sábado, 3 de abril de 2021

Karl Marx: uma biografia (Parte II), de José Paulo Netto

Editora: Boitempo

ISBN: 978-85-7559-438-4

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 816

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Sinopse: Ver Parte I



“Toda a razão assiste a um estudioso que afirma: “Em A ideologia alemã, Marx e Engels desenvolveram a sua ideia central de que a chave do entendimento do homem e de sua história está no exame de sua atividade produtiva. A atividade fundamental do homem é a maneira pela qual ele obtém seus meios de subsistência pela interação com a natureza – em suma, seu trabalho. Esse trabalho é o fator fundamental da história” (McLellan, Marx: um século de pensamento político, 1983, p. 21).”

 

 

“O idealismo filosófico (ainda que não só ele[63]) nutre-se dessa inversão mistificadora, que não constitui, em si mesma, uma falsificação intencional, uma “mentira” – antes, é decorrente de condições sociais muito determinadas, que permitem aos idealistas a explicação da realidade material e objetiva não a partir dela mesma, mas a partir de formas da consciência (moral, religião), derivando nas mais diversas especulações. Contra a “filosofia alemã, que desce do céu à terra”, Marx e Engels contrapõem a sua perspectiva de análise, que “se eleva da terra ao céu”; contra a “especulação”, eles sustentam a necessidade da “ciência real, positiva, a exposição da atividade prática, do processo prático de desenvolvimento dos homens”[64].

A mistificação específica da ideologia reside no processo de inversão que realiza: ela confere tal autonomia às representações (ideal-simbólicas) dos homens que a realidade em que vivem parece processar-se a partir daquelas representações – o mundo dos homens mostra-se, nas várias expressões ideológicas (“a moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia”), como o produto das representações humanas. Marx e Engels, sustentando que esse procedimento mistificaria a realidade, argumentam:

Também as formações nebulosas na cabeça dos homens são sublimações necessárias de seu processo de vida material, processo empiricamente constatável e ligado a pressupostos materiais. […] Os homens, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência.

A última frase da citação é uma pedra angular do materialismo de Marx e Engels. Daí a absoluta importância da “ciência real”, que, com sua exposição “do processo prático de desenvolvimento dos homens”, pode levar à superação das construções especulativas que constituem as expressões ideológicas. Dizem eles:

Ali onde termina a especulação, na vida real, começa também, portanto, a ciência real […]. As fraseologias sobre a consciência acabam e o saber real tem de tomar o seu lugar. A filosofia autônoma perde, com a exposição da realidade, seu meio de existência. Em seu lugar pode aparecer, no máximo, um compêndio dos resultados mais gerais, que se deixam abstrair da observação do desenvolvimento histórico dos homens. Se separadas da história real, essas abstrações não têm nenhum valor. Elas podem servir apenas para facilitar a ordenação do material histórico, para indicar a sucessão dos seus estratos singulares. Mas de forma alguma oferecem, como a filosofia o faz, uma receita ou um esquema com base no qual as épocas históricas possam ser classificadas. A dificuldade começa, ao contrário, somente quando se passa à consideração e à ordenação do material, seja de uma época passada ou do presente, quando se passa à exposição real.

Embora naturalmente não seja possível, nos limites deste livro, examinar a riqueza conteudística desses apontamentos e suas implicações, são notáveis, nos textos reunidos na Ideologia Alemã:

a) a centralidade (desenhada já em A sagrada família) da tese segundo a qual “todas as colisões na história têm sua origem na contradição entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio”[64] – tese que satura a Ideologia[65] e que, em 1845-1846, é tomada no seu sentido mais largo e se manterá, aprofundada e enriquecida, ao longo da obra marxiana;

b) a compreensão da relevância da divisão social do trabalho não apenas como vetor de acréscimo da produtividade do trabalho (o que a economia política inglesa – lembre-se Smith – já registrara), mas sobretudo na apreensão das suas relações com o desenvolvimento sociocultural, com as formas de propriedade e com – e este ponto é da maior importância – a problemática da alienação[66];

c) um nítido avanço no trato da economia política. Mesmo que a crítica dela não tenha destaque na Ideologia, nesta fica claro o passo para a superação da teoria do valor esposada por Marx (e Engels) até então e, muito especialmente, uma original aproximação à importância da constituição do mercado mundial para a compreensão do mundo burguês[67]. (...)

Quando Marx e Engels, na Ideologia, referem-se à produção espiritual, podem-se colher elementos importantes para fecundas aproximações analíticas ao universo cultural visto como o espaço próprio da produção ideal-simbólica. Dizem eles em passo tornado antológico:

As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que tem à sua disposição os meios da produção material dispõe também dos meios da produção espiritual, de modo que a ela estão submetidos aproximadamente ao mesmo tempo os pensamentos daqueles aos quais faltam os meios da produção espiritual. As ideias dominantes não são nada mais do que a expressão ideal das relações materiais dominantes, são as relações materiais dominantes apreendidas como ideias; portanto, são a expressão das relações que fazem de uma classe a classe dominante, são as ideias de sua dominação. Os indivíduos que compõem a classe dominante possuem, entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam; na medida em que dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente que eles o fazem em toda a sua extensão, portanto, entre outras coisas, que eles dominam também como pensadores, como produtores de ideias, que regulam a produção e a distribuição das ideias de seu tempo; e, por conseguinte, que suas ideias são as ideias dominantes da época. […]

A divisão do trabalho […] se expressa também na classe dominante como divisão entre trabalho espiritual e trabalho material, de maneira que, no interior dessa classe, uma parte aparece como os pensadores dessa classe, como seus ideólogos ativos, criadores de conceitos, que fazem da atividade de formação da ilusão dessa classe sobre si mesma o seu meio principal de subsistência, enquanto os outros se comportam diante dessas ideias e ilusões de forma mais passiva e receptiva […]. No interior dessa classe, essa cisão pode evoluir para uma certa oposição e hostilidade entre as duas partes, a qual, no entanto, desaparece por si mesma a cada colisão prática em que a própria classe se vê ameaçada, momento no qual se desfaz também a aparência de que as ideias dominantes não seriam as ideias da classe dominante e de que elas teriam uma força distinta dessa classe. A existência de ideias revolucionárias numa determinada época pressupõe desde já a existência de uma classe revolucionária.

Essa passagem da Ideologia é absolutamente relevante porque situa de modo claro as bases sociomateriais da produção espiritual, da cultura em sentido amplo, produção no interior da qual se inscreve também, entre outras formas expressivas[69], a ideologia na acepção em que é concebida por Marx e Engels em 1845-1846. Mas é sobretudo relevante porque vincula tal produção – e, decerto, seus produtos – expressamente (o que não significa imediatamente) às classes sociais e suas lutas.

Já se sabe, pelo que antes se explicitou, que a ideologia não é uma mistificação intencional, uma “mentira” – ainda que, sob determinadas condições sócio-históricas, produtos ideológicos possam se converter efetivamente em mentiras[70]. Independentemente de tal conversão, a ideologia, operando a inversão referida páginas atrás, sempre mistifica as concepções dos homens acerca da realidade. Porém, não a mistifica de um modo neutro ou imparcial: mistifica-a unilateralmente, expressando como universais, e naturalizando, ideias que não são mais que a consagração, franca ou dissimulada, das relações sociais estabelecidas e convenientes à ordem vigente. Assim, nos enfrentamentos ideais próprios (dir-se-ia hoje: na batalha das ideias) à sociedade de classes (e, na Ideologia, a sociedade burguesa é claramente pensada como uma sociedade polarizada por classes portadoras de interesses não só contraditórios, mas antagônicos), a ideologia torna-se, necessariamente, mais um instrumento a serviço da manutenção da dominação da maioria pela minoria detentora dos meios da produção material e espiritual. Ela passa a exercer, pois, uma específica função social – que não lhe é exclusiva, mas, no seu caso, é fundamental: a ideologia opera no sentido de legitimar a ordem social vigente, coonestando, tácita ou explicitamente, os valores e as práticas sociais a partir dos quais (valores e práticas) essa ordem se funda e se reproduz. Na Ideologia, as poucas linhas que Marx e Engels dedicam à “ilusão jurídica” demonstram de forma cristalina essa função social da ideologia. Ademais, a última frase da citação anterior aponta que, em todo caso, quaisquer representações ideais, mesmo aquelas explicitamente não conservadoras, pressupõem uma base social determinada: por isso mesmo, ideias revolucionárias também pressupõem o suporte de uma classe revolucionária.

Na consideração dessa dimensão – a existência de uma classe revolucionária e o suporte que ela pode oferecer como base social para ideias revolucionárias –, a reflexão de Marx-Engels é reconduzida à tematização do proletariado e seu papel como sujeito revolucionário, bem como do próprio objetivo da sua revolução, o comunismo. Também aqui, a argumentação expendida na Ideologia mostra relevantes avanços teóricos em relação à posição de ambos expressa em A sagrada família e nos trabalhos anteriores de cada um dos autores (“Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel. Introdução”, Manuscritos econômico-filosóficos de 1844 e A situação da classe trabalhadora na Inglaterra).

No capítulo II, tivemos oportunidade de verificar que, já no decurso do segundo semestre de 1844, Marx assumira claramente uma perspectiva materialista e revolucionário-proletária no trato da história e da sociedade. Vimos ali como ele abraçou a sua posição de comunista e que, em A sagrada família, essa posição vinca profundamente o seu pensamento. Agora, na Ideologia, tal perspectiva é concretizada em razão dos avanços que fez no trato da economia política: sem prejuízo da concepção filosófico-antropológica que desenvolveu e resultou na sua apreensão da práxis, a fundamentação que oferece em 1845-1846 para o projeto comunista é distinta, deslocando-se teórico-metodologicamente das considerações filosófico-antropológicas para a análise sócio-histórica; agora, a alternativa comunista é posta por ele (e por Engels) sobre outras bases, partindo da “contradição entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio”. A possibilidade (e, no caso do proletariado, a própria necessidade) do comunismo, o protagonismo proletário e o caráter da revolução ganham fundamentos mais objetivos e concretos. Tratemos de resumir, de modo forçosamente esquemático e cedendo a palavra aos próprios autores, a argumentação pertinente que comparece na Ideologia.

O protagonismo do proletariado como sujeito revolucionário não radica em valorações éticas e/ou na pauperização a que a ordem estabelecida pela burguesia dominante o condena – nem se deve a uma teleologia posta necessariamente por um mecanismo histórico[71]. São o desenvolvimento das forças produtivas e o intercâmbio universal a ele correspondente que exigem objetivamente dos trabalhadores, para assegurar a eles a vinculação imprescindível entre a sua atividade (o trabalho) e as forças produtivas (de que estão desapossados), que se apropriem das forças produtivas. E

somente os proletários atuais, inteiramente excluídos de toda autoatividade, estão em condições de impor sua autoatividade plena, não mais limitada, que consiste na sua apropriação de uma totalidade de forças produtivas e no decorrente desenvolvimento de uma totalidade de capacidades. Todas as apropriações revolucionárias anteriores foram limitadas; os indivíduos, cuja autoatividade estava limitada por um instrumento de produção e por um intercâmbio limitados, apropriavam-se desse instrumento de produção limitado e chegavam, com isso, apenas a uma nova limitação. […] Na apropriação pelos proletários, uma massa de instrumentos de produção tem de ser subsumida a cada indivíduo, e a propriedade subsumida a todos. O moderno intercâmbio universal não pode ser subsumido aos indivíduos senão na condição de ser subsumido a todos.

Em páginas anteriores, registrando a constituição do mercado mundial e suas implicações, Marx e Engels já tinham assinalado que

no desenvolvimento das forças produtivas advém uma fase em que surgem forças produtivas e meios de intercâmbio que, no marco das relações existentes, causam somente malefícios e não são mais forças de produção, mas forças de destruição (maquinaria e dinheiro) – e, ligada a isso, surge uma classe que tem de suportar todos os fardos da sociedade sem desfrutar das suas vantagens e que, expulsa da sociedade, é forçada à mais decidida oposição a todas as outras classes; uma classe que configura a maioria dos membros da sociedade e da qual emana a consciência da necessidade de uma revolução radical, a consciência comunista, que também pode se formar, naturalmente, entre as outras classes, graças à percepção da situação dessa classe; […] em todas as revoluções anteriores a forma da atividade permaneceu intocada, e tratava-se apenas de instaurar uma outra forma de distribuição dessa atividade, uma nova distribuição do trabalho entre outras pessoas, enquanto a revolução comunista volta-se contra a forma da atividade existente até então, suprime o trabalho[72] e supera a dominação de todas as classes ao superar as próprias classes […]; tanto para a criação em massa dessa consciência comunista quanto para o êxito da própria causa faz-se necessária uma transformação massiva dos homens, o que só se pode realizar por um movimento prático, por uma revolução; […] [a revolução] é necessária não apenas porque a classe dominante não pode ser derrubada de nenhuma outra forma, mas também porque somente com uma revolução a classe que derruba detém o poder de desembaraçar-se de toda a antiga imundície e de se tornar capaz de uma nova fundação da sociedade.

Eis por que a revolução proletária, comunista, tem de possuir um caráter universal:

A apropriação [da totalidade das forças produtivas pelo proletariado] é, ainda, condicionada pelo modo como tem de ser realizada. Ela só pode ser realizada por meio de uma união que, devido ao caráter do próprio proletariado, pode apenas ser uma união universal, e por meio de uma revolução na qual, por um lado, sejam derrubados o poder do modo de produção e de intercâmbio anterior e o poder da estrutura social e que, por outro, desenvolva o caráter universal e a energia do proletariado necessária para a realização da apropriação; uma revolução na qual, além disso, o proletariado se despoje de tudo o que ainda restava de sua precedente posição social. […] Com a apropriação das forças produtivas totais pelos indivíduos unidos, acaba a propriedade privada.[73]

E a revolução que promove “uma nova fundação da sociedade”, derrubando “o poder do modo de produção e de intercâmbio anterior e o poder da estrutura social” e, com isso, “a superação da propriedade privada”, garante

então a libertação de cada indivíduo singular, [que é] atingida na mesma medida em que a história transforma-se plenamente em história mundial. […] É claro que a efetiva riqueza espiritual do indivíduo depende inteiramente da riqueza de suas relações reais. Somente assim os indivíduos singulares são libertados das diversas limitações nacionais e locais, são postos em contato prático com a produção (incluindo a produção espiritual) do mundo inteiro e em condições de adquirir a capacidade de fruição dessa multifacetada produção de toda a terra (criações dos homens). A dependência multifacetada, essa forma natural da cooperação histórico-mundial dos indivíduos, é transformada, por obra dessa revolução comunista, no controle e domínio consciente desses poderes, que, criados pela atuação recíproca dos homens, a eles se impuseram como poderes completamente estranhos e os dominaram.

A emancipação de todos os indivíduos, a sua liberdade, só é real e concreta quando a sociedade instaurada pela revolução proletária constitui uma comunidade real e concreta:

Nos sucedâneos da comunidade existentes até aqui, no Estado etc., a liberdade pessoal existia apenas para os indivíduos desenvolvidos nas condições da classe dominante e somente na medida em que eram indivíduos dessa classe. A comunidade aparente, em que se associaram até agora os indivíduos, sempre se autonomizou em relação a eles e, ao mesmo tempo, porque era uma associação de uma classe contra outra classe, era, para a classe dominada, não apenas uma comunidade totalmente ilusória, como também um novo entrave. Na comunidade real, os indivíduos obtêm simultaneamente sua liberdade na e por meio de sua associação.

A liberdade dos indivíduos – que, vê-se aqui, aparece como um objetivo central a ser colimado na “comunidade real”, pensada por Marx e Engels como resultante da revolução proletária – não se contrapõe ou se efetiva à margem da livre associação dos homens, ao contrário: “É somente na comunidade [com outros que cada] indivíduo tem os meios de desenvolver suas faculdades em todos os sentidos; somente na comunidade, portanto, a liberdade pessoal torna-se possível”.

Na comunidade ilusória existente sob o domínio de classe da burguesia,

a relação coletiva em que entraram os indivíduos de uma classe e que era condicionada por seus interesses comuns diante de um terceiro foi sempre uma coletividade à qual os indivíduos pertenciam […] somente enquanto viviam nas condições de existência de sua classe; uma relação na qual participavam não como indivíduos, mas como membros de uma classe. Ao contrário, com a coletividade dos proletários revolucionários, que tomam sob seu controle suas condições de existência e as de todos os membros da sociedade, dá-se exatamente o inverso: nela os indivíduos participam como indivíduos.

Da prospecção dessa comunidade – que, ao abolir as classes sociais, possibilitaria o fim da divisão social do trabalho, da propriedade privada dos instrumentos e meios de produção, do Estado – pouco cuidaram Marx e Engels, ainda que alguns de seus traços tenham sido indicados[75]; de fato, ambos escreveram pouco sobre a sociedade comunista, evitando profecias e, sobretudo, o utopismo a que eram tão avessos (cf. Barata-Moura, Marx, Engels e a crítica do utopismo, 2015). Uma anotação de Marx à margem dos originais explicita cristalinamente a recusa a socorrer-se de futurologias:

O comunismo não é para nós um estado de coisas que deve ser instaurado, um Ideal para o qual a realidade deverá se direcionar. Chamamos de comunismo o movimento real que supera o estado de coisas atual. As condições desse movimento […] resultam dos pressupostos atualmente existentes.

Tais pressupostos atualmente existentes (forças produtivas e intercâmbio desenvolvidos no marco do mercado mundial, bem como a formação de uma classe objetivamente revolucionária) são empiricamente verificáveis, e não constructos puramente ideais (e, menos ainda, expressões ideológicas e/ou especulativas: como construções teóricas, exprimem conteúdos da ciência real). Sobre eles se desenrolam as lutas de classes que apontam para a revolução proletária, de que pode resultar a nova fundação da sociedade: a fundação da sociedade comunista. Tal como seus pressupostos, essa fundação é um processo histórico-prático; nas precisas palavras de Marx e Engels, como vimos páginas atrás, ela opera-se “por um movimento prático, por uma revolução”, que se distingue

de todos os movimentos anteriores porque revoluciona os fundamentos de todas as relações de produção e de intercâmbio precedentes e porque pela primeira vez aborda conscientemente todos os pressupostos naturais como criação dos homens que existiram anteriormente, despojando-os de seu caráter natural e submetendo-os ao poder dos indivíduos associados. Sua organização [o comunismo] é, por isso, essencialmente econômica, a produção material das condições da associação; ele faz das condições existentes as condições da associação.

Essa concepção marx-engelsiana do comunismo arranca, como ambos insistem ao largo da Ideologia, de condições históricas factuais e verificáveis; o que cabe à consequência da revolução proletária é garantir, sobre tais condições, as que são imprescindíveis ao desenvolvimento da sociedade que com ela se vê fundada.

Pelo que expusemos nestas últimas páginas, parece que não podem pairar dúvidas de que, ao fim do trabalho intelectual objetivado nos materiais da Ideologia, Marx (mas também Engels) passa(m) a dispor de um aparato teórico-metodológico próprio e original que, despido de quaisquer hipotecas do lastro neo-hegeliano – inclusive aquelas provenientes da anterior recepção de Feuerbach –, permitirá a Marx, como veremos adiante, avançar nos anos seguintes nas suas primeiras análises do modo de produção capitalista, simultaneamente à sua vinculação orgânica com o movimento dos trabalhadores (em específico, com o movimento da classe operária).”

[63] Marx e Engels referem-se também aos “empiristas abstratos”. De fato, em 1845-1846, não restringem a condição de ideólogos apenas àqueles que, filosoficamente, são idealistas (ver Eagleton, Ideologia, 1997).

[64] Tenha-se presente que “ciência real, positiva” denota aqui ciência fundada nos já referidos pressupostos reais.

Observe-se que, na segunda metade dos anos 1860, Marx – em razão do interesse dos ingleses pela síntese enciclopédica de Comte – dedicou-se à leitura do autor francês. O seu juízo foi comunicado a Engels, em carta de 7 de julho de 1866: mesmo constatando que, em detalhes matemáticos, Comte tinha alguma qualificação profissional, escreve que, “comparado a Hegel”, ele é “minúsculo”; e acrescenta: “E esse desprezível e inútil positivismo surgiu em 1832!” (MEW, 1965, v. 31, p. 234).

Para discussões acerca da relação de Marx e da tradição intelectual inaugurada por ele com o positivismo, ver, entre outros, os verbetes pertinentes de Bhaskar e Benton constantes em Bottomore, org., 1988, Dicionário do pensamento marxista. Materiais expressivos para a crítica do positivismo (nominado como tal ou não) encontram-se em Horkheimer (Teoría crítica, 1974) e Marcuse (Razão e revolução, 1988); veja-se ainda o registro de polêmicas, bem mais abrangentes e próprias do século XX, em Adorno et al. Der Positivismusstreit in der deutschen Soziologie, 1978.

[65] A tese, noutros termos, é a de que a dinâmica das formas societárias conhecidas deve-se à “contradição entre as forças produtivas e a forma de intercâmbio”; resultantes dessa relação contraditória são examinadas a seguir em formas sociais determinadas e referidas à conexão entre indivíduos e sociedade. Marx e Engels escrevem: “A forma de intercâmbio, condicionada pelas forças de produção existentes em todos os estágios históricos precedentes e que, por seu turno, as condiciona, é a sociedade civil […]. Aqui já se mostra que essa sociedade civil é o verdadeiro foco e cenário de toda a história” – observe-se que, para os autores da Ideologia, “a sociedade civil, como tal, desenvolve-se somente com a burguesia”.

Não se esqueça um dos pontos de partida de Marx-Engels no início de sua crítica a Feuerbach: eles assinalam que o filósofo não vê que o mundo que o rodeia é “o produto da indústria e do estado de coisas da sociedade, e isso precisamente no sentido de que é um produto histórico, o resultado da atividade de toda uma série de gerações, que, cada uma delas sobre os ombros da precedente, desenvolveram sua indústria e seu comércio e modificaram sua ordem social de acordo com as necessidades alteradas. […] A indústria e o comércio, a produção e o intercâmbio das necessidades vitais condicionam, por seu lado, a distribuição, a estrutura das diferentes classes sociais e são, por sua vez, condicionadas por elas no modo de seu funcionamento”). O que Feuerbach não considera é uma exigência elementar que Marx e Engels põem à consideração da história: que esta “deve ser estudada e elaborada sempre em conexão com a história da indústria e das trocas”.

[66] Originalmente vinculada à divisão sexual do trabalho, a divisão social “só se torna realmente divisão a partir do momento em que surge uma divisão entre trabalho material e [trabalho] espiritual. A partir desse momento, a consciência pode realmente imaginar ser outra coisa diferente da consciência da práxis existente, representar algo realmente sem representar algo real – a partir de então, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e lançar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc. ‘puras’”. Observe-se que, na Ideologia, aponta-se que “a maior divisão entre trabalho material e espiritual é a separação entre cidade e campo. A oposição entre cidade e campo começa com a passagem da barbárie à civilização, do tribalismo ao Estado, da localidade à nação, e mantém-se por toda a história da civilização até os dias atuais”.

Desenvolvendo-se a divisão social do trabalho, “está dada a propriedade, que já tem seu embrião, sua primeira forma, na família, onde a mulher e os filhos são escravos do homem. A escravidão na família, ainda latente e rústica, é a primeira propriedade […]. Além do mais, divisão do trabalho e propriedade privada são expressões idênticas – numa é dito com relação à própria atividade aquilo que, noutra, é dito com relação ao produto da atividade”.

“Logo que o trabalho começa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de atividade exclusivo e determinado, que lhe é imposto e ao qual não pode escapar: o indivíduo é caçador, pescador, pastor ou crítico, e assim deve permanecer se não quiser perder seu meio de vida […]. Esse fixar-se da atividade social, essa consolidação de nosso próprio produto num poder objetivo situado acima de nós, que foge ao nosso controle, que contraria nossas expectativas e aniquila nossas conjeturas, é um dos principais momentos no desenvolvimento histórico até aqui realizado. O poder social, isto é, a força de produção multiplicada que nasce da cooperação dos diversos indivíduos condicionada pela divisão do trabalho, aparece a esses indivíduos […] não como seu poder unificado, mas sim como uma potência estranha, situada fora deles, sobre a qual não sabem de onde veio nem para onde vai, uma potência, portanto, que não podem mais controlar e que, pelo contrário, percorre agora uma sequência particular de fases e etapas de desenvolvimento, independente do querer e do agir dos homens e que até mesmo dirige esse querer e esse agir”. Na continuidade imediata desta última frase, os originais registram uma anotação de Marx que remete àquele “poder social” como alienação.

[67] Para detalhar esse nítido avanço, veja-se Mandel, 1968, p. 43-53.

Quanto ao primeiro ponto, sobre a teoria do valor, veja-se idem, e a seguinte passagem da Ideologia, justamente realçada pelo marxista belga: comentando a inépcia econômica de Stirner, diz-se que “ele não chegou a apreender” que, “no âmbito da concorrência, o preço do pão é determinado pelos custos de produção e não pelo arbítrio dos padeiros” – e mais: afirma-se que, “mesmo no que diz respeito à moeda metálica, ela é puramente definida pelos custos de produção, quer dizer, pelo trabalho”.

Quanto ao segundo ponto, referente ao “moderno intercâmbio universal”, ver, na Ideologia, esp. p. 57-61; com efeito, há várias alusões relativas ao fato de crescentemente “a história torna[r]-se história mundial”. E encontra-se na mesma obra uma passagem extraordinária, que deve ser reproduzida em sua integralidade, pois que antecipa ideias que Marx desenvolverá intensivamente, com/sob novas determinações, em futuros escritos (Manifesto do Partido Comunista, Grundrisse, O capital): “A grande indústria […] criou os meios de comunicação e o moderno mercado mundial, submeteu a si o comércio, transformou todo capital em capital industrial e gerou, com isso, a rápida circulação (o desenvolvimento do sistema monetário) e a centralização dos capitais. Criou pela primeira vez a história mundial, ao tornar toda nação civilizada e cada indivíduo dentro dela dependentes do mundo inteiro para a satisfação de suas necessidades, e suprimiu o anterior caráter exclusivista e natural das nações singulares. Subsumiu a ciência natural ao capital e tomou da divisão do trabalho a sua última aparência de naturalidade. Destruiu, em geral, a naturalidade, na medida em que isso é possível no interior do trabalho, e dissolveu todas as relações naturais em relações monetárias. No lugar das cidades criadas naturalmente, criou as grandes cidades industriais modernas, nascidas da noite para o dia.

Destruiu, onde quer que tenha penetrado, o artesanato e, em geral, todos os estágios anteriores da indústria. Completou a vitória da cidade comercial sobre o campo. Seu pressuposto é o sistema automático. Ela produziu uma massa de forças produtivas para a qual a propriedade privada tornou-se um empecilho, tanto quanto o fora a corporação para a manufatura e o pequeno empreendimento rural para o artesanato que progredia.

Essas forças produtivas, sob o regime da propriedade privada, obtêm apenas um desenvolvimento unilateral, convertem-se para a maioria em forças destrutivas e uma grande quantidade dessas forças não consegue alcançar a menor utilização na propriedade privada. A grande indústria, em geral, criou por toda parte as mesmas relações entre as classes da sociedade e suprimiu por meio disso a particularidade das diversas nacionalidades. E finalmente, enquanto a burguesia de cada nação conserva ainda interesses nacionais à parte, a grande indústria criou uma classe que tem em todas as nações o mesmo interesse e na qual toda nacionalidade já está destruída; uma classe que, de fato, está livre de todo o mundo antigo e, ao mesmo tempo, com ele se defronta. A grande indústria torna insuportável para o trabalhador não apenas a relação com o capitalista, mas sim o próprio trabalho”. Evidentemente, a referência aqui é ao trabalho enquanto trabalho subordinado ao capital (ver, supra, cap. II, nota 77).

[68] Ainda que em diversas passagens sejam indicados aspectos referentes ao desenvolvimento de teorias e ciências – ver, por exemplo, na edição da Ideologia que estamos citando, as p. 31, 60, 62, 77, 94, 142, 397-9…

[69] Só posteriormente (na segunda metade dos anos 1850) Marx trataria de outras expressões, na sua ampliação do próprio conceito de ideologia.

[70] Aliás, numa anotação de Marx à margem do manuscrito, lê-se, como uma das implicações da emersão da “grande indústria”, que ela “destruiu, onde foi possível, a ideologia, a religião, a moral etc. e, onde não pôde fazê-lo, transformou-as em mentiras palpáveis”.

Em janeiro de 1873, Marx observou, analisando a evolução do pensamento econômico burguês, no posfácio à segunda edição de O capital, que, com a burguesia dominando politicamente em países como a França e a Inglaterra e com as lutas de classes mais definidas e para ela mais ameaçadoras desde 1848, “soou o dobre de finados da ciência econômica burguesa. Não interessava mais saber se este ou aquele teorema era verdadeiro ou não; mas importava saber o que, para o capital, era útil ou prejudicial, conveniente ou inconveniente […]. Os pesquisadores desinteressados foram substituídos por espadachins mercenários, a investigação científica imparcial cedeu seu lugar à consciência deformada e às intenções perversas da apologética” (Marx, 1968, v. I, p. 11). Com tal “dobre de finados”, a transformação de produtos espiritual-ideológicos em “mentiras palpáveis” viu-se exponenciada, num processo que prosseguiu e se acentuou com o desenvolvimento capitalista até os dias correntes, fazendo que os limites entre ideologia e mentira fiquem cada vez menos discerníveis – processo que foi e vai muito além do pensamento econômico, perpassando praticamente todos os âmbitos da produção espiritual, configurando o que se designou como “decadência ideológica da burguesia” (Lukács, Marx e o problema da decadência ideológica, 2016). Para uma apreciação rigorosa dessa problemática, historicamente centrada no século XX, ver Mészáros, Filosofia, ideologia e ciência social (1993); e O poder da ideologia (2004).

[71] Para Marx e Engels, não há na história real nenhuma volição dela mesma, nenhuma teleologia que derive senão do sentido que os homens efetivam na sua ação individual e coletiva. Marx e Engels nunca substantivaram qualquer “ação da história”. Eles já têm conhecimento, antes da Ideologia (em A sagrada família, 2003, p. 111), de que “a História não faz nada, ‘não possui nenhuma riqueza imensa’, ‘não luta nenhum tipo de luta’! Quem faz tudo isso, quem possui e luta é […] o homem, o homem real, que vive; não é, por certo, a ‘História’ que utiliza o homem como meio para alcançar seus fins […], pois a História não é senão a atividade do homem que persegue seus objetivos”.

Na segunda metade dos anos 1880, Engels – num passo em que exprime a sua posição pessoal, mas, a meu ver, também a de Marx – retoma, com a competência de sempre, a questão da ausência de qualquer teleologia da história, ainda que ressalte o caráter teleológico da ação humana. Diz ele que, diversamente da história da natureza, “na história da sociedade, os agentes são todos homens dotados de consciência, que atuam sob o impulso da reflexão ou da paixão, buscando determinados fins; aqui nada se produz sem intenção consciente, sem um fim desejado. […] Os objetivos visados pelos atos [dos homens] são produto da vontade, mas não o são os resultados que, na realidade, decorrem deles e, mesmo quando momentaneamente parecem ajustar-se aos objetivos visados, encerram finalmente consequências muito diversas das que eram desejadas” (Marx-Engels, 1963, Obras escolhidas em três volumes, v. 3, p. 198). Ver também a carta de Engels a Joseph Bloch de 21-22 de setembro de 1890 (MEW, 1967, v. 37, esp. p. 463).

[72] Ver novamente, supra, cap. II, nota 77.

[73] Há, pertinente a esse ponto, uma anotação de Marx à margem do manuscrito que, lida hoje, revela também premonições impressionantes. Nela se afirma que um dos pressupostos práticos para a revolução comunista é que se tenha produzido a “massa da humanidade como absolutamente ‘sem propriedade’ e, ao mesmo tempo, em contradição com um mundo de riqueza e de cultura existente, condições que pressupõem um grande aumento da força produtiva, um alto grau de seu desenvolvimento […] – pressuposto prático, absolutamente necessário, pois sem ele apenas se generaliza a escassez e, portanto, com a carestia, as lutas pelos gêneros necessários recomeçariam e toda a velha imundice acabaria por se restabelecer; além disso, apenas com esse desenvolvimento universal das forças produtivas é posto um intercâmbio universal dos homens e, com isso, é produzido simultaneamente em todos os povos o fenômeno da massa ‘sem propriedade’ […], tornando cada um deles dependente das revoluções do outro; e, finalmente, indivíduos empiricamente universais, histórico-mundiais, são postos no lugar dos indivíduos locais. Sem isso, 1) o comunismo poderia existir apenas como fenômeno local; 2) as próprias forças do intercâmbio não teriam podido se desenvolver como forças universais e, portanto, como forças insuportáveis; elas teriam permanecido como ‘circunstâncias’ doméstico-supersticiosas; e 3) toda ampliação do intercâmbio superaria o comunismo local. O comunismo, empiricamente, é apenas possível como ação ‘repentina’ e simultânea dos povos dominantes, o que pressupõe o desenvolvimento universal da força produtiva e o intercâmbio mundial associado a esse desenvolvimento”.

[74] Cravada no humanismo marx-engelsiano, essa ideia do desenvolvimento omnilateral das faculdades dos indivíduos na sociedade comunista é o que podemos chamar de ideia-força de Marx e Engels e recebe formulação conclusiva no Manifesto do Partido Comunista (1998, p. 31); nele, lê-se que, superada a sociedade burguesa, “surge uma associação em que o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de todos”. Ver a nota seguinte.

[75] Um desses traços comparece na Ideologia – veja-se a seguinte passagem: “Logo que o trabalho passa a ser distribuído, cada um passa a ter um campo de atividade exclusivo e determinado, que lhe é imposto e ao qual não pode escapar; o indivíduo é caçador, pescador, pastor ou Crítico crítico, e assim deve permanecer se não quiser perder seu meio de vida – ao passo que, na sociedade comunista, onde cada um não tem um campo de atividade exclusivo, mas pode aperfeiçoar-se em todos os ramos que lhe agradam, a sociedade regula a produção geral e me confere, assim, a possibilidade de hoje fazer isto, amanhã aquilo, de caçar pela manhã, pescar à tarde, à noite dedicar-me à criação de gado, criticar após o jantar, exatamente de acordo com a minha vontade, sem que eu jamais me torne caçador, pescador, pastor ou crítico”. Contemporaneamente, essa consequência da superação da divisão social do trabalho – em que alguns viram laivos de utopismo –, posto o desenvolvimento atual (abertura do século XXI) das forças produtivas e o que ele permite vislumbrar, mostra-se uma possibilidade concreta, obviamente numa organização social em que o capital perdeu o comando do trabalho.

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