Subtítulo: Crítica da mais recente filosofia alemã em
seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em
seus diferentes profetas
Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-073-7
Tradução: Rubens Enderle, Nélio Schneider e Luciano Cavini Martorano
Introdução: Emir Sader
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 616
Sinopse: A
ideologia alemã é considerada por muitos estudiosos a obra de filosofia
mais importante de Marx e Engels. Escrita entre os anos 1845-1846, representa a
primeira exposição estruturada da concepção materialista da história e é o
texto central dos autores acerca da religião. Nela eles concluem um acerto de
contas com a filosofia de seu tempo – tanto com a obra de Hegel como com os
chamados “hegelianos de esquerda”, entre os quais Ludwig Feuerbach. Esse ajuste
passou antes pelos Manuscritos
econômico-filosóficos, por A sagrada família, por A
situação da classe trabalhadora na Inglaterra, para alcançar em A
Ideologia alemã sua primeira formulação articulada como método próprio
de análise.
A crítica – quase toda em tom sarcástico – dos dois
filósofos ridiculariza o idealismo alemão e articula as categorias essenciais
da dialética marxista (como trabalho, modo de produção, forças produtivas,
alienação, consciência), constituindo assim um novo corpo teórico. A tradução
dos capítulos I e II, respectivamente dedicados à polêmica com Feuerbach e
Bruno Bauer, baseia-se na edição da Mega-2 (Marx-Engels Gesamtausgabe),
texto que foi antecipado no Marx-Engels Jahrbuch. Nessa nova edição, os
manuscritos de Marx e Engels aparecem em sete seções, ordenadas
cronologicamente, e são reproduzidos tal como foram deixados pelos autores. A
nova organização do volume revoluciona a forma como até então A ideologia
alemã foi lida e interpretada, principalmente no que diz respeito a seu
primeiro capítulo, que Marx e Engels deixaram inacabado.
Fora da Alemanha, é a primeira vez que as sete partes do
manuscrito de Marx e Engels sobre Feuerbach são apresentadas ao leitor como
textos independentes, em sua fragmentação originária, sem sofrer as montagens
mais ou menos arbitrárias que os diversos editores (desde a edição de Riazanov,
em 1926) imputaram à obra.
Esse tratamento editorial esmerado levou à descoberta de
que Marx e Engels, até o fim de 1845, não haviam concebido o plano de escrever A
ideologia alemã, pelo menos não com esse título. Foi a partir de um artigo
de Marx intitulado “Contra Bruno Bauer” que, em novembro de 1845, nasceram os
manuscritos que, meses mais tarde, dariam corpo ao projeto inacabado de A
ideologia alemã. Esse artigo, inédito no Brasil, compõe a nova edição da
Boitempo Editorial, assim como uma série de anexos (apêndice, índices,
cronologia, notas filológicas) preparados especialmente para esta publicação e
atualizados com base nos mais recentes estudos sobre essa fundamental obra.
“Devemos
começar por constatar o primeiro pressuposto de toda a existência humana e
também, portanto, de toda a história, a saber, o pressuposto de que os homens
têm de estar em condições de viver para poder “fazer história”. Mas, para
viver, precisa-se, antes de tudo, de comida, bebida, moradia, vestimenta e
algumas coisas mais. O primeiro ato histórico é, pois, a produção dos meios
para a satisfação dessas necessidades, a produção da própria vida material, e
este é, sem dúvida, um ato histórico, uma condição fundamental de toda a história,
que ainda hoje, assim como há milênios, tem de ser cumprida diariamente, a cada
hora, simplesmente para manter os homens vivos.
O
segundo ponto é que a satisfação dessa primeira necessidade, a ação de satisfazê-la
e o instrumento de satisfação já adquirido conduzem a novas necessidades – e
essa produção de novas necessidades constitui o primeiro ato histórico.
A
produção da vida, tanto da própria, no trabalho, quanto da alheia, na
procriação, aparece desde já como uma relação dupla – de um lado, como relação
natural, de outro como relação social –, social no sentido de que por ela se
entende a cooperação de vários indivíduos, sejam quais forem as condições, o
modo e a finalidade. Segue-se daí que um determinado modo de produção ou uma
determinada fase industrial estão sempre ligados a um determinado modo de
cooperação ou a uma determinada fase social – modo de cooperação que é, ele
próprio, uma “força produtiva” –, que a soma das forças produtivas acessíveis
ao homem condiciona o estado social e que, portanto, a “história da humanidade”
deve ser estudada e elaborada sempre em conexão com a história da indústria e
das trocas. (...) Mostra-se, portanto, desde o princípio, uma
conexão materialista dos homens entre si, conexão que depende das necessidades
e do modo de produção e que é tão antiga quanto os próprios homens – uma
conexão que assume sempre novas formas e que apresenta, assim, uma “história”,
sem que precise existir qualquer absurdo político ou religioso que também
mantenha os homens unidos.”
“Somente
depois de já termos examinado momentos, aspectos das relações históricas
originárias, descobrimos que o homem tem também “consciência”.a Mas
esta também não é, desde o início, consciência “pura”. O “espírito” sofre,
desde o início, a maldição de estar “contaminado” pela matéria, que, aqui, se
manifesta sob a forma de camadas de ar em movimento, de sons, em suma, sob a
forma de linguagem. A linguagem é tão antiga quanto a consciência – a linguagem
é a consciência real, prática, que existe para os outros homens e que,
portanto, também existe para mim mesmo; e a linguagem nasce, tal como a
consciência, do carecimento, da necessidade de intercâmbio com
outros homens.aa Desde o início, portanto, a consciência já é um
produto social e continuará sendo enquanto existirem homens. A consciência é,
naturalmente, antes de tudo a mera consciência do meio sensível mais imediato
e consciência do vínculo limitado com outras pessoas e coisas exteriores ao
indivíduo que se torna consciente; ela é, ao mesmo tempo, consciência da
natureza que, inicialmente, se apresenta aos homens como um poder totalmente
estranho, onipotente e inabalável, com o qual os homens se relacionam de um
modo puramente animal e diante do qual se deixam impressionar como o gado; é,
desse modo, uma consciência puramente animal da natureza (religião natural)b
– e, por outro lado, a consciência da necessidade de firmar relações com os
indivíduos que o cercam constitui o começo da consciência de que o homem definitivamente
vive numa sociedade. Esse começo é algo tão animal quanto a própria vida social
nessa fase; é uma mera consciência gregária, e o homem se diferencia do
carneiro, aqui, somente pelo fato de que, no homem, sua consciência toma o lugar
do instinto ou de que seu instinto é um instinto consciente.c Essa
consciência de carneiro ou consciência tribal obtém seu desenvolvimento e seu
aperfeiçoamento ulteriores por meio da produtividade aumentada, do incremento
das necessidades e do aumento da população, que é a base dos dois primeiros.
Com isso, desenvolve-se a divisão do trabalho, que originalmente nada mais era
do que a divisão do trabalho no ato sexual e, em seguida, divisão do trabalho
que, em consequência de disposições naturais (por exemplo, a força corporal),
necessidades, casualidades etc. etc.d, desenvolve-se por si própria
ou “naturalmente”. A divisão do trabalho só se torna realmente divisão a partir
do momento em que surge uma divisão entre trabalho material e [trabalho] espiritual.e
a partir desse momento, a consciência pode realmente imaginar ser outra
coisa diferente da consciência da práxis existente, representar algo realmente
sem representar algo real – a partir de então, a consciência está em condições
de emancipar-se do mundo e lançar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc. “puras”. Mas mesmo que essa teoria, essa
teologia, essa filosofia, essa moral etc. entrem em contradição com as relações
existentes, isto só pode se dar porque as relações sociais existentes estão em
contradição com as forças de produção existentes.”
a o
homem tem também, entre outras coisas, “espírito”, e que esse “espírito” “se
exterioriza” como “consciência”.
Os
homens têm história porque têm de produzir sua vida, e têm de fazê-lo de
modo determinado: isto é dado por sua organização física, tanto quanto
sua consciência.
aa
Minha relação com meu ambiente é a minha consciência.
Onde
existe uma relação, ela existe para mim; o animal não se “relaciona” com
nada e não se relaciona absolutamente. Para o animal, sua relação com outros
não existe como relação.
b
precisamente porque a natureza ainda se encontra pouco modificada
historicamente.
c
Vê-se logo, aqui: essa religião natural ou essa relação determinada com a
natureza, é condicionada pela forma da sociedade e vice-versa. Aqui, como em
toda parte, a identidade entre natureza e homem aparece de modo que a relação
limitada dos homens com a natureza condiciona sua relação limitada entre si, e
a relação limitada dos homens entre si condiciona sua relação limitada com a
natureza.
d Os
homens desenvolvem a consciência no interior do desenvolvimento histórico real.
e
Primeira forma dos ideólogos, sacerdotes, coincide.
“A
propriedade já tem seu embrião, sua primeira forma, na família, onde a mulher e
os filhos são escravos do homem. A escravidão na família, ainda latente e
rústica, é a primeira propriedade, que aqui, diga-se de passagem, corresponde
já à definição dos economistas modernos, segundo a qual a propriedade é o poder
de dispor da força de trabalho alheia.”
“É precisamente dessa contradição do interesse particular com o interesse
coletivo que o interesse coletivo assume, como Estado, uma forma
autônoma, separada dos reais interesses singulares e gerais e, ao mesmo tempo,
como comunidade ilusória, mas sempre fundada sobre a base real dos laços
existentes em cada conglomerado familiar e tribal, tais como os laços de
sangue, a linguagem, a divisão do trabalho em escala ampliada e demais
interesses – e em especial, como desenvolvere-mos mais adiante, fundada sobre
as classes já condicionadas pela divisão do trabalho, que se isolam em cada um
desses aglomerados humanos e em meio aos quais há uma classe que domina todas
as outras. Daí se segue que todas as lutas no interior do Estado, a luta entre
democracia, aristocracia e monarquia, a luta pelo direito de voto etc. etc.,
não são mais do que formas ilusórias – em geral, a forma ilusória da comunidade
– nas quais são travadas as lutas reais entre as diferentes classes (algo de
que os teóricos alemães sequer suspeitam, muito embora lhes tenha sido dada
orientação suficiente nos Anais franco-alemães e n’ A sagrada família),
e, além disso, segue-se que toda classe que almeje à dominação, ainda que sua
dominação, como é o caso do proletariado, exija a superação de toda a antiga forma
de sociedade e a superação da dominação em geral, deve primeiramente conquistar
o poder político, para apresentar seu interesse como o interesse geral, o que
ela no primeiro instante se vê obrigada a fazer. É justamente porque os
indivíduos buscam apenas seu interesse particular, que para eles não
guarda conexão com seu interesse coletivo, que este último é imposto a eles
como um interesse que lhes é “estranho” e que deles “independe”, por sua vez,
como um interesse “geral” especial, peculiar; ou, então, os próprios indivíduos
têm de mover-se em meio a essa discordância, como na democracia. Por outro
lado, a luta prática desses interesses particulares, que se contrapõem
constantemente e de modo real aos interesses coletivos ou ilusoriamente
coletivos, também torna necessário a ingerência e a contenção práticas
por meio do ilusório interesse “geral” como Estado.”
“O comunismo não é para nós um estado de coisas que deve ser
instaurado, um Ideal para o qual a realidade deverá se direcionar.
Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas
atual. As condições desse movimento (devem ser julgadas segundo a própria
realidade efetiva) resultam dos pressupostos atualmente existentes.”
“Finalmente,
da concepção de história exposta acima obtemos, ainda, os seguintes resultados:
1) No desenvolvimento das forças produtivas advém uma fase em que surgem forças
produtivas e meios de intercâmbio que, no marco das relações existentes, causam
somente malefícios e não são mais forças de produção, mas forças de destruição
(maquinaria e dinheiro) – e, ligada a isso, surge uma classe que tem de
suportar todos os fardos da sociedade sem desfrutar de suas vantagens e que,
expulsa da sociedade, é forçada à mais decidida oposição a todas as outras
classes; uma classe que configura a maioria dos membros da sociedade e da qual
emana a consciência da necessidade de uma revolução radical, a consciência
comunista, que também pode se formar, naturalmente, entre as outras classes,
graças à percepção da situação dessa classe; 2) que as condições sob as quais
determinadas forças de produção podem ser utilizadas são as condições da
dominação de uma determinada classe da sociedadea, cujo poder
social, derivado de sua riqueza, tem sua expressão prático-idealista na forma
de Estado existente em cada caso; é essa a razão pela qualb toda
luta revolucionária dirige-se contra uma classe que até então dominou; 3) que
em todas as revoluções anteriores a forma da atividade permaneceu intocada, e
tratava-se apenas de instaurar uma outra forma de distribuição dessa atividade,
uma nova distribuição do trabalho entre outras pessoas, enquanto a revolução
comunista volta-se contra a forma da atividade existente até então,
suprime o trabalho e supera a dominação de todas as classes ao superar
as próprias classes, pois essa revolução é realizada pela classe que, na
sociedade, não é mais considerada como uma classe, não é reconhecida como tal,
sendo já a expressão da dissolução de todas as classes, nacionalidades etc., no
interior da sociedade atual e 4) que tanto para a criação em massa dessa
consciência comunista quanto para o êxito da própria causa faz-se necessária
uma transformação massiva dos homens, o que só se pode realizar por um
movimento prático, por uma revolução; que a revolução, portanto, é
necessária não apenas porque a classe dominante não pode ser derrubada de
nenhuma outra forma, mas também porque somente com uma revolução a classe que
derruba detém o poder de desembaraçar-se de toda a antiga imundície e de se
tornar capaz de uma nova fundação da sociedade.”
a cada
fase de desenvolvimento das forças de produção serve de base à dominação de uma
determinada classe da sociedade.
b No
último estágio da sociedade burguesa.
“Essa
concepção da história consiste, portanto, em desenvolver o processo real de
produçãoe a partir da produção material da vida imediata e em
conceber a forma de intercâmbio conectada a esse modo de produção e por ele
engendrada, quer dizer, a sociedade civil em seus diferentes estágios, como o
fundamento de toda a história, tanto a apresentando em sua ação como Estado
como explicando a partir dela o conjunto das diferentes criações teóricas e
formas da consciência – religião, filosofia, moral etc. etc.f – e em
seguir o seu processo de nascimento a partir dessas criações, o que então torna
possível, naturalmente, que a coisa seja apresentada em sua totalidade (assim
como a ação recíproca entre esses diferentes aspectos). Ela não tem
necessidade, como na concepção idealista da história, de procurar uma categoria
em cada período, mas sim de permanecer constantemente sobre o solo da história
real; não de explicar a práxis partindo da ideia, mas de explicar as formações
ideais a partir da práxis material e chegar, com isso, ao resultado de que
todas as formas e [todos os] produtos da consciência não podem ser dissolvidos
por obra da crítica espiritual, por sua dissolução na “autoconsciência” ou sua
transformação em “fantasma”, “espectro”, “visões” etc., mas apenas pela
demolição prática das relações sociais reais de onde provêm essas enganações
idealistas; não é a crítica, mas a revolução a força motriz da história e
também da religião, da filosofia e de toda forma de teoria. Essa concepção
mostra que a história não termina por dissolver-se, como “espírito do
espírito”, na “autoconsciência”, mas que em cada um dos seus estágios encontra-se
um resultado material, uma soma de forças de produção, uma relação
historicamente estabelecida com a natureza e que os indivíduos estabelecem uns
com os outros; relação que cada geração recebe da geração passada, uma massa de
forças produtivas, capitais e circunstâncias que, embora seja, por um lado,
modificada pela nova geração, por outro lado prescreve a esta última suas
próprias condições de vida e lhe confere um desenvolvimento determinado, um
caráter especial – que, portanto, as circunstâncias fazem os homens, assim como
os homens fazem as circunstâncias. Essa soma de forças de produção, capitais e
formas sociais de intercâmbio, que cada indivíduo e cada geração encontram como
algo dado, é o fundamento real daquilo que os filósofos representam como
“substância” e “essência do homem”, aquilo que eles apoteosaram e combateram;
um fundamento real que, em seus efeitos e influências sobre o desenvolvimento
dos homens, não é nem de longe atingido pelo fato de esses filósofos contra ele
se rebelarem como “autoconsciência” e como o “Único”. Essas condições de vida
já encontradas pelas diferentes gerações decidem, também, se as agitações
revolucionárias que periodicamente se repetem na história serão fortes o bastante
para subverter as bases de todo o existente, e se os elementos materiais de uma
subversão total, que são sobretudo, de um lado, as forças produtivas existentes
e, de outro, a formação de uma massa revolucionária que revolucione não apenas
as condições particulares da sociedade até então existente, como também a
própria “produção da vida” que ainda vigora – a “atividade total” na qual a
sociedade se baseia –, se tais elementos não existem, então é bastante
indiferente, para o desenvolvimento prático, se a ideia dessa subversão
já foi proclamada uma centena de vezes – como o demonstra a história do
comunismo.
Toda
concepção histórica existente até então ou tem deixado completamente
desconsiderada essa base real da história, ou a tem considerado apenas como
algo acessório, fora de toda e qualquer conexão com o fluxo histórico.
A
história deve, por isso, ser sempre escrita segundo um padrão situado fora
dela; a produção real da vida aparece como algo pré-histórico, enquanto o elemento
histórico aparece como algo separado da vida comum, como algo extra e
supraterreno. Com isso, a relação dos homens com a natureza é
excluída da história, o que engendra a oposição entre natureza e história. Daí
que tal concepção veja na história apenas ações políticas dos príncipes e dos
Estados, lutas religiosas e simplesmente teoréticas e, especialmente, que ela
tenha de compartilhar, em cada época histórica, da ilusão dessa época.
Por exemplo, se uma época se imagina determinada por motivos puramente “políticos”
ou “religiosos”, embora “religião” e “política” sejam tão somente formas de
seus motivos reais, então o historiador dessa época aceita essa opinião. A
“imaginação”, a “representação” desses homens determinados sobre a sua práxis real
é transformada na única força determinante e ativa que domina e determina a
prática desses homens. Quando a forma rudimentar em que a divisão do trabalho
se apresenta entre os hindus e entre os egípcios provoca nesses povos o surgimento
de um sistema de castas próprio de seu Estado e de sua religião, então o
historiador crê que o sistema de castas é a força que criou essa forma social
rudimentar. Enquanto os franceses e os ingleses se limitam à ilusão política,
que se encontra por certo mais próxima da realidade, os alemães se movem no âmbito
do “espírito puro” e fazem da ilusão religiosa a força motriz da história. A
filosofia hegeliana da história é a última consequência, levada à sua “mais
pura expressão”, de toda essa historiografia alemã, para a qual não se trata de
interesses reais, nem mesmo políticos, mas apenas de pensamentos puros, os
quais, por conseguinte, devem aparecer a São Bruno como uma série de
“pensamentos” que devoram uns aos outros e, por fim, submergem na autoconsciência;
e, de modo ainda mais consequente, a São Max Stirner, que não sabe nada da
história real, o curso da história tem de aparecer como uma mera história de
“cavaleiros”, salteadores e fantasmas, de cujas visões ele naturalmente só
consegue se salvar pela “profanação”a. Tal concepção é
verdadeiramente religiosa, pressupõe o homem religioso como o homem primitivo
do qual parte toda a história e, em sua imaginação, põe a produção religiosa de
fantasias no lugar da produção real dos meios de vida e da própria vida.”
e Feuerbach.
f explicando a sociedade civil em suas
diferentes fases e em seu reflexo prático-idealista, o Estado, assim como o
conjunto dos diversos produtos e formas teóricas da consciência, da religião,
da filosofia, da moral etc. etc.
a A
assim chamada historiografia objetiva consiste precisamente em conceber
as condições históricas independentes da atividade. Caráter reacionário.
“As
ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a
classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo,
sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios
da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo
que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos
daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes
não são nada mais do que a expressão ideal (ideológica) das relações
materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como
ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe
dominante, são as ideias de sua dominação. Os indivíduos que compõem a classe
dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam;
na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época
histórica, é evidente que eles o fazem em toda a sua extensão, portanto, entre
outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de
ideias, que regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e, por
conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época. Por exemplo,
numa época e num país em que o poder monárquico, a aristocracia e a burguesia
lutam entre si pela dominação, onde portanto a dominação está dividida, aparece
como ideia dominante a doutrina da separação dos poderes, enunciada então como
uma “lei eterna”.”
“Ora,
se na concepção do curso da história separarmos as ideias da classe dominante
da própria classe dominante e as tornarmos autônomas, se permanecermos no plano
da afirmação de que numa época dominaram estas ou aquelas ideias, sem nos preocuparmos
com o modo (as formas, as condições) de produção nem com os produtores dessas
ideias, se, portanto, desconsiderarmos os indivíduos e as condições mundiais
que constituem o fundamento dessas ideias, então poderemos dizer, por exemplo,
que durante o tempo em que a aristocracia dominou dominaram os conceitos de honra,
fidelidade etc., enquanto durante o domínio da burguesia dominaram os conceitos
de liberdade, igualdade etc.b A própria classe dominante geralmente
imagina isso.
Essa
concepção da história, comum a todos os historiadores principalmente desde o
século XVIII, deparar-se-á necessariamente com o fenômeno de que as ideias que
dominam são cada vez mais abstratas, isto é, ideias que assumem cada vez mais a
forma da universalidade. Realmente, toda nova classe que toma o lugar de outra
que dominava anteriormente é obrigada, para atingir seus fins, a apresentar seu
interesse como o interesse comum de todos os membros da sociedade, quer dizer,
expresso de forma ideal: é obrigada a dar às suas ideias a forma da universalidade,
a apresentá-las como as únicas racionais, universalmente válidas. A classe
revolucionária, por já se defrontar desde o início com uma classe,
surge não como classe, mas sim como representante de toda a sociedade; ela
aparece como a massa inteira da sociedade diante da única classe dominante.aa
Ela pode fazer isso porque no início seu interesse realmente ainda coincide com
o interesse coletivo de todas as demais classes não dominantes e porque, sob a
pressão das condições até então existentes, seu interesse ainda não pôde se
desenvolver como interesse particular de uma classe particular. Por isso, sua
vitória serve, também, a muitos indivíduos de outras classes que não alcançaram
a dominação, mas somente na medida em que essa vitória coloque agora esses
indivíduos na condição de se elevar à classe dominante.
Quando
a burguesia francesa derrubou a dominação da aristocracia, ela tornou possível
a muitos proletários elevar-se acima do proletariado, mas isso apenas na medida
em que se tornaram burgueses. Cada nova classe instaura sua dominação somente
sobre uma base mais ampla do que a da classe que dominava até então, enquanto,
posteriormente, a oposição das classes não dominantes contra a classe então
dominante torna-se cada vez mais aguda e mais profunda. Por meio dessas duas
coisas estabelece-se a condição de que a luta a ser travada contra essa nova
classe dominante deva propor-se, em contrapartida, a uma negação mais resoluta
e mais radical das condições até então existentes do que a que puderam fazer
todas as classes anteriores que aspiravam à dominação.
Toda
essa aparência, como se a dominação de uma classe determinada fosse apenas a
dominação de certas ideias, desaparece por si só, naturalmente, tão logo a
dominação de classe deixa de ser a forma do ordenamento social, tão logo não
seja mais necessário apresentar um interesse particular como geral ou “o geral”
como dominante.”
Uma vez
que as ideias dominantes são separadas dos indivíduos dominantes e, sobretudo,
das relações que nascem de um dado estágio do modo de produção, e que disso
resulta o fato de que na história as ideias sempre dominam, é muito fácil abstrair
dessas diferentes ideias “a ideia” etc. como o dominante na história,
concebendo com isso todos esses conceitos e ideias singulares como
“autodeterminações” do conceito que se desenvolve na história.c
Assim o fez a filosofia especulativa.”
b A
própria classe dominante tem, em média, a representação de que seus conceitos
dominaram e os diferencia das representações dominantes de épocas precedentes
apenas porque os apresenta como verdades eternas. Esses “conceitos dominantes” terão
uma forma tanto mais geral e abrangente quanto mais a classe dominante precisar
apresentar seus interesses como os interesses de todos os membros da sociedade.
a (A
universalidade corresponde 1. à classe contra o estamento, 2. à concorrência,
ao intercâmbio mundial etc., 3. à grande quantidade de membros da classe
dominante, 4. à ilusão do interesse comum. No começo, essa ilusão é
verdadeira. 5. Ao engano dos ideólogos e à divisão do trabalho.)
c É,
desse modo, também natural que todas as relações dos homens possam ser deduzidas
do conceito de homem, do homem representado, da essência do homem, do homem.
Um comentário:
A história deste livro é longa, não a repassarei toda aqui, mas para contextualizar um pouco antes de dar um pequeno conselho, Marx e Engels elaboraram um manuscrito que foi dado como perdido e encontrado (com algumas páginas faltantes e sem uma finalização estilística) algumas décadas depois da morte deles.
Os autores não lamentaram muito sua não-publicação: “Abandonamos tanto mais prazerosamente o manuscrito à crítica roedora dos ratos, na medida em que havíamos atingido nosso fim principal: ver claro em nós mesmos”.
Dito isso, ao longo de muitos anos me deparei com um livrinho bem curto de Marx e Engels, chamado “A ideologia alemã”
Qual não foi a minha surpresa ao ver, muitos anos depois, esta edição da Boitempo, no formato de um calhamaço de mais de seiscentas páginas.
Isto se dá porque as edições deste livro eram regularmente lançadas no Brasil contendo apenas parte do primeiro capítulo. O motivo do lançamento de apenas um quinhão da obra ao invés dela inteira é justamente por conta dessas peripécias que o manuscrito enfrentou: ele foi transcrito em partes depois de ter sido dado como perdido. Esta pendência se resolveu posteriormente, conseguiu-se a versão praticamente inteira do escrito, mas o lançamento da primeira parte permaneceu mais comum no Brasil e em vários outros países.
Entretanto, ao devassar o livro, percebe-se a razão da escolha editorial de se continuar lançando ao longo dos anos apenas um trecho diminuto da obra: é justamente nesta primeira parte que os autores avançam significativamente em sua própria teoria, onde escrevem com mais qualidade e apuro.
Nesta edição da Boitempo, da página 79 em diante, (ainda no primeiro capítulo), Marx e Engels não progridem tanto com sua teoria (que ainda estavam desenvolvendo, frise-se), estão mais detidos respondendo aos hegelianos de esquerda. Como a literatura com a qual dialogam é precária e limitada, calha que os autores respondem bem, comentam com uma ironia machadiana inúmeras passagens (daquelas que lemos com um pequeno sorriso nos lábios), mas eles estão, no fim das contas, se revolvendo na lama. Não conseguem se desvencilhar suficientemente da camisa de força que é comentar escritos obtusos e estéreis. O livro cai de qualidade, portanto – e não é pouco.
A nota que atribuí ao livro (bom), na verdade é uma média entre essas páginas iniciais (muito boas) e as restantes (apenas regulares).
Escrevo isto tudo para alertar o leitor: não tenha receio de escolher a versão diminuta de “A ideologia alemã”. Esta, muito maior, é mais recomendável para pesquisadores da área.
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