Editora: Boitempo
ISBN:
978-85-7559-438-4
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 816
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Sinopse: Com
maestria e erudição, José Paulo Netto nos conta a história de Karl Marx neste
livro fundamental, fruto de uma vida inteira dedicada ao estudo da obra
marxiana. Entrelaçando realidade sociopolítica e aspectos da vida privada do
biografado, o autor dá luz à trajetória do pensamento, da atividade política,
da elaboração dos textos, dos afetos e desafetos – enfim, ao grande legado do criador
do socialismo científico.
Ao recorrer aos textos produzidos por Marx um a um,
entremeando suas reflexões a uma ampla série de citações (escolhidas a dedo),
José Paulo Netto oferece ao leitor um rico guia de leitura da vida e da obra de
Marx. Também são convocados a participar dessa sinfonia textual outros
biógrafos e comentaristas, tornando o quadro ainda mais complexo e instigante,
sem nunca perder o fio.
Trata-se de uma narrativa que se dá em dois tempos: além
do texto principal (dividido em oito capítulos mais o epílogo), o livro conta
com 1.006 imprescindíveis notas de fim. Esse portentoso conjunto, além de
formar uma obra incontornável na área dos estudos marxistas, há também de ser
celebrado pelos amantes das boas biografias.
“Nunca a ignorância ajudou a quem quer que
fosse!” (Karl Marx, 1846)
“Os que se propõem a contribuir para a plena
emancipação humana, para a realização da liberdade e da igualdade, reconhecem
em Marx um pensador indispensável para a construção da humanidade humana, para
a superação da vida danificada, para todos. Jean-Paul Sartre disse, sobre isso,
algo como “o marxismo é a filosofia insuperável do nosso tempo”; antes de
querer atribuir ao marxismo a perfeita impossibilidade de tudo explicar, a
frase afirma sua inexcedível centralidade como instrumento decisivo na
permanente busca tanto de compreender o capitalismo quanto de contribuir para a
sua superação.” (João Antonio de Paula)
“Em Marx, a teoria, produto do cérebro dos homens,
constitui a reprodução, no plano das ideias, do movimento real do
objeto de que se ocupa. O núcleo duro da obra que Marx nos legou é a
teoria que reproduz idealmente o movimento real do capital no
processo da gênese, da consolidação, do desenvolvimento e das condições de
crise da sociedade embasada no modo de produção capitalista: a sociedade
burguesa. E a verdade da teoria, assim posta, não depende apenas da sua
coerência interna: a sua prova decisiva se faz no confronto com a dinâmica
profunda dessa sociedade, faz-se na prática social. Enfim, não penso que
Marx seja o teórico do socialismo e/ou do comunismo: penso-o como teórico do
capitalismo.
Com toda a evidência, a teoria social revolucionária,
fundada pela e na obra de Marx, não se concluiu com ele, nem poderia
concluir-se: na medida em que deve reproduzir idealmente o movimento real do
modo de produção capitalista e da sociedade nele assentada, é uma teoria também
em movimento (ou, se se quiser, em desenvolvimento). No tocante à
validez contemporânea da obra de Marx, penso que, nesta segunda década do
século XXI, a teoria marxiana continua válida e absolutamente necessária para
compreender o capitalismo dos nossos dias, mas, ao mesmo tempo, entendo que ela
não é suficiente: para compreender o capitalismo contemporâneo, é
preciso investigá-lo a partir não das conclusões marxianas, e sim da sua
concepção teórico-metodológica.”
“De fato, no Marx dos Manuscritos
econômico-filosóficos, a categoria de alienação tal como teorizada
antes por Hegel e Feuerbach[60] é criticada, enriquecida e transformada. Nos Manuscritos,
Marx avança para além de ambos os filósofos na formulação da sua teoria
da alienação: nesses textos, está em processo a ultrapassagem dos influxos
hegelianos (para Hegel,
a objetivação do sujeito, a Ideia/Espírito, é universal e necessariamente
alienação) e da inspiração basicamente feuerbachiana (na qual a alienação tem
como sujeito o homem abstrato e é um processo que se opera na
consciência de si desse homem em geral), e Marx caminha para a
historicização materialista da alienação, determinando-lhe um novo sujeito
nuclear (o produtor direto, o trabalhador) e precisando a sua processualidade
sociomaterial e histórica: o ato e o processo da produção[61]. A alienação do
sujeito recebe um novo trato: deixa de ser uma objetivação universal e
necessária (como em Hegel, que identifica objetivação com alienação)
e não se reduz a um produto da consciência (como em Feuerbach). Se em
Hegel a supressão da alienação equivale à supressão da objetivação, nos Manuscritos
a objetivação só é alienação em condições históricas determinadas –
nas condições próprias à existência histórica da propriedade privada (com
as suas conexões com a divisão do trabalho, a produção mercantil e o trabalho
assalariado); se em Feuerbach ela se mostra privilegiadamente na consciência
religiosa, nos Manuscritos esta é, antes, uma dentre várias
resultantes de condições sócio-históricas muito determinadas. (...)
É preciso, portanto, esclarecer a exteriorização
do trabalho, a “relação essencial do trabalho”, a saber, “a relação do
trabalhador com a produção” – o que a economia política não faz,
ocultando, assim, “a alienação na essência do trabalho”. Tal operação analítica
deve realizar-se para descobrir os fundamentos das categorias da economia
política, em primeiro lugar a de propriedade privada. Ora, é justamente aqui que
Marx põe em cena, expressamente, a sua perspectiva filosófico-antropológica
(...). É à luz da concepção filosófico-antropológica desenvolvida no primeiro
semestre de 1844 que ele trata do substrato da propriedade privada, a
alienação do trabalhador. Tal concepção, embora ainda marcada por influxos
hegelianos e feuerbachianos, já evidencia componentes de clara ultrapassagem
dessas duas fontes seminais, como viemos de indicar.
A concepção filosófico-antropológica de
Marx[67] é explicitada nos parágrafos que compõem o segmento “Trabalho alienado
e propriedade privada”, mas é objeto de novas determinações no terceiro
manuscrito; por isso, na exposição dela, já aqui recorreremos também a
passagens deste último manuscrito. Clarificar essa concepção, num excurso
necessariamente sumário, por certo contribui para a compreensão da concepção
marxiana da alienação e dos próprios Manuscritos.
Tal concepção filosófico-antropológica[68],
que Marx desenvolve em 1844, assenta na ideia de que o ser do homem se
constitui enquanto atividade vital consciente, enquanto atividade
livre consciente. A forma primária dessa atividade é o trabalho, a
própria vida produtiva, traço distintivo do ser do homem em face do
universo da vida animal. Lê-se nesse primeiro manuscrito:
O animal é imediatamente um com a sua atividade vital. Não se diferencia
dela. É ela. O homem faz a sua própria atividade vital objeto da sua
vontade e da sua consciência. Não é uma determinidade com a qual ele se
confunda imediatamente. A atividade vital consciente diferencia imediatamente o
homem da atividade vital animal. […] Decerto, o animal também produz. Constrói
para si um ninho, habitações, como as abelhas, castores, formigas etc. Contudo,
produz apenas o que necessita imediatamente para si ou para a sua cria; produz
unilateralmente, enquanto o homem produz universalmente; produz apenas sob a
dominação da necessidade física imediata, enquanto o homem produz mesmo livre
da necessidade física e só produz verdadeiramente na liberdade da mesma. […] O
animal dá forma apenas segundo a medida e a necessidade da species a que
pertence, enquanto o homem sabe produzir segundo a medida de cada species e
sabe aplicar em toda a parte a medida inerente ao objeto; por isto, o homem dá
forma também segundo as leis da beleza.[69]
Mas o trabalho, atividade vital específica do
homem – que o distingue da vida animal –, não suprime a sua naturalidade.
Para Marx, “o homem (tal como o animal) vive da natureza”,
tanto na medida em que ela é 1) um meio de vida imediato, como na medida
em que ela é 2) o objeto/matéria e o instrumento da sua atividade vital. A
natureza é o corpo inorgânico do homem, quer dizer a natureza na medida
em que não é ela própria corpo humano. O homem vive da natureza
significa: a natureza é o seu corpo, com o qual ele tem de permanecer em
constante processo para não morrer. Que a vida física e espiritual do homem
esteja em conexão com a natureza não tem outro sentido senão que a natureza
está em conexão com ela própria, pois o homem é uma parte da natureza.[70]
Sinalizamos linhas antes que a perspectiva
filosófico-antropológica marxiana desenvolvida em 1844 ainda não se liberou de
algumas hipotecas ao pensamento de Hegel e de Feuerbach; mas, ao mesmo tempo,
dissemos que ela já patenteia vetores de superação de tais débitos. O lastro
feuerbachiano é visível no trato, por Marx, da relação homem-natureza: por
exemplo, com o expressivo apelo, no terceiro manuscrito, à sensibilidade tal
como pensada por Feuerbach[71]. Nesse mesmo terceiro manuscrito, entretanto,
Marx escreve que o homem é um ser da natureza ativo[72]; a qualificação
do homem como ser da natureza ativo (ou, se se quiser, produtivo)
colide abertamente com a antropologia de Feuerbach, na qual o caráter ativo (produtivo)
do homem carece de ponderação – como Marx haveria de apontar cerca de um ano
depois (na primavera de 1845), nas suas Teses sobre Feuerbach. É a
gravitação dessa qualificação que permitirá a Marx, ainda no próprio terceiro
manuscrito, formular o núcleo duro da sua compreensão do “ser da
natureza ativo”, que então aparece expressa e explicitamente: “Para o homem
socialista, toda a chamada história do mundo não é senão a geração do
homem pelo trabalho humano”. Eis aí o ponto arquimediano da concepção
filosófico-antropológica de Marx: a emergência do ser do homem pela via
da sua atividade vital, o processo da autoconstituição (autoprodução)
do homem mediante o trabalho[73]. O homem é, viu-se linhas antes, “uma
parte da natureza”; “o homem, porém, não é apenas ser da natureza, mas ser da
natureza humano”; o ser do homem, ao constituir-se pelo trabalho,
é algo específico, diverso do ser natural: o seu desenvolvimento supõe
sempre a insuprimível naturalidade do homem, mas implica a contínua redução dos
condicionalismos postos por ela (em formulações ulteriores, é o que Marx vai
caracterizar como o “afastamento” – ou “recuo” – das “barreiras naturais”)[74].
No primeiro manuscrito (e, como se verá,
também no segundo), a relação do homem com a natureza, que Marx continuará
desenvolvendo ulteriormente na consideração do metabolismo sociedade-natureza,
não é apreendida como apenas utilitária e/ou unilateral (nada casual é a
notação, que registramos há pouco, de que o homem dá forma também segundo as
leis da beleza)[75]. Bem diversamente: sendo a natureza “corpo
inorgânico do homem”, este se socorre dela (relaciona-se com ela) de modo
omnilateral, à diferença do animal, que o faz unilateralmente. No mesmo
passo, há pouco transcrito, em que caracteriza a “atividade vital consciente” –
distintiva do trabalho humano –, Marx pontua:
[O animal] produz unilateralmente, enquanto o homem produz
universalmente […]; [o animal] produz-se apenas a si próprio, enquanto o homem
reproduz a natureza toda; o seu [do animal] produto pertence imediatamente ao
seu corpo físico, enquanto o homem enfrenta livremente o seu produto.
A produção humana, que tem na natureza
o objeto/matéria e o instrumento da sua atividade vital, torna a natureza
o corpo inorgânico do homem, provando a sua universalidade e a genericidade
do seu ser (cf. Marx, 2015, Antología, p. 311). Para Marx,
o homem é um ser genérico não apenas na medida em que prática e
teoricamente torna objeto seu o gênero, tanto o seu próprio como o das
restantes coisas, mas também – e isto é apenas uma outra expressão para a mesma
coisa – na medida em que ele se comporta para consigo próprio como gênero vivo,
presente, na medida em que ele se comporta para consigo próprio como um ser universal,
por isso livre.
É sabido que procede de Feuerbach a ideia do
homem como ser genérico e consciente[76]. Marx coincide com
Feuerbach em determinar a genericidade e a consciência como especificidades
humanas, mas, à diferença dele – diferença essencial –, em razão do caráter
ativo (produtivo) que atribui ao homem, vê que este só na elaboração do mundo
objetivo […] se prova realmente como ser genérico. Esta produção é a sua
vida genérica operativa. Por ela, a natureza aparece como obra sua e
realidade sua. O objeto do trabalho é, portanto, a objetivação da vida
genérica do homem, na medida em que ele se duplica não só intelectualmente,
como na consciência, mas também operativamente, realmente, e
contempla-se por isso num mundo criado por ele.
Daí porque, para Marx, o homem, nas suas
genericidade e consciência, é um ser objetivo. No terceiro manuscrito,
no excurso sobre Hegel, ele o afirma expressamente: referindo-se ao “homem real,
corpóreo, de pé sobre a terra bem redonda e firme, expirando e inspirando todas
as forças da natureza”, registra que
o ser objetivo opera objetivamente e não operaria objetivamente se o
objeto não residisse na sua determinação essencial. […] O seu produto objetivo
apenas confirma a sua atividade objetiva, a sua atividade como a
atividade de um ser natural objetivo. […] Que o homem é um ser objetivo […]
significa que ele tem objetos sensíveis, reais por objeto da sua
essência, da sua exteriorização de vida ou que só pode exteriorizar a
sua vida em objetos sensíveis reais.
E de forma conclusiva: “Um ser que não tenha
nenhum objeto fora de si não é nenhum ser objetivo. […] Um ser não-objetivo é
um não-ser”.
Ora, a exteriorização (objetivação) básica do
homem é o trabalho, que torna real e objetiva a sua atividade
vital livre e consciente, pela qual se faz ser genérico – e a “vida
produtiva é a vida genérica. É a vida que gera vida. No modo de atividade vital
reside todo o caráter de uma species, o seu caráter genérico, e a
atividade consciente e livre é o caráter genérico do homem”. Sublinhe-se com a
máxima ênfase: o trabalho somente enquanto “a atividade consciente e
livre é o caráter genérico do homem”; não o é, por exemplo, na forma
(histórica) do que Marx chamou, nos Cadernos, de “trabalho lucrativo”,
claramente uma designação do trabalho alienado, de que se ocupa o
primeiro dos Manuscritos e a que logo voltaremos[77]. Enfim, posto como
essa atividade consciente e livre, “o gerar prático de um mundo objetivo,
a elaboração da natureza inorgânica, é a prova do homem como um ser
genérico consciente, i.e., um ser que se comporta para com o gênero como sua
própria essência ou para consigo como ser genérico”.
Vê-se claramente que está desenhada a
perspectiva filosófico-antropológica que Marx vem desenvolvendo nesse primeiro
semestre de 1844, perspectiva em construção e, portanto, ainda em aberto: ela
só adquirirá mais densidade teórico-filosófica no curso dos dois próximos anos,
quando então tomará seus traços definitivos. Contudo, seu núcleo central – que
já sinalizamos: o ser do homem se autoproduz e se autoconstitui mediante o
trabalho – confere ao homem a especificidade que se expressa na sua sociabilidade,
resultante processual da prática operativa que é o trabalho; especial, mas não
exclusivamente, no terceiro manuscrito, o humano, colocado pelo
trabalho, identifica-se expressamente com o social. Quando for superada
a propriedade privada, a sociabilidade humana revelar-se-á como tal: o ser
do homem (o ser humano do homem) mostrar-se-á ser social,
mesmo quando exercer uma atividade na aparência solitária e/ou puramente
individual, por exemplo, a elaboração teórico-científica. Até nessa atividade,
que eu raramente posso executar em comunidade imediata com outros, estou
socialmente ativo, porque [ativo] como homem. Não só o material
da minha atividade – como a própria língua na qual o pensador é ativo – me é
dado como produto social, a minha existência própria é atividade social;
por isso, o que eu faço de mim, faço de mim para a sociedade e com a
consciência de mim como um ser social.
E é na continuidade dessa notação que Marx
salienta ser preciso
sobretudo […] evitar fixar de novo a “sociedade” como abstração face ao
indivíduo. O indivíduo é o ser social. A sua exteriorização de vida –
mesmo que ela não apareça na forma imediata de uma exteriorização de vida comunitária,
levada a cabo simultaneamente com outros – é, por isso, uma exteriorização e uma
confirmação da vida social. […] O homem – por muito que seja portanto um
indivíduo particular e, precisamente, a sua particularidade faz dele um
indivíduo e uma comunidade individual real – é tanto a totalidade,
a totalidade ideal, a existência subjetiva para si da sociedade sentida e
pensada como também existe na realidade, quer como intuição e fruição real da
existência social quer como uma totalidade de exteriorização humana de vida.[78]
Vê-se nessas reflexões – ulteriormente aprofundadas
e redimensionadas – que, desde as primeiras elaborações da sua obra, Marx não
contrapõe nem hipostasia indivíduo e sociedade, o que lhe permite sobrepassar
os pseudoproblemas que marcariam depois, no curso de sua história, algumas
expressivas obras da tradição sociológica acadêmica[79]. Nesse passo da
reconstrução da sua biografia intelectual, interessa assinalar que salta à
vista a gravitação da “exteriorização humana de vida” na “existência social”: o
“exteriorizar-se” é o “confirmar-se” da vida social. Ora, a reiterada
insistência de Marx no processo do “gerar prático de um mundo objetivo”
– vale dizer, no trabalho –, do qual natureza e homem são partes
constituintes e constitutivas[80], põe o ser do homem como prático e
social, ou, se se quiser, o homem como um ser da práxis[81].
Enquanto categoria, a práxis, tomada como prática
social produtiva, objetiva, tendo por sujeito os homens e
objeto a natureza – embora se direcionando também a outros homens, numa
peculiar relação sujeitos-sujeitos –, está matrizada pela concepção marxiana de
trabalho que tem seu primeiro desenho nos Manuscritos e, mais
desenvolvida, atravessa o conjunto da reflexão marxiana a partir de 1844.
Que a matriz da práxis em Marx resida no trabalho parece-me algo
pouco discutível: os traços pertinentes deste são essenciais e constitutivos
daquela; vê-se, pois, a razão de Lukács afirmar com propriedade e segurança que
o trabalho é o modelo da práxis, ainda que essa categoria seja mais
abrangente e o trabalho, como tal, não esgote, em absoluto, a práxis – ou, o que
dá no mesmo, a práxis não se reduza ao trabalho (Lukács, Para uma ontologia
do ser social, 2013, v. II). Sendo assim, a práxis é constitutiva da essência
humana, núcleo da concepção filosófico-antropológica que Marx está
articulando em 1844, conexa (mas não idêntica) à natureza humana, concepção
que permeia os Manuscritos (e não só eles) e que haverá de tornar-se
objeto de acesa polêmica na tradição marxista[82].
A primorosa análise de Márkus (2015) sobre a
concepção marxiana de essência humana foi bem resumida por Agnes Heller,
ao tempo em que era uma pensadora marxista. Após afirmar que “a ‘essência
humana’ é também ela histórica” e que “a história é, entre outras coisas,
história da explicitação da essência humana, mas sem identificar-se com esse
processo”, a autora húngara diz:
As componentes da essência humana são, para Marx, o trabalho (a
objetivação), a socialidade, a universalidade, a consciência e a liberdade. A
essência humana, portanto, não é o que ‘esteve sempre presente na humanidade’ (para
não falar mesmo de cada indivíduo), mas a realização gradual e contínua das possibilidades
imanentes à humanidade, ao gênero humano. (Heller, O cotidiano e a
história, 1972, p. 4)[83]
Está claro: a essência humana, assim
tomada e assim posta em 1844 na concepção filosófico-antropológica de Marx,
nada tem em comum com concepções essencialistas, supra-históricas ou
ahistóricas, que a pensam como algo dado, fixo e eterno. Trata-se de uma
estrutura antropológica dinâmica, que dispõe de possibilidades produzidas pelos
homens no processo de constituição do ser social deflagrado pelo trabalho,
possibilidades mutáveis, portanto; possibilidades que se constituem, se
explicitam e se transformam no curso da história. É fato que, em 1844, a
concepção filosófico-antropológica marxiana carece de fundamentação
histórico-concreta ampla e profunda, antes resultando, sobretudo, de uma
reflexão ainda de base dominantemente filosófica; já em A
ideologia alemã (1845-1846) explicita-se a recorrência
econômico-política e histórica[84] que só ganhará inteira densidade no curso da
década seguinte, quando então Marx esclarecerá como, expressando o
desenvolvimento das capacidades do gênero humano, aquelas possibilidades
objetivam-se mediante um processo, também ele, historicamente determinado e
imanentemente contraditório[85].
Feito esse breve excurso sobre a concepção
filosófico-antropológica marxiana que se constitui em 1844, podemos retornar à
questão do desapossamento do trabalho, atentando para as suas
implicações e resultantes, expressas no fenômeno e no processo da alienação
do trabalhador (e não só dele). Marx constatou o fenômeno, vimo-lo páginas
atrás, como um “fato nacional-econômico, […] um fato presente”, partindo
“sempre dos pressupostos da economia nacional” e aceitando “a sua linguagem e
as suas leis”; mas ele estabeleceu a sua crítica elevando-se “acima do nível da
economia nacional”, isto é, tratando-o como fato e processo à luz da (nova)
perspectiva propiciada pela sua concepção filosófico-antropológica. Sob
essa luz Marx, no primeiro manuscrito, relaciona diretamente o salariato,
trabalho desapossado (isto é, trabalho alienado) e a propriedade privada: “Salário
é uma consequência imediata do trabalho alienado e o trabalho alienado é a
causa imediata da propriedade privada”[86]; por isso, a propriedade privada é
vista “enquanto a expressão material, resumida, do trabalho exteriorizado”
Linhas antes, todavia, Marx já desenvolvera com mais elementos tais relações:
Através do trabalho alienado, exteriorizado, o trabalhador
gera a relação de um homem alienado ao trabalho e postado fora deste trabalho.
A relação do trabalhador com o trabalho gera a relação daquele para com o
capitalista […].
A propriedade privada é, portanto, o produto, o resultado, a
consequência necessária do trabalho exteriorizado […]. A propriedade
privada resulta, portanto, por análise, a partir do conceito de trabalho
exteriorizado, i.e., do homem exteriorizado, do trabalho alienado,
da vida alienada, do homem alienado.
É certo que obtivemos o conceito de trabalho exteriorizado (da vida
exteriorizada) a partir da economia nacional como resultado do movimento
da propriedade privada. Mas a análise deste conceito mostra que, se a
propriedade privada aparece como fundamento, como causa do trabalho
exteriorizado, ela é antes uma consequência do mesmo, assim como também originariamente
os deuses não são a causa, mas o efeito do extravio humano do entendimento.
Mais tarde esta relação converte-se em ação recíproca.
Unicamente no ponto culminante do desenvolvimento da propriedade privada
se evidencia de novo o seu segredo, a saber: por um lado, que ela é o produto
do trabalho exteriorizado e, em segundo lugar, que ela é o meio através
do qual o trabalho se exterioriza, a realização dessa exteriorização.(...)
O caráter
crítico de todas as reflexões formuladas por Marx a partir daquele “fato
nacional-econômico, [daquele] fato presente” está hipotecado à sua
concepção filosófico-antropológica: é a perspectiva posta por esta que
possibilita a ele colocar-se efetivamente “acima” das “leis” e da “linguagem”
da economia política. Para sermos diretos: a categoria propriedade privada
só pôde ser fundada a partir da categoria trabalho alienado, mas
esta só pôde ser elaborada quando Marx, com base em sua concepção
filosófico-antropológica – com a sua compreensão de essência humana –,
apreendeu como a alienação trava o desenvolvimento dessa essência, como
a compromete, fere, lesa, violenta e nulifica. Vê-se que a crítica marxiana
da alienação remete, pois, à distinção entre existência humana e essência
humana que se inscreve na condição operária[88]”.
[60] É inconteste que a problemática da
alienação foi descortinada para Marx a partir de Hegel (fundamentalmente o
Hegel da Fenomenologia
do Espírito) e da crítica operada por Feuerbach (basicamente o
Feuerbach de A essência do cristianismo); sobre o tratamento distinto
dado a ela, ver Fischbach, Transformations du concept d’aliénation, 2008.
Mas não se pode reduzir o débito de Marx somente a essas duas fontes. Ademais
delas, mesmo com incidências de menor impacto na sua reflexão, há que mencionar
ainda pelo menos Rousseau (o Rousseau de O
contrato social, como salientou Mészáros, A teoria da alienação em
Marx, 2006) e Hess (como assinalou McLellan, Marx y los jovenes
hegelianos, 1971); e ainda, segundo Henri Chambre (em Engels, Esquisse
d’une critique de l’Économie Politique, 1974), há também que levar em conta
o contributo de Engels.
[61] Marx movimenta-se nessa direção, mas,
nos Manuscritos, ainda está distante da abordagem histórico-social que
se registra em A
ideologia alemã (que, para Mandel, A formação do pensamento
econômico de Karl Marx, 1968, p. 38, constitui a “obra filosófica principal”
de Marx e Engels, que “funda a teoria do materialismo histórico sobre uma
superação sistemática da filosofia pós-hegeliana alemã”), tratamento
teórico-metodológico que só se completará nos Grundrisse.
[67]
Fazemos reiteradas referências à concepção filosófico-antropológica para
frisar que não há em Marx uma antropologia sem expressa fundação filosófica –
mais exatamente, uma antropologia descolada de uma filosofia apoiada numa
ontologia materialista. Sobre esse ponto fundamental, ver Mészáros, 2006, p.
45-8.
[68] “Se
se compreende por ‘antropologia filosófica’ uma caracterização extra ou
supra-histórica (ou mesmo simplesmente a-histórica) dos traços humanos, então
Marx não possui uma antropologia e ele negaria a utilidade de tal
antropologia para a compreensão da essência dos homens. Se, por outro
lado, nós entendemos por antropologia uma resposta dada à pergunta sobre a
‘essência humana’, uma tentativa de resolução da questão ‘o que é
essencialmente o homem’, então há uma ‘antropologia’ marxiana, só que não é uma
abstração de história, mas sim uma abstração da história em si.
Isto é, a concepção de Marx é diametralmente oposta a todas as tendências de
pensamento que afastam e contrapõem a antropologia e a sociologia, que
estabeleceram o estudo da ‘essência’ do homem em oposição ao estudo sócio-histórico
do homem. Para Marx, a ‘essência humana’ do homem reside precisamente na
‘essência’ ou no ‘ser’ do processo global e evolutivo da humanidade e na
unidade interna deste processo” (Márkus, Marxismo e antropologia, 2015,
p. 98-9). Ver também, noutro registro e com expressivos
desenvolvimentos, a sólida argumentação de Sève, Penser avec Marx
aujourd’hui, 2008, caps. 2, 3 e 4.
[69]
A partir de 1844, a consideração decisiva da atividade produtiva, do trabalho,
como distintivo do ser do homem, estará presente no pensamento e no conjunto da
obra marxiana. Em A
ideologia alemã (2007, p. 87), quando os influxos hegelianos e
feuerbachianos já estão superados no quadro da original concepção
dialético-materialista marxiana, lê-se: “Pode-se distinguir os homens dos
animais pela consciência, pela religião ou pelo que se queira.
Mas
eles mesmos começam a se distinguir dos animais tão logo começam a produzir
seus meios de vida”.
Os
grandes textos dos anos 1850 e 1860 – os Grundrisse e O capital –
documentam, sem rupturas, a continuidade e o avanço da concepção marxiana de
trabalho que emerge nos Manuscritos. A continuidade é flagrante e se
registra no Livro I de O capital (ver, por exemplo, Marx, 1968, Livro I,
v. 1, p. 202); o avanço pode ser verificado no trato que Marx concede ao processo
de trabalho, aos instrumentos de trabalho e, muito especialmente, à exploração
da dimensão teleológica constitutiva do trabalho – avanço verificável não só em
O capital, mas já nos Grundrisse e noutros manuscritos de
publicação igualmente póstuma: textos da abertura dos anos 1850 – Marx, 1984 –
e dos anos 1860 – Marx, Para
a crítica da economia política; Salário,
preço e lucro; O
rendimento e suas fontes (1982), e Para a crítica da economia política (2010b).
Aproximações
a essa temática encontram-se em Katz, La concepción marxista del cambio
tecnológico (1996); Discusiones marxistas sobre tecnología (1997) e
em Romero, Marx e a técnica (2005).
Todos
esses materiais referentes à concepção marxiana de trabalho consolidam a
infirmação da tese que argumenta no sentido da ruptura entre o “jovem” Marx e o
Marx “da maturidade” – ver a notação crítica de Vázquez (Filosofia
da práxis, 2007, p. 228) sobre a contraposição que Althusser opera,
nessa questão, entre os Manuscritos e O capital. No tocante à
problemática da alienação, as linhas de continuidade entre o “jovem”
Marx e o Marx dos Grundrisse são bem tematizadas por Díaz, La
concepción del hombre en Marx, 1975, p. 271-302.
[70]
É claríssimo o rebatimento dessas determinações do jovem Marx na sua
obra “madura” – na “Introdução de 1857” aos Grundrisse, depois de assinalar
que na produção em geral a natureza é sempre o objeto da ação do sujeito (a
humanidade), Marx afirma que “toda produção é apropriação da natureza pelo
indivíduo, no interior e mediada por uma determinada forma de sociedade” (Marx,
2011, p. 41-3); em O capital, o “permanecer em constante processo para
não morrer” rebate da seguinte forma: “O trabalho, como criador de
valores-de-uso, como trabalho útil, é indispensável à existência do homem –
quaisquer que sejam as formas de sociedade –, é necessidade natural e eterna de
efetivar o intercâmbio material entre o homem e a natureza e, portanto, de
manter a vida humana” (Marx, 1968, Livro I, v. 1, p. 50). Sobre a relação
trabalho/natureza na criação de riquezas sociais, ver Burkett, Marx and
Nature (1999).
[71] É exatamente nesse passo que Marx sustentará a ideia de
que “a própria história é uma parte real da história da natureza,
do devir da natureza até ao homem. A ciência da natureza subsumirá em si mais
tarde a ciência do homem, tal como a ciência do homem subsumirá a da natureza:
haverá uma ciência”. Não parece que tal ideia possa ser identificada sumariamente
com a passagem de A ideologia alemã (quando a crítica a Feuerbach já
comparece explícita) em que Marx e Engels afirmam – em frase, aliás, suprimida
no original pelos autores – conhecer “uma única ciência, a ciência da história”
(Marx-Engels, 2007, p. 86). Quanto ao “caráter antropológico das ciências
naturais”, ver Vázquez,
2007, p. 128 e seg. e, especialmente, Mészáros, 2006, p. 96 e seg.
[72] Leia-se: “O homem é imediatamente ser da natureza.
Como ser da natureza, e como ser da natureza vivo, ele é, em parte, um ser
da natureza ativo equipado com forças naturais, com forças vitais:
estas forças existem nele como disposições e capacidades, como impulsos;
em parte, como ser natural, corpóreo, sensível, objetivo, ele é um ser que
sofre, condicionado e limitado, tal como o são o animal e a planta”. E
poucos parágrafos adiante: “O homem, porém, é não apenas ser da natureza, mas
ser da natureza humano”.
[73] Donde o elogio, no terceiro manuscrito, à hegeliana Fenomenologia
do Espírito: “A grandeza da Phänomenologie de Hegel e do seu
resultado final – da dialética, da negatividade como princípio motor e gerador
– é […] que Hegel apreende a autogeração do homem como um processo […],
apreende a essência do trabalho e concebe o homem objetivo, verdadeiro,
porque homem real, como resultado do seu próprio trabalho”. No imediato
seguimento dessa frase, Marx refere-se ao “ser genérico [do homem] como um ser
genérico real, i.e., como essência humana”.
Mas,
na sequência desse elogio, Marx faz a sua reserva básica à identificação
hegeliana entre objetivação e alienação: em Hegel, “a objetividade como
tal passa por uma relação alienada do homem, uma relação que não
corresponde à essência humana […]. Portanto, a reapropriação da
essência objetiva do homem gerada enquanto estranha, sob a determinação da alienação,
tem […] o significado não apenas de suprimir a alienação, mas também a objetividade,
i.e., portanto o homem passa por um ser não-objetivo”. Voltaremos a esse
ponto, mas, desde já, considerem-se as palavras de Pra: “Pode-se dizer […] que
o ponto de divergência entre o processo dialético hegeliano e o marxismo
consiste em que o primeiro, fundado na autoconsciência, identifica alienação
com objetivação e, portanto, faz coincidir a superação da alienação com a
superação da objetivação, ao passo que o segundo, fundado no homem real
sensível vinculado aos objetos, distingue a objetivação da alienação, que é um
modo especial de manifestação daquela, e faz coincidir a superação da alienação
com a superação do modo concreto e desumanizado em que se expressa a relação
entre o homem e os objetos”; em páginas anteriores, o analista italiano já
afirmara que “a alienação se apresenta como um caso particular de objetivação,
já que não pode existir trabalho sem objetivação, mas pode existir objetivação
sem alienação” (Pra, La dialettica in Marx, 1977, p. 156 e 118).
[74] Veja-se a notação de Lukács: “O ser humano pertence ao
mesmo tempo […] à natureza e à sociedade. Esse ser simultâneo foi mais
claramente reconhecido por Marx como processo, na medida em que diz, repetidas
vezes, que o processo do devir humano traz consigo um recuo das barreiras
naturais. É importante enfatizar: fala-se de um recuo, não de um
desaparecimento das barreiras naturais, jamais sua supressão total. De outro
lado, porém, jamais se trata de uma constituição dualista do ser humano. O
homem nunca é, de um lado, essência humana, social, e, de outro, pertencente à
natureza; sua humanização, sua sociabilização, não significa uma clivagem de
seu ser em espírito (alma) e corpo. […] Vê-se que também aquelas funções do seu
ser que permanecem sempre naturalmente fundadas, no curso do desenvolvimento da
humanidade, se sociabilizam cada vez mais. Basta pensar na nutrição e na
sexualidade, nas quais esse processo aparece de forma evidente” (Lukács, Prolegômenos
para uma ontologia do ser social, 2010a, p. 41-2). Em resumidas contas, o
processo do devir humano “faz recuar, com força cada vez maior na
atividade dos seres humanos, aqueles comportamentos surgidos do ser biológico,
impondo-lhes um comportamento sempre mais decisivamente determinado pela sociedade”
(ibidem, p. 316).
[75] Ao contrário de leituras unilaterais, superficiais e/ou
equivocadas, o pensamento de Marx contém sólidos elementos de crítica a
concepções meramente utilitárias da relação sociedade-natureza (e, também, a
produtivismos cegos, evidentes em certo marxismo vulgar e em práticas
conduzidas na experiência do “socialismo real”). Aliás, ao mencionar uma
sociedade liberada da propriedade privada, Marx observa que, então, “a
necessidade ou a fruição perder[á] […] a sua natureza egoísta e a
natureza perde[rá] a sua mera utilidade na medida em que a utilização se
tornou uma utilização humana”.
Na
verdade, e como o demonstrou, entre outros, Foster (A ecologia de Marx, 2005),
Marx – ainda que, dada a sua contextualidade histórica, não tenha sido um “ecologista”
no sentido que a palavra porta nos dias correntes – possuía “uma forte
consciência ecológica”. Isso se verifica não só nos Manuscritos
(veja-se, por exemplo, a menção ao “envenenamento universal”, que hoje
chamaríamos poluição), mas em vários outros passos da sua obra. Já é larga a
bibliografia que, remetendo-se a Marx, tematiza e/ou desenvolve essa dimensão
dos seus escritos; a título indicativo, ver Grundmann (Marxism and Ecology,
1991); Vv. Aa. (L’Écologie,
ce materialism historique), 1992; Kovel, 2002; Vv. Aa (Capital contre
nature, 2003); Empson (Marxism, Ecology and Human History, 2013).
[76] Recorde-se que Feuerbach escrevera que “consciência no
sentido rigoroso existe somente quando, para um ser, é objeto o seu gênero […].
De fato é o animal objeto para si mesmo como indivíduo […], mas não como gênero
– por isso falta-lhe a consciência […].
Somente
um ser para o qual o seu próprio gênero […] torna-se objeto pode ter por objeto
outras coisas ou seres de acordo com a natureza essencial deles” (Feuerbach, A
essência do cristianismo, 1988, p. 43).
[77] Nos Cadernos, Marx escreveu que, supondo que “produzíssemos
como seres humanos”, “meu trabalho seria uma livre manifestação de vida, um
gozo de vida”; em troca, “sob a propriedade privada, o trabalho é alienação de
vida, porque trabalho para viver, para conseguir um meio de viver. Meu trabalho
não é a minha vida”; assim, ele distingue trabalho como manifestação de vida
e trabalho como alienação de vida (ver MEW, Ergänzungsband, 1977,
p. 463).
Parece-me
não haver a menor dúvida de que é precisamente a propósito do “trabalho
lucrativo”, do trabalho típico do regime do salariato – em suma, a propósito do
trabalho alienado –, que Marx, em A ideologia alemã
(Marx-Engels, 2007, p. 42), afirma que “a revolução comunista […] suprime o trabalho”.
Comentando as passagens em que Marx se refere à “abolição do trabalho”, Marcuse
chama a atenção para o fato de todas elas conterem “a palavra Aufhebung,
do vocabulário hegeliano, de modo que a abolição do trabalho significa que um conteúdo
é restaurado na sua forma verdadeira. […] Ele usa o termo ‘trabalho’ para
significar o que o capitalismo na verdade entende que o trabalho, em última
análise, signifique, ou seja, aquela atividade que cria a mais-valia na
produção de mercadorias, ou que ‘produz capital’” (Marcuse, Razão e revolução, 1988, p. 266). Por outra parte,
no seu ensaio sobre a alienação em Marx, Mészáros observa que, nos Manuscritos,
“o trabalho é considerado tanto em sua acepção geral – como ‘atividade
produtiva’: a determinação ontológica fundamental da ‘humanidade’ (‘menchliches
Dasein’, isto é, o modo realmente humano de existência) – como em sua
acepção particular, na forma da ‘divisão do trabalho’ capitalista. É nesta
última forma – a atividade estruturada em moldes capitalistas – que o
‘trabalho’ é a base de toda a alienação” (Mészáros, 2006, p. 78).
[78] Marx, porém, não vê no indivíduo isolado o sujeito
do ser social: na sequência imediata, escreve que “a morte aparece como
uma dura vitória do gênero sobre o indivíduo determinado
e parece contradizer a sua [entre o indivíduo e o gênero] unidade; mas o
indivíduo determinado é apenas um ser genérico determinado, como tal
mortal”. Aliás, Márkus afirmou corretamente que “o portador, o sujeito do ‘ser
humano’ não é, para Marx, o indivíduo isolado, mas a própria sociedade humana,
considerada na continuidade do seu movimento histórico” (Márkus, 2015, p. 100).
É fato que Marx nunca reduziu nem minimizou a consideração dos indivíduos, desde
que devidamente inscritos no marco societário; pouco tempo depois de
redigidos os Manuscritos, ele anotou: “Os indivíduos partiram sempre de
si mesmos, mas, naturalmente, de si mesmos no interior de condições e relações
históricas dadas, e não do indivíduo ‘puro’, no sentido dos ideólogos”
(Marx-Engels, 2007, p. 64).
[79]
Se, em 28 de dezembro de 1846, em carta a Annenkov, Marx afirma que “a
sociedade, qualquer que seja a sua forma”, é “o produto da ação recíproca dos
homens” (MEW, 1959, v. 4, p. 548), já no calor da hora revolucionária (início
de abril de 1849) ele é muito mais preciso, valendo-se de conquistas teóricas
alcançadas em A ideologia alemã (como a categoria de forças
produtivas): “As relações sociais nas quais os indivíduos produzem, as
relações sociais de produção mudam, transformam-se com a transformação e
desenvolvimento dos meios materiais de produção, das forças produtivas. As
relações de produção em sua totalidade constituem o que chamamos de
relações sociais, de sociedade, e na verdade uma sociedade em um determinado
nível de desenvolvimento histórico, uma sociedade com caráter
peculiar, distintivo. A sociedade antiga, a sociedade feudal, a sociedade
burguesa são tais totalidades de relações de produção, cada uma das quais
designa igualmente um nível específico de desenvolvimento na história da
humanidade” (Marx, Nova Gazeta Renana, 2010a, p. 542-3). Cerca de um
decênio depois, Marx escreve que “a sociedade não consiste de indivíduos, mas
expressa a soma de vínculos, relações em que se encontram esses indivíduos uns
com os outros. […] Ser escravo e ser cidadão são determinações, relações
sociais dos seres humanos A e B. O ser humano A enquanto
tal não é escravo. É escravo na e pela sociedade” (Marx, Grundrisse, 2011,
p. 205). E, na sua plena maturidade, no cap. XLVIII do Livro III de O
capital, registra, a propósito do “processo capitalista de produção” como “forma
historicamente determinada do processo social de produção em geral”, que este “é
tanto um processo de produção das condições materiais de existência da vida
humana como um processo que, operando-se em específicas relações
histórico-econômicas de produção, produz e reproduz estas mesmas relações de
produção e, juntamente com isto, os portadores deste processo, suas condições
materiais de existência e suas relações recíprocas, vale dizer, sua formação
econômico-social determinada, pois a totalidade destas relações com a
natureza e entre si em que se encontram e em que produzem os portadores
desta produção, esta totalidade é justamente a sociedade, considerada
segundo a sua estrutura econômica” (Marx, 1984, v. 8, p. 1.042. Na edição
brasileira de O capital que venho citando, ver Marx, 1974, Livro III, v.
6, p. 940).
No
quadro da sociologia acadêmica (e não só dela), a relação indivíduo-sociedade
(ou “grupo”, “comunidade” etc.) se pôs como um problema consistente na
prioridade, precedência ou ponderação de um dos termos sobre o outro – foi
assim desde Tarde (La logique sociale, 1999; e As leis sociais, 2012)
e Durkheim (A produção teórica de Marx, 1972), com suas distintas “soluções”,
culminando com o “esquema relacional” de Parsons (The Social System, 1959).
Também pouco exitoso foi o esforço, intencionalmente crítico, de Gerth e Mills
(Caráter e estrutura social, 1973).
[80] Além do que já se viu, note-se: “na elaboração do mundo objetivo”
pelo homem, “a natureza aparece como obra sua e realidade sua”; mais
adiante, no terceiro manuscrito, vê-se a que ponto, tornando-se e
apreendendo-se como “ser genérico, como homem”, “o comportamento natural
do homem se tornou humano, ou até que ponto a essência humana se
tornou essência natural, até que ponto a sua natureza humana se
tornou para ele natureza”.
[81]
Filósofos iugoslavos – Gajo Petrović, Mihailo Marković, Predrag Vranicki –
foram os principais formuladores, nos anos 1960, da tese segundo a qual a obra
marxiana constitui uma filosofia da práxis, concepção que rebateu na América
Latina (Vázquez,
2007); na mesma época, significativos marxistas europeus contribuíram na
renovação do debate em torno da práxis (por exemplo, Karel
Kosík e Henri Lefebvre); opondo-se a tal interpretação da obra marxiana, em
posições muito diversas, encontravam-se Althusser e Sève. Quanto à peculiar e
problemática posição de Gramsci, ver o verbete pertinente, de Roberto Dainotto,
em Liguori e Voza, orgs., Dicionário gramsciano, 2017.
[82] Conforme a correta análise de Márkus, em Marx natureza
humana não é sinônimo de essência humana. Enquanto esta diz respeito
ao “ser do homem”, aquela designa “a totalidade das necessidades, as
capacidades, as propriedades em geral, entendidas no sentido de suas
possibilidades humanas, que têm os indivíduos típicos das várias épocas
históricas”; ela é “historicamente mutável, mesmo que contenha certos elementos
constantes” (Márkus, 2015, p. 90-1).
A
mutabilidade histórica da natureza humana é expressamente afirmada por
Marx em 1847: “Toda a história não é mais que uma transformação contínua da
natureza humana” (Marx, Miséria
da filosofia, 2017b, p. 128); tem razão, pois, Mészáros quando observa que
Marx “não aceita algo como uma natureza humana fixa” e que, por isso mesmo,
realiza a sua crítica da economia política “com uma abordagem […] baseada numa
concepção de natureza humana radicalmente oposta” à dos economistas políticos
(Mészáros, 2006, p. 137). Já antes, tratando da “ambiguidade terminológica”
verificável nos Manuscritos, Mészáros se referira à essência humana:
Marx teria rejeitado “categoricamente a ideia de uma ‘essência humana’. No
entanto, ele manteve a expressão transformando o seu significado original
até torná-la irreconhecível” (ibidem, p. 19).
Tais
categorias comparecem tanto nos Cadernos quanto nos Manuscritos,
e Marx nunca as abandonou inteiramente: registra-se, por exemplo, a presença de
“natureza humana” em O capital (Marx, 1968, Livro I, v. 2, p. 708; 1974,
Livro III, v. 6, p. 943) e nas Teorias da mais-valia (1983, v. II, p.
549); quanto à “essência humana”, a concepção que se formula nos Manuscritos
conservar-se-á, concretizada e enriquecida, ao longo da obra marxiana – como
afirmou Heller (1972, p. 4), trata-se de concepção “que se mantém no período da
maturidade [de Marx]”. Muita tinta correu no debate dessas categorias;
assinalemos uns poucos materiais: Venable (Human Nature, 1966);
Gouliane, (Le Marxisme devant l’homme, 1968); Sève (Marxisme et
théorie de la personnalité, 1974 e 2008, v. II); Heller (Sociologia
della vita quotidiana, 1975); Plamenatz (Karl Marx’s Philosophy of Man,
1975); Roguinski et al. (La concepción marxista del hombre, 1978); Sayers (Marxism and
Human Nature, 1998); Quiniou (L’Homme selon Marx, 2011); Tabak (Dialectics
of Human Nature in Marx’s Philosophy, 2012).
[83]
Note-se que, por seu turno, Vázquez arrola como “traços ou determinações do
homem: a) a consciência (o homem é um ser consciente); b) o
trabalho (como atividade vital); c) a socialidade (o homem é
sempre um ser social); d) a universalidade (o homem é um ser universal
na medida em que faz de toda a natureza seu corpo); e) a liberdade (na
medida em que pode enfrentar-se livremente com sua necessidade e seus
produtos); f) a totalidade (o homem é um ser total na
medida em que realiza a ideia de totalidade e na medida em que, como indivíduo,
desenvolve todas as suas potencialidades)”. E acrescenta que, a rigor, “estas
determinações não se apresentam isoladas, mas sim em estreita unidade” (Vázquez,
2003, p. 243).
[84]
Como se pode verificar, por exemplo, nos rascunhos e anotações (novembro de
1845 a abril de 1846) – ver Marx-Engels, 2007, p. 29-78. Observe-se como
comparecem aí a divisão do trabalho e seu papel decisivo na fixação da “atividade
social”, fazendo com que “o poder social” apareça aos indivíduos “como uma
potência estranha, situada fora deles” (ibidem, p. 38); como “o modo de
produção desenvolvido”, rompendo o “isolamento primitivo das nacionalidades
singulares”, constitui o mercado mundial, instaura uma história que é
plenamente história mundial (idem). Noutro passo (de redação
provavelmente posterior), Marx – com Engels – assinala as relações entre a
divisão do trabalho e as formas de propriedade, procurando determinações
históricas destas últimas (Marx-Engels, 2007, p. 89-92).
[85] É nos Grundrisse (1857-1858) que Marx apreendeu os
fundamentos econômico-políticos e históricos da dialética da alienação: “No
valor de troca, a conexão social entre as pessoas é transformada em um
comportamento social das coisas; o poder pessoal, em poder coisificado. Quanto
menos força social possui o meio de troca, quanto mais está ainda ligado à
natureza do produto imediato do trabalho e às necessidades imediatas dos
trocadores, maior deve ser a força da comunidade que liga os indivíduos uns aos
outros, relação patriarcal, comunidade antiga, feudalismo e sistema
corporativo. […] Cada indivíduo possui o poder social sob a forma de uma coisa.
Retire da coisa esse poder social e terá de dar tal poder a pessoas sobre
pessoas. Relações de dependência pessoal […] são as primeiras formas
sociais nas quais a produtividade humana se desenvolve de maneira
limitada e em pontos isolados. Independência pessoal fundada sobre uma
dependência coisal é a segunda grande forma na qual se constitui pela
primeira vez um sistema de metabolismo social universal, de relações
universais, de necessidades múltiplas e de capacidades universais. A livre
individualidade fundada sobre o desenvolvimento universal dos indivíduos
e a subordinação de sua propriedade coletiva, social, como seu poder social, é
o terceiro estágio. O segundo estágio cria as condições do terceiro”
(Marx, 2011, p. 105-6). Para Marx, mais adiante e entre parênteses, a “conexão
coisificada” entre os indivíduos (a “segunda forma”) “é certamente preferível à
sua desconexão, ou a uma conexão local baseada unicamente na estreiteza da
consanguinidade natural ou nas [relações] de dominação e servidão. É igualmente
certo que os indivíduos não podem subordinar suas próprias conexões sociais
antes de tê-las criado. Porém, é absurdo conceber tal conexão puramente coisificada
como a conexão natural e espontânea, inseparável da natureza da individualidade
[…] e a ela imanente. A conexão é um produto dos indivíduos. É um produto
histórico. Faz parte de uma determinada fase de seu desenvolvimento. A condição
estranhada e a autonomia com que ainda existe frente aos indivíduos demonstram
somente que estes estão ainda no processo de criação das condições de sua vida
social, em lugar de terem começado a vida social a partir dessas condições. É a
conexão natural e espontânea de indivíduos em meio a relações de produção
determinadas, estreitas. Os indivíduos universalmente desenvolvidos, cujas
relações sociais, como relações próprias e comunitárias, estão
igualmente submetidas ao seu próprio controle comunitário, não
são um produto da natureza, mas da história. O grau e a universalidade
do desenvolvimento das capacidades em que essa individualidade se torna possível
pressupõem justamente a produção sobre a base dos valores de troca, que, com
a universalidade do estranhamento do indivíduo de si e dos outros, primeiro
produz a universalidade e multilateralidade de suas relações e
habilidades. Em estágios anteriores de desenvolvimento, o indivíduo
singular aparece mais completo precisamente porque não elaborou ainda a plenitude
de suas relações e não as pôs diante de si como poderes e relações sociais
independentes dele. É tão ridículo ter nostalgia daquela plenitude original: da
mesma forma, é ridícula a crença de que é preciso permanecer naquele completo
esvaziamento. O ponto de vista burguês jamais foi além da oposição a tal visão
romântica e, por isso, como legítima antítese, a visão romântica o acompanhará
até seu bem-aventurado fim” (ibidem, p. 109-10; note-se a relação entre “o
ponto de vista burguês” e a “visão romântica”).
Passemos
a palavra ao Marx dos anos 1860: “Com razão para seu tempo, Ricardo considera o
modo capitalista de produção o mais vantajoso para a produção em geral, o mais
vantajoso para a geração da riqueza. Quer a produção pela produção, e
está certo. […] A produção pela produção significa apenas
desenvolvimento das forças produtivas humanas, ou seja, desenvolvimento da
riqueza da natureza humana como fim em si. Opor a essa finalidade [como
fazem os românticos e os críticos sentimentais de Ricardo, como Sismondi] o bem
do indivíduo é afirmar que o desenvolvimento da espécie tem de ser detido
[…]. Deixa-se de compreender que esse desenvolvimento das aptidões da espécie
humana, embora se faça de início às custas da maioria dos indivíduos e de
classes inteiras, por fim rompe esse antagonismo e coincide com o
desenvolvimento do indivíduo isolado; que assim o desenvolvimento mais alto da
individualidade só se conquista por meio de um processo histórico em que os
indivíduos são sacrificados” (Marx, 1983, v. II, p. 549).
[86]
Nesse mesmo passo e linhas antes dessa afirmação, Marx escreveu: “Uma elevação
violenta do salário […] nada seria, portanto, senão um melhor assalariamento
do escravo e não teria conquistado para o operário nem para o
trabalho a sua determinação e dignidade humanas. A própria igualdade dos
salários, como Proudhon exige, apenas transforma a relação do operário
de hoje com seu trabalho na relação de todos os homens com o trabalho”. Vê-se:
bem antes de sua demolidora crítica a Proudhon (Miséria
da filosofia, 1847), Marx já apreende os limites do seu programa de
reforma social. Lembre-se que, mais de vinte anos depois, na discussão (“Salário,
preço e lucro”, 1865) com o operário John Weston, Marx diria que a classe
operária, “em vez deste lema conservador: ‘ Um salário justo para uma
jornada de trabalho justa! ’, deverá inscrever na sua bandeira esta
divisa revolucionária: ‘Abolição do sistema de trabalho assalariado!’”
(Marx, Trabalho assalariado e capital & Salário, preço e lucro, 2006a,
p. 142).
[87] Aliás, já na abertura do primeiro manuscrito, a
mercantilização do trabalhador fora posta de manifesto: “A demanda de
homens regula necessariamente a produção de homens como de qualquer
outra mercadoria. Se a oferta for muito maior do que a demanda, então uma
parte dos trabalhadores cai na situação da miséria ou na morte pela fome. A
existência do trabalhador é, portanto, reduzida à condição da existência de
qualquer outra mercadoria. O trabalhador tornou-se uma mercadoria e é uma sorte
para ele quando consegue encontrar quem o compre”.
[88] Com alguma razão, Fromm escreveu que o conceito marxiano de
alienação baseou-se “na distinção entre existência e essência, no fato de a
existência do homem ficar alheada de sua essência, de na realidade ele não ser
o que é potencialmente, ou, por outras palavras, de ele não ser o que
deveria ser e de ele dever ser aquilo que poderia ser” (Fromm, Conceito
marxista do homem, 1979, p. 53).
Um comentário:
O trecho inicial desta postagem era este:
“Enquanto estou lendo os livros vou anotando os trechos que julgo mais importantes para depois fazer fichamentos com intuitos diversos. No que tange ao blog, eventualmente fico na dúvida se o trecho merece vir, então anoto que ele deve ser reavaliado quando fizer o fichamento. Em outros casos, já destaco que só devo inseri-lo “se couber”, ou seja, ele só vem se não houver selecionado trechos extensos demais.
Neste livro, depois de remover todos estes trechos passíveis de serem retirados, o fichamento do blog ficou com 94 páginas. Infelizmente, portanto, não poderei trazê-los. Seria inviável trazer alguns trechos e deixar para trás outros de igual importância.
Não é o primeiro caso, mas toda vez que isso acontece é uma pena.”
Entretanto, inconformado com o resultado, resolvi retornar ao fichamento e, cortando na carne, consegui alcançar um número mais razoável (ainda que um pouco excessivo, do que peço desculpas ao autor e à editora).
Acabei cortando, portanto, vários trechos tão importantes quanto os que aqui citei (o que trata da categoria de mais-valor, por exemplo), bem como as referências aos livros do próprio Marx.
Foi a solução possível para que a postagem não se restringisse a essa lamúria aí de cima.
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