Editora: Companhia das Letras
ISBN: 978-85-7164-792-3
Organização: Mary del Priore
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 270
Sinopse: Ver Parte
I
“Águas havia ótimas para reforçar a memória de
seus ingestores e outras, desmemoriadoras terríveis. Uma fonte perto de Chevreu
era perigosíssima. Os sujeitos que dela se servissem arriscavam-se a ficar desdentados,
mas sem fluxão nem dor. Num rio da Ásia fazia a água arrebentar qualquer recipiente
em que fosse deitada, exceto se o vaso fosse feito de casco de mulas.
Na Irlanda existia um lago de tão esquisitas virtudes
que, cravando-se-lhe uma estaca ao fundo, a parte enterrada se transformava em pedra
e a banhada em ferro! A que se achava fora d’água continuava madeira. Provavelmente
haveria ali uma cuba gigantesca de galvanoplastia... Feijó, que não discutia o caso
mas lhe admitia a veracidade, afirmava que na Polônia fontes existiam capazes de
transformar o ferro em cobre.
Também havia árvores que destilavam chuva, como
no caso de imenso madeiro da ilha do Ferro, que se achava sempre coberto de uma
nuvem e em 24 horas fornecia dois grandes tanques d’água, coisa a respeito da qual
o insigne Feijó se mostrava cético.
Da existência de pessoas que se sustentavam de
água, exclusivamente, ninguém podia duvidar, à vista de tantas testemunhas corroborantes.
Quem também se atreveria a contestar uma legião de doutos quando todos concordes
admitiam a existência de homens e mulheres marinhos?
Que se desse de barato a autoridade de grandes
vultos das ciências naturais, como Plínio, Eliano, Pausânias. Bastava a documentação
moderna.
Em 1671, a uma légua da Martinica, muitos franceses
haviam visto um tritão legítimo, perfeita figura de homem da cintura para cima,
de cabelos brancos e bem penteados, rosto cheio, barba preta, nariz chato, tez branca,
cútis delicada. Da cintura para baixo era perfeito peixe, acabado por grossa cauda
bífida.
Em 1725, aparecera no porto de Brest outro tritão,
que 32 pessoas haviam visto, inclusive o capitão Olivier Morin, perfeitamente proporcionado,
mas de mãos e pés palmados.
As Memórias de Trévoux relatavam que este
monstro, vendo a figura feminina da proa de uma embarcação, fizera diligência para
a abraçar.
Correra o contramestre do navio a buscar uma espingarda
para matar o bruto, mas desistira do intento a imaginar que ele poderia ser a reencarnação
de um suicida oficial de bordo.
A propósito deste abantesma, lembrava Feijó a
seguinte circunstância: fazendo escárnio da gente do navio, “voltara-lhe o monstro
as costas e levantando alguma coisa da água exonerara o ventre à vista de todos”.
O padre Antonio de Faria, oratoriano, varão cheio
de virtudes, e incapaz de mentir, achando-se sobre uma montanha, de onde se avistava
o mar, vira um monstro marinho, semi-homem, de cabelos verdes, que ao avistá-lo
mergulhara.
E quem contestava o caso daqueles conselheiros
do rei da Dinamarca, que, em 1619, haviam capturado, nos Skager Rack, um homem marinho?
Posto a bordo do navio, em que Suas Excelências viajavam, pusera-se a barrar tão
descompassadamente, e a proferir tais ameaças, se o não libertassem logo, que a
maruja, gente supersticiosa, resolvera logo soltá-lo.
“Este é o único exemplo de homem marinho que falasse”,
comenta o nosso Aucourt e Padilha. Mas se ainda dos centauros – coisa abonada por
doutos e santos – se duvidava de tal propriedade, como a podiam atribuir a este
monstro? O único autor que dele tratara era, aliás, João Avelino no seu Tratado
da Europa.
Na Noruega sabia-se de muitos casos de homens
marinhos. Em Portugal apanhara-se um no Algarve que um marquês de Niza mandara mostrar
ao rei d. Pedro II. Este era perfeitamente homem, mas jamais falara.
Em 1560 haviam uns pescadores do Ceilão mostrado
a jesuítas portugueses o produto de uma de suas redadas, em que figuravam sete homens
marinhos e nove mulheres. Nada menos! Em Paris conservava-se uma mão de sereia.
Enfim! Não valia a pena discutir. (...)
É verdade que se sabia de anomalias notáveis sucedidas
a diversos homens. Monsieur Vinslow e monsieur Bruhier contavam de uma suíça que
passara três dias de baixo d’água e no entanto não morrera! E quem duvidaria da
palavra de sábios como monsieur Vinslow e monsieur Bruhier?
Mas casos ainda mais extraordinários relatava
outro cientista ilustre! Paulo Zaquias! Paulo Zaquias!!
O sapientíssimo marquês de Saint Aubin achara
a mais natural das explicações para estes fatos: alguns humanos tinham tal disposição
preternatural que lhes era prolongada a faculdade da respiração fatal! Nada mais
simples! E realmente nada mais simples!
No capítulo dos peixes monstruosos vemos novas
novidades de vulto: o caso do pescado de Peniche, em 1575, com quarenta côvados
de comprido (26,40m) e não era baleia! Quem dizia que o fosse? Contaram-lhe dezesseis
dentes com palmo e meio de diâmetro e cada qual separado dos seguintes de um palmo!
Outro ainda em Peniche aparecera em 1616. Um médico
do lugar o descrevera em sua Peixeologia, que infelizmente não se imprimira,
com grave detrimento para o avanço das ciências.”
“As raridades da natureza em matéria aérea deram
azo a nosso autor para que largamente demonstrasse os belos conhecimentos da erudição.
Em primeiro lugar, era sabido o que vinha a ser
a influência dos meteoros gasosos sobre o temperamento, o gênio, as qualidades físicas,
etc.
Quem ignorava o que se dizia, desde muito, das
fêmeas que concebiam do vento, como as éguas de certos lugares, as lebres de outros,
etc.? Já, porém, Santo Agostinho repelira semelhante abusão e os naturalistas modernos,
estes então eram categóricos em desmenti-la. Parecia incontestável, porém, que a
variedade das cores de camaleão se devia à diversidade do ar.
Quanto às figuras que os ares frequentemente apresentavam,
eram elas tão numerosas, desde longínquos séculos, quanto, por vezes, extraordinárias.
Ainda em 1514, todo o exército de Próspero Colona vira, durante nada menos de três
horas, dois soldados armados esgrimirem nas nuvens um contra o outro.
Já por diversas vezes tinham aparecido no horizonte
três sóis simultâneos e três luas!, como em Roma, no tempo do imperador Cláudio.
Um autor honesto, como Mezeray, não se atrevia a mentir e, no entanto, em sua história
de França, se relata que, em certa ocasião, um exército francês vira na atmosfera
companhias de soldados, vestidos de branco, caminhando no ar, junto à terra, em
que se identificavam as figuras dos oficiais e dos tambores.
Fato incontestável o seguinte: nas altas camadas
atmosféricas, criavam-se animais.
No império de Carlos IV desabara certa vez verdadeiro
dilúvio de bichinhos, que devastara províncias inteiras. Nas regiões aquilonares
nada raro era verificar-se uma chuva de ratões.
Na Noruega, segundo Escalígero e o bispo upsalense,
“mui frequentemente choviam animais ali chamados linmeres, mais prejudiciais
que as lagartas e maiores do que ratos”.
Explicando estes casos, dizia Bonamigo que estes
bichos todos se formavam com a saraiva.
E Nierenberg afirmava da ave menocodiato,
vivente de ar e de orvalho, que o macho tinha às costas uma cova onde a fêmea fazia
ninhos e incubava.
Professavam os menocodiatos a mais extraordinária
fidelidade ao seu rei. Se, acaso, a este matavam, preferiam todos morrer a desamparar
o monarca.
Chuvas prodigiosas também figuravam entre os mais
célebres fenômenos aéreos: como as de cabelos nas cidades de Jacai e Uzaka, no Japão,
em 1596; de leite, sangue, carne e ferro, e até de ladrilhos cozidos, como atestavam
os mais célebres autores romanos!
Em Portugal, a 8 de junho de 1757 em Gondemar,
Tarouca e Lalim, comarca de Lamego, desabara forte saraiva de pedrinhas não de gelo,
e sim de açúcar! Era pelo menos o que ao nosso autor informara o respeitável capitão-mor
do Tabaco, pessoa, pelo seu nascimento e honra, incapaz de mentir.”
“Apenas referiremos (segundo, sempre, meia dúzia
de graves autores, como Pedro Hispano, Amaro Lusitano e Alexandre Napolitano) quanto
era positivo que o melhor meio de salvar os picados da tarântula vinha a ser aplicar-lhes
doses sucessivas de música, conforme afirmava o douto Metioro.
A enumeração destas “graves autoridades”, identificadas
pelos seus gentílicos, é coisa que realmente nos edifica.”
“Fogos havia-os, e de muitas naturezas, uns errantes,
outros nascendo em caniçais, e em corpos de animais, como em gados e cavalos, que
andavam à noite, em tempo chuvoso, e até em entes humanos.
Assim se dava com aquela mulher de Verona, em
cuja testa havia sempre uma labareda pequena, como o atestava o douto Pedro de Castro,
em seu tratado Ignis labens. Fogos havia que por si mesmos se acendiam e
fogos de muito esquisita espécie. Assim, o fogo do vulcão islandês Hecla consumia
a água, mas não a estopa! A pedra galatias não se deixava vencer do fogo
no meio das chamas e conservava-se fria. O fogo do Etna não derretia as neves de
seu pico! Na Lícia sabia-se de um fogo que não queimava as mãos!
Em compensação, a pedra petites apertada
na mão queimava como brasa ardente! E os dentes do javali, logo depois de morto
o selvático suídeo, tinham tanto fogo que queimavam cabelos e outras substâncias
facilmente inflamáveis. Coisa estranhíssima o que se dava no delfinado; ali havia
certa fonte “que em se lhe chegando uma vela apagada acendia e estando acesa se
apagava”.
A própria Academia de Ciências de França, no ano
de 1699, proclamara a novidade desta fonte, que representava a expressão hidrodinâmica
do espírito de contradição, ao que parece.
Quem seria capaz de negar a existência de pessoas
cujos corpos exalavam fogo? Uma reunião de graves e doutos autores aí estava para
lhe rebater tal pretensão. O padre Teodorico, de si próprio, afirmava tal prodígio,
sempre que se friccionava. Dois personagens, Antonio Ciancio e Máximo Aquilano,
estes, quando esfregados, pareciam fuzis batidos por pederneira!
E o grande Feijó contava de uma dama Cassandra
Buri, senhora italiana que era muito mais incendiável do que os seus patrícios acima
citados. Quando se esfregava com um lenço não só lhe saíam faíscas, como labaredas!
Outra italiana, a nobre condessa Cornélia Bandi,
fora achada reduzida a cinzas no próprio leito. Extraordinário, porém, este caso:
ficara-lhe a roupa da cama absolutamente intacta! O colossal Feijó explicava este
sucesso estranhíssimo do modo mais plausível: é que a digna fidalga fora consumida
pelas exalações que ela própria evaporava.
Aliás, se sabia, desde a mais remota Antiguidade,
que Alexandre Magno ganhara uma de suas grandes batalhas porque os inimigos, os
indianos, fugiram espavoridos ao perceberem que o macedônio exalava faíscas!
De indivíduos alcoólatras, que deitavam chamas,
ninguém duvidava. O nosso Aucourt cita diversos destes casos. O mais pitoresco é
o do sujeito que conseguira debelar um princípio de incêndio em si, mas, como este
fosse na garganta, isto lhe valera a perda da voz! (...)
Assim como o amianto era substância incombustível,
também neste particular ocorriam prodígios na espécie humana. Aí estava Plutarco
nos relatar o caso da incombustibilidade do polegar de certo rei do Épiro quando
lhe queimaram o cadáver, e Tácito o mesmo fato em relação ao coração de Germânico.
Plutarco e Tácito! Quem destes grandes homens
poderia descrer?
E entre os judeus, ensinavam os rabinos, ninguém
duvidava do seguinte: todos os entes humanos têm, no fim do espinhaço, um osso que
não pode o fogo consumir, nem força alguma quebrar. Nele se conserva a base da ressurreição
da carne
Por que razão vivia a salamandra indene das chamas
que a envolviam? Por causa de sua natureza não fria, mas frigidíssima! O Journal
des Sçavans (seria bom não esquecê-lo: o Journal des Sçavans!), ainda
em abril de 1667, espalhara com a sua grande autoridade a notícia das experiências
do cavalheiro Corvini com salamandras indianas.
Percebera a razão da indiferença ao fogo do fantástico
batráquio: é que vomitava uma gosma lembrando a clara dos ovos de galinha, tão gélida
que neutralizava as brasas! Durara a experiência duas horas completas e o bicho
ainda vivera nove meses depois dela.
Verdade é que o mesmo Journal des Sçavans,
63 anos mais tarde, relatara novas séries de experiências, do mesmo gênero, com
salamandras e péssimos resultados. Haviam umas morrido logo e outras ficado pavorosamente
queimadas! (...)
Os grandes mestres das ciências naturais na Antiguidade,
como Aristóteles, Plínio, Eliano, Agrícola, abonavam a existência das moscas de
fogo, as pyraustas, que morriam instantaneamente, ao deixarem o elemento
ígneo.
Mas era preciso lembrar que o caso devia ser admitido
com ceticismo, porque o fogo vinha a ser ambiente incompatível com a propagação
das espécies de animais, não admitindo a geração.
Se ninguém, contudo, podia duvidar da existência
dos gêneros de insetos que viviam, exclusivamente, de roer pedra, como negar, por
mero preconceito, a possibilidade de viverem salamandras no elemento ígneo? Tornava-se
necessário recorrer às palavras de algum grande comentador dos fenômenos da natureza.
E, nesta categoria, quem melhor se achava em condições de falar do que Feijó, o
ilustre, o doutíssimo Feijó? Assim, ele, Aucourt e Padilha, discípulo respeitoso
de tão grande mestre, repetia-lhe os conceitos: “Os homens, sem razão alguma, e
contra toda a razão, estreitam a onipotência divina segundo o limitado das suas
experimentais ideias. Não há repugnâncias em que Deus crie alguma espécie que se
conserve no fogo”.
Mas disto não se tratava, objetariam os céticos.
O que se tornava preciso demonstrar era a existência de tais ignícolas. “Assim fala
um homem como Feijó – termina o nosso Pedro Norberto, com este último argumento
decisivo –, sem embargo que não abraça o que se diz da Salamandra e dos espelhos
ustórios”.
Singular aproximação! A salamandra e os espelhos
ustórios! “Apesar da ardente impressão do fogo”, a arte a ela sabia resistir” com
leves e fáceis remédios. De tal dera o grande Ambrósio Paré os mais notáveis exemplos,
como em sua célebre experiência das cebolas. Untava as mãos com o sumo do bulbo
querido da gente de Israel, saudosa da terra dos faraós, e depois, sobre elas, e
sem dor alguma, derramava o toucinho derretido de uma pá afogueada”.
“Artifícios de fogo” havia-os inúmeros, muitos
deles maravilhosos até, como os que se obtinham com o fósforo da Alemanha, também
chamado de “monsieur Kurcler”, que estava sempre pronto a arder, desde que o tirassem
do vidro com água em que devia ficar bem guardado.
Que mania incendiária! E interessante caso: esta
substância, que parecia cera, provinha da destilação da urina, segundo descobrira
certo alquímico alemão que, durante toda a vida, trabalhara na pesquisa da pedra
filosofal.
A química, ou antes, a alquimia do nosso Padilha
andava, pelo que vemos por este pano de amostra, atrasadota. Mas a sua física nem
de longe corria parelhas com a ciência que já era, aliás, a de Lavoisier e Cavendish,
Priestley e Scheele: “Por um acaso achou um rústico que dois vidros de óculos atraíam
os objetos distantes. E este foi o princípio que ensinou de fazer óculos de ver
ao longe. E semelhante foi o do barômetro em 1643 (sic!)”.
Acerca dos espelhos ustórios parecia Padilha mais
informado. Se Descartes os fizera passar por imaginários, a Academia de Ciências
de França lhes demonstrara a exequibilidade.
E, advertindo os céticos lusitanos, severamente
arguia o nosso autor: “Os senhores críticos modernos fazem zombaria desta notícia,
ou, como eles dizem, desta patranha, porém, aquele cientíssimo congresso da Academia
de Ciências de França, antes que aprove ou refute as coisas, sabe pesá-las maduramente
ao juízo e examiná-las na experiência”.
Depois de um capítulo sensaborão sobre a câmara
clara, ou “olho artificial”, como lhe chama, e de outro, insignificante, sobre o
invento da pólvora, termina Aucourt e Padilha o seu tratado por uma digressão sobre
a máquina elétrica, onde um fenômeno novo, “abismo de maravilhas jamais visto nem
imaginado, faz duvidar de tudo que antes estava como certo”.
Nada mais certo do que a mofa da natureza e filosofia.
Desde tempos imemoriais andavam os homens inquirindo as causas dos efeitos naturais
e muitos séculos havia que a natureza se obstinava em lhes revelar os efeitos, apenas,
escondendo-lhes as causas.
Aos filósofos desenganava Bacon. Enquanto teimassem
em encerrar-se no campo de ideias abstratas e metafísicas, nada conseguiriam. Era
preciso “aplicarem-se ao exame do mecanismo”.
Que demonstração mais evidente do que já forneciam
as extraordinárias experiências de eletricidade? Quem dos antigos imaginaria que
este fenômeno lançasse e tirasse fogo de todos os corpos? O grande Feijó atribuía
à matéria elétrica positiva identidade com a do raio por serem ambas sulfúreo-nitrosas.
Uma tirava faíscas barulhentas dos corpos e o nitro também crepitava estrepitosamente.
Existiam raios benignos e malignos. Por exemplo,
os dois que tinham atingido Mitridates, ambos haviam apenas chamuscado o famoso
rei imunizado ao arsênico. Outras vezes, as mais das vezes, como tanto se sabia,
os raios determinavam “ímpetos terríveis”. Que o dissessem os dois famosos físicos
monsieur Muschenbroek, de Holanda, e monsieur Réaumur, de Paris! Quase vítimas de
sua temeridade em pretender arrebatar os raios aos céus!, antecipando-se a Benjamim
Franklim sem contudo se republicanizarem, como quer o célebre sceptrumque tyrannis.
Receoso de se aventurar em terreno tão difícil,
sob o ponto de vista científico, concluía modestamente o nosso autor: “Estes fenômenos,
assim como produzem uma grande admiração em todos os espectadores, assim é justo
que neles suspendamos as pernas, para que o assombro possa ser a melhor cláusula
desta obra”.
Aos seus oito tratados, tão científicos quanto
profundos, como acabamos de ver, encerrou o fidalgo cavaleiro da Ordem de Cristo
por um discurso sobre a magia natural e artificial, complemento muito natural dos
assuntos ventilados nas 481 páginas das suas Raridades da natureza e da arte,
dividias pelo quatro elementos, escritos e dedicados à majestade d’El-Rei Nosso
Senhor d. Joseph.”
“Guiada por dois índios da tribo da índia Rola,
caminhou rapidamente a escolta até meio-dia. Era esta hora perigosíssima, não só
por causa dos enormes carnívoros, pumas e jaquares (sic), como pela presença
de numerosas cascavéis.
Mas o perigo maior, o perigo terrível, era o do
possível encontro com a “monstruosa e fatal ibibaboka”.
Os bravos dragões (soldados), contudo, não se
mostravam intimidados. Depois do descanso de uma hora para o almoço, penetrou a
tropa no tremendo labirinto daquela “selva escuríssima”.
Não haviam exagerado os índios de todo. Começaram
a aparecer as cascavéis pelo trilho, mas fugiam, velocíssimas (!), apenas viam os
homens. O mesmo se deu com “aquelas hediondas bestas feras pumas e jaquares”,
que a cada passo surgiam, saltando atrás dos troncos das árvores.
Caminhou a escolta até quase a hora do poente.
Atingira o cume de uma montanha, onde deveria, a conselho dos guias, passar a noite,
quando de repente ouviram-se os mais lancinantes brados de pedido de socorro.
Guiados pela voz dos que clamavam, galopara Browne
e os soldados. Qual não foi o horror e pasmo quando se lhes defrontou “a feroz e
venenosíssima ibibaboka, enlaçada ao tronco de majestosíssima palmeira”.
Três entes humanos, perseguidos atrozmente pelo
minhocão, ali estavam refugiados, na copa da árvore. Avalia-se o estarrecimento
de Browne, quando neles reconheceu o amigo, sua jovem esposa e a índia Rola!
Acossados pela sucuri descomunal, haviam de ter
revelado, naturalmente, qualidades até agora desconhecidas e insuspeitadas de inigualáveis
ginastas. Não fora assim, como teriam podido subir às grimpas da palmeira? Com uma
agilidade de caxinguelê ou de quati? Muito pode o amor ao pelo...
Verdade é que o nosso narrador John Browne não
explica como se haviam dado estes prodígios acrobáticos.
Os cavalarianos, de espadas desembainhadas, achavam-se,
contudo, atrapalhadíssimos para avançar. Os cavalos, espavoridos, empinavam e saltavam
como se camurças fossem.
E, enquanto isso, o tremendo bicharoco, coleando-se
ao tronco da palmeira, lentamente alteava a monstruosa cabeça, escancarando as imensas
fauces e os olhos, vulcanicamente chamejantes, para as desgraçadas presas.
Foi então que Browne se decidiu! Impassível! Heroico!
Sublime! Descavalgou, ergueu a carabina e apontou...
Ante tão prodigiosa demonstração de ânimo, vários
soldados o imitaram. Ainda não fixava bem o herói a pontaria, quando a situação
se complicou ainda mais e atingiu a culminância daquela cena que na selva brasileira
repetia o caso laocoôntico.
Conseguira o monstro apreender a barra da saia
de Olimpia (a que as brisas agitavam) e, soltando então pavoroso urro, tentava arrancar
a pobre rapariga aos braços do terno e amado esposo! Aqui só faltava o horresco
referens.
Desorientados mostravam-se os soldados, que ao
som terrível haviam escutado. Ao peito as carabinas apertavam, em vez de as apontar...
Viu Brownie a mísera mocinha, vítima do seu amor, desaparecer na goela, necessariamente
hiante, do sucuriju.
Seu marido Parr, a ela atracado, puxava-a com
todas as forças e sentia-se disposto a fazer de profeta Jonas. Nunca abandonaria
quem por ele, por seu amor, ia morrer. Pediria a cena hoje o acompanhamento da música
do último ato da Aída... “Morir si pura e bella...”.
Uma nuvem perpassou pelos olhos de Brownie. Sentiu
mesmo ligeiro desmaio. Mas qual!, veio logo a reação àquele homem de nervos de aço.
Não havia um único segundo a perder. Firmou a
pontaria e... fogo! Prodigiosa pontaria!, digna de patrício do inigualável arqueiro
Robin Hood!
Foi a bala, certeira, apanhar o bulbo do minhocão.
E tal a felicidade dos dois amantes, que a cabeça do monstro, depois de oscilação
gigantesca, pendeu para o lado oposto àquele em que estava! “Porque senão a pestífera
influência de seu hálito lhes teria sido fatal à vida”.
Desabou a monstruosa serpe de modo fragoroso e
aí a soldadesca, criando ânimo, caiu-lhe de espada em cima. Dentro em breve expirava.
Tinha 27 pés, mais de nove metros de comprimento.
Bem diz o nosso velho adágio, que é bem mais fácil
apanhar aos que faltam à verdade do que aos coxos...”
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