Editora: Global
ISBN: 978-85-2600-869-4
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Opinião: ★★★★★
Páginas: 736
Sinopse: Ver Parte I
“A linguagem infantil também aqui se amoleceu
ao contato da criança com a ama negra. Algumas palavras, ainda hoje duras ou acres
quando pronunciadas pelos portugueses, se amaciaram no Brasil por influência da
boca africana. Da boca africana aliada ao clima – outro corruptor das línguas europeias,
na fervura por que passaram na América tropical e subtropical.
O processo de reduplicação da sílaba tônica, tão
das línguas selvagens e da linguagem das crianças, atuou sobre várias palavras dando
ao nosso vocabulário infantil um especial encanto. O “dó”" dos grandes tornou-se
o “dodói” dos meninos. Palavra muito mais dengosa.
A ama negra fez muitas vezes com as palavras o
mesmo que com a comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas,
só deixando para a boca do menino branco as sílabas moles. Daí esse português de
menino que no norte do Brasil, principalmente, é uma das falas mais doces deste
mundo. Sem rr nem ss; as sílabas finais moles; palavras que só faltam desmanchar-se
na boca da gente. A linguagem infantil brasileira, e mesmo a portuguesa, tem um
sabor quase africano: cacá, pipi, bumbum, tentem, neném, tatá, papá, papato,
lili, mimi, au-au, bambanho, cocô, dindinho, bimbinha. Amolecimento que se deu
em grande parte pela ação da ama negra junto à criança; do escravo preto junto ao
filho do senhor branco. Os nomes próprios foram dos que mais se amaciaram, perdendo
a solenidade, dissolvendo-se deliciosamente na boca dos escravos. As Antônias ficaram
Dondons, Toninhas, Totonhas; as Teresas, Tetés; os Manuéis, Nezinhos, Mandus, Manés;
os Franciscos, Chico, Chiquinho, Chico; os Pedros, Pepés; os Albertos, Bebetos,
Betinhos. (...)
Mesmo a língua falada conservou-se por algum tempo
dividida em duas: uma, das casas-grandes; outra, das senzalas. Mas a aliança da
ama negra com o menino branco, da mucama com a sinhá-moça, do sinhozinho com o moleque
acabou com essa dualidade. Não foi possível separar a cacos de vidro de preconceitos
puristas forças que tão frequente e intimamente confraternizavam. No ambiente relasso
da escravidão brasileira, as línguas africanas, sem motivos para subsistirem à parte,
em oposição à dos brancos, dissolveram-se nela, enriquecendo-a de expressivos modos
de dizer; de toda uma série de palavras deliciosas de pitoresco; agrestes e novas
no seu sabor; muitas vezes, substituindo com vantagem vocábulos portugueses, como
que gastos e puídos pelo uso. João Ribeiro, mestre em assuntos de português e de
história da língua nacional, que o diga com voz autorizada: “Número copioso de vocábulos
africanos penetraram na língua portuguesa, especialmente no domínio do Brasil, por
efeito das relações estabelecidas com as raças negras”. E não apenas vocábulos soltos,
desconjuntados, se acrescentaram à língua do colonizador europeu: verificaram-se
alterações “bastante profundas não só no que diz respeito ao vocabulário, mas até
ao sistema gramatical do idioma”. É certo que as diferenças a separarem cada vez
mais o português do Brasil do de Portugal não resultaram todas da influência africana;
também da indígena; “dos ciganos”; “dos espanhóis”; e João Ribeiro acrescenta: “do
clima, de novas necessidades, novas perspectivas, novas cousas e novas indústrias”.
Mas nenhuma influência foi maior que a do negro. As palavras africanas hoje do nosso
uso diário, palavras em que não sentimos o menor sabor arrevesado do exótico, são
inúmeras. Os menos puristas, escrevendo ou falando em público, já não têm, como
outrora, vergonha de empregá-las. É como se nos tivessem vindo de Portugal, dentro
dos dicionários e dos clássicos; com genealogia latina, árabe ou grega; com pai
ou mãe ilustre. São entretanto vocábulos órfãos, sem pai nem mãe definida, que adotamos
de dialetos negros sem história nem literatura; que deixamos que subissem, com os
moleques e as negras, das senzalas às casas-grandes. Que brasileiro – pelo menos
do Norte – sente exotismo nenhum em palavras como caçamba, canga, dengo, cafuné,
lubambo, mulambo, caçula, quitute, mandinga, moleque, camundongo, munganga, cafajeste,
quibebe, quengo, batuque, banzo, mucambo, banguê, bozô, mocotó, bunda, zumbi, vatapá,
caruru, banze, jiló, mucama, quindim, catinga, mugunzá, malungo, birimbau, tanga,
cachimbo, candomblé? Ou acha mais jeito em dizer “mau cheiro” do que “catinga”?
Ou “garoto” de preferência a “moleque”? Ou “trapo” em vez de “molambo”? São palavras
que correspondem melhor que as portuguesas à nossa experiência, ao nosso paladar,
aos nossos sentidos, às nossas emoções. (...)
A força, ou antes, a potencialidade da cultura
brasileira parece-nos residir toda na riqueza dos antagonismos equilibrados; o caso
dos pronomes que sirva de exemplo. Seguirmos só o chamado “uso português”, considerando
ilegítimo o “uso brasileiro”, seria absurdo. Seria sufocarmos, ou pelo menos abafarmos
metade de nossa vida emotiva e das nossas necessidades sentimentais, e até de inteligência,
que só encontram expressão justa no “me dê” e no “me diga”. Seria ficarmos com um
lado morto; exprimindo só metade de nós mesmos. Não que no brasileiro subsistam,
como no anglo-americano, duas metades inimigas: a branca e a preta; o ex-senhor
e o ex-escravo. De modo nenhum. Somos duas metades confraternizantes que se vêm
mutuamente enriquecendo de valores e experiências diversas; quando nos completarmos
em um todo, não será com o sacrifício de um elemento ao outro. Lars Ringbom vê grandes
possibilidades de desenvolvimento de cultura no mestiço: mas atingido o ponto em
que uma metade de sua personalidade não procure suprimir a outra. O Brasil pode-se
dizer que já atingiu esse ponto: o fato de já dizermos “me diga”, e não apenas “diga-me”,
é dos mais significativos. Como é o de empregarmos palavras africanas com a naturalidade
com que empregamos as portuguesas. Sem aspas nem grifo.
A figura boa da ama negra que, nos tempos patriarcais,
criava o menino lhe dando de mamar, que lhe embalava a rede ou o berço, que lhe
ensinava as primeiras palavras de português errado, o primeiro “padre-nosso”, a
primeira “ave-maria” a”, o primeiro “vôte!” ou “oxente”, que lhe dava na boca o
primeiro pirão com carne e molho de ferrugem”, ela própria amolegando a comida –
outros vultos de negros se sucediam na vida do brasileiro de outrora. O vulto do
moleque companheiro de brinquedo. O do negro velho, contador de histórias. O da
mucama. O da cozinheira. Toda uma série de contatos diversos importando em novas
relações com o meio, com a vida, com o mundo. Importando em experiências que se
realizavam através do escravo ou à sua sombra de guia, de cúmplice, de curandeiro
ou de corruptor.”
““Logo que a criança deixa o berço”, escreve Koster,
que soube observar com tanta argúcia a vida de família nas casas-grandes coloniais,
“dão-lhe um escravo do seu sexo e de sua idade, pouco mais ou menos, por camarada,
ou antes, para seus brinquedos. Crescem juntos e o escravo torna-se um objeto sobre
o qual o menino exerce os seus caprichos; empregam-no em tudo e além disso incorre
sempre em censura e em punição [...]. Enfim, a ridícula ternura dos pais anima o
insuportável despotismo dos filhos. “Não havia casa onde não existisse um ou mais
moleques, um ou mais curumins, vítimas consagradas aos caprichos de nhonhô”, escreve
José Veríssimo, recordando os tempos da escravidão. “Eram-lhe o cavalo, o leva-pancadas,
os amigos, os companheiros, os criados.” Lembra-nos Júlio Belo o melhor brinquedo
dos meninos de engenho de outrora: montar a cavalo em carneiros; mas na falta de
carneiros, moleques. Nas brincadeiras, muitas vezes brutas, dos filhos dos senhores
de engenho, os moleques serviam para tudo: eram bois de carro, eram cavalos de montaria,
eram bestas de almanjarras, eram burros de liteiras e de cargas as mais pesadas.
Mas principalmente cavalos de carro. Ainda hoje, nas zonas rurais menos invadidas
pelo automóvel, onde velhos cabriolés de engenho rodam pelo massapé mole, entre
os canaviais, os meninos brancos brincam de carro de cavalo “com moleques e até
molequinhas filhas das amas”, servindo de parelhas. Um barbante serve de rédea;
um galho de goiabeira, de chicote.
É de supor a repercussão psíquica sobre os adultos
de semelhante tipo de relações infantis – favorável ao desenvolvimento de tendências
sadistas e masoquistas. Sobre a criança do sexo feminino, principalmente, se aguçava
o sadismo, pela maior fixidez e monotonia nas relações da senhora com a escrava,
sendo até para admirar, escrevia-o mesmo Koster em princípios do século XIX, “encontrarem-se
tantas senhoras excelentes, quando tão pouco seria de surpreender que o caráter
de muitas se ressentisse da desgraçada direção que lhes dão na infância.” Sem contatos
com o mundo que modificassem nelas, como nos rapazes, o senso pervertido de relações
humanas; sem outra perspectiva que a da senzala vista da varanda da casa-grande,
conservavam muitas vezes as senhoras o mesmo domínio malvado sobre as mucamas que
na infância sobre as negrinhas suas companheiras de brinquedo. “Nascem, criam-se
e continuam a viver rodeadas de escravos, sem experimentarem a mais ligeira contrariedade,
concebendo exaltada opinião de sua superioridade sobre as outras criaturas humanas,
e nunca imaginando que possam estar em erro”, escreveu Koster das senhoras brasileiras.
Além disso, aborrecendo-se facilmente. Falando alto. Gritando de vez em quando.
Fletcher e Kidder, que estiveram no Brasil no meado do século XIX, atribuem a fala
estridente e desagradável das brasileiras ao hábito de falarem sempre aos gritos,
dando ordens às escravas. O mesmo teriam observado no sul dos Estados Unidos, que
sofreu influências sociais e econômicas tão semelhantes às que atuaram sobre o Brasil
durante o regime de trabalho escravo. Ainda hoje, por contágio das gerações escravocratas,
as moças das Carolinas, do Mississipi, de Alabama falam gritando do mesmo modo que
no Brasil as nortistas, filhas e netas de senhor de engenho.
Quanto à maior crueldade das senhoras que dos
senhores no tratamento dos escravos é fato geralmente observado nas sociedades escravocratas.
Confirmam-no os nossos cronistas. Os viajantes, o folclore, a tradição oral. Não
são dois nem três, porém muitos os casos de crueldade de senhoras de engenho contra
escravos inermes. Sinhá-moças que mandavam arrancar os olhos de mucamas bonitas
e trazê-los à presença do marido, à hora da sobremesa, dentro da compoteira de doce
e boiando em sangue ainda fresco. Baronesas já de idade que por ciúme ou despeito
mandavam vender mulatinhas de quinze anos à velhos libertinos. Outras que espatifavam
a salto de botina dentaduras de escravas; ou mandavam-lhes cortar os peitos, arrancar
as unhas, queimar a cara ou as orelhas. Toda uma série de judiadas.
O motivo, quase sempre, o ciúme do marido. O rancor
sexual. A rivalidade de mulher com mulher. (...)
O isolamento árabe em que viviam as antigas sinhás-donas,
principalmente nas casas-grandes de engenho, tendo por companhia quase exclusivamente
escravas passivas; sua submissão muçulmana diante dos maridos, a quem se dirigiam
sempre com medo, tratando-os de “Senhor”, talvez constituíssem estímulos poderosos
ao sadismo das sinhás, descarregado sobre as mucamas e as molecas em rompantes histéricos;
“passado adiante”, como em certos jogos ou brinquedos brutos. Sadistas eram, em
primeiro lugar, os senhores com relação às esposas.”
“Em contraste com certas franquezas e até exibicionismos
que caracterizam a vida sexual do brasileiro antigo, houve exageros verdadeiramente
mórbidos de discrição ou pudor. Cônjuges, por exemplo, que nunca se viram despidos
na intimidade das alcovas, processando-se entre eles o ato sexual vedado por uma
colcha com orifício no meio: evitava-se assim não só o contato direto do corpo com
corpo como a revelação da nudez. Uma dessas colchas é conservada por pessoa nossa
amiga, entre outras relíquias da ordem patriarcal brasileira.”
“No Brasil, país de formação social profundamente
católica, sempre se fez mais questão do que nas Antilhas e no sul dos Estados Unidos
da condição religiosa do escravo: “Os africanos importados de Angola”, informa Koster,
“são batizados em massa antes de saírem de sua terra, e chegando ao Brasil ensinam-lhes
os dogmas religiosos e os deveres do culto que vão seguir. Trazem no peito o sinal
da Coroa Real a fim de indicar que foram batizados e por eles pagos os direitos.
Os escravos que se importam das outras regiões da África chegam ao Brasil sem ter
sido batizados e antes de proceder-se a cerimônia que os deve fazer cristãos é necessário
ensinar-lhes certas orações, para o que concede-se aos mestres o prazo de um ano
no fim do qual são obrigados a apresentar os discípulos à igreja paroquial.” Essa
lei não acreditava Koster que fosse rigorosamente cumprida com relação ao tempo:
era-o porém em essência, não havendo senhor brasileiro capaz de trair os preceitos
da Igreja contra o paganismo. “Do seu lado o escravo deseja a qualidade de cristão
porque os camaradas tendo com ele a menor questão temiam sempre o excesso dos injuriosos
epítetos que lhe dirigem, com o de pagão.” Pagão ou mouro. Acrescenta Koster. “O
negro sem batismo, vê-se com pesar considerado um ser inferior e embora ignorando
o valor que os brancos ligam àquela cerimônia, sabe que deve lavar a mancha que
lhe exprobram e mostra-se impaciente por tornar-se igual aos outros. Os africanos,
chegados há muito tempo, estando já imbuídos de sentimentos católicos, parecem esquecer
que outrora estiveram nas mesmas condições que os recém-chegados. Não se pergunta
aos escravos se querem ou não ser batizados; a entrada deles no grêmio da Igreja
Católica é considerada como questão de direito. Realmente eles são tidos menos por
homens do que por animais ferozes até gozarem do privilégio de ir à missa e receber
os sacramentos.”
Não pretendemos aqui considerar o grau de cristianização
atingido pela massa escrava –mas o certo é que, por contágio e pressão social, rapidamente
se impregnou o escravo negro, no Brasil, da religião dominante. Aproximou-se por
intermédio dela da cultura do senhor; dos seus padrões de imoralidade. Alguns se
tornaram tão bons cristãos quanto os senhores; capazes de transmitir às crianças
brancas um catolicismo tão puro quanto o que estas receberiam das próprias mães.
Sílvio Romero, recordando o seu tempo de menino
em um engenho do Norte, disse uma vez que nunca viu rezar tanto quanto a escrava
Antônia, sua mãe negra. Ela é que o fizera religioso. “Devo isso [a religião] à
mucama de estimação a que foram, em casa de meus avós, encarregados os desvelos
de minha meninice. Ainda hoje existe, nonagenária, no Lagarto, ao lado de minha
mãe, essa adorada Antônia, a quem me acostumei a chamar também de mãe... Nunca vi
criatura tão meiga, e nunca vi rezar tanto. Dormia comigo no mesmo quarto e, quando,
por alta noite, eu acordava, lá estava ela de joelhos... rezando... Bem cedo aprendi
as orações e habituei-me tão intensamente a considerar a religião como coisa séria,
que ainda agora a tenho na conta de uma criação fundamental e indestrutível da humanidade.
Desgraçadamente, ai de mim! não rezo mais, mas sinto que a religiosidade jaz dentro
do meu sentir inteiriça e irredutível.” Outros brasileiros, da geração de Sílvio,
poderiam dizer o mesmo. O próprio Joaquim Nabuco terá porventura aprendido com a
sua velha ama negra de Massangana o padre-nosso que, no fim da vida, voltou a rezar
na igreja do Oratório em Londres. Quando morreu-lhe a madrinha – “cena de naufrágio”
que evoca em uma das páginas mais comovidas de Minha formação – foi o seu
grande consolo: a velha ama negra continuar a servi-lo como dantes. “O menino está
mais satisfeito”, escrevia a seu pai o amigo que o devia levar à Corte, “depois
que eu lhe disse que a sua ama o acompanharia.”
Mas o ponto que pretendemos destacar não é o dessas
fundas afeições, quase de mãe e filho, que no tempo da escravidão se formaram entre
escravas amas-de-leite e nhonhôs brancos; mas retificar a ideia de que através da
ama-de-leite o menino da casa-grande só fizesse receber da senzala influências ruins;
absorvendo com o primeiro alimento os germes de todas as doenças e superstições
africanas. Os germes de doenças, recebeu-os muitas vezes; e outras os transmitiu;
mas recebeu também nos afagos da mucama a revelação de uma bondade porventura maior
que a dos brancos; de uma ternura como não a conhecem igual os europeus; o contágio
de um misticismo quente, voluptuoso, de que se tem enriquecido a sensibilidade,
a imaginação, a religiosidade dos brasileiros.
Verificou-se entre nós uma profunda confraternização
de valores e de sentimentos. Predominantemente coletivistas, os vindos das senzalas;
puxando para o individualismo e para o privativismo, os das casas-grandes. Confraternização
que dificilmente se teria realizado se outro tipo de cristianismo tivesse dominado
a formação social do Brasil; um tipo mais clerical, mais ascético, mais ortodoxo;
calvinista ou rigidamente católico; diverso da religião doce, doméstica, de relações
quase de família entre os santos e os homens, que das capelas patriarcais das casas-grandes,
das igrejas sempre em festas – batizados, casamentos, “festas de bandeiras” de santos,
crismas, novenas – presidiu o desenvolvimento social brasileiro. Foi este cristianismo
doméstico, lírico e festivo, de santos compadres, de santas comadres dos homens,
de Nossas Senhoras madrinhas dos meninos, que criou nos negros as primeiras ligações
espirituais, morais e estéticas com a família e com a cultura brasileira. “Os escravos
tornados cristãos fazem mais progresso na civilização”, observou Koster. “Não se
tem lançado mão de constrangimento para os fazer adotar os costumes dos senhores,
mas insensivelmente lhes dirigem as ideias para este lado; os senhores ao mesmo
tempo contraem alguns hábitos dos seus escravos e desta sorte o superior e o inferior
se aproximam. Eu não duvido que o sistema de batizar negros importados tenha antes
a sua origem na devoção dos portugueses do que em vistas políticas, mas tem produzido
os melhores resultados”.”
“De Portugal transmitira-se ao Brasil o costume
das mães ricas não amamentarem os filhos, confiando-os ao peito de saloias ou escravas.
Júlio Dantas, nos seus estudos sobre o século XVIII em Portugal, registra o fato:
“o precioso leite materno era quase sempre substituído pelo leite mercenário das
amas”. O que atribui à moda. Com relação ao Brasil, seria absurdo atribuir-se à
moda a aparente falta de ternura materna da parte das grandes senhoras. O que houve,
entre nós, foi impossibilidade física das mães de atenderem a esse primeiro dever
de maternidade. Já vimos que se casavam todas antes do tempo; algumas fisicamente
incapazes de ser mães em toda a plenitude. Casadas, sucediam-se nelas os partos.
Um filho atrás do outro. Um doloroso e contínuo esforço de multiplicação. Filhos
muitas vezes nascidos mortos – anjos que iam logo se enterrar em caixõezinhos azuis.
Outros que se salvavam da morte por milagre. Mas todos deixando as mães uns mulambos
de gente.
Nossos avós e bisavós patriarcais, quase sempre
grandes procriadores, às vezes terríveis sátiros de patuá de Nossa Senhora sobre
o peito cabeludo, machos insaciáveis colhendo do casamento com meninas todo um estranho
sabor sensual, raramente tiveram a felicidade de se fazerem acompanhar da mesma
esposa até a velhice. Eram elas que, apesar de mais moças, iam morrendo; e eles
casando com irmãs mais novas ou primas da primeira mulher. Quase uns barba-azuis.
São numerosos os casos de antigos senhores de engenho, capitães-mores, fazendeiros,
barões e viscondes do tempo do Império, casados três, quatro vezes; e pais de numerosa
prole. Fatos que são indicados quase como glórias nos seus testamentos e os vários
matrimônios, nos túmulos e catacumbas dos velhos cemitérios e das capelas de engenho.
Pois essa multiplicação de gente se fazia à custa do sacrifício das mulheres, verdadeiras
mártires em que o esforço de gerar, consumindo primeiro a mocidade, logo consumia
a vida.”
“O Dr. Francisco da Fonseca Henriques – grande
celebridade médica em Portugal no século XVIII – opunha-se às mulheres fuscas e
morenas: aconselhava as louras; o autor da Polyanthea
era grande partidário das morenas. Alegava que “alem de serem mais sanguinhas, convertem
melhor o alimento em sangue e em leite, á maneira da terra, que quanto é mais negra,
tanto é mais fértil.”
Os conselhos do autor da Polyanthea devem ter repercutido simpaticamente entre os portugueses
da América, por várias circunstâncias predispostos a criar seus meninos em peito
de escrava negra. Negra ou mulata. Peitos de mulheres sãs, rijas, cor das melhores
terras agrícolas da colônia. Mulheres cor de massapé e de terra roxa. Negras e mulatas
que além do leite mais farto apresentavam-se satisfazendo outras condições, das
muitas exigidas pelos higienistas portugueses do tempo de D. João V. Dentes alvos
e inteiros (nas senhoras brancas era raro encontrar-se uma de dentes sãos, e pode-se
afirmar, através dos cronistas, das anedotas e das tradições coloniais, ter sido
essa uma das causas principais de ciúme ou rivalidade sexual entre senhoras e mucamas).
Não serem primíparas. Não terem sardas. Serem mães de filhos sadios e vivedouros.”
“A verdade é que perder um filho pequeno nunca
foi para a família patriarcal a mesma dor profunda que para uma família de hoje.
Viria outro. O anjo ia para o céu. Para junto de Nosso Senhor, insaciável em cercar-se
de anjos. Ou então era mau-olhado. Coisa-feita. Bruxedo. Feitiço. Contra o que só
as figas, os dentes de jacaré, as rezas, os tesconjuros.
O Dr. Teixeira registra, na sua memória, ter frequentemente
ouvido dos pais estas palavras: “é uma felicidade a morte das crianças”; e o fato
é que se prolongaram pelo século XIX os enterros de anjos. Uns em caixões azuis
ou encarnados, os cadáveres pintados a carmim como o do meninozinho que Ewbank viu
morto no Rio de Janeiro; os mais pobres, em tabuleiros cheios de flores; alguns
até em caixas de papelão, das grandes, de camisas de homem.”
“Em outros vícios escorregava a meninice dos filhos
do senhor de engenho; nos quais, um tanto por efeito do clima e muito em consequência
das condições de vida criadas pelo sistema escravocrata, antecipou-se sempre a atividade
sexual, através de práticas sadistas e bestiais. As primeiras vítimas eram os moleques
e animais domésticos; mais tarde é que vinha o grande atoleiro de carne: a negra
ou a mulata. Nele é que se perdeu, como em areia gulosa, muita adolescência insaciável.
Daí fazer-se da negra ou mulata a responsável
pela antecipação de vida erótica e pelo desbragamento sexual do rapaz brasileiro.
Com a mesma lógica poderiam responsabilizar-se os animais domésticos; a bananeira;
a melancia; a fruta do mandacaru com o seu visgo e a sua adstringência quase de
carne. Que todos foram objetos em que se exerceu – e ainda se exerce – a precocidade
sexual do menino brasileiro.”
“Nos antigos colégios, se houve por um lado, em
alguns casos, lassidão – fazendo-se vista grossa a excessos, turbulências e perversidades
dos meninos – por outro lado abusou-se criminosamente da fraqueza infantil. Houve
verdadeira volúpia em humilhar a criança; em dar bolo em menino. Reflexo da tendência
geral para o sadismo criado no Brasil pela escravidão e pelo abuso do negro. O mestre
era um senhor todo-poderoso. Do alto de sua cadeira, que depois da Independência
tornou-se uma cadeira quase de rei, com a coroa imperial esculpida em relevo no
espaldar, distribuía castigos com o ar terrível de um senhor de engenho castigando
negros fujões. Ao vadio punha de braços abertos; ao que fosse surpreendido dando
uma risada alta, humilhava com um chapéu de palhaço na cabeça para servir de mangação
à escola inteira; a um terceiro, botava de joelhos sobre grãos de milho. Isto sem
falarmos da palmatória e da vara – esta, muitas vezes com um espinho ou um alfinete
na ponta, permitindo ao professor furar de longe a barriga da perna do aluno.
O aluno que não soubesse a lição de português,
que desse uma silabada em latim, que borrasse uma página do caderno – quase um missal
– de caligrafia, arriscava-se a castigo tremendo da parte do padre-mestre, do mestre-régio,
do diretor do colégio – de um desses terríveis Quibungos de sobrecasaca ou de batina.
Da letra bonita fez-se sempre muita questão: o ensino da caligrafia teve alguma
coisa de litúrgico nos antigos colégios do Brasil. Escrevia-se com pena de ganso.
“O mestre gastava horas e horas em aperfeiçoar-lhes os bicos, tendo antes talhado
o aparão com um canivete de molas”, diz-nos o padre Antunes de Sequeira.
Preparados os bicos das penas de ganso, começava a tortura – o menino com a cabeça
para o lado, a ponta da língua de fora, em uma atitude de quem se esforça para chegar
à perfeição; o mestre, de lado, atento à primeira letra gótica que saísse troncha.
Um errinho, qualquer – e eram bordoadas nos dedos, beliscões pelo corpo, puxavante
de orelha, um horror. Os rapazes de letra bonita que o visconde de Cabo Frio sempre
preferiu, para secretários de legações, aos de letra de médico, foram educados por
esses mestres terríveis que fizeram do ensino da caligrafia um rito; alguma coisa
de religioso e de sagrado. (...)
Quem tiver a pachorra, em um dia de veneta, de
passar a vista pelos compêndios, livros de leitura, aritméticas, por onde estudaram
nossos avós coloniais e do tempo do Império, ficará com uma ideia de coisa terrivelmente
melancólica que foi outrora aprender a ler. Imaginem-se esses horrorosos compêndios
completados pelos mestres-régios, pelos professores de colégio do tempo do Império
– todos eles fedendo a rapé, assoando-se de vez em quando em grandes lenços encarnados;
todos de palmatória e de vara de marmelo na mão; no polegar ou no indicador da mão
direita, uma unha enorme, de mandarim chinês.
A outros tormentos esteve obrigada a criança branca
– e até a preta ou mulata, quando criada pelas iaiás das casas-grandes. “A sociedade
tem também sua grammatica”, escreveu em 1845 o autor de certo Código do bom-tom
que alcançou grande voga entre os barões e viscondes do Império. Os quais, para
tomarem ar de europeus, não só deram para forrar os tetos das casas-grandes – até
então de telhava – como para adotar regras de bom-tom francesas e inglesas na criação
dos filhos. E adotá-las com exageros e excessos.
A vítima desse esnobismo dos barões foi o filho.
Que judiasse com os moleques e as negrinhas, estava direito; mas na sociedade dos
mais velhos o judiado era ele. Ele que nos dias de festa devia apresentar-se de
roupa de homem, e duro, correto, sem machucar o terno preto em brinquedo de criança.
Ele que em presença dos mais velhos devia conservar-se calado, um ar seráfico, tomando
a bênção a toda pessoa de idade que entrasse em casa e lhe apresentasse a mão suja
de rapé. Ele que ao pai devia chamar “senhor pai” e à mãe “senhora mãe”: a liberdade
de chamar “papai” e “mamãe” era só na primeira infância. Esse duro costume modificou-se,
porém, no século XIX. Como se modificou o de as mulheres só chamarem o marido de
“senhor”; as mais afoitas foram chamando-o de “tu”, as outras de “você”, acabando-se
com o rígido tratamento colonial de “senhor” da parte das esposas e dos filhos.
Até então, esposas e filhos se achavam quase no mesmo nível dos escravos.
É verdade que desde esses tempos remotos o “senhor”
se adoçou em “sinhô”, em “nhonhô”, em “ioiô”; do mesmo modo que “negro” adquiriu
na boca dos brancos um sentido de íntima e especial ternura: “meu nego”, “minha
nega”; e nas cartas coloniais: “Saudoso primo e muito seu negro”, “negrinha humilde”
etc.
Só depois de casado arrisca-se o filho a fumar
na presença do pai; e fazer a primeira barba era cerimônia para que o rapaz necessitava
sempre de licença especial. Licença sempre difícil, e só obtida quando o buço e
a penugem da barba não admitiam mais demora.
À menina, a esta negou-se tudo que de leve parecesse
independência. Até levantar a voz na presença dos mais velhos. Tinha-se horror e
castigava-se a beliscão a menina respondona ou saliente; adoravam-se as acanhadas,
de ar humilde. O ar humilde que as filhas de Maria ainda conservam nas procissões
e nos exercícios devotos da Semana Santa, as meninas de outrora conservavam o ano
inteiro. É verdade que as atrevidas namoravam nas festas de São Gonçalo; outras
nos concertos de igreja. Mas isso nas cidades: no Rio, no Recife, na Bahia; e assim
mesmo namoros a sinais de leque; quase sem conversa ou agarrado de mão.
As meninas criadas em ambiente rigorosamente patriarcal,
estas viveram sob a mais dura tirania dos pais – depois substituída pela tirania
dos maridos. E se mucamas e moleques foram quase sempre aliados naturais dos filhos
contra os “senhores pais”, das mulheres de quinze anos contra os “senhores maridos”
de quarenta e cinquenta, de sessenta e setenta, houve casos de escravas enredeiras
e fuxiquentas, umas delatoras, outras que por vingança inventavam histórias de namoro
das sinhás-moças ou das sinhás-donas. De modo que estas deviam estar sempre prevenidas;
e nunca se considerarem sozinhas, nem mesmo para inocentes namoros de leque, de
lenço ou de recados trazidos pelas negras boceteiras. (...)
Insurgindo-se contra o sadismo dos mestres-escolas
e dos pais, Serpa condena severamente o uso de se açoitarem os meninos nas nádegas,
“prática perniciosa”, própria para “fomentar costumes funestos: a irritação que
se ocasionar sobre esta parte, communicar-se-ha ás partes da geração, logo que a
impressão de dôr principiar a enfraquecer-se.” De modo que talvez fossem melhores
os suplícios de que nos fala o padre Sequeira: o menino ajoelhado em caroço de milho
durante duas, três, quatro horas; os bolos das várias palmatórias pedagógicas e
domésticas – a pele de cação, a de jacarandá e a maior, para os valentões, de gramari.
Em Minas dizem que certo padre do Caraça, padre Antunes, “amarrava o lenço no braço
para ter mais força de puxar a palmatória”. A pedagogia como a disciplina patriarcal
no Brasil apoiou-se sobre base distintamente sadista. Resultado, em grande parte,
das condições do seu início: uma pedagogia e uma disciplina de vencedores sobre
vencidos, de conquistadores sobre conquistados, de senhores sobre escravos. É um
estudo a fazer-se, o das várias formas e instrumentos de suplícios a que esteve
sujeito o menino no Brasil em casa e no colégio: as várias espécies de palmatórias,
a vara de marmelo, às vezes com alfinete na ponta, o cipó, o galho de goibeira,
o muxicão, o cachação, o puxavante de orelha, o beliscão simples, o beliscão de
frade, o cascudo, o cocorote, a palmada. O menino foi vítima quase tanto quanto
o escravo do sadismo patriarcal.”
“É verdade que esses senhores de engenho, homens
moles, de mãos de mulher, amigos exagerados da rede; voluptuosos do ócio; aristocratas
com vergonha de ter pernas e pés para andar e pisar no chão como qualquer escravo
ou plebeu – souberam ser duros e valentes em momentos de perigo. Souberam empunhar
espadas e repelir estrangeiros afoitos; defender-se de bugres; expulsar da colônia
capitães-generais de Sua Majestade. Foram os senhores de engenho pernambucanos que
colonizaram a Paraíba e o Rio Grande do Norte, tendo de enfrentar índios dos mais
brabos, e valentes; que livraram o Maranhão dos franceses; que expulsaram os holandeses
do norte do Brasil.
E não só os senhores: também as senhoras de engenho
tiveram seus assomos de energia. Seus rompantes de estoicismo. “No mostraran
por cierto menos valor en esta acción que nuestros soldados”, diz o marquês
de Basto das senhoras pernambucanas que tomaram parte na retirada para Alagoas deixando
os engenhos e as casas-grandes em ruínas.
Mas excetuados esses rompantes guerreiros, a vida
dos aristocratas do açúcar foi lânguida, morosa. Uma vez ou outra, as “canas” e
as “argolinhas”; cavalhadas; danças. Mas raramente. Os dias se sucediam iguais;
a mesma modorra; a mesma vida de rede, banzeira, sensual. E os homens e as mulheres,
amarelos, de tanto viverem deitados dentro de casa e de tanto andarem de rede ou
de palanquim. Nos Estados Unidos, onde a rede não chegou a dominar como aqui; onde
a moleza dos senhores de escravos se contentou com o sofá e a cadeira de balanço,
mais tarde adotada pelo patriarcalismo brasileiro, os homens criados sob a influência
da escravidão africana impressionaram aos europeus pelas suas atitudes sempre comodistas;
pelo seu andar desengoçado; pela nenhuma esbelteza do seu porte; pelo seu ar de
indivíduos fracos do peito, os ombros curvos, as espáduas estreitas. Só a voz, grande
e imperiosa. Francis Trollope dá-nos um retrato de americano dos tempos da escravidão
que parece de brasileiro do Norte: “I never saw an American man walk or stand
well [...]”. E raros os europeus que não se deixaram impressionar pela palidez
doentia dos homens e das senhoras americanas de antes da Guerra Civil. O regime
econômico de produção – o da escravidão e da monocultura – dominando a diversidade
de clima, de raça, de moral religiosa, criou no sul dos Estados Unidos um tipo de
aristocrata mórbido, franzino, quase igual ao do Brasil nas maneiras, nos vícios,
nos gostos e no próprio físico. Os ingredientes diversos; mas a mesma forma. O clima
quente pode ter contribuído para a maior lubricidade e a maior languidez do brasileiro;
mas não as criou ou produziu.”
“Atribuem alguns cronistas da escravidão grande
importância à prostituição das negras; mas das negras e mulatas exploradas pelos
brancos. La Barbinais afirma que até senhoras se aproveitavam de tão nefando comércio.
Enfeitavam as molecas de correntes de ouro, pulseiras, anéis e rendas finas, participando
depois dos proventos do dia. Os negros e as pretas chamados de ganho serviram para
tudo no Brasil: vender azeite-de-carrapato, bolo, cuscuz, manga, banana, carregar
fardos, transportar água do chafariz às casas dos pobres – trazendo de tarde os
proventos para o senhor; e a acreditarmos em La Barbinais serviram até para isso...
Mas, admitida uma exceção ou outra, não foram senhoras de família, mas brancas desclassificadas,
que assim exploraram as escravas. As vezes negrinhas de dez, doze anos já estavam
na rua se oferecendo a marinheiros enormes, grangazás ruivos que desembarcavam dos
veleiros ingleses e franceses, com uma fome doida de mulher. E toda essa superexcitação
dos gigantes louros, bestiais, descarregava-se sobre molequinhas; e além da superexcitação,
a sífilis; as doenças do mundo – das quatro partes do mundo; as podridões internacionais
do sangue.
Em meados do século XIX, reinando sobre o Brasil
Sua majestade o imperador D. Pedro II, um homem tão casto e puro – tipo do marido
ideal para a rainha Vitória – em contraste com seu augusto pai que, muito brasileiramente,
até negrinhas desvirginou e emprenhou – as ruas do Sabão – hoje, desaparecida, com
a construção da avenida Presidente Vargas – e da Alfândega eram ainda piores do
que o Mangue carioca: escravas de dez, doze, quinze anos mostrando-se às janelas,
seminuas; escravas a quem seus senhores e suas senhoras (geralmente maitresses
de maison) obrigavam – diz-nos um escrito da época – “a vender seus favores,
tirando desse cínico comércio os meios de subsistência”. Nas ruas da Bahia, diz-nos
Vilhena, referindo-se aos últimos anos de vida colonial, que era um horror: “Libidinozos,
vadios e ociosos de hum e outro sexo que logo que anoitece entulhão as ruas, e por
ellas vagão, e sem pejo nem respeito a ninguém, fazem gala de sua torpeza...” Refere-se
ainda o professor de grego a “paes de famílias pobres” – os nossos “brancos pobres” – que não deixando às
filhas outra herança senão a da ociosidade e a dos preconceitos contra o trabalho
manual, “depois de adultas se valem delias para poderem subsistir...” Mas o grosso
da prostituição, formaram-no as negras, exploradas pelos brancos. Foram os corpos
das negras – às vezes meninas de dez anos – que constituíram, na arquitetura moral
do patriarcalismo brasileiro, o bloco formidável que defendeu dos ataques e afoitezas
dos don-juans a virtude das senhoras brancas.
Burton lembra a relação entre Agapemone e a pureza
dos lares; tanto mais opulento Agapemone, mais livres os lares do don-juanismo.
A teoria de Bernard de Mandeville. Aplicada ao Brasil patriarcal, dá realmente nisto:
a virtude da senhora branca apoia-se em grande parte na prostituição da escrava
negra. A mãe de família, a moça solteira, a mulher, não só em Minas, como no Brasil
em geral, pareceu a Burton “excepcionalmente pura” (“exceptionally purê”).
Que não se julgasse a mulher brasileira pelos costumes da Corte e das cidades, e
sim pelos do interior. Nas províncias viviam as senhoras em um sistema de semi-reclusão
oriental, é certo; mas dentro desse sistema, eram mulheres de uma pureza rara. Pureza
que o viajante inglês não hesitou em contrastar com as “flirtations” das
moças inglesas antes do casamento, com a relativa liberdade das canadenses e das
norte-americanas antes e depois de casadas. Mas somos forçados a concluir, antes
de nos regozijarmos com os elogios de Burton à pureza das senhoras brasileiras do
tempo da escravidão, que muita dessa castidade e dessa pureza manteve-se à custa
da prostituição da escrava negra; à custa da tão caluniada mulata; à custa da promiscuidade
e da lassidão estimulada nas senzalas pelos próprios senhores brancos.”
“Ao escravo negro se obrigou aos trabalhos mais
imundos na higiene doméstica e pública dos tempos coloniais. Um deles, o de carregar
à cabeça, das casas para as praias, os barris de excremento vulgarmente conhecidos
por tigres. Barris que nas casas-grandes das cidades ficavam longos dias dentro
de casa, debaixo da escada ou em outro recanto acumulando matéria. Quando o negro
os levava é que já não comportavam mais nada. Iam estourando de cheios. De cheios
e de podres. Às vezes largavam o fundo, emporcalhando-se então o carregador da cabeça
aos pés. Foram funções, essas e várias outras, quase tão vis, desempenhadas pelo
escravo africano com uma passividade animal.”
“Foi o negro quem animou a vida doméstica do brasileiro
de sua maior alegria. O português, já de si melancólico, deu no Brasil para sorumbático,
tristonho; e do caboclo nem se fala: calado, desconfiado, quase um doente na sua
tristeza. Seu contato só fez acentuar a melancolia portuguesa. A risada do negro
é que quebrou toda essa “apagada e vil tristeza” em que se foi abafando a vida nas
casas-grandes. Ele que deu alegria aos são-joões de engenho; que animou os bumbas-meu-boi,
os cavalos-marinhos, os carnavais, as festas de Reis. Que à sombra da Igreja inundou
das reminiscências alegres de seus cultos totêmicos e fálicos as festas populares
do Brasil; na véspera de Reis e depois, pelo carnaval, coroando os seus reis e as
suas rainhas; fazendo sair debaixo de umbelas e de estandartes místicos, entre luzes
quase de procissão seus ranchos protegidos por animais – águias, pavões, elefantes,
peixes, cachorros, carneiros, avestruzes, canários – cada rancho com o seu bicho
feito de folha-de-flandres conduzido à cabeça, triunfalmente; os negros cantando
e dançando, exuberantes, expansivos. (...)
Mas não foi toda de alegria a vida dos negros,
escravos dos ioiôs e das iaiás brancas. Houve os que se suicidaram comendo terra,
enforcando-se, envenenando-se com ervas e potagens dos mandingueiros. O banzo deu
cabo de muitos. O banzo – a saudade da África. Houve os que de tão banzeiros ficaram
lesos, idiotas. Não morreram: mas ficaram penando. E sem achar gosto na vida normal
– entregando-se a excessos, abusando da aguardente, da maconha, masturbando-se.
Doenças africanas seguiram-nos até o Brasil, devastando-os nas senzalas. As boubas
e talvez o pião, entre outras. E comunicando-se às vezes aos brancos das casas-grandes.
A África também tomou vingança dos maus-tratos recebidos da Europa. Mas não foram
poucas as doenças de brancos que os negros domésticos adquiriram; e as que se apoderaram
deles em consequências da má higiene no transporte da África para a América ou das
novas condições de habitação e de trabalho forçado. Trabalho forçado que nas cidades
foi quase sempre “em desproporção com a nutrição”.”
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