Editora: Abril Cultural
Tradução: Edgard Malagodi
Opinião: ★★★★★
Páginas: 28
Introdução
“Nessa sociedade da livre concorrência, o indivíduo
aparece desprendido dos laços naturais que, em épocas históricas remotas, fizeram
dele um acessório de um conglomerado humano limitado e determinado. Os profetas
do século XVIII, sobre cujos ombros se apoiam inteiramente Smith e Ricardo,
imaginam esse indivíduo do século XVIII – produto, por um lado, da decomposição
das formas feudais de sociedade e, por outro, das novas forças de produção que
se desenvolvem a partir do século XVI – como um ideal, que teria existido no
passado. Veem-no não como um resultado histórico, mas como ponto de partida da História,
porque o consideravam como um indivíduo conforme a natureza e – dentro da
representação que tinham de natureza humana –, que não se originou historicamente,
mas foi posto como tal pela natureza. Essa ilusão tem sido partilhada por todas
as novas épocas, até o presente.”
“Quanta mais se recua na História, mais
dependente aparece o indivíduo e, portanto, também o indivíduo produtor, e mais
amplo é o conjunto a que pertence. De início, este aparece de um modo ainda muito
natural, numa família e numa tribo, que é família ampliada; mais tarde, nas
diversas formas de comunidade resultantes do antagonismo e da fusão das tribos.
Só no século XVIII na “sociedade burguesa”, as diversas formas do conjunto
social passaram a apresentar-se ao indivíduo como simples meio de realizar seus
fins privados, como necessidade exterior. Todavia, a época que produz esse
ponto de vista, o do indivíduo isolado, é precisamente aquela na qual as relações
sociais (e, desse ponto de vista, gerais) alcançaram o mais alto grau de
desenvolvimento. O homem é no sentido mais literal, um zoon politikon2, não só animal social, mas animal que só
pode isolar-se em sociedade. A produção do indivíduo isolado fora da sociedade –
uma raridade que pode multo bem acontecer a um homem civilizado transportado
por acaso para um lugar selvagem, mas levando consigo já, dinamicamente, as forças
da sociedade – é uma coisa tão absurda como o desenvolvimento da linguagem sem indivíduos
que vivam juntos e falem entre si.”
2: Zoon
politikon (ser social, animal social). ARISTÓTELES. De República. Livro Primeiro. Cap. 2. (N. da Ed. Alemã)
“Quando se trata, pois, de produção, trata-se
da produção em um grau determinado do desenvolvimento social, da produção dos indivíduos
sociais. Por isso, poderia parecer que ao falar da produção em geral seria
preciso quer seguir o processo de desenvolvimento e suas diferentes fases, quer
declarar desde o primeiro momento que se trata de uma determinada época histórica, da produção burguesa moderna, por
exemplo, que propriamente constitui o nosso tema. Mas todas as épocas da
produção têm certas características comuns, certas determinações comuns. A produção em geral é uma abstração, mas
uma abstração razoável, na medida em que, efetivamente sublinhando e precisando
os traços comuns, poupa-nos a repetição. Esse caráter geral, contudo, ou esse
elemento comum, que se destaca através da comparação, é ele próprio um conjunto
complexo, um conjunto de determinações diferentes e divergentes. Alguns desses
elementos comuns pertencem a todas as épocas, outros apenas são comuns a
poucas. Certas determinações serão comuns à época mais moderna e à mais antiga.
Sem elas não se poderia conceber nenhuma produção, pois se as linguagens mais
desenvolvidas têm leis e determinações comuns às menos desenvolvidas, o que
constitui seu desenvolvimento é o que as diferença desses elementos gerais e
comuns. As determinações que valem para a produção em geral devem ser
precisamente separadas, a fim de que não se esqueça a diferença essencial por
causa da unidade, a qual decorre já do fato de que o sujeito – a humanidade – e
o objeto – a natureza – são os mesmos. Esse esquecimento é responsável por toda
a sabedoria dos economistas modernos que pretendem provar a eternidade e a
harmonia das relações sociais existentes no seu tempo. Por exemplo, não há
produção possível sem um instrumento de produção; seja esse instrumento apenas
a mão. Não ha produção possível sem trabalho passado, acumulado; seja esse trabalho
a habilidade que o exercício repetido desenvolveu e fixou na mão do selvagem.
Entre outras coisas, o capital é também um instrumento de produção, é também
trabalho passado e objetivado. Logo, o capital é uma relação natural, universal
e eterna. Mas o é com a condição de deixar de lado precisamente o que é específico,
o que transforma o “instrumento de produção” “trabalho acumulado” em capital.”
“Efetivamente, um povo se encontra em seu
apogeu industrial enquanto o principal para ele não seja o ganho, mas o
processo de ganhar.”
Mas isso ainda não é tudo o que,
efetivamente, preocupa os economistas nesta parte geral. Trata-se, antes, de
representar a produção – veja por exemplo Mill – diferentemente da distribuição,
como regida por leis naturais, eternas, independentes da História; e nessa
oportunidade insinuam-se dissimuladamente relações burguesas como leis naturais, imutáveis, da sociedade in abstrato. Essa é a finalidade mais ou
menos consciente de todo o procedimento. Na distribuição, ao contrário, os
homens permitir-se-iam, de fato, toda classe de arbitrariedade. Abstraindo a brutal
disjunção da produção e da distribuição, e de sua relação efetiva, e de todo evidente,
a primeira vista, que por diversificada que possa ser a distribuição nos
diferentes graus da sociedade, deve ser possível tanto nesta como na produção
buscar determinações comuns, do mesmo modo que é possível confundir e extinguir
todas as diferenças históricas em leis geralmente
humanas o escravo, o servo, o operário
assalariado, por exemplo, recebem todos uma quantia de alimentos que lhes
permite existirem como escravo, servo, operário assalariado. Enquanto vivam, o
conquistador de tributo, o funcionário de impostos, o proprietário fundiário da
renda, o frade de esmolas, e o levita dos dízimos, todos recebem uma cota da
produção social, cota que é determinada por leis distintas da dos escravos etc.
Os dois pontos principais, que todos os economistas colocam sob essa rubrica, são:
1 – a propriedade; 2 – a proteção desta pela Justiça, pela polícia etc. A isto
deve-se responder brevissimamente:
Ad 1 – Toda produção é apropriação da natureza
pelo indivíduo, no interior e por meio de uma determinada forma de sociedade.
Nesse sentido, é tautologia dizer que a propriedade [apropriação] é uma condição
da produção. Mas é ridículo saltar daí a uma forma determinada da propriedade,
a propriedade privada, por exemplo (o que, além disso, pressupõe uma forma
antitética, a não-propriedade, como
condição). A história nos mostra, ao contrário, a propriedade comum (entre os
hindus, os eslavos, os antigos celtas etc., por exemplo) como a forma
primitiva, forma que, todavia, desempenhou durante multo tempo importante papel
sob a figura de propriedade comunal. Nem se trata ainda de colocar a questão se
a riqueza se desenvolve melhor sob esta ou sob outra forma de propriedade.
Dizer, porém, que não se pode falar de produção, nem portanto de sociedade onde
não exista propriedade, é uma tautologia. Uma apropriação que não se apropria
de nada e uma contradictio in subjecto
(contradição nos termos);
Ad 2 – Salvaguarda dos bens adquiridos etc.
Quando se reduzem estas trivialidades a seu conteúdo efetivo, expressam mais do
que seus pregadores sabem, isto é, cada forma de produção cria suas próprias
relações de direito, formas de governo etc. A grosseria e a incompreensão consistem
em não relacionar, senão fortuitamente, uns aos outros, em não enlaçar, senão como
mera reflexão, elementos que se acham unidos organicamente. A noção que flutua
no espírito dos economistas burgueses é que a polícia é mais favorável a produção
que o direito da força, por exemplo. Esquecem apenas que o direito da força é
também um direito, e que o direito do mais forte sobrevive ainda sob outra forma
em seu “Estado de Direito”.
Quando as condições sociais, que correspondem
a um grau determinado da produção, se encontram em vias de formação ou quando
já estão em vias de desaparecer, sobrevêm naturalmente perturbações na produção,
embora em graus distintos e com efeitos diferentes.
Em resumo: existem determinações comuns a
todos os graus de produção, apreendidas pelo pensamento como gerais; mas as
chamadas condições gerais de toda a produção não são outra coisa senão esses
fatores abstratos, os quais não explicam nenhum grau histórico efetivo da produção.”
“A produção é, pois, imediatamente consumo; o
consumo é, imediatamente, produção. Cada qual é imediatamente seu contrário.
Mas, ao mesmo tempo, opera-se um movimento mediador entre ambos. A produção é
mediadora do consumo, cujos materiais cria e sem os quais não teria objeto. Mas
o consumo é também mediador da produção ao criar para os produtos o sujeito,
para o qual são produtos. O produto recebe seu acabamento final no consumo. Uma
estrada de ferro em que não se viaja e que, por conseguinte, não se gasta, não se
consome, não é mais que uma estrada de ferro dynamei, e não é efetiva. Sem produção não há consumo, mas sem
consumo tampouco ha produção. O consumo produz de uma dupla maneira a produção:
1 – porque o produto não se torna produto
efetivo senão no consumo; por exemplo, um vestido converte-se efetivamente em
vestido quando é usado; uma casa desabitada não é, de fato, uma casa efetiva;
por isso mesmo o produto, diversamente do simples objeto natural, não se
confirma como produto, não se torna produto, senão no consumo. Ao dissolver o
produto, o consumo lhe dá seu retoque final, pois o produto não é apenas a
produção enquanto atividade coisificada, mas [também] enquanto objeto para o
sujeito em atividade. E,
2 – porque o consumo cria a necessidade de
uma nova produção, ou seja, o fundamento ideal, que move internamente a produção,
e que é sua pressuposição. O consumo cria o impulso da produção; cria também o
objeto que atua na produção como determinante da finalidade. Se é claro que a
produção oferece o objeto do consumo em sua forma exterior, não é menos claro que
o consumo põe idealmente o objeto da
produção, como imagem interior, como necessidade, como impulso e como fim. O
consumo cria os objetos da produção de uma forma ainda mais subjetiva. Sem
necessidade não há produção. Mas o consumo reproduz a necessidade.
Do lado da produção, pode-se dizer:
1 – que ela fornece os materiais, o objeto. Um
consumo sem objeto não é consumo. Assim, pois, a produção cria o consumo nesse
sentido;
2 – mas não é somente o objeto que a produção
cria para o consumo. Determina também seu caráter, dá-lhe seu acabamento. Do
mesmo modo que o consumo dava ao produto seu acabamento, agora é a produção que
dá o acabamento do consumo. Em primeiro
lugar, o objeto não é um objeto em geral, mas um objeto determinado, que
deve ser consumido de uma certa maneira, esta por sua vez mediada pela própria produção.
A fome é fome, mas a fome que se satisfaz com came cozida, que se come com faca
ou garfo, é uma fome muito distinta da que devora came crua, com unhas e
dentes. A produção não produz, pois unicamente o objeto do consumo, mas também
o modo de consumo, ou seja, não só objetiva, como subjetivamente. Logo, a produção
cria o consumidor;
3 – a produção não se limita a fornecer um
objeto material a necessidade, fornece ainda uma necessidade ao objeto
material. Quando o consumo se liberta da sua rudeza primitiva e perde seu caráter
imediato – e não o fazer seria ainda o resultado de uma produção que se
mantivesse num estádio de primitiva rudeza – o próprio consumo, enquanto
impulso, é mediado pelo objeto. A necessidade que sente desse objeto é criada
pela percepção do mesmo. O objeto de arte, tal como qualquer outro produto,
cria um público capaz de compreender a arte e de apreciar a beleza. Portanto, a
produção não cria somente um objeto para o sujeito, mas também um sujeito para
o objeto.
A produção engendra, portanto, o consumo: 1 –
fornecendo-lhe o material; 2 – determinando o modo de consumo; 3 – gerando no
consumidor a necessidade dos produtos, que, de início, foram postos por ela
como objeto. Produz, pois, o objeto do consumo, o impulso do consumo. De igual
modo, o consumo engendra a disposição do produtor, solicitando-lhe a finalidade
da produção sob a forma de uma necessidade determinante.”
“O concreto é concreto porque é a síntese de
muitas determinações, isto é, unidade do diverso. Por isso o concreto aparece
no pensamento como o processo da síntese, como resultado, não como ponto de
partida, ainda que seja o ponto de partida efetivo e, portanto, o ponto de
partida também da intuição e da representação. No primeiro método, a representação
plena volatiliza-se em determinações abstratas, no segundo, as determinações
abstratas conduzem a reprodução do concreto por meio do pensamento. Por isso é
que Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do pensamento que se
sintetiza em si, se aprofunda em si, e se move por si mesmo; enquanto que o
método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto não é senão a maneira de proceder do pensamento
para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado. Mas
este não é de modo nenhum o processo da gênese do próprio concreto. A mais
simples categoria econômica, suponhamos, por exemplo, o valor de troca,
pressupõe a população, uma, população produzindo em determinadas condições e também
certos tipos de famílias, de comunidades ou Estados. O valor de troca nunca
poderia existir de outro modo senão como relação unilateral, abstrata de um
todo vivo e concreto já dado.
Como categoria, ao contrário, o valor de
troca leva consigo um modo de ser antediluviano. Para a consciência – e a consciência
filosófica é determinada de tal modo que, para ela, o pensamento que concebe é
o homem efetivo e o mundo concebido é como tal o único efetivo. Para a consciência,
pois, o movimento das categorias aparece como o ato de produção efetivo – que recebe
infelizmente apenas um impulso do exterior –, cujo resultado é o mundo, e isso é
certo (aqui temos de novo uma tautologia) na medida em que a totalidade
concreta, como totalidade de pensamentos, como um concreto de pensamentos, é de
fato um produto do pensar, do conceber; não é de modo nenhum o produto do
conceito que pensa separado e acima da intuição e da representação, e que se
engendra a si mesmo, mas da elaboração da intuição e da representação em
conceitos. O todo, tal como aparece no cérebro, como um todo de pensamentos, é um
produto do cérebro pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe e possível,
modo que difere do modo artístico, religioso e prático-mental de se apropriar
dele. O sujeito real permanece subsistindo, agora como antes em sua autonomia
fora do cérebro, isto é, na medida em que o cérebro não se comporta senão
especulativamente, teoricamente. Por isso também, no método teórico [da
economia política], o sujeito – a sociedade – deve figurar sempre na representação
como pressuposição.
No entanto, essas categorias simples não possuem
também uma existência independente histórica ou natural anterior as categorias
mais concretas? Depende. Hegel, por exemplo, começa corretamente sua Filosofia do Direito com a posse como a mais simples relação
jurídica do sujeito. Todavia não existe posse anterior à família e as relações
de senhor e servo, que são relações muito mais concretas ainda. Ao contrário,
seria justo dizer que existem famílias, tribos, que se limitam a possuir, mas não têm propriedade. A categoria mais simples
aparece, pois, como relação de comunidades mais simples de famílias ou tribos
em comparação com a propriedade. Na sociedade mais desenvolvida aparece como a relação
mais simples de um organismo mais desenvolvido, mas é sempre pressuposto o
substrato mais concreto, cuja relação é a posse. Pode-se imaginar um selvagem
isolado possuindo coisas. Mas nesse caso a posse não é uma relação jurídica.
Não é correto que a posse evoluiu historicamente
até a família. A posse sempre pressupõe essa “categoria jurídica mais concreta”.
Entretanto, restaria sempre o seguinte: as categorias simples são a expressão de
relações nas quais o concreto pouco desenvolvido pode ter se realizado sem
haver estabelecido ainda a relação ou o relacionamento mais complexo, que se
acha expresso mentalmente na categoria mais concreta, enquanto o concreto mais
desenvolvido conserva a mesma categoria como uma relação subordinada. O
dinheiro pode existir, e existiu historicamente, antes que existisse o capital,
antes que existissem os Bancos, antes que existisse o trabalho assalariado.
Desse ponto de vista, pode-se dizer que a categoria mais simples pode exprimir
relações dominantes de um todo menos desenvolvido ou relações subordinadas de um
todo mais desenvolvido, relações que já existiam antes que o todo tivesse se
desenvolvido, no sentido que se expressa em uma categoria mais concreta. Nessa
medida, o curso do pensamento abstrato que se eleva do mais simples ao complexo
corresponde ao processo histórico efetivo.”
“Até as categorias mais abstratas –
precisamente por causa de sua natureza abstrata –, apesar de sua validade para
todas as épocas, são, contudo, na determinidade dessa abstração, igualmente produto
de condições históricas, e não possuem plena validez senão para essas condições
e dentro dos limites destas.
A sociedade burguesa é a organização histórica
mais desenvolvida, mais diferenciada da produção. As categorias que exprimem
suas relações, a compreensão de sua própria articulação, permitem penetrar na
articulação e nas relações de produção de todas as formas de sociedade
desaparecidas, sobre cujas ruínas e elementos se acha edificada, e cujos
vestígios, não ultrapassados ainda, leva de arrastão desenvolvendo tudo que
fora antes apenas indicado que toma assim toda a sua significação etc. A
anatomia do homem é a chave da anatomia do macaco. O que nas espécies animais
inferiores indica uma forma superior não pode, ao contrário, ser compreendido
senão quando se conhece a forma superior. A Economia burguesa fornece a chave
da Economia da Antiguidade etc. Porém, não conforme o método dos economistas
que fazem desaparecer todas as diferenças históricas e veem a forma burguesa em
todas as formas de sociedade. Pode-se compreender o tributo, o dízimo, quando
se compreende a renda da terra. Mas não se deve identificá-los.
Como, além disso, a própria sociedade
burguesa é apenas uma forma opositiva do desenvolvimento, certas relações
pertencentes a formas anteriores nela só poderão ser novamente encontradas
quando completamente atrofiadas ou mesmo disfarçadas; por exemplo, a
propriedade comunal. Se é certo, portanto, que as categorias da Economia
burguesa possuem [o caráter de] verdade para todas as demais formas de
sociedade, não se deve tomar isso senão cum
grano salis7. Podem ser desenvolvidas, atrofiadas,
caricaturadas, mas sempre essencialmente distintas. O chamado desenvolvimento histórico
repousa em geral sobre o fato de a última forma considerar as formas passadas
como etapas que levam a seu próprio grau de desenvolvimento, e dado que ela
raramente é capaz de fazer a sua própria crítica – e isso em condições bem determinadas
–, concebe-os sempre sob um aspecto unilateral. A religião cristã só pode
ajudar a compreender objetivamente as mitologias anteriores depois de ter
feito, até certo grau, por assim dizer dynamei,
a sua própria crítica. Igualmente, a Economia burguesa só conseguiu compreender
as sociedades feudal, antiga, oriental, quando começou a autocrítica da
sociedade burguesa. Na medida em que a Economia burguesa, criando uma nova
mitologia, não se identificou pura e simplesmente com o passado, a crítica que
fez as sociedades anteriores, em particular, a sociedade feudal, contra a qual
tinha ainda que lutar diretamente, assemelhou-se a crítica do paganismo feita
pelo cristianismo, ou a do catolicismo feita pela religião protestante.
Do mesmo modo que em toda ciência histórica e
social em geral é preciso ter sempre em conta, a propósito do curso das
categorias econômicas, que o sujeito, nesse caso, a sociedade burguesa moderna,
está dado tanto na realidade efetiva como no cérebro; que as categorias
exprimem portanto formas de modos de ser, determinações de existência, frequentemente
aspectos isolados dessa sociedade determinada, desse sujeito, e que, por
conseguinte, essa sociedade de maneira nenhuma se inicia, inclusive do ponto de vista científico, somente a partir do momento
em que se trata dela como tal. Isso
deve ser fixado porque dá imediatamente uma direção decisiva as seções que
precisam ser estabelecidas.”
7: Com um grão de sal. Tradução da edição de Marx-Engels Werke: “em sentido bem
determinado”. (N. do T.)
“Em relação à arte, sabe-se que certas épocas
do florescimento artístico não estão de modo algum em conformidade com o
desenvolvimento geral da sociedade, nem, por conseguinte, com o da base
material que é, de certo modo, a ossatura da sua organização. Por exemplo, os
gregos comparados com os modernos ou ainda Shakespeare. Em relação a certas
formas de arte, a epopeia, por exemplo, até mesmo se admite que não poderiam
ter sido produzidas na forma clássica em que fizeram época, quando a produção artística
se manifesta como tal; que, portanto, no domínio da própria arte, certas de
suas figuras importantes só são possíveis num estágio inferior do
desenvolvimento artístico. Se esse é o caso em relação aos diferentes gêneros artísticos
no interior do domínio da própria arte, é já menos surpreendente que seja
igualmente o caso em relação a todo o domínio artístico no desenvolvimento
geral da sociedade. A dificuldade reside apenas na maneira geral de apreender
essas contradições. Uma vez especificadas, só por isso estão explicadas.
Tomemos, por exemplo, a relação com o nosso
tempo, primeiro, da arte grega, depois, da arte de Shakespeare. Sabe-se que a
mitologia grega não foi somente arsenal da arte grega, mas também a terra [em
que se desenvolveu]. A intuição da natureza e as relações sociais que a imaginação
grega inspira e constitui por isso mesmo o fundamento da [mitologia] grega, serão
compatíveis com as máquinas automáticas de fiar, as estradas de ferro, as
locomotivas e o telégrafo elétrico? Quem é Vulcano ao lado de Roberts &
Cia., Júpiter em comparação com o para-raios e Hermes face ao Crédit Mobilier? Toda mitologia supera,
governa e modela as forças da natureza na imaginação e pela imaginação,
portanto, desaparece quando essas forças são dominadas efetivamente. O que
seria da Fama ao lado de Printing House
Square?8. A arte grega supõe a mitologia grega, isto é, a
elaboração artística mas inconsciente da natureza e das próprias formas sociais
pela imaginação popular. É esse o seu material. O que não significa qualquer
mitologia, ou seja, qualquer elaboração artística inconsciente da natureza
(subentendendo essa palavra tudo o que é objetivo, incluindo, portanto, a
sociedade). Jamais a mitologia egípcia teria podido proporcionar o terreno ou o
seio materno para a arte grega. Mas de qualquer modo é necessária uma mitologia. Portanto, nunca uma
sociedade num estágio de desenvolvimento que exclua qualquer relação mitológica
com a natureza, qualquer relação geradora de mitos, exigindo assim do artista
uma fantasia independente da mitologia.
De outro ponto de vista, Aquiles será
compatível com a pólvora e o chumbo? Ou, em resumo, a Ilíada com a imprensa, ou melhor,
com a máquina de imprimir. O canto, as lendas épicas, a musa, não desaparecerão
necessariamente com a barra do tipógrafo? Não terão deixado de existir as condições
necessárias à poesia épica?
Mas a dificuldade não está em compreender que
a arte grega e a epopeia estão ligadas a certas formas do desenvolvimento
social. A dificuldade reside no fato de nos proporcionarem ainda um prazer
estético e de terem ainda para nós, em certos aspectos, o valor de normas e de
modelos inacessíveis.
Um homem não pode voltar a ser criança sem
cair na puerilidade. Mas não acha prazer na inocência da criança e, tendo
alcançado um nível superior, não deve aspirar ele próprio a reproduzir sua
verdade? Em todas as épocas, o seu próprio caráter não revive na verdade
natural da natureza infantil? Por que então a infância histórica da humanidade,
precisamente naquilo em que atingiu seu mais belo florescimento, por que essa
etapa para sempre perdida não há de exercer um eterno encanto? Há crianças mal-educadas
e crianças precoces. Muitos dos povos da Antiguidade pertencem a essa
categoria. Crianças normais foram os gregos. O encanto que a sua arte exerce
sobre nós não está em contradição com o caráter primitivo da sociedade em que
ela se desenvolveu. Pelo contrário, está indissoluvelmente ligado ao fato de as
condições sociais insuficientemente maduras em que essa arte nasceu, e somente
sob as quais poderia nascer, não poderão retomar jamais.”
8: Praça em Londres, onde se encontra
localizada a redação do Times. (N. da
Ed. Alemã.)
______________________________
Prefácio
“Minha investigação desembocou no seguinte
resultado: relações jurídicas, tais como formas de Estado, não podem ser compreendidas
nem a partir de si mesmas, nem a partir do assim chamado desenvolvimento geral do
espírito humano, mas, pelo contrário, elas se enraízam nas relações materiais de
vida, cuja totalidade foi resumida por Hegel sob o nome de “sociedade civil” (bürgerliche Gesellschaft), seguindo os
ingleses e franceses do século XVIII; mas que a anatomia da sociedade burguesa
(bürgerliche Gesellschaft)6
deve ser procurada na Economia Política. (...) O resultado geral a que cheguei e
que, uma vez obtido, serviu-me de fio condutor aos meus estudos, pode ser
formulado em poucas palavras: na produção social da própria vida, os homens
contraem relações determinadas, necessárias e independentes de sua vontade,
relações de produção estas que correspondem a uma etapa determinada de
desenvolvimento das suas forças produtivas materiais. A totalidade dessas relações
de produção forma a estrutura econômica da sociedade, a base real sobre a qual
se levanta uma superestrutura jurídica e política, e a qual correspondem formas
sociais determinadas de consciência. O modo de produção da vida material
condiciona o processo em geral de vida social, político e espiritual. Não é a
consciência dos homens que determina o seu ser, mas, ao contrário, é o seu ser
social que determina sua consciência. Em uma certa etapa de seu
desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em contradição
com as relações de produção existentes ou, o que nada mais é do que a sua
expressão jurídica, com as relações de propriedade dentro das quais aquelas até
então se tinham movido. De formas de desenvolvimento das forças produtivas
essas relações se transformam em seus grilhões. Sobrevém então uma época de
revolução social. Com a transformação da base econômica, toda a enorme
superestrutura se transforma com maior ou menor rapidez. Na consideração de
tais transformações é necessário distinguir sempre entre a transformação material
das condições econômicas de produção, que pode ser objeto de rigorosa
verificação da ciência natural, e as formas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas
ou filosóficas, em resumo, as formas ideológicas pelas quais os homens tomam
consciência desse conflito e o conduzem até o fim. Assim como não se julga o
que um indivíduo é a partir do julgamento que ele se faz de si mesmo, da mesma
maneira não se pode julgar uma época de transformação a partir de sua própria
consciência; ao contrário, é preciso explicar essa consciência a partir das
contradições da vida material, a partir do conflito existente entre as forças
produtivas sociais e as relações de produção. Uma formação social nunca perece
antes que estejam desenvolvidas todas as forças produtivas para as quais ela é
suficientemente desenvolvida e novas relações de produção mais adiantadas
jamais tomarão o lugar, antes que suas condições materiais de existência tenham
sido geradas no seio mesmo da velha sociedade. É por isso que a humanidade só
se propõe as tarefas que pode resolver, pois, se se considera mais atentamente,
se chegará a conclusão de que a própria tarefa só aparece onde as condições
materiais de sua solução já existem, ou, pelo menos, são captadas no processo
de seu devir. Em grandes traços podem ser caracterizados, como épocas
progressivas da formação econômica da sociedade, os modos de produção: asiática,
antigo, feudal e burguês moderno. As relações burguesas de produção constituem
a última forma antagônica do processo social de produção, antagônicas não em um
sentido individual, mas de um antagonismo nascente das condições sociais de
vida dos indivíduos; contudo, as forças produtivas que se encontram em
desenvolvimento no seio da sociedade burguesa criam ao mesmo tempo as condições
materiais para a solução desse antagonismo. Daí que com essa formação social se
encerra a pré-história da sociedade humana.”
6: Em breves palavras, pode-se dizer que a bürgerliche Gesellschaft (sociedade
civil), para Hegel se apresenta como a antítese da família, e o Estado surge
como a síntese de ambos, como união dos respectivos princípios. A sociedade
civil é o campo onde os indivíduos, como pessoas privadas, buscam a satisfação
de seus interesses. Marx, ao contrário, distingue a concepção hegeliana de sua
própria: a “sociedade civil” corresponde ao nível onde se dá “o relacionamento
dos possuidores de mercadorias”, “as relações materiais de vida” ou “metabolismo
social”. Ela constitui a anatomia ou a base da estrutura social. Mas a
sociedade burguesa (o termo alemão é, também, como se viu, bürgerliche Gesellschaft) reúne, para Marx, não somente o modo
burguês de produção como também as relações jurídicas, o Estado burguês etc.,
que implica. Em sua realidade histórica, a bürgerliche
Gesellschaft é a sociedade capitalista, com todas as formações sociais que
lhe são próprias.” (N. do T.)
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