sexta-feira, 9 de abril de 2021

Introdução à História da Filosofia (Parte II) – Georg Wilhelm Friedrich Hegel

Editora: Edições 70

ISBN: 978-97-2441-346-4

Tradução: Antônio Pinto de Carvalho

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 256

Sinopse: Ver Parte I



“O caráter especial de toda a filosofia deve ser concebido de acordo com estas determinações, para que a estas determinações se faça plena justiça. Não devemos pedir-lhe, nem esperar dela mais do que atualmente ela dá, nem procurar nela a satisfação que podemos encontrar num ulterior desenvolvimento do conhecimento. Não devemos alimentar a pretensão de encontrar presentes na filosofia antiga os problemas da nossa consciência e os interesses do nosso mundo, visto que tais questões pressupõem um determinado desenvolvimento do pensamento. Desta maneira, toda a filosofia, precisamente por ser expressão dum especial grau de desenvolvimento, pertence ao seu tempo e está circunscrita aos seus próprios limites. O individual é filho do seu povo, do seu mundo, cuja substância ele manifesta na sua forma; pois o singular procura expandir-se, nunca consegue sair fora do seu tempo mais do que aquele que se arrisca a sair da sua pele, visto pertencer ao único espírito universal que é a sua substância e a sua própria existência. Como subtrair-se a esta exigência do momento, que ele é o mesmo espírito universal compreendido na filosofia pensante? Esta filosofia é o pensamento do próprio espírito, e daí o seu conteúdo é determinado e substancial. Toda filosofia é do seu próprio tempo, um elo na corrente do desenvolvimento espiritual, e assim não pode satisfazer senão aos interesses pertencentes ao seu tempo particular. Por este motivo, a filosofia antiga não é capaz de apagar as exigências dum espírito em que vive um mais profundo conceito.

O que o espírito procura na filosofia é o conceito que constitui a íntima determinação e a raiz do seu ser, considerado como objeto do seu pensamento. O espírito quer reconhecer-se a si próprio; mas nas filosofias antigas a Ideia não assume este caráter determinado. Por este motivo as filosofias de Platão e de Aristóteles, e dum modo geral todas as filosofias, são sempre vivas e presentes nos seus princípios fundamentais; mas a filosofia que superou aquele momento já não pode tomar a forma da filosofia platônica e aristotélica, nem é possível que nos contentemos com aquelas filosofias, nem que as revivamos; de sorte que, em nossos dias, não pode haver platônicos, nem aristotélicos, nem estoicos. Para nos contentarmos com essas filosofias, seria necessário descer a um momento já ultrapassado do desenvolvimento do espírito, o qual, desentorpecido por uma cultura mais rica e mais profunda, alcançou maior compreensão de si mesmo. Mas é empresa desesperada e igualmente absurda, como a de um homem em idade madura que pretendesse voltar ao ponto de vista da juventude, ou do jovem que se empenhasse em retroceder à idade de rapaz ou de criança, embora seja verdade que o homem, o jovem e a criança constituem sempre um único e idêntico indivíduo. (...) As múmias colocadas entre seres vivos não podem permanecer.”

 

 

“Diz Aristóteles que o homem começa a filosofar depois de ter provido às necessidades da vida (Metafísica, 1, 2). Visto a filosofia ser atividade livre, não egoística, e sobrevir com o desaparecimento das angústias e necessidades, o espírito deve estar temperado, elevado e revigorado em si mesmo. Importa que as paixões se encontrem amortecidas, e que a consciência tenha progredido ao ponto de poder pensar o universal. Pelo que, a filosofia pode considerar-se uma espécie de luxo, se por luxo entendemos aqueles gozos e ocupações que não concernem às primeiras urgentes necessidades exteriores enquanto tais. Deste ponto de vista, a filosofia é, sem dúvida, supérflua. Mas a dificuldade está em saber o que é o necessário e o supérfluo: do ponto de vista do espírito, a filosofia é o que há de mais indispensável.”

 

 

c) A filosofia como pensamento do próprio tempo

A filosofia desponta num determinado momento de desenvolvimento da cultura. Contudo, os homens não criam uma filosofia ao acaso: é sempre uma determinada filosofia que surge no seio dum povo, e a determinação do ponto de vista do pensamento é idêntica à que se apodera de todas as demais manifestações históricas do espírito desse povo, está em íntima relação com elas e delas constitui o fundamento. Deste modo, a forma particular duma filosofia é sincrônica com uma constituição particular do povo, onde ela aparece, com as suas instituições, com as suas formas de governo, com a sua moralidade, com a sua vida social, com as atitudes, hábitos e preferências, com as suas tentativas e produtos científicos, com a sua religião, com os seus êxitos militares, com todas as circunstâncias externas, não menos que com a decadência dos Estados em que este princípio particular impusera a sua supremacia, e com a formação e progresso de novos Estados, nos quais surge e se desenvolve um princípio mais alto. Sempre que o espírito alcançou determinado grau da sua autoconsciência, elabora e faz penetrar este princípio em toda a riqueza das suas múltiplas relações. Este rico espírito dum povo é um organismo, semelhante a uma catedral que, composta de numerosas abóbadas, naves, colonadas e vestíbulos, é sempre manifestação dum todo, duma unidade, cujas partes se coadunam para um fim. A filosofia é uma forma destes múltiplos aspectos. E qual é essa forma? É a flor excelsa, o conceito do espírito na sua totalidade, a consciência e essência espiritual de todo o conjunto, o espírito do tempo como espírito presente e que se pensa a si próprio. Este todo multíplice reflete-se nela como num único foco, no conceito que se conhece a si mesmo. A filosofia que é necessária ao cristianismo não podia ser fundada em Roma, porque todas as várias e múltiplas formas da unidade total, que era o império romano, eram já expressão da única e idêntica determinação delas. As relações que medeiam entre história política, formas do Estado, arte e religião, e a filosofia, não se devem ao fato de serem aquelas a causa da filosofia, como esta, por seu turno, não é causa daquelas; tanto uma como as outras têm conjuntamente a mesma raiz comum: o espírito do tempo. É sempre um determinado modo de ser, um determinado caráter, que invade todas as diversas partes e se manifesta tanto nas formas políticas como nas demais formas culturais, fundindo num todo as várias partes; e estas, por sua vez, não contêm coisa alguma de heterogêneo à condição fundamental dele, pois que podem aparecer diversas e acidentais, embora se afigure que muitas delas se contradizem mutuamente. Este grau determinado saiu, pois, dum precedente. Todavia, não nos propomos mostrar como é que o espírito dum tempo imprime a sua atualidade inteira e governa as vicissitudes da história segundo o seu princípio, nem explicar toda esta construção. Semelhante tarefa cabe a quem quisesse escrever a história filosófica do mundo em geral. Nós apenas tratamos das formas que imprimem o princípio do espírito num elemento espiritual afim da filosofia. Tal é a posição da filosofia entre as várias formas; donde se segue ser ela idêntica ao seu tempo. Mas, se a filosofia, pelo que respeita ao seu conteúdo, não sai fora do seu tempo, ultrapassa-o pelo que respeita à forma enquanto, como pensamento e conhecimento do espírito substancial do seu tempo, faz dele objeto de si própria. Enquanto a filosofia está no espírito do seu tempo, este é o seu conteúdo determinado; mas, simultaneamente, como saber, pelo fato de o ter situado em frente de si (como problema), já o ultrapassou; mas este progresso limita-se à forma, visto que na realidade não possui outro conteúdo. Este conhecimento é evidentemente a atualidade do espírito, o autoconhecimento do espírito, o qual faltava anteriormente; deste modo, a diferença formal é igualmente uma diferença real e atual. Por meio do conhecimento o espírito põe uma distinção entre conhecimento e aquilo que ele é; e este conhecimento é precisamente o que produz novas formas de desenvolvimento.”

 

 

“A cultura consiste nas ideias gerais enquanto imagens generalizadas e nos fins práticos dentro do âmbito de determinados poderes espirituais que regulam a consciência e a vida. A nossa consciência contém estas representações e valoriza-as como determinações últimas pelas quais se move como que ab interno para ordenar e ligar, sem as conhecer nem tomar por objeto, nem se interessar pelas suas considerações. Sirva de exemplo o modo como toda a consciência lança mão e se vale, nos juízos, da abstrata determinação de pensamento como a do Ser: o sol está no céu; a uva é madura, e assim até o infinito. Numa cultura mais elevada, estão do mesmo modo implícitas as relações de causa e efeito, de força e de manifestação, etc. O inteiro saber e todas as representações da consciência são compenetrados e governados por tal metafísica, que é a rede em que aparece tomada toda a matéria concreta que ocupa o gênero humano na ação e nos impulsos. Mas este tecido e os seus nós, na nossa consciência ordinária, estão imersos, no múltiplo material que contém os nossos interesses, os nossos objetivos, de que somos conscientes, e que temos diante de nossos olhos.”

 

 

“A religião e mais precisamente os teólogos ignoram a filosofia só para não serem contraditos na sua maneira arbitrária de raciocinar. Parece, portanto, que a religião pretende que o homem se abstenha de pensar nos objetos universais e da filosofia, que afinal se reduzem a sabedoria humana, a operações humanas, contrapondo a razão humana à razão divina. Assim, como é costume, distingue-se o ensinamento divino e a lei do mero saber humano e da invenção, compreendendo nesta expressão tudo quanto procede da consciência, da inteligência ou da vontade do homem, em antítese com o conhecimento de Deus, com as coisas que participam do divino, mercê da divina revelação. Mas tal depreciação do humano, expressa nesta oposição, vai além de todas as medidas pois implica a concepção que, se o homem é induzido a admirar a sabedoria de Deus na natureza, a celebrar como obra de Deus o trigo, as montanhas, os cedros do Líbano na sua pompa, o canto das aves, a maravilhosa habilidade e os instintos domésticos dos animais, e procura referir à sabedoria, à bondade e até à justiça de Deus também as coisas humanas — já não encontra Deus nas instituições e nas leis humanas, nem nas operações oriundas da vontade do homem, nem no processo do mundo; mas encontra-o unicamente nos destinos humanos, isto é, em tudo o que está fora do saber e do livre arbítrio do homem. Assim, tudo quanto é exterior e acidental é exaltado como obra de Deus, e a parte substancial, que lança as raízes na vontade e na consciência, é considerada obra do homem. A concordância entre as relações externas, acontecimentos e circunstâncias, e os fins do homem em geral pertence a uma esfera superior, mas unicamente porque são fins humanos e não naturais, como aqueles, aos quais tal concordância se não refere (por exemplo, o pássaro que encontra o alimento para viver). Se devemos submeter todas as coisas às leis naturais, e se nestas leis vemos Deus senhor da natureza: que coisa é então a livre vontade? Não tem esta o domínio sobre as coisas espirituais, ou então, enquanto espiritual, não é senhora na região do espírito? E este domínio nas regiões espirituais não representa acaso um posto mais elevado do que o domínio nas regiões naturais? Esta admiração de Deus revelando-se nas coisas naturais como tais, nas plantas, nos animais, em oposição ao que é humano, estará tão longe da religião dos antigos egípcios que exaltavam o conhecimento do que é divino pelo íbis ou pelos cães? Que diferença da deplorável condição dos antigos índios, que tinham e têm ainda por divinos as vacas e os macacos! E enquanto proveem escrupulosamente à nutrição destes animais, toleram que os homens sofram fome, e julgariam cometer um delito se esconjurassem as angústias da fome dos seus semelhantes servindo-se da carne daqueles animais como de alimento.

Tal concepção revela a crença de que as ações humanas relativas à natureza são não divinas; e enquanto as obras da natureza são divinas, aquilo que o homem produz é não divino. Mas os produtos da razão humana merecem ser estimados pelo menos tanto como a natureza; de contrário, praticamos contra a razão uma injustiça maior do que a permitida. Se, de fato, a vida e a ação dos animais é divina, a ação humana deve ocupar um lugar muito mais elevado e merece ser chamada divina num sentido muito mais nobre. A preeminência do pensamento humano impõe-se ao nosso reconhecimento. Diz Cristo (Mt. 6, 26-30): Olhai as aves do céu (entre as quais devemos contar o íbis), as quais não semeiam nem ceifam nem enceleiram, e vosso pai celestial as alimenta: não sois vós mais do que elas? A superioridade do homem, imagem de Deus, sobre os animais e sobre as plantas, é implícita e explicitamente admitida; mas, quando se trata de investigar onde é que o elemento divino deve ser descoberto e entrevisto, descura-se precisamente aquilo que constitui a superioridade do homem, e atenta-se apenas nas coisas inferiores. De modo idêntico, no que concerne ao conhecimento de Deus, é digno de notar que Cristo situa o conhecimento dele e a fé nele, não na admiração dos seres naturais, nem nas maravilhas do poder de Deus sobre elas, nem nos sinais e milagres, mas no testemunho do espírito. O espírito supera infinitamente a natureza: nele, muito mais do que na natureza, se manifesta a divindade.”

 

 

“Na genuína religião, onde se revela o pensamento infinito, o espírito absoluto, este se torna manifesto no coração, na consciência representativa, no intelecto daquilo que é finito. A religião não se revela unicamente a toda espécie de cultura (o evangelho deve ser pregado ao povo), mas deve, enquanto religião e, por isso, expressamente dirigida ao coração e ao sentimento, entrar na esfera da subjetividade, e por consequência na região de ordens finitas de representações. Na consciência perceptiva e reflexiva sobre as percepções o homem dispõe, pelas relações por sua natureza especulativas sobre o absoluto, unicamente de relações finitas que lhe servem num sentido próprio ou num sentido simbólico para compreender e exprimir as relações do infinito. Todavia, na religião, enquanto primeiríssima e imediata revelação de Deus, a forma de representação e do pensamento finito e reflexivo não pode ser a única forma pela qual Deus dá existência a si mesmo na consciência; mas deve revelar-se nesta forma, por ser a única compreensível à consciência religiosa.”

 

 

“A filosofia começa no momento em que o universal é concebido como o Ser que tudo abarca, ou então no qual o Ser é compreendido de modo universal: a saber, quando surge o pensamento que se pensa a si mesmo, o pensamento do pensar. Quando é que isto aconteceu? Quando começou? Eis o aspecto histórico da questão. O pensamento deve ser por si mesmo, deve realizar a sua liberdade, deve separar-se da natureza passando da dispersão à contemplação; deve livremente entrar em si mesmo e chegar assim à consciência da sua liberdade. Como verdadeiro princípio da filosofia deve-se considerar o momento, em que o absoluto já não é representação, e o sentimento livre não pensa somente o absoluto, mas apreende a ideia do absoluto: quer dizer, quando o pensamento reconhece o ser (que também pode ser o próprio pensamento) como a essência das coisas, como a totalidade absoluta e a essência imanente do todo.

Assim o simples ser incorpóreo que os hebreus pensaram como Deus (já que toda a religião é pensamento) não é um objeto da filosofia, ao passo que o são, por exemplo, as afirmações: A essência ou o princípio das coisas é a água, ou o fogo, ou o pensamento.

Esta definição genérica do pensamento que se põe a si mesmo é definição abstrata; constitui ela o princípio da filosofia, e isto implica um fato histórico, a figura concreta dum povo cujo conceito geral seja constituído por aquela indicação. Se dissermos que, para a filosofia se manifestar, é necessário a consciência da liberdade, o povo onde a filosofia tem início deve possuir este princípio como base; um povo que possua esta consciência da liberdade funda a sua existência sobre tal princípio, pelo qual a legislação e toda a constituição do povo tem a sua base unicamente no conceito que o espírito forma de si mesmo, nas categorias que tem. Praticamente, equivale a dizer que nesse povo floresce efetiva liberdade, a liberdade política; esta nasce somente onde o indivíduo por si se conhece como indivíduo, e sabe que é alguma coisa de universal e essencial; onde o indivíduo sabe que possui valor infinito, e onde o sujeito tenha alcançado a consciência da personalidade e quer por conseguinte valer simplesmente por si mesmo. Portanto, o livre pensamento filosófico tem este nexo com a liberdade prática, que, como o pensamento filosófico se põe como pensamento do objeto absoluto, universal e substancial, assim a liberdade, enquanto se pensa, atribui-se a determinação da universalidade. Pensar em geral quer dizer dar a uma coisa forma de universalidade, pela qual o pensamento em primeiro lugar toma por seu objeto o universal, ou então determina o concreto, a singularidade das coisas naturais, que se encontram na consciência sensível, como o universal, como o pensamento objetivo; em segundo lugar, é necessário que, perante tudo quanto eu reconheço e compreendo como universalidade objetiva e infinita, eu mesmo, do ponto de vista da objetividade, lhe permaneça contraposto.

Por este nexo genérico entre liberdade política e liberdade do pensamento, a filosofia manifesta-se na história só onde e na medida em que se formam constituições livres. Assim como o espírito se deve destacar da sua vontade natural e da sua dispersão na matéria, quando quer filosofar, assim não o pode fazer na forma com que se inicia o espírito universal, anterior ao grau desta separação. O primeiro grau da unidade do espírito com a natureza, o qual, por ser imediato, não é o estado verdadeiro e perfeito, é, em geral, o modo de ser oriental; a filosofia começa, portanto, só com o mundo grego.”

 

 

“O filosofar grego é ingênuo, porque não toma ainda em consideração o contraste entre o ser e o pensar, mas parte do pressuposto inconsciente de que também o pensamento seja o ser. É certo que se encontram igualmente fases da filosofia grega que aparentemente se põem do mesmo ponto de vista da filosofia cristã. A filosofia sofística, a neoacadêmica e a cética, enquanto sustentam a doutrina de que a verdade não é cognoscível, poderiam parecer estarem de acordo com as mais recentes filosofias da subjetividade nisto, em que todas as determinações do pensamento seriam apenas subjetivas de sorte que nada se pode decidir acerca da sua objetividade. Existe, porém, uma diferença radical. Nas antigas filosofias, que dizem não conhecemos senão as aparências, tudo fica dito nesta afirmação. Em geral, nas relações práticas a Nova Academia e os céticos admitiam que se pudesse agir de acordo com a justiça, a moralidade e a razão, adotando as aparências como norma e regra de vida. Mas enquanto assim se assenta como base o aparente, não se afirma ao mesmo tempo que há igualmente um saber do que verdadeiramente é, como fazem os idealistas meramente subjetivos dos tempos recentes, os quais metem depois no plano de fundo um por si, algo que está para além, a noção do qual não se adquire de maneira pensante e compreendente; esta diversa noção deles é um saber imediato, uma fé, uma visão, um desejo daquele Além, como acontece com Jacobi. Os filósofos antigos não sentem nostalgias desta espécie, mas, ao invés, encontram perfeita satisfação e repouso naquela certeza que ao saber não oferece senão o aparente. Deve-se, portanto, a este respeito, ter bem presente o ponto de vista; de outra maneira, da igualdade dos resultados somos levados a encontrar nas antigas filosofias a definição da subjetividade moderna. Dada a ingenuidade do filosofar antigo, o aparente constituía o seu inteiro domínio, para o qual não existiam as dúvidas relativas ao pensamento do objetivo.

O contraste flagrante, os dois termos do qual em tempos recentes foram postos em relação recíproca como totalidade, apresenta igualmente a forma do contraste entre razão e fé, entre a compreensão própria e individual e a verdade objetiva, a qual deve ser acolhida, mesmo quando não seja fruto da razão individual, ou até mesmo, com a renúncia, a esta razão; entre a fé no sentido eclesiástico e a fé no sentido moderno, isto é, duma relação da razão em face duma revelação interna, que se chama certeza imediata, intuição, instinto, ou seja, sentimento que encontramos em nós. O contraste entre este saber que deve ainda desenvolver-se e o saber que já se desenvolveu suscita interesse especial; em ambos é posta a unidade do pensar ou da subjetividade com a verdade ou objetividade; só que na primeira fórmula se diz que o homem natural tem noção do vero como o crê de maneira imediata, ao passo que na segunda fórmula, sendo posta também a unidade do saber com a verdade, o sujeito eleva-se de maneira imediata acima da consciência sensível e conquista a verdade apenas mediante o pensar.

A meta final consiste no pensar o absoluto como espírito, como universal, que, como virtualidade infinita do conceito, liberta de si, na sua realidade, livremente, as suas determinações, ensimesma-se e confunde-se com estas, de modo que estas mesmas podem proceder igualmente por conta própria e até combater-se alternativamente; todavia, de modo que estas totalidades sejam uma só, e não apenas em si (o que seria a nossa reflexão), mas idênticas por si; pelo que as determinações da sua diferença são por si mesmas somente ideias. Se, portanto, o ponto de partida da história da filosofia pode ser expresso com dizer que Deus se concebe como universalidade imediata não ainda desenvolvida, e a meta da filosofia, o apreender, através do trabalho de três mil e quinhentos anos do lento espírito mundial, o absoluto como espírito, tal meta é ainda a do nosso tempo; assim consegue facilmente passar duma determinação à outra, demonstrando as deficiências da primeira; mas no decurso da história isto torna-se difícil.”

 

 

“Depois da fantástica filosofia oriental da subjetividade (a qual não chega à inteligência, e, por conseguinte, a nada de consistente), a luz do pensamento surge na Grécia.

1. A filosofia antiga pensou a Ideia absoluta, e a realização ou realidade dela consistiu em compreender o mundo atualmente presente e considerado como é em si e por si. Esta filosofia não toma como ponto de partida propriamente a Ideia, mas o objetivo como um dado, e o transforma na Ideia: o Ser de Parmênides.

2. O pensamento abstrato, o notis passa a ser conhecido como essência universal, não como pensamento subjetivo. Eis o universal de Platão.

3. Com Aristóteles surge o conceito, livre, sem prejuízos, como pensamento compreendente que percorre e espiritualiza todas as formações do universo.

4. Estóicos, epicúreos e céticos fazem valer o conceito como sujeito, o seu ser em si e devir por si: na sua abstrata separação, portanto, não como forma livre e concreta, mas sim como universalidade abstrata e puramente formal.

5. Os neoplatônicos fazem ver como o pensamento da totalidade, o mundo inteligível, é a Ideia concreta. Este princípio exprime a idealidade em geral de toda a realidade, mas não a ideia consciente de si: somente enquanto aquela ideia ocultava em si o princípio da subjetividade e da individualidade, se pode dizer que Deus como espírito se encontrava realmente na autoconsciência.

6. A Idade Moderna teve por missão compreender esta Ideia como Espírito, como ideia consciente de si. Mas para passar da Ideia consciente à consciência de si da Ideia, era necessária a oposição infinita e que a Ideia chegasse à consciência do seu absoluto contraste. Deste modo a filosofia completava a intelectualidade do mundo; e o espírito, pensando o ser objetivo, gerou um mundo espiritual como um objeto por sua natureza existente para além da realidade presente. Foi esta a primeira criação do espírito. O seu trabalho consistia a partir de agora em reconduzir este além à realidade da autoconsciência. O resultado foi que a autoconsciência se pensa a si mesma, e o pensamento absoluto ficou sendo reconhecido como a autoconsciência que se pensa a si mesma. Sobre o precedente contraste se fez valer o pensamento puro com Descartes. A autoconsciência pensa-se agora, em primeiro lugar, como consciência: nela está contida toda a realidade objetiva, e a relação positiva e intuitiva da sua realidade à outra. Ser e pensar são para Espinosa opostos e idênticos. Espinosa alcança a intuição substancial, mas o conhecer é ainda exterior à substância. Entretanto, para superar a subjetividade do pensamento, estabelece-se o princípio da conciliação, partindo puramente do pensamento, como se certifica na atividade representativa das mônadas em Leibniz.

7. Em segundo lugar, a autoconsciência pensa-se como autoconsciência: neste ponto, ela é por si, mas ainda por si em relação negativa a outro, isto é, a subjetividade infinita: parte como crítica do pensamento, em Kant; parte, como esforço para o concreto, em Fichte. A forma infinita, na sua pureza absoluta, declara-se como autoconsciência que é Eu.

8. Este fulgor invade a substância espiritual, e torna o absoluto conteúdo idêntico à absoluta forma: a substância identifica-se com o conhecer. Assim a autoconsciência reconhece, em terceiro lugar, a sua relação positiva como negação de si, e a sua relação negativa como posição de si, ou seja, estas opostas atividades como a própria atividade; ou ainda, por outras palavras, o pensamento puro ou o puro ser como coincidência, e esta como contraste, de si consigo mesmo.

Eis a intuição fundamental. Mas, para esta ser verdadeiramente intelectual, requer-se que não seja imediatamente aquele intuir que se diz do eterno e divino, mas um conhecer absolutamente. Pelo contrário, o princípio, aqui, é este intuir que não se conhece a si próprio; e dele, como dum pressuposto absoluto, se parte: ele é tal só intuitivamente, como conhecer imediato, não como autoconhecer, ou seja, não conhece nada, e aquilo que intui não é conhecido. Deste modo, poderão obter-se ao sumo, pensamentos, nunca verdadeiros e próprios conhecimentos. Conhecimento é intuição intelectual com as seguintes condições:

a) Que, malgrado a divisão de todo o oposto ao outro, toda a realidade externa se conheça como a interior. E se assim vier a ser conhecida, segundo a sua essência, tal qual é realmente, então se mostra não como estável, mas como aquilo cuja essência própria é o movimento da ultrapassagem. Este ponto de vista heraclitiano ou cético, de que nada é firme, deve ser provado em todas as coisas; e assim, nesta consciência de que a essência de cada coisa é determinação e, por isso, o seu contrário, manifesta-se a unidade do conceito com o seu contrário.

b) Todavia, é também necessário conhecer esta unidade na sua realidade; esta, enquanto é uma tal identidade, deve, precisamente por isso, passar para o seu contrário, ou seja, fazer-se outro para se realizar. Assim, através dela própria, produz-se o seu oposto.

c) Acerca da oposição, temos de dizer, por seu turno, que ela não é de modo absoluto, se o absoluto é a essência, o eterno, etc. Todavia, note-se que também este é uma abstração, na qual está compreendido dum ponto de vista unilateral, e que a sua oposição tem apenas o valor de um ideal; na realidade, a oposição é a forma como momento essencial do movimento do absoluto. Este não está em repouso, aquela não é o conceito que nunca para. Pelo contrário, a Ideia, na sua irrequietabilidade, está em repouso e em si satisfeita.

Deste modo, o puro pensamento chegou à oposição do subjetivo e do objetivo: a verdadeira conciliação da oposição consiste em entender como esta oposição, levada ao ponto extremo, se resolve, de sorte que os opostos, como diz Schelling, sejam em si idênticos. Mas não basta afirmar isto, se não se acrescenta que a vida eterna é propriamente este produzir eternamente a oposição e eternamente conciliá-la. Possuir o oposto na unidade e a unidade na oposição, eis o saber absoluto; e a ciência consiste precisamente em conhecer esta unidade, no seu pleno desenvolvimento, através dele mesmo.”

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