ISBN:
978-85-7559-438-4
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 816
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Sinopse: Ver Parte
I
“Toda
a razão assiste a um estudioso que afirma: “Em A
ideologia alemã, Marx e Engels desenvolveram a sua ideia central de que
a chave do entendimento do homem e de sua história está no exame de sua
atividade produtiva. A atividade fundamental do homem é a maneira pela qual ele
obtém seus meios de subsistência pela interação com a natureza – em suma, seu
trabalho. Esse trabalho é o fator fundamental da história” (McLellan, Marx:
um século de pensamento político, 1983, p. 21).”
“O
idealismo filosófico (ainda que não só ele[63]) nutre-se dessa inversão
mistificadora, que não constitui, em si mesma, uma falsificação intencional,
uma “mentira” – antes, é decorrente de condições sociais muito determinadas,
que permitem aos idealistas a explicação da realidade material e objetiva não a
partir dela mesma, mas a partir de formas da consciência (moral, religião),
derivando nas mais diversas especulações. Contra a “filosofia alemã, que desce
do céu à terra”, Marx e Engels contrapõem a sua perspectiva de análise, que “se
eleva da terra ao céu”; contra a “especulação”, eles sustentam a necessidade da
“ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo prático
de desenvolvimento dos homens”[64].
A
mistificação específica da ideologia reside no processo de inversão que
realiza: ela confere tal autonomia às representações (ideal-simbólicas) dos
homens que a realidade em que vivem parece processar-se a partir
daquelas representações – o mundo dos homens mostra-se, nas
várias expressões ideológicas (“a moral, a religião, a metafísica e qualquer
outra ideologia”), como o produto das representações humanas. Marx e Engels,
sustentando que esse procedimento mistificaria a realidade, argumentam:
Também as formações nebulosas na cabeça dos
homens são sublimações necessárias de seu processo de vida material, processo
empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais. […] Os homens, ao
desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais,
transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu
pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que
determina a consciência.
A
última frase da citação é uma pedra angular do materialismo de Marx e Engels.
Daí a absoluta importância da “ciência real”, que, com sua exposição “do
processo prático de desenvolvimento dos homens”, pode levar à superação das
construções especulativas que constituem as expressões ideológicas. Dizem eles:
Ali onde termina a especulação, na vida real,
começa também, portanto, a ciência real […]. As fraseologias sobre a consciência
acabam e o saber real tem de tomar o seu lugar. A filosofia autônoma perde, com
a exposição da realidade, seu meio de existência. Em seu lugar pode aparecer,
no máximo, um compêndio dos resultados mais gerais, que se deixam abstrair da
observação do desenvolvimento histórico dos homens. Se separadas da história
real, essas abstrações não têm nenhum valor. Elas podem servir apenas para
facilitar a ordenação do material histórico, para indicar a sucessão dos seus
estratos singulares. Mas de forma alguma oferecem, como a filosofia o faz, uma
receita ou um esquema com base no qual as épocas históricas possam ser
classificadas. A dificuldade começa, ao contrário, somente quando se passa à
consideração e à ordenação do material, seja de uma época passada ou do presente,
quando se passa à exposição real.
Embora
naturalmente não seja possível, nos limites deste livro, examinar a riqueza
conteudística desses apontamentos e suas implicações, são notáveis, nos textos
reunidos na Ideologia Alemã:
a) a
centralidade (desenhada já em A
sagrada família) da tese segundo a qual “todas as colisões na história
têm sua origem na contradição entre as forças produtivas e a forma de
intercâmbio”[64] – tese que satura a Ideologia[65] e que, em 1845-1846,
é tomada no seu sentido mais largo e se manterá, aprofundada e enriquecida, ao
longo da obra marxiana;
b) a
compreensão da relevância da divisão social do trabalho não apenas como vetor
de acréscimo da produtividade do trabalho (o que a economia política inglesa –
lembre-se Smith – já registrara), mas sobretudo na apreensão das suas relações
com o desenvolvimento sociocultural, com as formas de propriedade e com – e
este ponto é da maior importância – a problemática da alienação[66];
c) um
nítido avanço no trato da economia política. Mesmo que a crítica dela não tenha
destaque na Ideologia, nesta fica claro o passo para a superação da teoria
do valor esposada por Marx (e Engels) até então e, muito especialmente, uma
original aproximação à importância da constituição do mercado mundial
para a compreensão do mundo burguês[67]. (...)
Quando
Marx e Engels, na Ideologia, referem-se à produção espiritual,
podem-se colher elementos importantes para fecundas aproximações analíticas ao
universo cultural visto como o espaço próprio da produção ideal-simbólica.
Dizem eles em passo tornado antológico:
As ideias da classe dominante são, em cada
época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material
dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual
dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material
dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão
submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais
faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais
do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações
materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das
relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua
dominação. Os indivíduos que compõem a classe dominante possuem, entre outras
coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como
classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o
fazem em toda a sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam
também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e a
distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são
as ideias dominantes da época. […]
A divisão do trabalho […] se expressa também na
classe dominante como divisão entre trabalho espiritual e trabalho material, de
maneira que, no interior dessa classe, uma parte aparece como os pensadores
dessa classe, como seus ideólogos ativos, criadores de conceitos, que fazem da
atividade de formação da ilusão dessa classe sobre si mesma o seu meio principal
de subsistência, enquanto os outros se comportam diante dessas ideias e ilusões
de forma mais passiva e receptiva […]. No interior dessa classe, essa cisão
pode evoluir para uma certa oposição e hostilidade entre as duas partes, a
qual, no entanto, desaparece por si mesma a cada colisão prática em que a
própria classe se vê ameaçada, momento no qual se desfaz também a aparência de
que as ideias dominantes não seriam as ideias da classe dominante e de que elas
teriam uma força distinta dessa classe. A existência de ideias revolucionárias
numa determinada época pressupõe desde já a existência de uma classe
revolucionária.
Essa
passagem da Ideologia é absolutamente relevante porque situa de modo
claro as bases sociomateriais da produção espiritual, da cultura em sentido
amplo, produção no interior da qual se inscreve também, entre
outras formas expressivas[69], a ideologia na acepção em que é concebida por
Marx e Engels em 1845-1846. Mas é sobretudo relevante porque vincula tal
produção – e, decerto, seus produtos – expressamente (o que não significa
imediatamente) às classes sociais e suas lutas.
Já se
sabe, pelo que antes se explicitou, que a ideologia não é uma mistificação intencional,
uma “mentira” – ainda que, sob determinadas condições sócio-históricas, produtos
ideológicos possam se converter efetivamente em mentiras[70]. Independentemente
de tal conversão, a ideologia, operando a inversão referida páginas
atrás, sempre mistifica as concepções dos homens acerca da realidade.
Porém, não a mistifica de um modo neutro ou imparcial: mistifica-a unilateralmente,
expressando como universais, e naturalizando, ideias que não são
mais que a consagração, franca ou dissimulada, das relações sociais
estabelecidas e convenientes à ordem vigente. Assim, nos enfrentamentos ideais
próprios (dir-se-ia hoje: na batalha das ideias) à sociedade de classes (e, na Ideologia,
a sociedade burguesa é claramente pensada como uma sociedade polarizada por
classes portadoras de interesses não só contraditórios, mas antagônicos), a
ideologia torna-se, necessariamente, mais um instrumento a serviço da
manutenção da dominação da maioria pela minoria detentora dos meios da
produção material e espiritual. Ela passa a exercer, pois, uma específica função
social – que não lhe é exclusiva, mas, no seu caso, é fundamental: a
ideologia opera no sentido de legitimar a ordem social vigente,
coonestando, tácita ou explicitamente, os valores e as práticas sociais a
partir dos quais (valores e práticas) essa ordem se funda e se reproduz.
Na Ideologia, as poucas linhas que Marx e Engels dedicam à “ilusão
jurídica” demonstram de forma cristalina essa função social da ideologia.
Ademais, a última frase da citação anterior aponta que, em
todo caso, quaisquer representações ideais, mesmo aquelas explicitamente não
conservadoras, pressupõem uma base social determinada: por isso mesmo, ideias
revolucionárias também pressupõem o suporte de uma classe revolucionária.
Na
consideração dessa dimensão – a existência de uma classe revolucionária e o
suporte que ela pode oferecer como base social para ideias revolucionárias –, a
reflexão de Marx-Engels é reconduzida à tematização do proletariado e seu papel
como sujeito revolucionário, bem como do próprio objetivo da sua revolução, o
comunismo. Também aqui, a argumentação expendida na Ideologia mostra
relevantes avanços teóricos em relação à posição de ambos expressa em A
sagrada família e nos trabalhos anteriores de cada um dos autores (“Contribuição
à crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução”, Manuscritos
econômico-filosóficos de 1844 e A situação da classe trabalhadora
na Inglaterra).
No
capítulo II, tivemos oportunidade de verificar que, já no decurso do segundo
semestre de 1844, Marx assumira claramente uma perspectiva materialista e
revolucionário-proletária no trato da história e da sociedade. Vimos ali como
ele abraçou a sua posição de comunista e que, em A sagrada família, essa
posição vinca profundamente o seu pensamento. Agora, na Ideologia, tal
perspectiva é concretizada em razão dos avanços que fez no trato da economia
política: sem prejuízo da concepção filosófico-antropológica que desenvolveu e
resultou na sua apreensão da práxis, a fundamentação que oferece em 1845-1846
para o projeto comunista é distinta, deslocando-se teórico-metodologicamente
das considerações filosófico-antropológicas para a análise sócio-histórica;
agora, a alternativa comunista é posta por ele (e por Engels) sobre outras
bases, partindo da “contradição entre as forças produtivas e a
forma de intercâmbio”. A possibilidade (e, no caso do proletariado, a própria necessidade)
do comunismo, o protagonismo proletário e o caráter da revolução ganham
fundamentos mais objetivos e concretos. Tratemos de resumir, de modo
forçosamente esquemático e cedendo a palavra aos próprios autores, a
argumentação pertinente que comparece na Ideologia.
O
protagonismo do proletariado como sujeito revolucionário não radica em
valorações éticas e/ou na pauperização a que a ordem estabelecida pela burguesia
dominante o condena – nem se deve a uma teleologia posta necessariamente por um
mecanismo histórico[71]. São o desenvolvimento das forças produtivas e o intercâmbio
universal a ele correspondente que exigem objetivamente dos trabalhadores, para
assegurar a eles a vinculação imprescindível entre a sua atividade (o trabalho)
e as forças produtivas (de que estão desapossados), que se apropriem das forças
produtivas. E
somente os proletários atuais, inteiramente
excluídos de toda autoatividade, estão em condições de impor sua autoatividade
plena, não mais limitada, que consiste na sua apropriação de uma totalidade de
forças produtivas e no decorrente desenvolvimento de uma totalidade de
capacidades. Todas as apropriações revolucionárias anteriores foram
limitadas; os indivíduos, cuja autoatividade estava limitada por um
instrumento de produção e por um intercâmbio limitados, apropriavam-se desse
instrumento de produção limitado e chegavam, com isso, apenas a uma nova
limitação. […] Na apropriação pelos proletários, uma massa de instrumentos de
produção tem de ser subsumida a cada indivíduo, e a propriedade subsumida a
todos. O moderno intercâmbio universal não pode ser subsumido aos indivíduos
senão na condição de ser subsumido a todos.
Em
páginas anteriores, registrando a constituição do mercado mundial e suas
implicações, Marx e Engels já tinham assinalado que
no desenvolvimento das forças produtivas advém
uma fase em que surgem forças produtivas e meios de intercâmbio que, no marco
das relações existentes, causam somente malefícios e não são mais forças de
produção, mas forças de destruição (maquinaria e dinheiro) – e, ligada a isso,
surge uma classe que tem de suportar todos os fardos da
sociedade sem desfrutar das suas vantagens e que, expulsa da sociedade, é
forçada à mais decidida oposição a todas as outras classes; uma classe que
configura a maioria dos membros da sociedade e da qual emana a consciência da
necessidade de uma revolução radical, a consciência comunista, que também pode
se formar, naturalmente, entre as outras classes, graças à percepção da
situação dessa classe; […] em todas as revoluções anteriores a forma da
atividade permaneceu intocada, e tratava-se apenas de instaurar uma outra forma
de distribuição dessa atividade, uma nova distribuição do trabalho entre outras
pessoas, enquanto a revolução comunista volta-se contra a forma da
atividade existente até então, suprime o trabalho[72] e supera a
dominação de todas as classes ao superar as próprias classes […]; tanto para a
criação em massa dessa consciência comunista quanto para o êxito da própria
causa faz-se necessária uma transformação massiva dos homens, o que só se pode
realizar por um movimento prático, por uma revolução; […] [a revolução]
é necessária não apenas porque a classe dominante não pode ser derrubada de
nenhuma outra forma, mas também porque somente com uma revolução a classe que
derruba detém o poder de desembaraçar-se de toda a antiga imundície e de se
tornar capaz de uma nova fundação da sociedade.
Eis
por que a revolução proletária, comunista, tem de possuir um caráter universal:
A apropriação [da totalidade das forças
produtivas pelo proletariado] é, ainda, condicionada pelo modo como tem de ser
realizada. Ela só pode ser realizada por meio de uma união que, devido ao
caráter do próprio proletariado, pode apenas ser uma união universal, e por
meio de uma revolução na qual, por um lado, sejam derrubados o poder do modo de
produção e de intercâmbio anterior e o poder da estrutura social e que, por
outro, desenvolva o caráter universal e a energia do proletariado necessária
para a realização da apropriação; uma revolução na qual, além disso, o
proletariado se despoje de tudo o que ainda restava de sua precedente posição
social. […] Com a apropriação das forças produtivas totais pelos indivíduos unidos,
acaba a propriedade privada.[73]
E a
revolução que promove “uma nova fundação da sociedade”, derrubando “o poder do
modo de produção e de intercâmbio anterior e o poder da estrutura social” e,
com isso, “a superação da propriedade privada”, garante
então a libertação de cada indivíduo singular,
[que é] atingida na mesma medida em que a história transforma-se plenamente em
história mundial. […] É claro que a efetiva riqueza espiritual
do indivíduo depende inteiramente da riqueza de suas relações reais. Somente
assim os indivíduos singulares são libertados das diversas limitações nacionais
e locais, são postos em contato prático com a produção (incluindo a produção
espiritual) do mundo inteiro e em condições de adquirir a capacidade de fruição
dessa multifacetada produção de toda a terra (criações dos homens). A
dependência multifacetada, essa forma natural da cooperação histórico-mundial
dos indivíduos, é transformada, por obra dessa revolução comunista, no controle
e domínio consciente desses poderes, que, criados pela atuação recíproca dos
homens, a eles se impuseram como poderes completamente estranhos e os
dominaram.
A emancipação
de todos os indivíduos, a sua liberdade, só é real e concreta quando a
sociedade instaurada pela revolução proletária constitui uma comunidade real e
concreta:
Nos sucedâneos da comunidade existentes até
aqui, no Estado etc., a liberdade pessoal existia apenas para os indivíduos
desenvolvidos nas condições da classe dominante e somente na medida em que eram
indivíduos dessa classe. A comunidade aparente, em que se associaram até agora
os indivíduos, sempre se autonomizou em relação a eles e, ao mesmo tempo,
porque era uma associação de uma classe contra outra classe, era, para a classe
dominada, não apenas uma comunidade totalmente ilusória, como também um novo
entrave. Na comunidade real, os indivíduos obtêm simultaneamente sua liberdade
na e por meio de sua associação.
A liberdade
dos indivíduos – que, vê-se aqui, aparece como um objetivo central a ser
colimado na “comunidade real”, pensada por Marx e Engels como resultante da
revolução proletária – não se contrapõe ou se efetiva à margem da livre
associação dos homens, ao contrário: “É somente na comunidade [com outros que cada]
indivíduo tem os meios de desenvolver suas faculdades em todos os sentidos; somente
na comunidade, portanto, a liberdade pessoal torna-se possível”.
Na
comunidade ilusória existente sob o domínio de classe da burguesia,
a relação coletiva em que entraram os indivíduos
de uma classe e que era condicionada por seus interesses comuns diante de um
terceiro foi sempre uma coletividade à qual os indivíduos pertenciam […]
somente enquanto viviam nas condições de existência de sua classe; uma relação
na qual participavam não como indivíduos, mas como membros de
uma classe. Ao contrário, com a coletividade dos proletários revolucionários,
que tomam sob seu controle suas condições de existência e as de todos os
membros da sociedade, dá-se exatamente o inverso: nela os indivíduos participam
como indivíduos.
Da
prospecção dessa comunidade – que, ao abolir as classes sociais, possibilitaria
o fim da divisão social do trabalho, da propriedade privada dos instrumentos e
meios de produção, do Estado – pouco cuidaram Marx e Engels, ainda que alguns
de seus traços tenham sido indicados[75]; de fato, ambos escreveram pouco sobre
a sociedade comunista, evitando profecias e, sobretudo, o utopismo a que eram
tão avessos (cf. Barata-Moura, Marx, Engels e a crítica do utopismo, 2015).
Uma anotação de Marx à margem dos originais explicita cristalinamente a recusa
a socorrer-se de futurologias:
O comunismo não é para nós um estado de
coisas que deve ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade
deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera
o estado de coisas atual. As condições desse movimento […] resultam dos
pressupostos atualmente existentes.
Tais
pressupostos atualmente existentes (forças produtivas e intercâmbio
desenvolvidos no marco do mercado mundial, bem como a formação de uma classe
objetivamente revolucionária) são empiricamente verificáveis, e não constructos
puramente ideais (e, menos ainda, expressões ideológicas e/ou especulativas:
como construções teóricas, exprimem conteúdos da ciência real). Sobre
eles se desenrolam as lutas de classes que apontam para a revolução
proletária, de que pode resultar a nova fundação da sociedade:
a fundação da sociedade comunista. Tal como seus pressupostos, essa fundação é
um processo histórico-prático; nas precisas palavras de Marx e Engels,
como vimos páginas atrás, ela opera-se “por um movimento prático, por uma revolução”,
que se distingue
de todos os movimentos anteriores porque revoluciona
os fundamentos de todas as relações de produção e de intercâmbio precedentes e
porque pela primeira vez aborda conscientemente todos os pressupostos naturais
como criação dos homens que existiram anteriormente, despojando-os de seu
caráter natural e submetendo-os ao poder dos indivíduos associados. Sua
organização [o comunismo] é, por isso, essencialmente econômica,
a produção material das condições da associação; ele faz das condições
existentes as condições da associação.
Essa
concepção marx-engelsiana do comunismo arranca, como ambos insistem ao largo da
Ideologia, de condições históricas factuais e verificáveis; o que cabe à
consequência da revolução proletária é garantir, sobre tais condições, as que
são imprescindíveis ao desenvolvimento da sociedade que com ela se vê fundada.
Pelo
que expusemos nestas últimas páginas, parece que não podem pairar dúvidas de
que, ao fim do trabalho intelectual objetivado nos materiais da Ideologia,
Marx (mas também Engels) passa(m) a dispor de um aparato teórico-metodológico
próprio e original que, despido de quaisquer hipotecas do lastro neo-hegeliano
– inclusive aquelas provenientes da anterior recepção de Feuerbach –, permitirá
a Marx, como veremos adiante, avançar nos anos seguintes nas suas primeiras
análises do modo de produção capitalista, simultaneamente à sua vinculação
orgânica com o movimento dos trabalhadores (em específico, com o movimento da
classe operária).”
[63] Marx
e Engels referem-se também aos “empiristas abstratos”. De fato, em 1845-1846,
não restringem a condição de ideólogos apenas àqueles que, filosoficamente, são
idealistas (ver Eagleton, Ideologia, 1997).
[64] Tenha-se
presente que “ciência real, positiva” denota aqui ciência fundada
nos já referidos pressupostos reais.
Observe-se
que, na segunda metade dos anos 1860, Marx – em razão do interesse dos ingleses
pela síntese enciclopédica de Comte – dedicou-se à leitura do autor francês. O
seu juízo foi comunicado a Engels, em carta de 7 de julho de 1866: mesmo
constatando que, em detalhes matemáticos, Comte tinha alguma qualificação
profissional, escreve que, “comparado a Hegel”, ele é “minúsculo”; e
acrescenta: “E esse desprezível e inútil positivismo surgiu em 1832!” (MEW,
1965, v. 31, p. 234).
Para
discussões acerca da relação de Marx e da tradição intelectual inaugurada por
ele com o positivismo, ver, entre outros, os verbetes pertinentes de Bhaskar e
Benton constantes em Bottomore, org., 1988, Dicionário do pensamento
marxista. Materiais expressivos para a crítica do positivismo (nominado
como tal ou não) encontram-se em Horkheimer (Teoría crítica, 1974) e Marcuse (Razão e
revolução, 1988); veja-se ainda o registro de polêmicas, bem mais
abrangentes e próprias do século XX, em Adorno et al. Der Positivismusstreit in der deutschen Soziologie, 1978.
[65] A
tese, noutros termos, é a de que a dinâmica das formas societárias
conhecidas deve-se à “contradição entre as forças produtivas e a forma de
intercâmbio”; resultantes dessa relação contraditória são examinadas a seguir
em formas sociais determinadas e referidas à conexão entre indivíduos e
sociedade. Marx e Engels escrevem: “A forma de intercâmbio, condicionada pelas
forças de produção existentes em todos os estágios históricos precedentes e
que, por seu turno, as condiciona, é a sociedade civil […]. Aqui já se
mostra que essa sociedade civil é o verdadeiro foco e cenário de toda a
história” – observe-se que, para os autores da Ideologia, “a sociedade
civil, como tal, desenvolve-se somente com a burguesia”.
Não
se esqueça um dos pontos de partida de Marx-Engels no início de sua crítica a
Feuerbach: eles assinalam que o filósofo não vê que o mundo que o rodeia é “o
produto da indústria e do estado de coisas da sociedade, e isso precisamente no
sentido de que é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma
série de gerações, que, cada uma delas sobre os ombros da precedente,
desenvolveram sua indústria e seu comércio e modificaram sua ordem social de
acordo com as necessidades alteradas. […] A indústria e o comércio, a produção
e o intercâmbio das necessidades vitais condicionam, por seu lado, a
distribuição, a estrutura das diferentes classes sociais e são, por sua vez,
condicionadas por elas no modo de seu funcionamento”). O que
Feuerbach não considera é uma exigência elementar que Marx e Engels põem à
consideração da história: que esta “deve ser estudada e elaborada sempre em
conexão com a história da indústria e das trocas”.
[66] Originalmente
vinculada à divisão sexual do trabalho, a divisão social “só se torna realmente
divisão a partir do momento em que surge uma divisão entre trabalho material e
[trabalho] espiritual. A partir desse momento, a consciência pode
realmente imaginar ser outra coisa diferente da consciência da práxis
existente, representar algo realmente sem representar algo real – a partir de
então, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e lançar-se à
construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc. ‘puras’”.
Observe-se que, na Ideologia, aponta-se que “a maior divisão entre
trabalho material e espiritual é a separação entre cidade e campo. A oposição
entre cidade e campo começa com a passagem da barbárie à civilização, do
tribalismo ao Estado, da localidade à nação, e mantém-se por toda a história da
civilização até os dias atuais”.
Desenvolvendo-se
a divisão social do trabalho, “está dada a propriedade, que já tem seu embrião,
sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são escravos do
homem. A escravidão na família, ainda latente e rústica, é a primeira
propriedade […]. Além do mais, divisão do trabalho e propriedade privada são
expressões idênticas – numa é dito com relação à própria atividade aquilo que,
noutra, é dito com relação ao produto da atividade”.
“Logo
que o trabalho começa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de
atividade exclusivo e determinado, que lhe é imposto e ao qual não pode
escapar: o indivíduo é caçador, pescador, pastor ou crítico, e assim deve
permanecer se não quiser perder seu meio de vida […]. Esse fixar-se da
atividade social, essa consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo
situado acima de nós, que foge ao nosso controle, que contraria nossas expectativas
e aniquila nossas conjeturas, é um dos principais momentos no desenvolvimento
histórico até aqui realizado. O poder social, isto é, a força de produção
multiplicada que nasce da cooperação dos diversos indivíduos condicionada pela
divisão do trabalho, aparece a esses indivíduos […] não como seu poder
unificado, mas sim como uma potência estranha, situada fora deles, sobre a qual
não sabem de onde veio nem para onde vai, uma potência, portanto, que não podem
mais controlar e que, pelo contrário, percorre agora uma sequência particular
de fases e etapas de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos homens
e que até mesmo dirige esse querer e esse agir”. Na continuidade imediata desta
última frase, os originais registram uma anotação de Marx que remete àquele “poder
social” como alienação.
[67]
Para detalhar esse nítido avanço, veja-se Mandel, 1968, p. 43-53.
Quanto
ao primeiro ponto, sobre a teoria do valor, veja-se idem, e a seguinte passagem
da Ideologia, justamente realçada pelo marxista belga: comentando a inépcia
econômica de Stirner, diz-se que “ele não chegou a apreender” que, “no âmbito
da concorrência, o preço do pão é determinado pelos custos de
produção e não pelo arbítrio dos padeiros” – e mais: afirma-se que, “mesmo
no que diz respeito à moeda metálica, ela é puramente definida pelos custos
de produção, quer dizer, pelo trabalho”.
Quanto
ao segundo ponto, referente ao “moderno intercâmbio universal”, ver, na Ideologia,
esp. p. 57-61; com efeito, há várias alusões relativas ao fato de
crescentemente “a história torna[r]-se história mundial”. E encontra-se na
mesma obra uma passagem extraordinária, que deve ser
reproduzida em sua integralidade, pois que antecipa ideias que Marx
desenvolverá intensivamente, com/sob novas determinações, em futuros escritos (Manifesto
do Partido Comunista, Grundrisse, O capital): “A grande
indústria […] criou os meios de comunicação e o moderno mercado mundial,
submeteu a si o comércio, transformou todo capital em capital industrial e
gerou, com isso, a rápida circulação (o desenvolvimento do sistema monetário) e
a centralização dos capitais. Criou pela primeira vez a história mundial, ao
tornar toda nação civilizada e cada indivíduo dentro dela dependentes do mundo
inteiro para a satisfação de suas necessidades, e suprimiu o anterior caráter
exclusivista e natural das nações singulares. Subsumiu a ciência natural ao
capital e tomou da divisão do trabalho a sua última aparência de naturalidade.
Destruiu, em geral, a naturalidade, na medida em que isso é possível no
interior do trabalho, e dissolveu todas as relações naturais em relações
monetárias. No lugar das cidades criadas naturalmente, criou as grandes cidades
industriais modernas, nascidas da noite para o dia.
Destruiu,
onde quer que tenha penetrado, o artesanato e, em geral, todos os estágios
anteriores da indústria. Completou a vitória da cidade comercial sobre o campo.
Seu pressuposto é o sistema automático. Ela produziu uma massa de forças
produtivas para a qual a propriedade privada tornou-se um empecilho, tanto
quanto o fora a corporação para a manufatura e o pequeno empreendimento rural
para o artesanato que progredia.
Essas
forças produtivas, sob o regime da propriedade privada, obtêm apenas um
desenvolvimento unilateral, convertem-se para a maioria em forças destrutivas e
uma grande quantidade dessas forças não consegue alcançar a menor utilização na
propriedade privada. A grande indústria, em geral, criou por toda parte as
mesmas relações entre as classes da sociedade e suprimiu por meio disso a
particularidade das diversas nacionalidades. E finalmente, enquanto a burguesia
de cada nação conserva ainda interesses nacionais à parte, a grande indústria
criou uma classe que tem em todas as nações o mesmo interesse e na qual toda
nacionalidade já está destruída; uma classe que, de fato, está livre de todo o
mundo antigo e, ao mesmo tempo, com ele se defronta. A grande indústria torna
insuportável para o trabalhador não apenas a relação com o capitalista, mas sim
o próprio trabalho”. Evidentemente, a referência aqui é ao trabalho
enquanto trabalho subordinado ao capital (ver, supra, cap. II, nota 77).
[68] Ainda
que em diversas passagens sejam indicados aspectos referentes ao
desenvolvimento de teorias e ciências – ver, por exemplo, na edição da Ideologia
que estamos citando, as p. 31, 60, 62, 77, 94, 142, 397-9…
[69] Só
posteriormente (na segunda metade dos anos 1850) Marx trataria de outras
expressões, na sua ampliação do próprio conceito de ideologia.
[70] Aliás,
numa anotação de Marx à margem do manuscrito, lê-se, como uma das implicações
da emersão da “grande indústria”, que ela “destruiu, onde foi possível, a
ideologia, a religião, a moral etc. e, onde não pôde fazê-lo, transformou-as
em mentiras palpáveis”.
Em
janeiro de 1873, Marx observou, analisando a evolução do pensamento econômico
burguês, no posfácio à segunda edição de O capital, que, com a burguesia
dominando politicamente em países como a França e a Inglaterra e com as lutas
de classes mais definidas e para ela mais ameaçadoras desde 1848, “soou o dobre
de finados da ciência econômica burguesa. Não interessava mais saber se este ou
aquele teorema era verdadeiro ou não; mas importava saber o que, para o
capital, era útil ou prejudicial, conveniente ou inconveniente
[…]. Os pesquisadores desinteressados foram substituídos por espadachins
mercenários, a investigação científica imparcial cedeu seu lugar à consciência
deformada e às intenções perversas da apologética” (Marx, 1968, v. I, p. 11).
Com tal “dobre de finados”, a transformação de produtos espiritual-ideológicos
em “mentiras palpáveis” viu-se exponenciada, num processo que prosseguiu e se
acentuou com o desenvolvimento capitalista até os dias correntes, fazendo que
os limites entre ideologia e mentira fiquem cada vez menos discerníveis –
processo que foi e vai muito além do pensamento econômico, perpassando
praticamente todos os âmbitos da produção espiritual, configurando o que se
designou como “decadência ideológica da burguesia” (Lukács, Marx e o problema
da decadência ideológica, 2016). Para uma apreciação rigorosa dessa problemática, historicamente
centrada no século XX, ver Mészáros, Filosofia,
ideologia e ciência social (1993); e O poder da
ideologia (2004).
[71] Para
Marx e Engels, não há na história real nenhuma volição dela mesma, nenhuma
teleologia que derive senão do sentido que os homens efetivam na sua ação
individual e coletiva. Marx e Engels nunca substantivaram qualquer “ação da
história”. Eles já têm conhecimento, antes da Ideologia (em A sagrada
família, 2003, p. 111), de que “a História não faz nada,
‘não possui nenhuma riqueza imensa’, ‘não luta nenhum tipo de
luta’! Quem faz tudo isso, quem possui e luta é […] o homem, o homem
real, que vive; não é, por certo, a ‘História’ que utiliza o homem como meio
para alcançar seus fins […], pois a História não é senão a
atividade do homem que persegue seus objetivos”.
Na
segunda metade dos anos 1880, Engels – num passo em que exprime a sua posição
pessoal, mas, a meu ver, também a de Marx – retoma, com a competência de
sempre, a questão da ausência de qualquer teleologia da história, ainda
que ressalte o caráter teleológico da ação humana. Diz ele que, diversamente da
história da natureza, “na história da sociedade, os agentes são todos homens
dotados de consciência, que atuam sob o impulso da reflexão ou da paixão,
buscando determinados fins; aqui nada se produz sem intenção consciente, sem um
fim desejado. […] Os objetivos visados pelos atos [dos homens] são produto da
vontade, mas não o são os resultados que, na realidade, decorrem deles e, mesmo
quando momentaneamente parecem ajustar-se aos objetivos visados, encerram
finalmente consequências muito diversas das que eram desejadas” (Marx-Engels,
1963, Obras escolhidas em três volumes, v. 3, p. 198). Ver também a carta de Engels a
Joseph Bloch de 21-22 de setembro de 1890 (MEW, 1967, v. 37, esp. p. 463).
[72]
Ver novamente, supra, cap. II, nota 77.
[73] Há,
pertinente a esse ponto, uma anotação de Marx à margem do manuscrito que, lida
hoje, revela também premonições impressionantes. Nela se afirma que um dos
pressupostos práticos para a revolução comunista é que se tenha produzido a “massa
da humanidade como absolutamente ‘sem propriedade’ e, ao mesmo tempo, em
contradição com um mundo de riqueza e de cultura existente, condições que
pressupõem um grande aumento da força produtiva, um alto grau de seu
desenvolvimento […] – pressuposto prático, absolutamente necessário, pois sem
ele apenas se generaliza a escassez e, portanto, com a carestia, as
lutas pelos gêneros necessários recomeçariam e toda a velha imundice acabaria
por se restabelecer; além disso, apenas com esse desenvolvimento universal das
forças produtivas é posto um intercâmbio universal dos homens e, com
isso, é produzido simultaneamente em todos os povos o fenômeno da massa ‘sem
propriedade’ […], tornando cada um deles dependente das revoluções do outro; e,
finalmente, indivíduos empiricamente universais, histórico-mundiais, são
postos no lugar dos indivíduos locais. Sem isso, 1) o
comunismo poderia existir apenas como fenômeno local; 2) as próprias forças
do intercâmbio não teriam podido se desenvolver como forças universais
e, portanto, como forças insuportáveis; elas teriam permanecido como
‘circunstâncias’ doméstico-supersticiosas; e 3) toda ampliação do intercâmbio
superaria o comunismo local. O comunismo, empiricamente, é apenas possível como
ação ‘repentina’ e simultânea dos povos dominantes, o que pressupõe o
desenvolvimento universal da força produtiva e o intercâmbio mundial associado
a esse desenvolvimento”.
[74] Cravada
no humanismo marx-engelsiano, essa ideia do desenvolvimento omnilateral
das faculdades dos indivíduos na sociedade comunista é o que podemos chamar de ideia-força
de Marx e Engels e recebe formulação conclusiva no Manifesto
do Partido Comunista (1998, p.
31); nele, lê-se que, superada a sociedade burguesa, “surge uma associação em
que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre
desenvolvimento de todos”. Ver a nota seguinte.
[75] Um
desses traços comparece na Ideologia – veja-se a seguinte passagem: “Logo
que o trabalho passa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de
atividade exclusivo e determinado, que lhe é imposto e ao qual não pode
escapar; o indivíduo é caçador, pescador, pastor ou Crítico crítico, e assim
deve permanecer se não quiser perder seu meio de vida – ao passo que, na
sociedade comunista, onde cada um não tem um campo de atividade exclusivo, mas
pode aperfeiçoar-se em todos os ramos que lhe agradam, a sociedade regula a
produção geral e me confere, assim, a possibilidade de hoje fazer isto, amanhã
aquilo, de caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite dedicar-me à criação de
gado, criticar após o jantar, exatamente de acordo com a minha vontade, sem que
eu jamais me torne caçador, pescador, pastor ou crítico”. Contemporaneamente,
essa consequência da superação da divisão social do trabalho – em que alguns
viram laivos de utopismo –, posto o desenvolvimento atual (abertura do
século XXI) das forças produtivas e o que ele permite vislumbrar, mostra-se uma
possibilidade concreta, obviamente numa organização social em que o
capital perdeu o comando do trabalho.
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