito
por dois pensadores que ainda estavam longe do seu inteiro desenvolvimento e da
sua plena maturidade intelectuais (Marx ainda não completara 30 anos e Engels
tinha menos de 28), o Manifesto apresenta formulações que seus autores
haveriam de retificar e/ou revisar ulteriormente. Indiquemos, para ilustrar,
duas delas.
A
primeira diz respeito a uma tese muito importante que aparece explícita no
documento de 1848: segundo os seus autores, a situação operária, sob o modo de
produção capitalista, tende necessariamente a piorar, aprisionando o
proletário na rede da degradação das suas condições de trabalho e de vida
(leiam-se frases do penúltimo parágrafo do capítulo I do Manifesto, onde
se afirma que o “operário moderno”, com o desenvolvimento da indústria, “longe
de elevar-se”, “afunda-se cada vez mais, indo abaixo das condições de sua
própria classe”, passando a “indigente”). Essa tese, assumida, como já vimos,
por Marx na Miséria da filosofia, e conforme a qual o proletário
estaria submetido a um inevitável processo de pauperização absoluta,
apoia-se numa teoria dos salários que não é consistente; ora, como o mesmo Marx
mostrou posteriormente, a pauperização absoluta não é uma tendência
irrecorrível do desenvolvimento do modo de produção capitalista. Marx revisa e
retifica essa concepção da pauperização absoluta no Livro I de O capital
(1867), operando com uma teoria dos salários mais adequada e
elaborada e introduzindo a ideia de pauperização relativa.
A
segunda relaciona-se à determinação da própria classe proletária. No Manifesto,
essa determinação não se concretiza com uma clara concepção da essência
exploradora da relação entre capital e trabalho; embora seja
mencionada a posição do proletariado como classe explorada, ele aparece
sobretudo como classe oprimida. Marx, ainda sem extrair da teoria do
valor que acolhera havia pouco (ele a incorporara, expressa e publicamente, na
já citada Miséria da filosofia) as suas implicações basilares, não tem condições
de precisar e determinar com rigor a natureza da exploração capitalista
– faltam-lhe os instrumentos analíticos e a suficiente crítica da economia
política para compreender uma categoria nuclear, a categoria de mais-valia.
Só depois, em especial a partir de 1857-1858, ele se qualifica para operar com
essa categoria, que em O capital comparece plenamente elaborada.
Questões
de outro tipo podem se colocar no que tange ao programa econômico-social dos
comunistas proposto no documento de 1848. É certo que a sua
formulação/aplicação prática é evidentemente conjuntural. É isso, aliás, que
Marx e Engels reconhecem e admitem mal passados 25 anos da publicação do Manifesto:
com efeito, para a sua reedição alemã de 1872, os dois escreveram um prefácio
no qual afirmam que aquela parte do fim do capítulo II deveria ser “redigida de
modo diferente” e justificam tal verificação da seguinte maneira:
Em face do imenso desenvolvimento da grande
indústria nos últimos vinte e cinco anos e, com ele, do progresso da organização
do partido da classe operária […], este programa está hoje, num passo ou
noutro, antiquado. [lxxxi]
Vê-se:
Marx e Engels não pensavam que as suas proposições prático-políticas fossem
independentes do desenvolvimento das forças produtivas e dos
avanços do movimento operário. O fato – por eles consignado nesse prefácio – de
considerarem que os “princípios gerais” do Manifesto se conservavam
válidos também não deve ser visto como indicador de que seriam intocáveis: na
verdade, e isto não diz respeito somente ao documento de 1848, Marx e
Engels sempre estiveram abertos e sensíveis a críticas e nunca patrocinaram a
sacralização das suas concepções, teses e formulações. Qualquer leitura que se
fizesse delas com espírito talmúdico ou fundamentalista lhes era estranha
(mormente em sua correspondência dos anos 1880-1890, são inúmeras as passagens
em que Engels insiste em que a sua – de Marx e dele – teoria não pode ser
tomada “de um modo dogmático, como uma doutrina”, como um “credo”, mas deve ser
pensada como um “guia de estudo”). Com efeito, Marx e Engels estiveram
dispostos a revisar concepções e teses sempre que o aprofundamento da sua
teoria, a prática social, fenômenos e processos emergentes ou novas análises e
pesquisas o exigissem.
Precisamente
uma tal atitude parece-me dever ser a do leitor contemporâneo do Manifesto,
que se aproxima do documento 170 anos depois da sua redação. Ao longo de mais
de um século e meio, a sociedade burguesa experimentou grandes transformações
(sobre as quais o movimento operário, em suas várias vertentes, incidiu ponderavelmente
e que igualmente o modificaram); algumas dessas transformações evidenciam que o
Manifesto apresenta, em face da contemporaneidade, limites e
insuficiências – vejamos, apenas para sinalizá-los, duas ordens de fenômenos.
Em primeiro lugar, o desenvolvimento capitalista desses mais de 170 anos operou
uma profunda diferenciação no universo do sujeito revolucionário considerado no
Manifesto; embora Marx e Engels, quer no documento de 1848, quer em suas
obras posteriores, nunca tenham suposto aquele sujeito, o
proletariado, como algo homogêneo, tudo indica que subestimaram a sua
heterogeneidade e a sua diferenciação interna. Ora, é certo que a diferenciação
hoje existente no interior do proletariado acarreta substantivas implicações no
seu comportamento sociopolítico; torna-se necessário, pois, conhecer a
estrutura do proletariado contemporâneo para determinar com alguma precisão o
seu potencial revolucionário (está fora de questão, aqui, a enganosa retórica do
“fim do trabalho”, do “fim da classe operária” etc.). Por outra parte, de
acordo com o Manifesto, como se lê no primeiro capítulo, “a nossa época,
a época da burguesia, caracteriza-se […] por ter simplificado os antagonismos
de classe” – e é fato que a sociedade, como os autores afirmam em seguida,
continua polarizada por dois campos hostis (burguesia/proletariado); a prática
social contemporânea, no entanto, indica que os “antagonismos de classe” não se
verificam como “simplificados” – ao contrário, têm-se tornado muito mais
complexos e pluridimensionais.
Não
são apenas essas duas alusões, contudo, que sinalizam que o Manifesto
tem limites e insuficiências. Pense-se, por exemplo, que se o Manifesto
antecipa, premonitoriamente, a explosão revolucionária de 1848, não menciona,
em absoluto, a possibilidade do seu fracasso; aliás, a expectativa da revolução
a curto prazo marca os escritos de Marx e Engels daquele tempo (só na Contribuição
à crítica da economia política, de 1859, Marx compreenderia as razões
pelas quais a revolução social cobre o espaço de toda uma “época histórica”).
Ou, também, esta outra indicação: o Manifesto dá como que por suposto o internacionalismo
do proletariado – e já tivemos suficientes provas de que a constituição de uma
consciência política capaz de superar as limitações e os
efeitos deletérios das ideologias nacionalistas é, ainda hoje, mais um projeto
que um processo[141].
Decisivo,
porém, na apreciação do Manifesto, é algo que vai muito além da listagem
dos seus limites e eventuais anacronismos: é a verificação de que ele, na sua
substancialidade, resistiu vigorosamente às provas da história e do tempo.
É
mesmo assombrosa a atualidade desse documento, inteiramente perceptível na sua
primorosa antecipação, com precisão cirúrgica, dos principais traços
pertinentes à sociedade burguesa madura, nossa contemporânea, que Marx e
Engels oferecem ao leitor no primeiro capítulo do Manifesto. Atente-se:
nessas páginas, escritas entre dezembro de 1847 e janeiro de 1848, não
está a descrição da sociedade burguesa da época, mas a configuração que ela
haveria de possuir mais de um século depois, na plenitude do seu
desenvolvimento; portanto, a palavra “descrição” não é a mais adequada para
denotar a extraordinária (ante)visão de Marx e Engels sobre a sociedade burguesa
tardia. Com efeito, vacinados desde jovens contra o empirismo rasteiro e o
positivismo medíocre, os dois autores não se restringem a “fotografar” a
realidade burguesa – seu método de pesquisa (que, em 1848, ainda não estava
suficientemente elaborado) apreende e detecta tendências estruturais,
donde a capacidade de antecipar, no plano teórico, elementos que a realidade
imediata estava longe de evidenciar. Em 1848, a caracterização que Marx e
Engels fazem da sociedade burguesa aparece quase como um exercício de ficção
científica, mas, um século e tanto depois, refigura admiravelmente o nosso
mundo: como anotou Hobsbawm (Sobre história, 1998, p. 300), “o mundo
transformado pelo capitalismo que ele [o Manifesto] descrevia em 1848
[…] é reconhecidamente o mundo no qual vivemos 150 anos depois”.
Que a
apreensão da realidade profunda da dinâmica da sociedade burguesa já é
patente no Manifesto demonstram-no cabalmente as notações referentes ao
movimento da economia capitalista. Ainda que sem o embasamento de um pleno
domínio da crítica da economia política (pleno domínio que Marx só adquiriria a
partir da segunda metade dos anos 1850), aquelas notações – relativas à
constituição do mercado mundial, à centralização dos meios de produção e à
concentração do capital e da propriedade, ao revolucionário acúmulo das forças
produtivas com a incorporação das ciências, à recorrência das crises – desvelam/revelam
processos que permanecem ativamente operantes e acentuados na sociedade
contemporânea.
A
densidade e a solidez teóricas do Manifesto são (ainda que os
desenvolvimentos posteriores da pesquisa de Marx e de Engels viessem a lhes
oferecer novos fundamentos e revisar outros) elementos que respondem pela
resistente atualidade do documento. E a elas também se deve creditar a sua atual
relevância política, expressa, por exemplo, numa questão absolutamente crucial:
a da concentração/centralização do poder econômico e político. Esta não se
restringe tão somente à concepção de Estado que o Manifesto formula
(segundo a qual o Executivo do Estado moderno opera como “um comitê para
administrar os negócios coletivos de toda a classe burguesa”), mas se complementa
com a indicação de que a dinâmica capitalista conduz à centralização
política[142]. A referida relevância mostra-se, inclusive, como
imprescindível orientadora para o posicionamento e a ação políticos na
quadra contemporânea, em que, na sequência da crise terminal do “socialismo
real”, amplos setores (outrora) comunistas parecem perder-se na perplexidade,
na capitulação ou no imobilismo – leiam-se, para verificar a clareza e a
contundência dessa orientação, os três parágrafos que precedem
imediatamente o último do Manifesto.
Enfim,
a relevância atual do documento de 1848 contém-se inclusive nas
problemáticas que, sem resolvê-las, ele levanta. Talvez a mais importante delas
seja a do caráter democrático dos desdobramentos da revolução que, para
o Manifesto, é obra de um “movimento autônomo da imensa maioria no
interesse da imensa maioria”; o problema subjacente é o de como articular as
necessárias (para a revolução) “intervenções despóticas no direito de
propriedade e nas relações de produção burguesas” à democracia, que se deverá
erguer com “a passagem do proletariado a classe dominante” [29]. Em termos que
não os do Manifesto, aqui aflora o problema de como sincronizar a
socialização da economia com a socialização do poder político; o
documento tem o mérito de instigar à pesquisa do problema, mas não o soluciona,
como, aliás, também não o fizeram as experiências pós-revolucionárias do século
XX (Cerroni, Teoria política e socialismo, 1976; Netto, Democracia e transição socialista, 1990).
Haveria
muito mais a analisar, explorar e questionar no texto de 1848; nos limites
deste ensaio biográfico, depois do que expusemos, basta-nos uma avaliação sumária:
sem subestimar seus limites e seus eventuais anacronismos, o Manifesto é
o documento teórico-político mais importante do pensamento social moderno; é a
peça basilar para a compreensão do mundo em que vivemos hoje e, por
isso, para todos os homens e todas as mulheres que pretendem transformar este
mundo, com a paixão humanista de suprimir a “velha sociedade burguesa, com as
suas classes e antagonismos de classes” e substituí-la por “uma associação em
que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre
desenvolvimento de todos” – para todos esses homens e essas mulheres, o
conhecimento do Manifesto é necessário e indispensável,
mas não é suficiente. É preciso partir dele para ir além dele.”
[135]
De fato, no Manifesto, essa determinação aparece alargada: “A história
de toda a sociedade até hoje moveu-se entre antagonismos de classes, que em
diferentes épocas tiveram formas diferentes”.
[136]
Ademais, a programática do Manifesto não se apresenta como um
receituário de aplicação indiferenciada: seus autores têm clara e plena
consciência da desigualdade do desenvolvimento do modo de
produção que embasa a sociedade burguesa nos diversos países e que as medidas
que propõem, com vistas aos “países mais avançados”, “é claro [que] serão
diferentes conforme os diferentes países”.
[137]
Recordemos a passagem, já assinalada, dos Manuscritos
econômico-filosóficos de Paris (1844),
em que se afirma que “o comunismo […] é o momento real, necessário para
o próximo desenvolvimento histórico, da emancipação e recuperação humanas”
(Marx, 2015, p. 359); ou aquela anotação ao manuscrito de A
ideologia alemã, em que se lê que “o comunismo não é para nós um estado
de coisas que deve ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade
deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera
o estado de coisas atual. As condições desse movimento […] resultam dos
pressupostos atualmente existentes” (Marx-Engels, 2007, p. 38n).
[138]
Nesse passo do Manifesto, Marx e Engels recuperam os avanços que
alcançaram na Ideologia
– como se viu, ali a atenção que conferem à propriedade privada burguesa
é determinante. No Manifesto, tal determinação expressa-se inclusive no
plano da ação política: ao mencionar o apoio que, em toda parte, os comunistas
devem dar a “todos os movimentos revolucionários contra as condições políticas
e sociais existentes”, afirmam que devem colocar “em destaque, como a questão
fundamental, a questão da propriedade, seja qual for a forma […] que ela possa
ter assumido”.
[139]
Concepção que assenta em determinações mais explicitadas nos precedentes “Princípios
do comunismo”. Indicando que, pela existência do mercado mundial, o
desenvolvimento social nos países mais avançados (designados ali como “países
civilizados”) tornou a burguesia e o proletariado “as duas classes decisivas da
sociedade” e converteu a sua luta “no principal combate dos nossos dias”,
Engels escreveu que, “consequentemente, a revolução comunista não será uma
revolução puramente nacional: produzir-se-á simultaneamente em todos os países
civilizados”, “mais ou menos rapidamente” conforme suas particularidades; mas “exercerá
um considerável impacto nos outros países do mundo, alterando radicalmente o
curso do desenvolvimento que têm seguido até agora. Trata-se de uma revolução
universal e, por isso, terá um âmbito também universal” (Engels, Política,
1981, p. 94).
[140]
Ver as cartas de Engels a Friedrich Adolph Sorge (29 de novembro de 1886), a
Joseph Bloch (21-22 de setembro de 1890), a Conrad Schmidt (27 de outubro de
1890) e a Walther Borgius (25 de janeiro de 1894), recolhidas respectivamente
em MEW, 1967, v. 36 e 1968, v. 38 e 39.
[141] G. Haupt et al., orgs. Les Marxistes et la question nationale, 1974; Pinsky, org., Questão nacional e marxismo, 1980; Galissot, em Hobsbawm, org., História do
marxismo, 1984, v. IV; Löwy, Nacionalismos e
internacionalismos, 2000; Hobsbawm, Nações e nacionalismo desde 1780, 2008; Paula, A ideia de
nação no século XIX e o marxismo, 2008; Arcary, Internacionalismo e
nacionalismo, 2009.
[142]
Todos esses processos têm sido verificados contemporaneamente por vários estudos,
elaborados por pesquisadores dos mais diferenciados quadrantes teóricos. Apenas
à guisa de sumaríssima indicação bibliográfica, ver Chesnais, A mundialização do capital, 1996; Dreifuss, A é poca das perplexidades, 1996; Chossudovsky, A globalização da pobreza, 1999; Amin, Más allá del capitalismo senil, 2003; Calabrese e Sparks,
orgs., Toward a Political Economy of Culture, 2004; Costa, A globalização e o capitalismo contemporâneo, 2008; Brunhoff et
al., A finança capitalista, 2010; Foster et al., The Global Reserve Army of Labor and the New Imperialism, 2011; Nunes, A crise atual do capitalismo, 2012; Piketty, O
capital no século XXI, 2014; Montoro, Capitalismo y economía
mundial, 2016. Há também
úteis materiais publicitados em informes de organizações não governamentais;
vide os da Oxfam (Oxford, Reino Unido) e os do Centre Tricontinental
(Louvain-la-Neuve, Bélgica); recorra-se ainda aos dados
oferecidos pelo WID.world (World Inequality Database).
“A burguesia alemã tinha se desenvolvido com tanta indolência, covardia e
lentidão que, no momento em que se ergueu ameaçadora em face do feudalismo e do
absolutismo, percebeu diante dela o proletariado ameaçador, bem como todas as
frações da burguesia cujas ideias e interesses são aparentados aos do
proletariado. E tinha não apenas uma classe detrás de si, diante
dela toda a Europa a olhava com hostilidade. A burguesia prussiana não era, como
a burguesia francesa de 1789, a classe que, diante dos representantes da antiga
sociedade, da monarquia e da nobreza, encarnava toda a sociedade
moderna. Ela havia decaído ao nível de uma espécie de casta, tanto
hostil à Coroa como ao povo, querelando contra ambos, mas indecisa contra cada
adversário seu tomado singularmente, pois sempre via ambos diante ou detrás de
si; estava disposta desde o início a trair o povo e ao compromisso com o
representante coroado da velha sociedade, pois ela mesma já pertencia à velha
sociedade; representando não os interesses de uma sociedade nova contra uma
velha sociedade, mas interesses renovados no interior de uma sociedade
envelhecida; ao leme da revolução não porque o povo estava atrás dela, mas
porque o povo a empurrava à sua frente; na ponta não porque representava a
iniciativa de uma nova época social, mas o rancor de uma época social velha;
não era um estrato social do velho Estado que havia irrompido, mas tinha sido
projetada por um terremoto à superfície do novo Estado; sem fé em si mesma, sem
fé no povo, rosnando para os de cima, tremendo diante dos de baixo, egoísta em
relação aos dois lados e consciente de seu egoísmo, revolucionária contra os
conservadores, conservadora contra os revolucionários, desconfiada de suas
próprias palavras de ordem, frases em lugar de ideias, intimidada pela
tempestade mundial, mas dela desfrutando – sem energia em nenhum sentido,
plagiária em todos os sentidos, vulgar porque não era original e original na
vulgaridade – traficando com seus próprios desejos, sem iniciativa, sem fé em
si mesma, sem fé no povo, sem missão histórico-universal – um ancião maldito
que se via condenado a dirigir e a desviar, em seu próprio interesse decrépito,
as primeiras manifestações de juventude de um povo robusto –
sem olhos! sem ouvidos! sem dentes! sem nada! [61]; assim se encontrou a burguesia
prussiana, depois da revolução de março, ao leme do Estado prussiano.
(Marx, Nova Gazeta Renana, 2010a, p. 324-5)”
[61] Exclamações
extraídas do ato II, cena 7 da comédia shakespeariana Como gostais
(Shakespeare, 1969 [1599], p. 527).
“Cada
burguesia tem o Napoleão que faz por merecer, cada uma produz o bonapartismo
que está à sua altura histórica.”
“Marx,
é óbvio, não reduz a vida social à produção material, uma vez que tem
a plena clareza de que a vida social é muito mais complexa que a produção
material[97]: o que ele sustenta é que, sem a análise do modo como os
homens se organizam para a (e na) produção das condições materiais da sua
existência, a análise da sua vida social vê-se à partida comprometida em suas
possibilidades explicativas e compreensivas[98]. E eis que se colocam as
questões relativas ao método que essa crítica exige.
Tais
questões são tratadas no item 3 da “Introdução”, provavelmente um dos textos mais
conhecidos e citados de Marx, não só por ter sido o fragmento dos Grundrisse
que primeiro veio a público, ainda nos anos iniciais do século
XX, mas também pela sua reconhecida relevância. Nenhuma interpretação
substitui, também aqui, a textualidade do próprio Marx – donde a extensa, mas
indispensável, citação que se segue. É com ela que o autor abre o item “O
método da economia política”.
Se consideramos um dado país de um ponto de
vista político-econômico, começamos com sua população, sua divisão em classes,
a cidade, o campo, o mar, os diferentes ramos de produção, a importação e a
exportação, a produção e o consumo anuais, os preços das mercadorias etc.
Parece ser correto começarmos pelo real e pelo
concreto, pelo pressuposto efetivo, e, portanto, no caso da economia, por
exemplo, começarmos pela população, que é o fundamento e o sujeito do ato
social de produção como um todo. Considerado de maneira mais rigorosa,
entretanto, isso se mostra falso. A população é uma abstração quando deixo de
fora, por exemplo, as classes das quais é constituída. Essas classes, por sua
vez, são uma palavra vazia se desconheço os elementos nos quais se baseiam. P.
ex., trabalho assalariado, capital etc. Estes supõem troca, divisão do
trabalho, preço etc. O capital, p. ex., não é nada sem o trabalho assalariado,
sem o valor, sem o dinheiro, sem o preço etc. Por isso, se eu começasse pela
população, esta seria uma representação caótica do todo e, por meio de uma
determinação mais precisa, chegaria analiticamente a conceitos cada vez mais
simples; do concreto representado chegaria a conceitos abstratos cada vez mais
finos, até que tivesse chegado às determinações mais simples. Daí teria de dar
início à viagem de retorno até que finalmente chegasse de novo à população, mas
desta vez não como a representação caótica de um todo, mas como uma rica
totalidade de muitas determinações e relações. A primeira via foi a que tomou
historicamente a Economia em sua gênese. Os economistas do século XVII, p. ex.,
começam sempre com o todo vivente, a população, a nação, o Estado, muitos
Estados etc.; mas sempre terminam com algumas relações determinantes, abstratas
e gerais, tais como divisão do trabalho, dinheiro, valor etc., que descobrem
por meio da análise. Tão logo esses momentos singulares foram mais ou menos
fixados e abstraídos, começaram os sistemas econômicos, que se elevaram do
simples, como trabalho, divisão do trabalho, necessidade, valor de troca, até o
Estado, a troca entre as nações e o mercado mundial. O último é manifestamente
o método cientificamente correto. O concreto é concreto porque é a síntese de
múltiplas determinações, portanto, unidade da diversidade. Por essa razão, o
concreto aparece no pensamento como processo da síntese, como resultado, não
como ponto de partida, não obstante seja o ponto de partida efetivo e, em
consequência, também o ponto de partida da intuição e da representação. Na
primeira via, a representação plena foi volatilizada em uma determinação
abstrata; na segunda, as determinações abstratas levam à reprodução do concreto
por meio do pensamento. Por isso, Hegel caiu na ilusão de conceber o real como
resultado do pensamento que sintetiza-se em si, aprofunda-se em si e
movimenta-se a partir de si mesmo, enquanto o método de ascender do abstrato ao
concreto é somente o modo do pensamento de apropriar-se do concreto, de
reproduzi-lo como um concreto mental. Mas de forma alguma é o processo de
gênese do próprio concreto. […] a totalidade concreta como totalidade de pensamento,
como um concreto de pensamento, é de fato um produto do pensar, do conceituar;
mas de forma alguma é um produto do conceito que pensa fora e acima da intuição
e da representação, e gera a si próprio, sendo antes produto da elaboração da
intuição e da representação em conceitos. O todo como um todo de pensamentos,
tal como aparece na cabeça, é um produto da cabeça pensante que se apropria do
mundo do único modo que lhe é possível, um modo que é diferente de sua
apropriação artística, religiosa e prático-mental. O sujeito real, como antes,
continua a existir em sua autonomia fora da cabeça; isso, claro, enquanto a
cabeça se comportar apenas de forma especulativa, apenas teoricamente. Por
isso, também no método teórico o sujeito, a sociedade, tem de estar
continuamente presente como pressuposto da representação.”
[97] Lukács
esclarece que “a produção, enquanto momento predominante, é aqui [na “Introdução
de 1857”] entendida no sentido mais amplo possível – no sentido ontológico
–, como produção e reprodução da vida humana, que até mesmo em seus estágios
extremamente primitivos […] vai muito além da mera conservação biológica, não
podendo portanto deixar de ter um acentuado caráter econômico-social. É essa
forma geral da produção que determina a distribuição no sentido marxiano. […]
Essa constatação remete à teoria geral de Marx, segundo a qual o
desenvolvimento essencial do ser humano é determinado pela maneira como ele
produz. Até mesmo o modo de produção mais bárbaro ou mais estranhado plasma os
homens de determinado modo, um modo que desempenha papel decisivo, em última
instância, nas inter-relações entre grupos humanos – por mais ‘extraeconômicas’
que estas possam parecer de imediato” (Lukács, 2012, Para uma ontologia do ser social, v. I, p. 336).
[98] Comprometimento
que se registra, por exemplo, na obra de autores clássicos das ciências
sociais, como, dentre os que foram citados há pouco, Durkheim e Weber. Nas suas obras encontram-se análises e proposições que oferecem
indicações à explicação/compreensão da vida social; dadas, porém, as suas concepções
teóricas e metodológicas, conducentes a pensar as relações sociais no marco de
uma ciência particular e autônoma, a sociologia (dela excluída precisamente a
problemática da produção material, tornada objeto de outra disciplina
acadêmica, igualmente particular e autônoma, a economia), eles – mesmo Weber,
que, sabe-se, interessava-se especialmente por economia – não foram capazes de
elaborar uma teoria social apta a dar conta da articulação entre relações
sociais e vida econômica. Para uma crítica de princípio à sociologia como
ciência particular e autônoma, ver Lukács, El asalto
a la razón, 1968, cap. VI; são
úteis, ainda, as reflexões de Goldmann, El hombre y lo absoluto, 1986.
Essa
profunda limitação da sociologia, já flagrante nas mãos competentes dos seus
clássicos, acentuou-se nas de seus epígonos, de que é exemplo Parsons, 1959 –
como o perceberam inclusive críticos não marxistas, como Mills, A imaginação sociológica (1969) e, mais circunstaciadamente, Gouldner, The Coming Crisis of Western Sociology (1970).
“A análise marxiana acerca do “exército industrial de reserva”, componente da “lei geral” e absolutamente ignorada/desprezada em especial pelos economistas vinculados de forma direta e/ou indireta à apologia da ordem burguesa, continua demonstrando vigorosamente a sua validez também para o capitalismo das duas décadas do século XXI: independentemente das históricas variações das taxas de desemprego e da mutabilidade das suas formas, não há qualquer dúvida de que ainda não foi inventado um capitalismo sem uma massa maior ou menor de população excedentária em face do capital.”
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