Editora: Companhia das letras
ISBN: 978-85-359-1581-5
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Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 584
Sinopse: Ver Parte
I
“Infelizmente a busca de uma identidade distinta
muitas vezes coexiste com o terror de um “outro” estereotipado, visto como antagonista.
O medo paranoico de conspiração continuaria caracterizando a reação aos transtornos
da modernização e se evidenciaria de modo especial nos movimentos fundamentalistas
de judeus, cristãos e muçulmanos, que cultivariam uma imagem distorcida e em geral
perniciosa de seus inimigos, por vezes retratados como satanicamente maus.”
“O uso do véu não é original nem fundamental no
Islã. O Alcorão não ordena que todas as mulheres cubram a cabeça, e o hábito de
velá-las e isolá-las nos haréns só se difundiu no mundo islâmico cerca de três gerações
após a morte do Profeta, quando os muçulmanos começaram a imitar os cristãos de
Bizâncio e os zoroastristas da Pérsia, que desde longa data tratavam suas mulheres
dessa forma. Nem todas, porém, usavam o véu, que, sendo indicador de status, estava
restrito às camadas superiores. (...)
Os observadores ocidentais se alarmaram com a
retomada do véu, que desde a época de Lord Cromer consideravam um símbolo do atraso
e do patriarcado árabes. Não pensavam assim as mulheres muçulmanas que voluntariamente
assumiam o traje islâmico por motivos de ordem prática e também como um modo de
rejeitar uma identidade ocidental. O véu, a echarpe e a túnica longa podiam simbolizar
aquela “volta para si mesmos” que os islamistas tentavam realizar com tanta dificuldade
no período pós-colonial. Afinal, o traje ocidental nada tem de sagrado. O desejo
de ver todas as mulheres usando-o devera-se à tendência de considerar “o Ocidente”
como a norma que “o resto do mundo” tem de seguir. Ao longo dos anos a mulher velada
passara a representar a autoafirmação do Islã e sua rejeição da hegemonia cultural
do Ocidente. Ao optar por esconder-se, ela desafia os costumes sexuais do Ocidente,
com sua estranha compulsão para “mostrar tudo”. Enquanto os ocidentais tentam submeter
o corpo ao controle da vontade, dedicando-se à ginástica e aos exercícios físicos,
e, apegados a esta vida, procuram torná-lo imune ao processo do tempo e do envelhecimento,
o corpo encoberto do muçulmano tacitamente declara sua obediência a ordens divinas
e sua orientação para a transcendência, não para este mundo. Enquanto os ocidentais
com frequência expõem e até exibem como um privilégio o corpo dispendiosamente bronzeado
e finamente esculpido, o corpo do muçulmano, envolto em roupas muito semelhantes,
enfatiza a igualdade da visão islâmica e afirma o ideal de comunidade, presente
no Alcorão, em oposição ao individualismo da modernidade ocidental. Mais ou menos
como as comunas de Shukri Mustafa, a muçulmana velada constitui uma crítica tácita
ao lado mais sombrio do espírito moderno.”
“Mas os imperativos morais e espirituais da religião
são importantes para a humanidade, e não se deve relegá-los impensadamente à lata
de lixo da história para atender aos interesses de um racionalismo desenfreado.
A relação entre ciência e ética continua sendo um tema crucial.”
“Em nossa história veremos com frequência que
o comportamento religioso de pessoas que não se beneficiaram particularmente com
a modernidade traduz uma necessidade ardente do espiritual, tantas vezes excluído
ou marginalizado numa sociedade secularista.”
“Abraham Yitzak Kook morreu em 1935, treze anos
antes da criação do Estado de Israel. Não soube dos terríveis expedientes que os
judeus utilizaram para fundar seu Estado na Palestina árabe. Não testemunhou a expulsão
de 750 mil palestinos de suas casas, em 1948, nem o derramamento de sangue árabe
e judeu nas guerras entre os dois povos. Tampouco teve de encarar o fato de que,
cinquenta anos após a criação do Estado de Israel, a maioria dos judeus da Terra
Santa ainda seria secularista.”
“Depois da 1ª Guerra Mundial, o Império Otomano,
que lutara ao lado da Alemanha, foi derrotado pelos aliados europeus, que o desmembraram
e estabeleceram mandatos e protetorados em suas antigas províncias. Os gregos invadiram
a Anatólia e o velho núcleo otomano. De 1919 a 1922, Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938)
comandou as forças nacionalistas turcas numa guerra de independência e conseguiu
manter os europeus fora da Turquia e criar um Estado soberano, governado em conformidade
com os modernos padrões europeus. Foi um fato inédito no mundo islâmico. Em 1947
a Turquia possuía uma burocracia eficiente e uma economia capitalista e era a primeira
democracia secular pluripartidária do Oriente Médio. Mas esse processo se iniciou
com uma limpeza étnica. Entre 1894 e 1927 sucessivos governos otomanos e turcos
sistematicamente expulsaram, deportaram ou massacraram os gregos e armênios que
viviam na Anatólia; queriam livrar-se desses estrangeiros, que correspondiam à cerca
de noventa por cento da burguesia. Além de conferir ao novo Estado uma identidade
nacional distintivamente turca, o expurgo proporcionou a Atatürk a oportunidade
de criar uma classe comercial inteiramente turca, que cooperaria com seu governo
na implantação de uma economia industrializada moderna. O extermínio de 1 milhão
de armênios, no mínimo, foi o primeiro genocídio do século XX e mostrou que, como
temia o rabino Kook, o nacionalismo secular podia ser letal e certamente tão perigoso
quanto as cruzadas e os expurgos conduzidos em nome da religião. (...)
O Holocausto (também) mostrou, no mínimo, que
uma ideologia secularista podia ser tão mortífera quanto uma cruzada religiosa.”
“(...) e o ódio geralmente acompanha um amor não
admitido.”
“Mas todo movimento que começa matando em nome
de Deus toma um rumo niilista que nega os valores religiosos mais fundamentais.”
“O programa do xá Reza Shah era inevitavelmente
superficial. Simplesmente sobrepunha instituições modernas a velhas estruturas agrárias
– uma estratégia que falhara no Egito e falharia aqui também. Os noventa por cento
da população que viviam da agricultura foram ignorados e continuavam utilizando
métodos tradicionais e improdutivos. A sociedade não passou por nenhuma reforma
fundamental. Reza não tinha o menor interesse pelos sofrimentos dos pobres, e, enquanto
o Exército abocanhava cinquenta por cento do orçamento, a educação, que continuava
sendo privilégio dos ricos, ficava com apenas quatro por cento. Como no Egito, duas
nações estavam surgindo no Irã e entendendo-se cada vez menos. Uma “nação” compreendia
a pequena elite ocidentalizada das classes alta e média, que se beneficiara com
o programa de modernização; a outra consistia na vasta massa dos pobres, que, confusos
com o novo nacionalismo secular do regime, dependiam como nunca da orientação dos
ulemás. (...)
No início da década de 1970 o Irã parecia florescer.
Investidores americanos e a elite iraniana ganharam fortunas com os novos negócios
criados pela Revolução Branca. Longe de ser um centro de espionagem (como diriam
os revolucionários), a embaixada dos Estados Unidos em Teerã era um centro de corretagem
que colocava americanos ricos em contato com iranianos ricos. No entanto – mais
uma vez – só a elite se beneficiava. O Estado prosperava, a população empobrecia.
Havia um consumismo desenfreado nas camadas mais altas da sociedade e corrupção
e privação entre os pequeno-burgueses e os pobres dos centros urbanos. À alta do
preço do petróleo, em 1973-74, seguiu-se uma terrível inflação, devida à falta de
oportunidade de investimentos para todos, exceto para os muito ricos. Um milhão
de trabalhadores estavam desempregados, muitos comerciantes se arruinaram com o
influxo de produtos estrangeiros, e em 1977 a inflação começou a afetar os ricos.
Nesse clima de descontentamento e desespero, as duas principais organizações guerrilheiras
entraram em ação, assassinando militares e consultores americanos. Havia muito ressentimento
contra os americanos sediados no Irã, que pareciam lucrar com o caos. Nessa época
o regime do xá se tornou mais tirânico e autocrático que nunca. (...)
Os americanos se escandalizaram ao ver sua nação
qualificada de satânica durante e após a Revolução iraniana. Mesmo os que sabiam
da aversão que muitos iranianos sentiam pelos Estados Unidos desde o golpe da CIA,
em 1953, repudiaram essa imagem demoníaca. Por mais equivocada que fosse, a política
americana não merecia ser condenada dessa maneira. Tal condenação apenas confirmava
o que geralmente se pensava dos revolucionários iranianos: que eram todos fanáticos,
histéricos e desequilibrados. Entretanto a maioria dos ocidentais não entendeu a
imagem do Grande Satã. No cristianismo Satã representa o mal esmagador, porém no
islamismo é uma figura muito mais controlável. O Alcorão até sugere que ele acabará
sendo esquecido no fim dos tempos, tamanha é sua confiança na infinita bondade divina.
Os iranianos que chamavam os Estados Unidos de “Grande Satã” não estavam classificando-os
de diabolicamente malvados, e sim dizendo algo mais preciso. No xiismo popular Shaitan,
o Tentador, é uma criatura ridícula, cronicamente incapaz de apreciar os valores
espirituais do mundo invisível. Uma história o mostra reclamando dos privilégios
que Deus conferiu aos humanos e dos dons inferiores que lhe couberam. Shaitan não
tem profetas, contenta-se com adivinhos, faz do bazar sua mesquita, sente-se mais
à vontade nos banhos públicos e, em vez de buscar Deus, procura vinho e mulheres.
É irremediavelmente trivial, está preso para sempre no mundo exterior (zahir*)
e não compreende que a existência possui uma dimensão mais profunda e mais importante.
Para muitos iranianos os Estados Unidos, o Grande Shaitan, eram “o Grande Trivializador”.
Os bares, os cassinos e o etos secularista da ocidentoxicada zona norte de Teerã
representavam o etos americano, que parecia ignorar deliberadamente as realidades
ocultas (batin**) que dão sentido à vida. Ademais, o Grande Shaitan tentara
o xá até afastá-lo dos verdadeiros valores islâmicos e levá-lo a um superficial
secularismo.
Embora soubessem que muitos americanos eram religiosos,
não viam sentido em sua fé. O “interior” e o “exterior” de Jimmy Carter não eram
“idênticos”. Os iranianos não compreendiam como o presidente podia continuar apoiando
um governante que em 1978 começara a matar seu próprio povo. “Não esperávamos que
Carter defendesse o xá, pois ele é um homem religioso, que empunha a bandeira dos
direitos humanos”, declarou o aiatolá Husain Montazeri a um entrevistador depois
da Revolução. “Como Carter, o cristão devoto, pode defender o xá?”.”
Zahir*: (árabe). “Manifesto”;
as manifestações exteriores de Deus e o mundo exterior; também o significado literal
das escrituras, em oposição a batin.
Batin**: (árabe) A dimensão
“oculta” da existência e da religião, percebida pelas disciplinas místicas e intuitivas,
não pelos sentidos e pelo pensamento racional.
“Em janeiro de 1982 cristãos de St. David's, no
Arizona, conseguiram banir de suas escolas obras de William Golding, John Steinbeck,
Joseph Conrad e Mark Twain. Em 1981 Mel e Norma Gabler (também membros da direita
cristã) deram início a uma campanha semelhante para “reintroduzir Deus nas escolas”
do Texas. Reprovavam a “postura liberal” evidente em
questões abertas que levam os alunos a tirar conclusões
próprias; declarações sobre outras religiões, que não o cristianismo; declarações
concebidas para desabonar o sistema de livre empresa; declarações concebidas para
refletir aspectos positivos dos países socialistas ou comunistas (por exemplo, que
a União Soviética é o maior produtor mundial de determinados cereais); qualquer
aspecto da educação sexual que não o incentivo à abstinência; declarações que enfatizam
contribuições feitas por negros, índios, americanos-mexicanos ou feministas; declarações
favoráveis aos escravos americanos e desfavoráveis a seus senhores; e declarações
favoráveis à teoria da evolução, a menos que se conceda o mesmo espaço à teoria
da criação.”
“O movimento Reconstrução, fundado pelo economista
texano Cary North e por seu genro, Rousas John Rushdoony, também trava uma guerra
contra o humanismo secular, porém é mais radical que a Maioria Moral. Os reconstrucionistas
trocaram o velho pessimismo pré-milenarista por uma ideologia mais empolgante. Como
os muçulmanos fundamentalistas, North e Rushdoony se preocupam basicamente com a
soberania divina. É preciso implantar uma civilização cristã que derrote o diabo
e inaugure o Reino de mil anos. O conceito-chave do movimento é domínio. Deus confiou
a Adão e depois a Noé a missão de dominar o mundo. Os cristãos herdaram essa missão
e cabe-lhes a responsabilidade de instituir o reinado de Jesus antes de sua Segunda Vinda. No entanto não
terão de fazer nada nesse sentido, pois o próprio Deus destruirá o Estado moderno
numa terrível catástrofe. Os cristãos apenas colherão os louros da vitória divina.
Entrementes, os reconstrucionistas se preparam
para assumir o poder, quando o Estado secular humanista deixar de existir. Seu abandono
do etos da compaixão constitui uma distorção total do cristianismo. Quando o Reino
vier, não haverá mais separação entre Igreja e Estado; a moderna heresia da democracia
desaparecerá, e a sociedade será reorganizada em termos estritamente bíblicos. Em
outras palavras, todas as leis da Bíblia passarão a vigorar literalmente. Ocorrerão
o restabelecimento da escravidão, o fim do controle da natalidade (pois os crentes
devem “crescer e multiplicar-se”), a execução de adúlteros, homossexuais, blasfemos,
astrólogos e bruxos. Os filhos desobedientes serão apedrejados, como ordena a Bíblia.
Implantar-se-á uma economia rigorosamente capitalista; os socialistas e os esquerdistas
em geral são pecadores. Deus não está do lado dos pobres. Na verdade, diz North,
existe uma “estreita relação entre maldade e pobreza”. Não se empregarão verbas
de impostos em programas de bem-estar social, pois “sustentar vagabundos é sustentar
o mal”. O mesmo princípio vale para o Terceiro Mundo, que provocou os próprios problemas
econômicos com seu gosto pela perversidade moral, pelo paganismo e pela demonologia.
A Bíblia proíbe a ajuda estrangeira. Enquanto aguardam a vitória – que talvez demore,
admite North –, os cristãos devem preparar-se para reconstruir a sociedade em conformidade
com o plano divino e apoiar as políticas governamentais que se aproximem dessas
normas bíblicas.
O domínio imaginado por North e Rushdoony é totalitário.
Não deixa margem a outras opiniões ou políticas, à tolerância democrática, à liberdade
individual. Naturalmente a possibilidade de essa teologia se popularizar nos Estados
Unidos é remota; mas já se aventou a hipótese de, no caso de uma catástrofe ambiental
ou econômica, um Estado eclesiástico autoritário substituir o regime liberal do
Iluminismo. Afinal, o cristianismo conseguiu adaptar-se ao capitalismo, que contraria
muitos dos ensinamentos de Cristo. Também poderia ser usado para sustentar uma ideologia
fascista, que, em circunstâncias drasticamente modificadas, talvez se tornasse necessária
à manutenção da ordem pública.”
“A religião não desapareceu, afinal, e em alguns
círculos se tornou mais militante que nunca. Os fundamentalistas judeus, cristãos
e muçulmanos têm reagido furiosamente às tentativas de privatizar ou suprimir a
religião e acreditam que a resgataram do esquecimento. No decorrer de sua árdua
luta muitas vezes distorceram a fé – o que representa uma derrota para a religião.
Mas hoje o fundamentalismo faz parte do mundo moderno. Representa uma decepção,
uma alienação, uma ansiedade, uma raiva generalizada, que nenhum governo pode ignorar
sem correr risco. Até agora os esforços para lidar com o fundamentalismo não tiveram
muito sucesso; que lições podemos tirar do passado que nos ajudem a enfrentar mais
criativamente, no futuro, os medos que o fundamentalismo encerra?”
“É importante reconhecer que as teologias e ideologias
fundamentalistas se baseiam no medo. O desejo de definir doutrinas, erguer barreiras,
fixar limites e segregar os fiéis num enclave sagrado, onde haja rigorosa observância
da lei, deve-se ao pavor da extinção que, neste ou naquele momento, levou todos
os fundamentalistas a crer que os secularistas estavam prestes a exterminá-los.
Um liberal acha o mundo moderno empolgante; um fundamentalista acha-o ímpio, sem
sentido e até satânico. O terapeuta sem dúvida qualificaria de perturbado o paciente
que lhe apresentasse essas fantasias paranoicas de conspiração e vingança. A visão
pré-milenarista, que considera diabólicas algumas das instituições modernas mais
positivas, acalenta sonhos genocidas e acredita que a humanidade caminha rapidamente
para um fim horrendo, demonstra nitidamente o terror e a frustração que a modernidade
provoca em muitos fundamentalistas protestantes. Vimos o niilismo que pode inspirar
o programa fundamentalista. É impossível dissipar esse medo através da razão ou
de medidas coercivas. Uma solução mais criativa consistiria em procurar avaliar
a profundidade de tal neurose, ainda que o liberal ou secularista não consiga partilhar
a mesma perspectiva determinada pelo pavor.”
“Por ser tão combativa, essa campanha pela ressacralização
da sociedade se tornou agressiva e distorcida. Não tinha a compaixão que, para todas
as crenças, é essencial à vida religiosa e à experiência do divino. Ao contrário,
pregava uma ideologia de exclusão, de ódio e até de violência. Mas os fundamentalistas
não detinham o monopólio da fúria. Seus movimentos com frequência se desenvolveram
numa relação dialética com um secularismo agressivo que demonstrava pouco respeito
pela religião e pelos devotos. Às vezes parece que os secularistas e fundamentalistas
estão presos numa espiral de hostilidade e recriminações. Se os fundamentalistas
precisam avaliar seus inimigos mais compassivamente, para manterem-se fiéis as suas
tradições religiosas, os secularistas também precisam cultivar mais a benevolência,
a tolerância e o respeito pela humanidade que caracteriza a cultura moderna no que
tem de melhor, e analisar com maior empatia os medos, ansiedades e necessidades
que muitos de seus semelhantes fundamentalistas sentem, mas que nenhuma sociedade
pode ignorar sem correr riscos.”
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