Editora: Domínio Público
Tradução: Líbero Rangel de Tarso
Opinião: ★★★★☆
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Páginas: 459
Sinopse: Ver Parte
I
“Assim como não
sabemos o que seja espírito, ignoramos o que seja corpo. Percebemo-lhe apenas
propriedades. Mas que é o ente em que residem tais propriedades? Tudo é corpo,
dizia Demócrito e Epicuro. Não existem corpos, contravinham os discípulos de
Zênon de Eléia.
Berkeley, bispo de
Cloyne, foi o último que, por cem sofismas capciosos, pretendeu provar que os
corpos não existem. Eles não têm, disse, nem cor, nem odor, nem calor. Tudo
isso está em vossas sensações e não nos objetos. O Sr. Berkeley podia ter-se
poupado ao trabalho de demonstrar semelhante verdade: conhecemo-la de sobejo.
Mas daí passa à extensão, à solidez, que são essências do corpo, e julga provar
não haver extensão num retalho de pano verde porque em verdade o pano não é
verde. A sensação do verde acha-se tão somente em vós: por conseguinte a
impressão de extensão não está também senão em vós. Após destruir a extensão,
conclui que a solidez cai consequentemente por si mesma, e que portanto nada
existe além das nossas ideias. De sorte que, segundo esse doutor, dez mil
homens trucidados por dez mil balas de canhão não passam em suma de dez mil
apreensões da nossa alma.”
“Há muitos
indivíduos que nasceram para raciocinar mal, outros para não raciocinar e
outros para perseguir os que raciocinam.”
“– E que Lhe
pedes?
– Agradeço-Lhe os
bens de que gozo e os males com que lhe apraz provar-me. Abstenho-me porém de
pedir-lhe seja o que for. Melhor que nós sabe ele o que nos falta. Demais
poderia dar-se que quando eu pedisse bom tempo meu vizinho pedisse chuva.”
“— Julgo, – disse
o brâmane – que não deve haver sobre a terra senão pouquíssimas repúblicas.
Raramente são os homens dignos de se governar por si mesmos. Tal felicidade não
deve pertencer senão a povos pequenos, que se insulem em ilhas ou entre
montanhas, como coelhos a se esconderem dos carnívoros. Mas sempre acabam sendo
descobertos e devorados.”
“Fanatismo é para
a superstição o que o delírio é para a febre, o que é a raiva para a cólera.
Aquele que tem êxtases, visões, que considera os sonhos como realidades e as
imaginações como profecias é um entusiasta; aquele que alimenta a sua loucura
com a morte é um fanático.”
“Que deve um cão a
um cão, um cavalo a um cavalo? Nada. Nenhum animal depende de seu semelhante.
Tendo porém o homem recebido o raio da Divindade que se chama razão, qual foi o
resultado? Ser escravo em quase toda a terra.
Se o mundo fosse o
que parece dever ser, isto é, se em toda parte os homens encontrassem
subsistência fácil e certa e clima apropriado a sua natureza, impossível teria
sido a um homem servir-se de outro. Cobrisse-se o globo de frutos salutares.
Não fosse veículo de doenças e morte o ar que contribui para a existência
humana. Prescindisse o homem de outra morada e de outro leito além do dos
gansos e capros monteses, não teriam os Gengis Cãs e Tamerlões vassalos senão
os próprios filhos, os quais seriam bastante virtuosos para auxiliá-los na
velhice.
No estado natural
de que gozam os quadrúpedes, aves e répteis, tão feliz como eles seria o homem,
e a dominação, quimera, absurdo em que ninguém pensaria: para que servidores se
não tivésseis necessidade de nenhum serviço?
Ainda que passasse
pelo espírito de algum indivíduo de bofes tirânicos e braços impacientes por
submeter seu vizinho menos forte que ele, a coisa seria impossível: antes que o
opressor tivesse tomado suas medidas o oprimido estaria a cem léguas de
distância.
Todos os homens
seriam necessariamente iguais, se não tivessem precisões. A miséria que
avassala a nossa espécie subordina o homem ao homem – O verdadeiro mal não é a
desigualdade: é a dependência. Pouco importa chamar-se tal homem Sua Alteza,
tal outro Sua Santidade. Duro porém é servir um ao outro.”
“Quando cheguei,
fui a Versalhes para alguns negócios; vi passar uma bela mulher seguida de
grande número de outras também belíssimas. “Quem é essa mulher?” perguntei ao
meu advogado no parlamento, que viera comigo: pois tinha um processo no
parlamento de Paris, em virtude dos hábitos que adquiri nas Índias, e desejava
ter constantemente meu advogado comigo. “É a filha do rei, – disse ele: – é
encantadora e caridosa; é uma grande pena que, em caso algum, jamais possa ser
rainha de França.
– Como, –
disse-lhe eu – se tivéssemos a desgraça de perder todos os seus parentes e príncipes
de sangue (o que Deus não permita!) ela não poderia herdar o reino de seu pai?
– Não, – disse o advogado – a lei sálica se opõe formalmente a isso. – E quem
fez essa lei? – perguntei ao advogado. – Nada sei a esse respeito, – disse ele;
– mas costuma-se dizer que um antiquíssimo povo chamado sálicos, que não sabiam
ler nem escrever, tiveram um tempo uma lei escrita a qual dizia que em terra
sálica nenhuma filha podia herdar; e essa lei foi adotada em terras não
sálicas. – Pois eu – respondi – casso-a por minha conta; afirmastes-me que essa
princesa é encantadora e caridosa; portanto ela teria um direito incontestável
à coroa se a infelicidade a tornasse única remanescente do sangue real: minha
mãe herdou de seu pai e eu quero que a princesa herde do seu”.
No dia seguinte o
meu processo foi julgado numa das câmaras do parlamento: perdi por unanimidade;
explicou-me o meu advogado que eu teria ganho também por unanimidade numa outra
câmara. “Eis uma coisa bem cômica – disse-lhe eu; – de modo que, cada câmara,
cada lei. – Sim, – disse ele – há vinte e cinco comentários sobre a lei
municipal de Paris; isto é, provou-se vinte e cinco vezes que a lei municipal
de Paris está errada; e se houvesse vinte e cinco câmaras de juízes haveria
também vinte e cinco jurisprudências diferentes. Temos, – continuou ele – a
quinze léguas de Paris uma província chamada Normandia, onde seríeis julgado de
forma muito diferente daqui”.
Isto deu-me
vontade de ver a Normandia. Para lá me dirigi com um de meus irmãos.
Encontramos no primeiro hotel um jovem que se lamentava, desesperado;
perguntando-lhe em qual a causa de sua desgraça, respondeu-me que era ter um
irmão mais velho.
— Em que consiste
pois a grande desgraça de ter um irmão mais velho? – perguntei-lhe; – meu irmão
é mais velho do que eu e no entanto vivemos muito bem juntos.
— Ah! senhor, –
disse-me ele, – a lei aqui tudo concede aos primogênitos sem nada deixar aos
caçulas.
— Tendes razão –
disse-lhe eu – de estar zangado; em nossa cidade repartimos igualmente, e nem sempre
os irmãos se estimam melhor por isso.”
Essas pequenas
aventuras proporcionaram-me belas e profundas reflexões sobre as leis, e
verifiquei serem elas como nossos trajes: em Constantinopla fui obrigado a usar
um dólman, em Paris um gibão.
Se todas as leis
humanas são apenas convenções, disse eu, o que vale é fazer-se um bom contrato.
Os burgueses de Deli e Agra dizem ter feito um péssimo contrato com Tamerlão;
os burgueses de Londres felicitam-se pelo ótimo ajuste que fizeram com o rei
Guilherme de Orange.
Um cidadão de
Londres dizia-me certo dia: “É a necessidade que faz as leis, e a força as faz
observar”. Perguntei-lhe se a força não fazia também leis em algumas ocasiões,
e se Guilherme, o Bastardo e o Conquistador, não lhes havia dado ordens sem
estabelecer contrato algum. “Sim”, – disse ele – “nesse tempo éramos uns bois;
Guilherme nos colocou uma canga e nos fez caminhar a golpes de aguilhão; depois
nos transformamos em homens, porém os cornos nos ficaram e com eles maltratamos
todos os que pretendem que trabalhemos para eles e não para nós mesmos”.
Tomado de todas
estas reflexões comprazia-me em pensar que existe uma lei natural, independente
de todas as convenções humanas: o fruto de meu trabalho deveria ser meu; devia
honrar meu pai e minha mãe; não tenho direito algum sobre a vida do meu próximo
e meu próximo não o tem sobre a minha, etc. (...)
Reuni os
agricultores simples e tranquilos de um lado a outro da terra; todos eles
convirão em que deve ser permitido vender aos vizinhos o excedente do seu trigo
e que a lei contrária é inumana e absurda; que as moedas representativas dos
gêneros deverão ser tão puras como os frutos da terra; que um pai de família
deverá ser dono de sua casa; que a religião deve reunir os homens a fim de os
unir e não para fazer deles fanáticos e perseguidores; que os que trabalham não
devem ser privados dos frutos de seu trabalho com o fim de alimentar a
superstição e a ociosidade: eles farão numa hora trinta leis desta espécie,
todas úteis ao gênero humano.
Chegue porém Tamerlão
e subjugue a Índia; então não vereis senão leis arbitrárias. Uma asfixiará uma
província para enriquecer um rendeiro de Tamerlão; outra transformará num crime
de lesa majestade o ter falado mal da mulher do primeiro camarista de um raja;
a terceira apoderar-se-á da metade da colheita do agricultor, contestando-lhe o
resto; enfim existirão leis mediante as quais um bedel tártaro virá arrancar
vossos filhos do berço, fará do mais robusto um soldado e do mais fraco um
eunuco, deixando o pai e a mãe sem consolo.
Ora, que vale
melhor ser: o cão de Tamerlão ou seu súdito? É claro que a regalia do seu cão é
muito superior.”
“Vossa vontade não
é livre mas vossas ações o são. Tendes a liberdade de fazer quando tendes o
poder de fazer.
MAU
Vivem a gritar-nos
que a natureza humana é essencialmente perversa, que o homem nasceu mau e filho
do diabo. Nada menos ponderado: porque, meu amigo, tu que me dizes que toda
gente nasceu perversa, tu me advertes pois de que nasceste tal, que é preciso que
eu desconfie de ti como de uma raposa ou de um crocodilo. — Oh! nada disso! —
dizes, — eu me regenerei, não sou nem herege nem infiel, podeis fiar-vos em
mim. — Mas o resto do gênero humano, que é ou herege ou o que chamas infiel,
não será pois um conjunto de monstros? E todas as vezes que falares a um
luterano ou a um turco deverás estar certo de que te roubarão ou assassinarão:
pois são filhos do diabo; nasceram ruins; um nada tem de regenerado e o outro é
degenerado. Seria muito mais razoável, muito mais belo, dizer aos homens:
Nascestes bons; vede quão afrontoso seria corromper a pureza do vosso ser.
Seria de mister proceder com o gênero humano como procedemos com os homens em
particular. Se um cônego leva uma vida escandalosa, nós lhe dizemos: “É possível
que desonreis a dignidade de cônego?” Faz-se lembrar a um magistrado que ele
tem a honra de ser conselheiro do rei e que deve dar o exemplo. Diz-se a um
soldado a fim de encorajá-lo: “Recorda que pertences ao regimento de Champagne” Dever-se-ia dizer a todo
indivíduo: “Lembra-te de dignidade de homem”.
E, com efeito, não
obstante a possuirmos, temos sempre necessidade dela: pois que quer dizer esta
frase frequentemente empregada em todos os povos, concentrai-vos em vós mesmos?
Se houvésseis nascido filho do diabo, se vossa origem fosse criminosa, se vosso
sangue fosse composto de um licor infernal, esta expressão concentrai-vos em
vós mesmos significaria: consultai, segui vossa natureza diabólica, sede
impostor, assassino, é a lei de vosso pai.
O homem não é ruim
de nascimento; torna-se depois, assim como adoece. Alguns médicos se lhe
apresentam e dizem: “Nascestes já doente.” Pile está perfeitamente certo de que
esses médicos, por mais que façam, não o curarão se sua doença é inerente a sua
natureza; esses próprios argumentadores são bem doentes.
Reuni todas as
crianças do universo, e não vereis nelas senão inocência, doçura e timidez; se
houvessem nascido más, malfeitoras, cruéis, mostrariam algum sinal, tal como as
serpentezinhas procuram morder e os tigrinhos arranhar.
Mas a natureza não
concedeu ao homem mais armas ofensivas do que aos coelhos e aos pássaros, não
lhes pode dar um instinto que os conduza à destruição.
Portanto o homem
não é mau de nascimento. Por que então existe tão grande número de infetados
por essa peste da ruindade? É que aqueles que os dirigem, sendo colhidos pela
doença, comunicam-na ao resto dos homens, como uma mulher atacada do mal que
Cristóvão Colombo trouxe da América espalha esse veneno de extremo a outro da
Europa. O primeiro ambicioso corrompeu a terra.
Ides dizer-me que
esse primeiro monstro desenvolveu o germe do orgulho, da rapina, da fraude, da
crueldade, que existe em todos os homens. Sei muito bem que em geral a maioria
de nossos irmãos pode adquirir esses defeitos; estará porém toda gente
contaminada pela febre pútrida, pelos cálculos renais, apenas por que todos
estão expostos?
Existem nações
inteiras completamente boas: os filadélfios, os banianos nunca mataram pessoa
alguma; os chineses, os povos de Tonquim, de Lao, de Siam, do próprio Japão,
durante várias centenas de anos não conheceram a guerra. Apenas de dez em dez
anos é possível ver um desses crimes que comovem a natureza humana nas cidades
de Roma, Veneza, Paris, Londres, Amsterdã, cidades onde, de feito, a cupidez,
mãe de todos os crimes, é extensa.
Se os homens
fossem essencialmente maus, se nascessem completamente submetidos a um ser tão
malfeitor como infeliz, que para se vingar de seus suplícios lhes inspirasse
todos os seus furores, ver-se-iam todas as manhãs maridos assassinados por suas
mulheres e pais por seus filhos, como podemos contemplar no alvorecer do dia
frangos estrangulados por uma doninha que lhes sugou o sangue.
Se houver um
bilhão de homens sobre a terra será muito; isto dá aproximadamente quinhentos
milhões de mulheres que costuram, que cozinham, que alimentam seus filhos, que
tomam conta da casa ou cabana própria, e que falam um certo mal de suas
vizinhas. Não vejo que grande mal essas pobres inocentes fazem sobre a terra.
Sobre esse número de habitantes do globo há duzentos milhões de crianças no
mínimo, que com toda certeza não saqueiam nem matam, e cerca de outro tanto de
velhos e doentes que o não podem fazer. Restarão quando muito cem milhões de
jovens robustos e capazes de praticar o crime. Desses cem milhões noventa estão
continuamente ocupados em forçar a terra, mercê de um trabalho prodigioso, a
fim de que esta lhes dê alimentos e roupas; esses não têm igualmente tempo para
fazer o mal.
Nos dez milhões
restantes estão compreendidos os ociosos que prezam a boa companhia das mesas,
que desejam viver doce e tranquilamente, os homens de talento ocupados com suas
profissões, os magistrados, os padres, visivelmente interessados em levar uma
vida pura, ao menos na aparência. Como verdadeiros maus, portanto, apenas
restarão alguns políticos, amadores ou profissionais, e alguns milhares de
vagabundos que lhes alugam os seus serviços. Ora, impossível seria atuar um
milhão de bestas ferozes ao mesmo tempo; e nesse número estão incluídos os
assaltantes das estradas reais. Tendes, pois, quando muito, sobre a terra, nos
tempos mais borrascosos, um homem sobre mil a quem se pode chamar mau.
Há pois
infinitamente menos mal sobre a terra do que se diz e pensa. E é ainda muito,
sem dúvida: assistimos a desgraças e crimes horríveis; porém o prazer de se
lamentar e exagerar é tão grande que à mínima arranhadela seríeis capaz de
bradar que a terra regurgita de sangue. Fostes enganado, todos os homens são
perjuros. Um espírito melancólico que sofreu uma injustiça vê o universo
coberto de danados, como um jovem voluptuoso ceando com sua dama, ao sair da
Ópera, não acredita na existência de infelizes.
“Pois bem, o que
será melhor – que vossa pátria seja um estado monárquico ou um estado
republicano? Há quatro mil anos se discute essa questão. Perguntai a solução
aos ricos, eles preferem a aristocracia; interrogai o povo, ele quer a
democracia: apenas os reis preferem a realeza. Como, portanto, é possível que
quase toda a terra seja governada por monarcas? Perguntai-o aos ratos que
propuseram pendurar uma campainha no pescoço do gato*. Mas, na verdade, a
verdadeira razão é, como se disse, que os homens são mui raramente dignos de se
governar por si próprios.
É deplorável que
quase sempre para ser bom patriota deva-se ser inimigo do resto dos homens. O
velho Catão, esse ótimo cidadão, dizia sempre no senado:
“Tal é minha
opinião, e que se arruíne Cartago”. Ser bom patriota é desejar que sua cidade
se enriqueça pelo comércio e seja poderosa pelas armas. É claro que um país não
pode ganhar sem que outro perca e que não pode vencer sem fazer desgraçados.
Tal é, pois, a condição humana, que desejar a grandeza do seu país é desejar
mal aos seus vizinhos. Aquele que pretendesse que a sua pátria não fosse jamais
nem menor nem maior, nem mais rica nem mais pobre, seria o cidadão do universo.”
*: La Fontaine,
livro II, fábula II.
“Casaubon não
podia aprovar a maneira por que Pedro tratou o bom Ananias e Safira, sua
mulher. Com que direito, diz Casaubon, um judeu escravo dos romanos pende
ordenar ou admitir que todos os que acreditassem em Jesus deveriam vender suas
herdades e trazer o resultado de sua venda a seus pés? Se algum anabatista, em
Londres ordenasse a mesma coisa a seus irmãos, não seria preso como sedutor
sedicioso, como ladrão que não se deixaria de enviar a Tyburn? Não é horrível
fazer Ananias morrer porque, tendo vendido seus fundos e dado o dinheiro a
Pedro, reteve para si e sua mulher alguns escudos a fim de não morrer de fome?
Apenas Ananias foi morto, sua mulher chegou. Pedro, em vez de adverti-la
caridosamente de que acabava de matar seu marido de apoplexia por haver
guardado alguns óbolos e de lha recomendar que tomasse cuidado consigo própria,
deixa-a cair numa armadilha. Pergunta-lhe se seu marido deu todo seu dinheiro
aos santos. A boa mulher responde que sim e recebe morte instantânea. Isso é
duro.
Conríngio pergunta
por que Pedro, que matou assim esses que lhe deram todos os seus bens, não
mandou antes matar todos os doutores que fizeram Jesus Cristo morrer e que o
fustigaram a ele próprio mais de uma vez? Ó Pedro! fazeis morrer dois cristãos
que vos deram sua esmola e deixais viver aqueles que crucificaram vosso Deus!
Por muito que
pareça que Conríngio não estava em país de inquisição ao fazer esses quesitos
ousados. Erasmo, a propósito de Pedro, acentuou uma coisa bem singular: que o
chefe da religião cristã começou seu apostolado por renegar Jesus Cristo, e que
o primeiro pontífice dos judeus começara seu ministério por construir um bezerro
de ouro e adorá-lo.”
“Depois da nossa
santa religião, que sem dúvida alguma é a única boa, qual será a menos má?
Não seria a mais
simples? Não seria aquela que ensinasse muita moral e pouquíssimos dogmas? A
que tendesse a tornar os homens justos sem os tornar absurdos? A que não
ordenasse absolutamente crer em coisas impossíveis, contraditórias, injuriosas
à Deidade e perniciosas ao gênero humano, e que não ousasse ameaçar com as
penas eternas os que tivessem o senso comum? Não seria aquela que não
sustentasse sua crença por intermédio de tribunais nem inundasse a terra de
sangue por causa de sofismas ininteligíveis? Aquela que de um equívoco, um jogo
de palavras e duas ou três cartas sobrepostas não fizesse um soberano, e um
Deus de um padre frequentemente incestuoso, homicida e envenenador? A que não
submetesse os reis a esse padre? A que não ensinasse senão a adoração de um
Deus, a justiça, a tolerância e a humanidade?”
“Os tempos mais
supersticiosos foram sempre os dos crimes mais horríveis.”
“Que é a
tolerância? É o apanágio da humanidade. Estamos todos empedernidos de
debilidades e erros; perdoemo-nos reciprocamente nossas tolices, é a primeira
lei da natureza.”
“É claro que todo
indivíduo que persegue um homem, seu irmão, porque não é da sua mesma opinião,
é um monstro.”
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