Editora: Caros Amigos
ISBN: 978-85-86821-83-7
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 390
Sinopse: Ver Parte
I
“O general Adyr Fiúza de Castro, um dos
criadores do Centro de Informações do Exército, CIE, declarou aos
historiadores:
“Quando
decidimos colocar o Exército na luta contra a subversão – que praticamente foi
estudantil e intelectual na sua totalidade, de gente pequeno-burguesa,
grã-fina, pois nunca encontrei um proletário, era tudo gente fina, acostumada a
lençóis de linho –, foi a mesma coisa que matar uma mosca com um martelo-pilão.
Evidentemente, o método mata a mosca, pulveriza a mosca, esmigalha a mosca,
quando, às vezes, apenas com um abano é possível matar aquela mosca ou
espantá-la. E nós empregamos o martelo-pilão”.”
“Muito depressa a Igreja Católica, apoiadora
de primeira hora do golpe militar, descobriu que havia embarcado em canoa
furada. Aos poucos, passam a multiplicar-se os choques até de arcebispos com o
governo. A vala cavada entre os dois se aprofunda depois de 1968. A igreja, em
breve cairá na total oposição à ditadura.”
Arrebentaram Frei Tito por fora e por dentro
Preso em novembro de 1969 em São Paulo,
acusado de ligações com Carlos Marighella, Tito de Alencar Lima é entregue ao
delegado Fleury e aos capitães Albernaz, Homero e Maurício – este, ao buscá-lo
para “interrogatório”, diz-lhe:
“Você
agora vai conhecer a sucursal do inferno.”
Sofreu cutiladas, pau-de-arara, telefones
(tapas simultâneos com as duas mãos nos ouvidos), choques, cadeira-do-dragão
(de metal, eletrificada, sentavam o supliciado nu e molhavam o chão para
aumentar o choque), pauladas, ofensas religiosas, massacre sexual, queimaduras
de cigarro, corredor polonês.
Deportado para o Chile em 1971, segue para
Roma e Paris, onde recebe apoio dos dominicanos.
Enforca-se a 10 de agosto de 1974, aos 29
anos, enlouquecido pelo trauma das torturas que sofreu nas mãos dos militares.
Em 1973, ficaram famosos dois crimes que envolviam gente poderosa: as
mortes de Aracelli Cabrera Crespo, de quase 9 anos, em Vitória, Espírito Santo;
e de Ana Lídia Braga, 1 ano mais nova, em Brasília, emblemáticos: só poderiam
acontecer num país dominado pelo terror de Estado.
Virariam senhores acima de qualquer suspeita
Entre os implicados no caso Aracelli
figuravam Dante Michelini Júnior, filho de latifundiário influente nos meios
militares; e Paulinho Helal, de família igualmente poderosa. A menina, que a
mãe mandou entregar um envelope a Jorge Michelini, tio de Dante, foi drogada,
estuprada e morta num apartamento do edifício Apolo, centro da capital
capixaba. Os rapazes, sob efeito de cocaína, lhe destruíram a dentadas os seios,
parte da barriga e da vagina. Levaram o corpo para o bar-boate de Jorge
Michelini, onde o deixaram num freezer por vários dias.
“Quando voltaram a si, não sabiam o que fazer
com o cadáver”, diz o jornalista José Louzeiro, autor de Araceli, Meu Amor (Civilização Brasileira, 1976).
O corpo pretejou no freezer. Os jovens
jogaram-lhe ácido para dificultar a identificação e o abandonaram num matagal,
nos fundos do Hospital Jesus menino. Segundo Louzeiro, o caso produziu 14
mortes, desde possíveis testemunhas até pessoas interessadas em desvendar o
crime.
“Saia desse hotel que vão te envenenar”
“A ditadura era toda a favor dos implicados,
sobretudo o Dante Michelini, o pai dele era golpista e beneficiário do regime.
Estavam acima do bem e do mal”, diz 35 anos depois o jornalista José Louzeiro.
Na época, ele era secretário de redação de Última Hora, no Rio, e preparava o livro
Lúcio Flávio, O Passageiro da Agonia,
sobre um bandido popular, que viraria filme de Hector Babenco. Conta que a
turma da motoca, grupo de playboys de Vitória, tinha certeza da impunidade.
Anos antes, eles se envolveram noutro crime de morte: atropelaram um guarda de
trânsito que ordenou ao grupo para parar. Sequer resultou em inquérito.
Sobre o caso Aracelli, Louzeiro entrevistou
mais de 40 pessoas. Certa vez o funcionário de um hotel, pertencente a família
Helal, o salvou:
“O senhor não é o autor de Lúcio Flávio? Então saia desse hotel que
vão te envenenar”.
Louzeiro passou a preencher ficha num hotel e
se hospedar noutro. Algo o intrigava: pessoas ouvidas pela polícia recebiam
orientação dos advogados dos acusados. A família contratou os doze melhores
advogados de Vitória. Em 1980, Dante e Paulinho foram condenados, mas a
sentença foi anulada. Em novo julgamento, em 1991, foram absolvidos. E se
tornariam pais de família, católicos, senhores acima de qualquer suspeita,
arremata Louzeiro.
A data da morte de Aracelli, 18 de maio, pela
Lei 9.770, de 17 de maio de 2000, virou Dia Nacional de Combate ao Abuso e
Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes. (Como um escárnio, Dante Michelini, ainda é o nome de
importante avenida de Vitória)
Ana Lídia: Sufocada sob os estupradores
Tarde de 10 de setembro de 1973. Ana Lídia
Braga sai do Colégio Madre Carmen Salles com um rapaz loiro, alto. Seu corpo
será encontrado no dia seguinte no terreno da universidade de Brasília, UnB.
Está nu. A perícia apontará morte por sufocação. Os cabelos loiros foram
cortados e se espalhavam pela terra. A boneca Susy, quatro cadernos e alguns
lápis de cor são localizados nas redondezas. A mochila e as roupas jamais
apareceriam.
Ana Lídia foi sequestrada pelo próprio irmão
de 20 anos, Álvaro Henrique, 13 anos mais velho, e levada a um sítio em
Sobradinho, perto de Brasília. Um grupo de jovens estuprou e matou a menina.
O sítio pertencia ao senador capixaba Eurico
Rezende, da Arena, Aliança Renovadora Nacional, partido do governo militar. A
censura proibiu a divulgação do resultado das investigações.
Fazia parte da turma, entre outros filhos de
gente graúda, o futuro presidente Fernando Collor, que não participou do crime.
Estavam envolvidos, sim, Eduardo Ribeiro Rezende, filho do senador e vice-líder
da Arena no Senado; e Alfredo Buzaid Júnior, o Buzaidinho, filho de nada menos
que o ministro da justiça de Médici.
Especialistas que acompanharam o caso são
unânimes: houve falhas na investigação. E o crime ficaria impune.
Inferno no
paraíso: Cultura “do pau” na luz e na casa da Vovó
Ao estourar o golpe de 1964, a cultura “do
pau” estava disseminada na polícia. Chegou ao Dops, na Luz, levada pelo delegado
Sérgio Fernando Paranhos Fleury. Também chegou ao Doi-Codi, no Paraíso, chamado
pelos militares de Casa da Vovó.
Os prisioneiros chegavam em sangue, feridos
ou agonizantes. Pendurados no pau-de-arara, recebiam descargas elétricas. Às
vezes ficavam descalços em pisos molhados, o que aumentava a força dos choques.
Recebiam violentos jatos de água e areia.
Furadeiras elétricas perfuravam corpos.
Coronhadas abriam cabeças. Socos, pontapés, afogamento, navalhas rasgando a
carne, queimaduras de cigarro, ataques sexuais: torturas aplicadas pelos homens
de Fleury, listadas em Autópsia do Medo,
livro de Percival de Souza.
“Quando havia homem e mulher, companheiro e companheira, marido e
esposa, ‘ele’ era obrigado a ficar olhando o momento em que se enfiavam os
dedos no ânus dela”.
Crueldade requintada: ao interrogar um padre,
o investigador vestiu-se como religioso. De Bíblia na mão, na escuridão, ele
torturava o padre física, emocional e espiritualmente. Agentes em bando saíam
pelos corredores com uma ratazana pintada de rosa, enquanto tocavam trombone e
bumbo. Tudo era tão aterrorizante que uma mulher afirmou que viu uma banheira
cheia de sangue na diretoria do Dops. O jornalista não conseguiu confirmar. Mas
a banheira de sangue se transformou no pesadelo dessa prisioneira.
Torturadores obrigavam presos a voltar para a
cela arrastando-se; médicos reanimavam presos para suportar novas torturas. A
ordem era: se matassem alguém, os agentes deveriam sumir com o corpo, sem
sinais de identificação, para o caso de ser achado. No Dops, um agente arrancou
os dedos de um preso com um punhal de lâmina afiada. O investigador Henrique
Perrone levou para casa no bolso do paletó um dedo, que sua mulher encontrou.
No Instituto Médico Legal, a cabeça de um foi costurada no corpo de outro.
Calcula-se que, entre 1969 e 1973, os
subterrâneos da ditadura provocaram pelo menos 500 mortes.
“A Arena é o partido do “sim”; e o MDB é o
partido do “sim, senhor!”.
(Leonel Brizola, político gaúcho)
O verdadeiro motivo
“Comissão Parlamentar de Inquérito, dirigida
por Alencar Furtado, demonstra que as maiores empresas estrangeiras instaladas
no Brasil investiram aqui um total de 299 milhões de dólares trazidos de fora,
enquanto remeteram para o exterior, só de 1965 a 1975, um total de 755 milhões
em dólares, e, ainda, reinvestiram aqui lucros em cruzeiros registrados em
dólares no valor de 693 milhões. Como negar que somos um dos principais
exportadores de capitais do mundo capitalista? O deputado pagou caro pela ousadia:
foi cassado.”
(Darcy Ribeiro – em Aos Trancos e Barrancos: como o Brasil deu no que deu)
Para esconder um
fracasso, deixaram morrer quase 3.000 crianças, só em 1974
“A historiadora Maria Helena Moreira Alves,
explica que o objetivo central da censura num regime autoritário é esconder os
conflitos na tentativa de “construir”, ainda que artificialmente, uma sociedade
estável e homogênea.
Assim, os meios de comunicação – todos –
foram proibidos de noticiar um surto de meningite em São Paulo em 1974.
Nas redações sob censura prévia, os censores
de plantão se encarregaram de vetar as notícias. Nas outras, os jornalistas
sofriam o drama: primeiro, não sabiam de nada; depois, quando sabiam, era pelo
telefonema da censura “proibindo qualquer notícia sobre meningite”... A notícia
se espalhou no boca a boca, devagar e incompleta. Décio Nitrini conta que a
epidemia começou atacando a periferia, atacando as crianças pobres.
“Só quando atingiu a classe média, centro e
regiões nobres, não dava pra esconder mais, aí o governo fez vacinação em
massa”, recorda Décio.
E por que os militares queriam esconder um
surto de meningite, mesmo à custa da morte de inocentes? Porque mostraria que
não eram onipotentes. A prioridade, como sempre, era mostrar ao povo que mantinham
tudo sob controle.
A liberação da notícia chegou tarde, e com
restrições:
“Continua,
entretanto, proibida a divulgação de matérias alarmistas e tendenciosas, que
possam gerar pânico entre a população.”
Morreram, no auge da epidemia, 2.575 em São Paulo
e 305 no Rio de Janeiro, crianças na quase totalidade. E o povo não foi
avisado. Por causa da censura, para esconder seu fracasso na área da saúde, a
ditadura permitiu que quase 3.000 crianças morressem só em 1974.
“Geisel, que havia assumido o governo com uma
dívida de 10 bilhões de dólares, ao final de seu mandato em 1979 deixaria uma
dívida mais que quadruplicada: 42 bilhões de dólares.”
As guerreiras que pegaram em armas contra a ditadura
(...) Um dia, o capitão Sebastião de Moura,
codinome Dr. Luchini, ou também Curió, tirou a prisioneira da guerrilha do
Araguaia Dina do cativeiro e a entregou a uma equipe que embarcou num
helicóptero. Aterrissariam nalgum ponto da espessa mata, perto de Xambioá. O
sargento do Exército Joaquim Artur Lopes de Souza, Ivan de apelido, chefiava a
equipe.
“Vocês vão me matar agora?”, perguntou Dina,
ao tocar o solo.
“Não, mais na frente um pouco. Agora só quero
que você reconheça um ponto”, teria respondido Ivan.
Duzentos metros adiante, o grupo para em uma
clareira.
“Vou morrer agora?”, volta a perguntar a
moça.
“Vai, agora você vai ter que ir”, responde
Ivan.
“Então, quero morrer de frente”, pede,
encarando o executor nos olhos.
Ivan se aproxima e, a 2 metros, atira com a
pistola calibre 45, atingindo Dina acima do coração. Ela não morreu no ato e
levou um segundo tiro, na cabeça. Enterraram Dina ali mesmo. O corpo jamais foi
encontrado.
O universo da guerrilha, urbana e rural, é
pontuado de mulheres que se destacaram na luta para livrar o Brasil da ditadura
militar. Sofreram torturas, constrangimentos físicos, sevícias sexuais.
Embrenharam-se na mata empunhando armas. Muitas morreram bravamente encarando
os algozes, como Dina; discursando pela liberdade antes de abatidas; cantando,
perdidas na selva, para espantar a fome e sobreviver a fim de transmitir
ensinamentos aos novatos. Surpreenderam os militares, obrigados a admirar-lhes
a coragem.
Ivan gostava de contar aos colegas de farda
que o último olhar de Dina transmitia mais orgulho que medo. Falou da
guerrilheira como a pessoa mais valente que conheceu, elogiou Dina até quando
ele próprio ia morrer, treze anos mais tarde, assassinado supostamente como
“queima de arquivo”.
“As mulheres são muito mais ferozes do que os
homens”, afirma o general Adyr Fiúza de Castro, um dos criadores do Centro de
Informações do Exército, Cie, que chefiou o Centro de Operações de Defesa
Interna, Codi, no Rio.
Difícil dizer se a percepção do general Fiúza
é a mais acertada. Mas é certo que essas mulheres foram corajosas e obstinadas
em seu objetivo de derrubar a ditadura. Telma Regina Cordeiro Corrêa, a Lia,
escapou de todos os cercos da ditadura no Araguaia. Sozinha, tentou sair do
Bico do papagaio ao ver que a guerrilha havia sido derrotada. Perdeu-se numa
região rochosa, acabou sem comida, sem água. Em meados de 1974, os militares
encontraram o corpo decomposto, com um diário ao lado.
Nas últimas páginas, Lia registra que passava
fome e sede, mas não podia morrer, pois ainda tinha muita coisa a passar para
os outros guerrilheiros. A ponto de sucumbir, cantava a estrofe da canção dos
guerrilheiros:
“Ama a vida, despreza a morte e vai ao
encontro do porvir.”
E seguia adiante. “Não aguento mais”, foram
as últimas palavras escritas, com letra fraca.”
Vendeu caro sua
vida: Sônia enfrentou a patrulha sozinha e acertou dois
A carioca Lúcia Maria de Souza, a Sônia,
cursou medicina e ganhou a estima do povo da mata por atender como parteira. No
livro Operação Araguaia, Taís Morais
e Eumano Silva narram sua saga. Na tarde de 24 de outubro de 1973, Sônia e um
morador saem do acampamento para encontrar dois companheiros. Onze dias antes,
os militares mataram três guerrilheiros.
Sônia não atendeu à regra de evitar caminhos
conhecidos. Escondeu as botinas e foi descalça até um córrego. Ao voltar, não
as encontrou. Aparece uma patrulha com oito homens, chefiada pelo doutor
Asdrúbal – codinome de um major. Ao receber voz de prisão, Sônia saca do coldre
um revólver, que cai porque Asdrúbal a acerta na coxa. Escurece e os militares
desistem de ir atrás do morador, que foge.
Sônia sangra no chão e Asdrúbal aproxima-se.
Acha a moça bonita. A guerrilheira tinha outro revólver escondido: Asdrúbal
leva uma bala no rosto e uma na mão; outro oficial levou o terceiro tiro no
braço. Os militares restantes imobilizaram Sônia, que já tentava escapar
arrastando-se pelo capinzal, sem largar o 38.
“Qual o seu nome?, perguntou um oficial.
“Guerrilheira não tem nome, seu filho da
puta. Tem causa. Eu luto pela liberdade” – respondeu Sônia.
“Se quer liberdade, então toma!”, reagiu o militar,
descarregando ele e companheiros, suas armas. Sônia levou mais de 80 tiros.
Deixaram o corpo no local. O povo da região contava essa história variando as
versões, admirado da valentia da moça, como admirados ficaram os militares que
a enfrentaram.
Os generais não podiam alegar que não sabiam
Os militares prenderam moradores do Araguaia
de forma arbitrária, torturaram, atiraram em guerrilheiros feridos no chão,
executaram prisioneiros, profanaram corpos, abandonaram seus próprios valores e
rasgaram a Convenção de Genebra (1949), que entre outros atos veta a prisão e a
“punição coletiva” de civis.
“Agiram, enfim, segundo a lei da selva, de
acordo com os princípios da barbárie que deveriam combater. Quando tudo
terminou, apagaram as evidências daqueles atos: cremaram arquivos e cadáveres
para que não restasse sinal algum de um ou de outro”, escreve o jornalista Hugo
Studart, em Lei da Selva – Estratégias,
Imaginário e Discurso dos Militares sobre a guerrilha do Araguaia.
No entanto, jamais jornalista algum nem
historiador encontrou qualquer documento sobre quem dava e como dava as ordens
para tantas execuções sumárias. Ao que parece, as ordens teriam sido todas
verbais; e, pelas leis supremas dos militares, as da disciplina e da obediência
à hierarquia, só podiam vir do chefe-mor: o general-presidente.
Os membros da Comunidade de Informações no
Araguaia e das duas equipes de operações especiais tinham grande independência
para atuar. Oficiais subalternos, até mesmo sargentos, tomaram muitas decisões
vitais. Contudo, não agiam contra a vontade de seus superiores, especialmente
os generais.
“Não se pode alegar que no Araguaia alguns
pequenos grupos militares tenham adquirido ‘autonomia’ e cometido os ‘excessos’
por conta própria, sem que os generais em Brasília tenham qualquer
responsabilidade sobre esses atos”, escreve Studart.”
Cem milhões de anos sob as águas
Severo crítico da obra da construção da usina
de Itaipu, Darcy Ribeiro, ministro-chefe da Casa Civil do governo Goulart,
escreveu:
“Deixamos de construir, totalmente em território brasileiro, uma
hidrelétrica de 10 milhões de quilowatts, projetada até o detalhe e iniciada no
governo Goulart, para construir uma de 12 milhões de quilowatts, metade da qual
pertence ao Paraguai (que contribuiu financeiramente na construção
de Itaipu, com a quantia exata de 1 dólar).
Nos anos seguintes se gastariam vários bilhões de dólares, metade deles
emprestados ao Paraguai para serem pagos com a energia produzida. (...) A maior
estupidez da operação, porém, foi a ecológica. Com ela, estancamos, sem nenhuma
necessidade, a mais bela cachoeira do mundo”.
Darcy se referia ao Salto de Sete Quedas, as
quedas-d’água mais volumosas do planeta, com 300 metros de altura e mais de 100
milhões de anos de idade, que desapareceu em 1982, quando as comportas de
Itaipu se abriram e a inundação cobriu uma imensidão de território.
“Como é que se chega ao meu nome? Ora, porque
fulano é cretino, sicrano é burro, beltrano é safado! Isso é jeito?”
(General Ernesto Geisel, comentando que “só num país como
o Brasil” um homem como ele “poderia chegar a presidente da república”)
“... A polícia está matando a três por dois.
Eu tenho mais medo, hoje, da polícia do que do ladrão”.
(General Carlos Alberto da Fontoura, chefe do SNI no
governo Médici, entrevistado em 1993)
“O Doi (...) é destacamento de operações: ‘Vá
lá e faça isso’. (...) Então, o Doi era o braço armado da ‘Inquisição’, vamos
dizer assim. É isso.”
(General Adyr Fiúza de Castro, que chefiou o Doi-Codi do
Rio de Janeiro)
Medo, o editor
Nós somos uma geração de jornalistas formados
no AI-5, na paranoia. Nós somos o medo. Ele escorre por cada linha que
escrevemos. E mancha o papel de vergonha. Nosso jeito de escrever foi moldado
pela grande imprensa – pela autocensura. Nosso trabalho raras vezes tinha um
sentido social. Tinha apenas um sentido prático: sobreviver, de medo. Não
devemos acusar ninguém pelo que não dissemos: com raras exceções, devemos
acusar nós mesmos. Esse número zero de Repórter
poderia ter sido muito melhor. Muito mais verdadeiro. Mas não foi possível:
tivemos medo. E só por isso compreendemos aqueles que se recusaram a colaborar.
Ou até mesmo a falar. São nossos companheiros do medo que nos sufoca.
(Do editorial do numero zero de Repórter, novembro de 1977)
Quem disse que generais também não torturavam?
Prontuário: General Siseno
Sarmento
“Quando cheguei à sala, o palco já estava
preparado. Cerca de 10 a 12 homens. O capitão Zamith sentado a uma mesa. No
chão um cobertor ensopado de água. Em cima uma banqueta. Mandaram-me tirar a
roupa e sentar. Eles me amarraram as pernas, em volta da banqueta, junto com os
braços. Colocaram-me uma espécie de grampo nos dedos dos pés, no pênis e nas
orelhas. Zamith disse:
‘Você pode poupar tudo isso se colaborar’.
Respondi que começassem logo com aquilo e
eles rodaram a maquininha. Fui jogado para trás, então os homens começaram a me
espancar com pontapés, eu voava de um lado para outro, e só gritava ‘filhos da
putas, não vou falar’, eles paravam, me colocavam sentado, o Zamith falava:
‘Diz onde está o Marighella que tudo isso acaba’.
Eu nada dizia e a maquininha rodava, e tudo
se repetia. Foram 6 horas de tortura.
Terceiro dia, terrível. À noite, depois de
umas duas horas de porradas, Zamith dá uma parada. Entra o general Siseno
Sarmento, comandante do I Exército [Rio de Janeiro]. Pensei: ‘Estou salvo, este
homem veio para acabar com esta loucura’.
O general entra, acende um charuto, olha para
mim e pergunta a Zamith:
‘É este o comunista?’
Pega o charuto e apaga na minha carne. Apagou
o charuto umas 4 ou 5 vezes no meu corpo. Como podia um general, comandante de
Exército, rebaixar-se tanto, meu Deus! Acreditei, neste momento, que seria
mesmo morto por aqueles homens”.
Acimar Fernandes,
militante da Ação Libertadora Nacional, ALN: trechos do livro póstumo, inédito,
sem título, guardado por seu filho Karl Marcius.
Eterno golpista,
em 1954 Sarmento assinou o Manifesto dos Coronéis contra Getúlio e Jango.
Comandou o I Exército no governo Médici. Em 1971, foi nomeado para o Superior
Tribunal militar, onde ficou até 1977.”
Sinal dos tempos: não respeitavam nem batina
Jesuíta morreu ao
defender mulheres torturadas. O povo destruiu a cadeia.
Indefesos diante da truculência da ditadura,
inúmeros brasileiros pobres contavam com uma única ajuda: os padres. Era o caso
do jesuíta João Bosco Penido Burnier, mineiro de Juiz de Fora, missionário
entre os bacairis e posseiros de São Félix do Araguaia, Mato Grosso.
Um dia, o povoado de Ribeirão Bonito rezava a
novena de Nossa Senhora Aparecida. Celebraram a cerimônia principal,
especialmente vindos, dom Pedro Casaldáliga, bispo de São Félix, e o padre
Burnier. Um escritor local descreveu:
“Era tarde de 11 de outubro de 1976. Duas
mulheres sertanejas, Margarida e Santana, estavam sendo torturadas na
cadeia-delegacia. (...) os dois foram interceder pelas mulheres torturadas. Quatro
policiais os esperavam no terreiro da delegacia e apenas foi possível um
diálogo de minutos. Um soldado desfechou no rosto do padre João Bosco um soco,
uma coronhada e o tiro fatal. (...) Foi morrer, gloriosamente mártir, no dia
seguinte, festa da Mãe Aparecida, em Goiânia”.
Casaldáliga acrescentaria detalhes: quando
chegaram, os policiais seguravam um caititu bravo, que usariam para morder as
mulheres. E a bala que matou o padre era do tipo dundum, que explode ao
penetrar no corpo.
Depois da missa de sétimo dia, o povo seguiu
em procissão até a delegacia, libertou os presos e destruiu o prédio. No lugar
ergueu um santuário.
As verdadeiras heranças malditas
Vimos como o imperialismo americano, jogando
bruto contra o bloco socialista e países do “terceiro mundo” em que os povos
cobravam mudanças e governos soberanos, impôs mundo afora ditaduras servis a
Washington. A nossa tratou primordialmente de impedir as reformas que ali
vinham. Porém, não se tratou apenas de impor 21 anos de chumbo, mas também de preparar
o ambiente que, na redemocratização, “possibilitaria ao neoliberalismo aportar
com tudo no território brasileiro, estimulado pelas elites empresariais, saudado
pelas classes médias e engolidos pelos trabalhadores sem maiores resistências”,
como escreveu para Caros Amigos o jornalista Hamilton Octavio de Souza,
professor da Pontifícia Universidade Católica/SP.
Não à toa, os golpistas destruíram a
experiência educacional transformadora pré-1964, aceleraram a privatização do
ensino, criaram “fábricas de diplomas” para formar a intelectualidade
neoliberal; em vez de reforma agrária, de produção de alimentos com proteção
ambiental, concentraram mais terras em menos mãos e passamos a conviver com
latifúndios improdutivos ou do agronegócio exportador e predador do meio
ambiente.
Endividaram o país com obras faraônicas;
contribuíram para o saque à Amazônia; aceleraram a deterioração cultural do
povo, em dobradinha com empresários antinacionais, promotores da “baixaria
televisiva” e da alienação, num esquema que perdura. Acabada a ditadura, as
elites avançaram sobre os direitos dos trabalhadores, puseram milhões na
informalidade e aprofundaram o fosso entre a minoria rica e a extensa maioria
pobre ou miserável. O último “general de plantão” nos legará um país cheio de
problemas quando deixar o poder. Violência, desagregação, individualismo,
consumismo, o levar vantagem a todo preço, mediocridade generalizada – muitos anos
de democracia precisam ainda rolar até nos livrarmos dessas heranças malditas.
“Quem for contra a abertura democrática, eu
prendo e arrebento”.
(General Figueiredo, em resposta a pergunta sobre como
ele enfrentaria os radicais contrários à abertura)
“O jornal humorístico O Pasquim alcançou tiragens semanais imensas. Cada número uma capa,
cada capa uma opinião:
SOMENTE A
TELEVISÃO
DESLIGADA
SALVARÁ
O BRASIL
“O Pasquim
não se responsabiliza pelas opiniões de seus colaboradores; aliás, nem
pelas suas.”
“O Pasquim – um jornal de oposição ao
governo grego.”
“Se alguém pensa que o Pasquim se atemoriza com ameaças e pressões, pode tomar nota de uma
coisa: é verdade.”
“O importante não
é vencer, é sair vivo”.”
Escola elitizada sobre controle político
O golpe de 1964 e a ditadura militar
interromperam e reprimiram a experiência educacional transformadora que
floresceu nos anos 50 e na primeira metade de 60. Os colégios vocacionais e os
programas de alfabetização baseados no método Paulo Freire, que estimulavam a
participação coletiva e a emancipação política, foram banidos do cenário
nacional.
Ao mesmo tempo os governos militares
aceleraram o processo de privatização do sistema educacional. Foram criadas as
“fundações sem fins lucrativos” e as empresas de educação, que rebaixariam o
nível do ensino, aviltaram a profissão de professor e enriqueceram seus donos e
“mantenedores”. As fábricas de diplomas ganharam status de faculdades e universidades.
O sistema privado criado na ditadura permanece
intacto, não apenas vigora até hoje – representa mais de 72% das vagas
oferecidas anualmente no ensino superior – como é também um dos pilares de
formação e sustentação intelectual e política do neoliberalismo. A escola
brasileira, na sua maioria, não gera nem transforma conhecimento, apenas
reproduz o pensamento dominante.
(Hamilton Octavio de Souza)
“A tirania é o regime que tem menor duração,
e de todos, é o que tem o pior final”.
(Nicolau Maquiavel, 1469-1527, historiador, poeta e
músico italiano)
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