Editora: Paz e Terra
ISBN: 978-85-7753-099-1
Tradução: Marcos Penchel e Maria L. Teixeira
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 534
Link para compra: Clique aqui
Sinopse: Ver Parte
I
“O período que culminou por volta da metade do
século foi, portanto, uma época de insensibilidade sem igual, não só porque a pobreza
que rodeava a respeitabilidade da classe média era tão chocante que o homem rico
preferia não vê-la, deixando que seus horrores provocassem impacto apenas sobre
os visitantes estrangeiros (como é o caso hoje em dia das favelas da índia), mas
também porque os pobres, como os bárbaros do exterior, eram tratados como se não
fossem seres humanos. Se seu destino era o de se tornarem trabalhadores industriais,
eles eram simplesmente massa que deveria ser modelada pela disciplina através da
pura coerção, sendo a draconiana disciplina fabril suplementada com a ajuda do Estado.
(É bastante característico que a opinião da classe média contemporânea não percebesse
qualquer incompatibilidade entre o princípio de igualdade perante a lei e os códigos
trabalhistas deliberadamente discriminatórios que, como no caso do Código Britânico
de Patrões e Empregados, de 1823, puniam os trabalhadores com a prisão por quebra
de contrato e os empregadores com modestas multas, se tanto.) Eles deveriam estar
constantemente à beira da indigência, porque, caso contrário, não trabalhariam,
sendo inacessíveis às motivações “humanas”. “É no próprio interesse do trabalhador”,
disseram os empregadores a Viller-mé no final da década de 1830, “que ele deve estar
sempre fustigado pela necessidade, pois assim ele não dará a seus filhos um mau
exemplo, e sua pobreza será uma garantia de sua boa conduta”.”
“O hiato entre os ricos e os pobres certamente
estivesse crescendo de uma maneira bastante clara. A época em que a Baronesa de
Rothschild usou um milhão e meio de francos em joias no baile de máscaras do Duque
de Orleans, em 1842, era a mesma em que John Bright assim descreveu as mulheres
de Rochdale: “2 mil mulheres e moças passaram pelas ruas cantando hinos – um espetáculo
surpreendente e singular – chegando às raias do sublime. Assustadoramente famintas,
devoravam uma bisnaga de pão com indescritível sofreguidão, e se o pedaço de pão
estivesse totalmente coberto de lama seria igualmente devorado com avidez”.”
“Qualquer que fosse a verdadeira situação dos
trabalhadores pobres, não pode haver nenhuma dúvida de que todos aqueles que pensavam
um pouco sobre a sua situação, que aceitavam as aflições dos pobres como parte do
destino e do eterno rumo das coisas – consideravam que o trabalhador era explorado
pelo rico, que cada vez mais enriquecia, ao passo que os pobres ficavam ainda mais
pobres. E que os pobres sofriam porque os ricos se beneficiavam. O mecanismo social
da sociedade burguesa era profundamente cruel, injusto e desumano. “Não pode haver
riqueza sem trabalho” escreveu o jornal Lancashire Co-operator. “O trabalhador é
a fonte de toda a riqueza. Quem tem produzido todos os alimentos? O pobre e mal
alimentado lavrador. Quem construiu todas as casas e armazéns, e os palácios, que
pertencem aos ricos, que jamais trabalham ou produzem qualquer coisa? O trabalhador.
Quem tece todos os fios e faz o tecido? As tecedoras e os tecelões.” Ainda assim
“o operário continua pobre, ao passo que os que não trabalham são ricos e possuem
abundância em excesso.”
E o desesperado trabalhador rural (cujos ecos
literários ainda se ouvem hoje em dia nas canções evangélicas dos negros americanos)
se expressava com menos clareza, mas talvez de maneira mais profunda: se a vida
fosse coisa que o dinheiro pudesse obter Os ricos viveriam e os pobres deveriam
morrer.”
“O movimento operário proporcionou uma resposta
ao grito do homem pobre. Ela não deve ser confundida com a mera reação coletiva
contra o sofrimento intolerável, que ocorreu em outros momentos da história, nem
sequer com a prática da greve e outras formas de militância que se tornaram características
da classe trabalhadora. Estes acontecimentos também têm sua própria história que
começa muito antes da revolução industrial. O verdadeiramente novo no movimento
operário do princípio do século XIX era a consciência de classe e a ambição de classe.
Os “pobres” não mais se defrontavam com os “ricos”. Uma classe específica, a classe
operária, trabalhadores ou proletariado, enfrentava a dos patrões ou capitalistas.
A Revolução Francesa deu confiança a esta nova classe; a revolução industrial provocou
nela uma necessidade de mobilização permanente. Uma existência decente não podia
ser obtida simplesmente por meio de um protesto ocasional que servisse para restabelecer
a estabilidade da sociedade perturbada temporariamente. Era necessária uma eterna
vigilância, organização e atividade do “movimento” – o sindicato, a sociedade cooperativa
ou mútua, instituições trabalhistas, jornais, agitação. Mas a própria novidade e
a rapidez da mudança social que os envolvia, encorajava os trabalhadores a pensar
em termos de uma sociedade totalmente diversa, baseada na sua experiência e em suas
ideias em oposição às de seus opressores. Seria cooperativa e não competitiva, coletivista
e não individualista. Seria “socialista”, e representaria não o eterno sonho da
sociedade livre, que os pobres sempre levam no recôndito de suas mentes, mas na
qual só pensam em raras ocasiões de revolução social generalizada, e sim uma alternativa
praticável e permanente para o sistema em vigor.”
“Por sua vez, a tradição jacobina ganhou solidez
e continuidade sem precedentes e penetração nas massas a partir da coesiva solidariedade
e da lealdade que eram características do novo proletariado. Os proletários não
se mantinham unidos pelo simples fato de serem pobres e estarem num mesmo lugar,
mas pelo fato de que trabalhar junto e em grande número, colaborando uns com os
outros numa mesma tarefa e apoiando-se mutuamente constituía sua própria vida. A
solidariedade inquebrantável era sua única arma, pois somente assim eles poderiam
demonstrar seu modesto, mas decisivo ser coletivo. “Não ser furador de greve” (ou
palavras de efeito semelhante) era – e continuou sendo – o primeiro mandamento de
seu código moral; aquele que deixasse de ser solidário tornava-se o Judas de sua
comunidade. Uma vez que adquiriram uma fagulha mínima de consciência política, suas
demonstrações deixaram de ser meras erupções ocasionais de uma “turba” exasperada,
que se extinguiam rapidamente, e se converteram no rebulir de um exército.”
“O movimento trabalhista foi uma organização de
autodefesa, de protesto e de revolução. Mas para os trabalhadores pobres era mais
do que um instrumento de luta: era também um modo de vida. A burguesia liberal nada
lhes oferecia; a história arrancou-os da vida tradicional que os conservadores,
em vão, se ofereciam para manter ou restaurar. Nada podiam esperar do tipo de vida
para o qual eles eram crescentemente arrastados. Mas o movimento tinha a ver com
este tipo de vida, ou melhor, a vida que eles mesmos criaram para si e que era coletiva,
comunal, combativa, idealista e isolada implicava o movimento, pois a luta era a
sua própria essência. E em troca o movimento lhe dava coerência e propósito. O mito
liberal supunha que os sindicatos eram compostos de trabalhadores imprestáveis instigados
por agitadores sem consciência, mas na realidade os imprestáveis eram os menos sindicalizados,
enquanto que os mais inteligentes e competentes eram os mais firmes em seu apoio
aos sindicatos.”
“Deem-me um povo em que as paixões em ebulição
e a ganância terrena sejam acalmadas pela fé, a esperança e a caridade; um povo
que veja esta terra como uma peregrinação e a outra vida como sua verdadeira pátria;
um povo ensinado a admirar e a acatar no heroísmo cristão sua própria pobreza e
seu próprio sofrimento; um povo que ame e adore em Jesus Cristo o primogênito de
todos os oprimidos, e em sua cruz adore o instrumento da salvação universal. Deem-me,
digo eu, um povo assim moldado, e o socialismo não será somente derrotado com facilidade,
mas será impossível mesmo que se pense nele...”
(Cilviltà Cattolica)
“Este retorno à religião militante, literal e
ultrapassada tinha três aspectos. Para as massas, era, principalmente, um método
de luta contra a sociedade cada vez mais fria, desumana e tirânica do liberalismo
da classe média: segundo Marx (mas ele não foi o único a usar tais palavras), era
“o coração de um mundo sem coração, como é o espírito de um mundo sem espírito...
o ópio do povo”. Mais do que isto: era uma tentativa de criar instituições políticas,
sociais e educacionais em um ambiente que não proporcionava nenhuma delas, e um
meio de dar às pessoas pouco desenvolvidas politicamente uma expressão primitiva
de seus descontentamentos e aspirações. Seu literalismo, emocionalismo e superstição
tanto protestavam contra toda uma sociedade em que dominava o cálculo racional,
como contra as classes superiores que deformavam a religião em sua própria imagem.
Para as classes médias vindas das massas, a religião
podia ser um amparo moral poderoso, uma justificativa para sua existência social
contra o desprezo e o ódio da sociedade tradicional, e um mecanismo de sua expansão.
Quando sectaristas, a religião os libertava dos grilhões daquela sociedade. Dava
a seus lucros um título moral maior do que o do mero interesse próprio racional;
legitimava sua aspereza em relação aos oprimidos; unia-os ao comércio que proporcionava
civilização aos pagãos, e vendas a seus produtos.
A religião fornecia estabilidade social para as
monarquias e aristocracias, e de fato para todos os que se encontravam no alto da
pirâmide. Tinham aprendido com a Revolução Francesa que a Igreja era o mais forte
amparo do trono. Os povos analfabetos e devotos, como os do sul da Itália, os espanhóis,
os tiroleses e os russos tinham-se lançado às armas para defender sua igreja e seu
governante contra os estrangeiros, os infiéis e os revolucionários, abençoados e,
em alguns casos, liderados por seus sacerdotes. Os povos analfabetos e religiosos
viveriam contentes na pobreza para a qual Deus os havia conclamado, sob a liderança
de governantes que lhes foram dados pela Divina Providência, de maneira simples,
digna e ordenadamente e imunes aos efeitos subversivos da razão. Para os governos
conservadores depois de 1815 – e que governos da Europa continental não o eram?
– o encorajamento dos sentimentos religiosos e das igrejas era uma parte tão indispensável
da política quanto a organização da política e da censura: o sacerdote, o policial
e o censor eram agora os três principais apoios da reação contra a revolução.
Para a maioria dos governos estabelecidos, bastava
que o jacobinismo ameaçasse os tronos e as igrejas os preservassem. Entretanto,
para um grupo de intelectuais e ideólogos românticos, a aliança entre o trono e
o altar tinha um significado mais profundo: o de preservar uma velha sociedade viva
e orgânica contra a corrosão da razão e o liberalismo; o indivíduo encontrava nesta
aliança uma expressão mais adequada de sua trágica condição do que em qualquer solução
formulada pelos racionalistas.”
“Os governos genuinamente conservadores se inclinavam
a desconfiar de todos os intelectuais e ideólogos, até dos que eram reacionários,
pois, uma vez aceito o princípio do raciocínio em vez da obediência, o fim estaria
próximo.”
“O argumento social da economia política de Adam
Smith era tanto elegante quanto confortador. É verdade que a humanidade consistia
essencialmente de indivíduos soberanos de certa constituição psicológica, que buscavam
seus próprios interesses através da competição entre uns e outros. Mas poderia ser
demonstrado que estas atividades, quando deixadas tanto quanto possível fora de
controle, produziam não só uma ordem social “natural” (distinta da artificial imposta
pelos interesses estabelecidos, o obscurantismo, a tradição ou a intromissão ignorante
da aristocracia), mas também o mais rápido aumento possível da “riqueza das nações”,
quer dizer, do conforto e do bem-estar, e portanto, da felicidade, de todos homens.
A base desta ordem natural era a divisão social do trabalho. Podia ser cientificamente
provado que a existência de uma classe de capitalistas donos dos meios de produção
beneficiava a todos, inclusive aos trabalhadores que se alugavam a seus membros,
exatamente como poderia ser cientificamente comprovado que os interesses da Grã-Bretanha
e da Jamaica estariam melhor servidos se aquela produzisse mercadorias manufaturadas
e esta produzisse açúcar natural.
O aumento da riqueza das nações continuava com
as operações das empresas privadas e a acumulação de capital, e poderia ser demonstrado
que qualquer outro método de assegurá-lo iria desacelerá-lo ou mesmo estancá-lo.
Além do mais, a sociedade economicamente muito desigual que resultava inevitavelmente
das operações de natureza humana não era incompatível com a igualdade natural de
todos os homens nem com a justiça, pois além de assegurar inclusive aos mais pobres
condições de vida melhores, ela se baseava na mais equitativa de todas as relações:
o intercâmbio de valores equivalentes no mercado. Como disse um moderno erudito:
“nada dependia da benevolência dos outros, pois para tudo que se obtinha era devolvido,
em troca, um equivalente. Além disso, o livre jogo das forças naturais destruiria
todas as posições que não fossem construídas com base em contribuições ao bem comum”.
O progresso era, portanto, tão “natural” quanto
o capitalismo. Se fossem removidos os obstáculos artificiais que no passado lhe
haviam colocado, se produziria de modo inevitável; e era evidente que o progresso
da produção estava de braços dados com o progresso das artes, das ciências e da
civilização em geral. Que não se pense que os homens que tinham tais opiniões eram
meros advogados dos consumados interesses dos homens de negócios. Eram homens que
acreditavam, com considerável justificativa histórica neste período, que o caminho
para o avanço da humanidade passava pelo capitalismo. A força desta visão panglossiana
apoiava-se não apenas naquilo que se acreditava ser a irrefutável habilidade de
demonstrar seus teoremas econômicos através de um raciocínio dedutivo, mas também
no evidente progresso da civilização e do capitalismo do século XVIII. Reciprocamente,
começou a tropeçar não só porque Ricardo descobrira contradições dentro do sistema
que Smith preconizara, mas porque os verdadeiros resultados sociais e econômicos
do capitalismo provaram ser menos felizes do que tinham sido previstos. A economia
política na primeira metade do século XIX tornou-se uma ciência “lúgubre” mais do
que cor-de-rosa.
Naturalmente, ainda se poderia sustentar que a
miséria dos pobres que (como argumentou Malthus em seu famoso Ensaio sobre a
População, de 1798) estava condenada a se prolongar até a beira da extenuação,
ou (como argumentava Ricardo) a padecer com a introdução das máquinas, ainda se
constituía na maior felicidade do maior número de pessoas, número que simplesmente
resultou ser muito menor do que se poderia esperar. Mas tais fatos, bem como as
marcantes dificuldades para a expansão capitalista no período entre 1810 e a década
de 1840, refrearam o otimismo e estimularam a investigação crítica, especialmente
sobre a distribuição em contraste com a produção, que havia sido a preocupação maior
da geração de Smith.
A economia política de David Ricardo, uma obra-prima
de rigor dedutivo, introduziu assim consideráveis elementos de discórdia na natural
harmonia em que os primeiros economistas tinham apostado. E até mesmo enfatizou,
bem mais do que o tinha feito Smith, certos fatores que se poderia esperar que detivessem
a máquina do progresso econômico, atenuando o suprimento de seu combustível essencial,
tal como uma tendência para o declínio da taxa de lucros. E mais ainda, David Ricardo
criou a teoria geral do valor como trabalho, que só dependia de um leve toque para
ser transformada em um argumento potente contra o capitalismo. Contudo, seu domínio
técnico como pensador e seu apaixonado apoio aos objetivos práticos que a maioria
dos homens de negócios britânicos advogavam – o livre comércio e a hostilidade aos
proprietários de terras – ajudaram a dar à economia política clássica um lugar ainda
mais firme que antes na ideologia liberal.”
“Os próprios argumentos do liberalismo clássico
podiam e foram prontamente transformados contra a sociedade capitalista que eles
tinham ajudado a construir. De fato, a felicidade, como dizia Saint-Just, era “uma
ideia nova na Europa”, mas nada era mais fácil de observar que a maior felicidade
do maior número de pessoas, que claramente não estava sendo atingida, era a felicidade
do trabalhador pobre. Nem era difícil, como William Godwin, Robert Owen, Thomas
Hodgskin e outros admiradores de Bentham o fizeram, separar a busca da felicidade
das conjecturas de um individualismo egoísta. “O objetivo primordial e necessário
de toda a existência deve ser a felicidade”, escreveu Owen, “mas a felicidade não
pode ser obtida individualmente; é inútil esperar-se pela felicidade isolada; todos
devem compartilhar dela ou então a minoria nunca será capaz de gozá-la.”
Mais ainda, a economia política clássica em sua
forma ricardiana podia virar-se contra o capitalismo, fato este que levou os economistas
da classe média posteriores a 1830 a ver Ricardo com alarme, e até mesmo a considerá-lo,
como o fez o americano Carey (1793- 1879), como fonte de inspiração de agitadores
e destruidores da sociedade. Se, como argumentava a economia política, o trabalho
representava a fonte de todo o valor, então por que a maior parte de seus produtores
viviam à beira da privação? Porque, como demonstrava Ricardo – embora ele se sentisse
constrangido em relação às conclusões de sua teoria – o capitalista se apropriava
– em forma de lucro – do excedente que o trabalhador produzia além daquilo que ele
recebia de volta sob a forma de salário. (O fato de que os proprietários de terras
também se apropriassem de uma parte deste excedente não afetou fundamentalmente
o assunto.) De fato, o capitalista explorava o trabalhador. Era necessário eliminar
os capitalistas para que fosse abolida a exploração. Um grupo de “economistas do
trabalho” ricardianos logo surgiu na Grã-Bretanha para fazer a análise e concluir
a moral da história.
Se o capitalismo tivesse realmente alcançado aquilo
que dele se esperava nos dias otimistas da economia política, tais críticas não
teriam tido ressonância. Ao contrário do que frequentemente se supõe, entre os pobres
há poucas “revoluções de melhora do nível de vida”. Mas no período de formação do
socialismo, isto é, entre a publicação da Nova Visão da Sociedade, de Robert Owen,
lançado a público em 1813-14,9 e o Manifesto Comunista, de 1848, a depressão, os
salários decrescentes, o pesado desemprego tecnológico e as dúvidas sobre as futuras
possibilidades de expansão da economia eram simplesmente muito inoportunas. Portanto,
os críticos podiam-se apegar não só à injustiça da economia, mas também aos defeitos
de seu funcionamento, a suas “contradições internas”. Olhos aguçados pela antipatia
detectavam, assim, as flutuações ou “crises” do capitalismo (Sismondi, Wade, Engels)
que seus partidários dissimulavam, e cuja possibilidade, de fato, negava uma “lei”
associada ao nome de J. B. Say (1767-1832). Dificilmente poderia deixar de advertir
que a distribuição crescentemente desigual das rendas nacionais neste período (“os
ricos ficando mais ricos e os pobres mais pobres”) não era um acidente, mas o produto
das operações do sistema. Em poucas palavras, podiam demonstrar não só que o capitalismo
era injusto, mas que parecia funcionar mal e, na medida em que funcionava, produzia
resultados opostos aos que tinham sido preditos por seus defensores.
Deste modo, os novos socialistas simplesmente
se defendiam empurrando os argumentos do liberalismo clássico franco-britânico para
além do ponto até onde os liberais burgueses estavam preparados para ir. A nova
sociedade por eles defendida também não necessitava abandonar o terreno tradicional
do humanismo clássico e do ideal liberal. Um mundo no qual todos fossem felizes
e no qual todo indivíduo realizasse livre e plenamente suas potencialidades, no
qual reinasse a liberdade e do qual desaparecesse o governo coercitivo era o objetivo
máximo de liberais e socialistas. O que distinguia os vários membros da família
ideológica descendente do humanismo e do iluminismo – liberais, socialistas, comunistas
ou anarquistas – não era a amável anarquia mais ou menos utópica de todos eles,
mas sim os métodos para alcançá-la. Neste ponto, entretanto, o socialismo se separava
da tradição clássica liberal.
Em primeiro lugar, rompia radicalmente com a suposição
liberal de que a sociedade era um mero agregado ou combinação de seus átomos individuais,
e que sua força motriz estava no interesse próprio e na competição. Ao fazer isto,
os socialistas voltaram à mais antiga de todas as tradições ideológicas humanas:
a crença de que o homem é naturalmente um ser comunitário. Os homens, naturalmente,
vivem juntos e se ajudam mutuamente. A sociedade não era uma redução necessária,
embora lamentável, do natural e ilimitado direito do homem de fazer o que lhe agradasse,
mas o cenário de sua vida, felicidade e individualidade. A ideia smithiana de que
o intercâmbio de mercadorias equivalentes no mercado garantia de alguma forma a
justiça social lhes chocava como algo incompreensível ou imoral. A maior parte do
povo comum compartilhava este ponto de vista mesmo quando não podia expressá-lo.
Muitos críticos do capitalismo reagiram contra a óbvia desumanização da sociedade
burguesa (o termo técnico “alienação”, que os seguidores de Hegel e o próprio Marx,
no princípio de sua carreira, usavam, refletia o velho conceito de sociedade mais
como o “lar” do homem do que como o simples local das atividades do indivíduo independente),
culpando todo o curso da civilização, do racionalismo, da ciência e da tecnologia.
Os novos socialistas – ao contrário dos revolucionários do tipo dos velhos artesãos
como o poeta William Blake e Jean Jacques Rousseau – tiveram o cuidado de não agir
desta forma. Mas partilhavam não só do tradicional ideal da sociedade como o lar
do homem, mas também do conceito de que antes da instituição da sociedade de classes
e da propriedade os homens tinham, de uma forma ou de outra, vivido em harmonia,
conceito este expresso por Rousseau através, da idealização do homem primitivo,
e também pelos panfletistas radicais menos sofisticados através do mito da antiga
liberdade e irmandade dos povos conquistados por governantes estrangeiros – os saxônicos
pelos normandos, os gauleses pelos alemães. “O gênio”, disse Fourier, “deve redescobrir
os caminhos daquela primitiva felicidade e adaptá-la às condições da indústria moderna.”
O comunismo primitivo buscava através dos séculos e dos oceanos um modelo a propor
ao comunismo do futuro.
Em segundo lugar, o socialismo adotou uma forma
de argumentação que, se não estava fora do alcance da clássica tradição liberal,
tampouco estava muito dentro dela: a argumentação histórica e evolutiva. Para os
liberais clássicos, e de fato para os primeiros socialistas modernos, tais propostas
eram naturais e racionais, distintas da sociedade irracional e artificial que a
ignorância e a tirania tinham, até então, imposto ao mundo. Agora que o progresso
e o iluminismo tinham mostrado ao mundo o que era racional, tudo o que restava a
ser feito era retirar os obstáculos que evitavam que o senso comum seguisse seu
caminho. De fato, os socialistas “utópicos” (seguidores de Saint-Simon, Owen, Fourier
e outros) tratavam de mostrar-se tão firmemente convencidos de que a verdade bastava
ser proclamada para ser instantaneamente adotada por todos os homens sensatos e
de instrução, que inicialmente limitaram seus esforços para realizar o socialismo
a uma propaganda endereçada em primeiro lugar às classes influentes – os trabalhadores,
embora indubitavelmente viessem a se beneficiar com ele, eram infelizmente um grupo
retrógrado e ignorante – e, por assim dizer, à construção de plantas-piloto do socialismo
– colônias comunistas e empresas cooperativas, a maioria delas situada nos espaços
abertos da América, onde não havia tradições de atraso histórico que se opusessem
ao avanço dos homens. (...)
Mas só depois que Karl Marx (1818-83) transferiu
o centro de gravidade da argumentação socialista de sua racionalidade ou desejabilidade
para sua inevitabilidade histórica, o socialismo adquiriu sua mais formidável arma
intelectual, contra a qual ainda se erguem defesas polêmicas. Marx extraiu esta
linha de argumentação de uma combinação das tradições ideológicas alemães e franco-britânicas
(da economia política inglesa, do socialismo francês e da filosofia alemã). Para
Marx a sociedade humana havia inevitavelmente dividido o comunismo primitivo em
classes, inevitavelmente se desenvolvia através de uma série de sociedades classistas,
cada uma delas “progressista” em seu tempo, a despeito de suas injustiças, cada
uma delas contendo as “contradições internas” que, a certa altura, se constituem
em obstáculo para o progresso futuro e geram as forças para sua superação. O capitalismo
era a última delas, e Marx, longe de limitar-se a atacá-lo, usou toda a sua eloquência
abaladora para proclamar seus empreendimentos históricos. Mas era possível demonstrar,
por meio da economia política, que o capitalismo apresentava contradições internas
que inevitavelmente o convertiam, até certo ponto, em uma barreira para o progresso
e que haviam de mergulhá-lo em uma crise da qual não poderia sair.
Além do mais, o capitalismo (como também se poderia
demonstrar através da economia política), inevitavelmente criava seu próprio coveiro,
o proletariado, cujo número e descontentamento crescia à medida que a concentração
do poder econômico em mãos cada vez menos numerosas tornavam-no mais vulnerável,
mais fácil de ser derrubado. A revolução proletária devia, portanto, inevitavelmente
derrubá-lo. Mas também podia-se demonstrar que o sistema social que correspondia
aos interesses da classe trabalhadora era o socialismo ou o comunismo. Como o capitalismo
predominara, não só porque era mais racional do que o feudalismo, mas também devido
à força social da burguesia, também o socialismo predominaria pela inevitável vitória
dos trabalhadores. Seria tolice supor que este era um ideal eterno, o qual os homens
poderiam ter realizado se tivessem sido suficientemente inteligentes na época de
Luís XIV. O socialismo era o filho do capitalismo. Nem mesmo poderia ter sido formulado
de uma maneira adequada antes da transformação da sociedade que criou as condições
para seu advento. Mas, uma vez que essas condições existiam, a vitória era certa,
pois “a humanidade sempre se propõe apenas as tarefas que pode solucionar”.”
“O que determina o florescimento ou o esgotamento
das artes em qualquer período ainda é muito obscuro. Entretanto, não há dúvida de
que entre 1789 e 1848, a resposta deve ser buscada em primeiro lugar no impacto
da revolução dupla. Se fôssemos resumir as relações entre o artista e a sociedade
nesta época em uma só frase, poderíamos dizer que a Revolução Francesa inspirava-o
com seu exemplo, que a revolução industrial com seu horror, enquanto a sociedade
burguesa, que surgiu de ambas, transformava sua própria experiência e estilos de
criação.
Neste período, sem dúvida, os artistas eram diretamente
inspirados e envolvidos pelos assuntos públicos. Mozart escreveu uma ópera propagandística
para a altamente política maçonaria (A Flauta Mágica em 1790), Beethoven
dedicou a Eroica a Napoleão como o herdeiro da Revolução Francesa, Goethe foi, pelo
menos, um homem de Estado e laborioso funcionário. Dickens escreveu romances para
atacar os abusos sociais. Dostoievsky foi condenado à morte em 1849 por atividades
revolucionárias. Wagner e Goya foram para o exílio político. Pushkin foi punido
por se envolver com os dezembristas, e toda a Comédia Humana de Balzac é um monumento
de consciência social. Nunca foi menos verdadeiro definir os artistas criativos
como “não comprometidos”.”
“Como se poderia encontrar uma expressão quantitativa
para o fato, que hoje em dia poucos poderiam negar, de que a revolução industrial
criou o mundo mais feio no qual o homem jamais vivera, como testemunhavam as lúgubres,
fétidas e enevoadas vielas dos bairros baixos de Manchester? Ou, para os homens
e mulheres, desarraigados em quantidades sem precedentes e privados de toda segurança,
que constituíam provavelmente o mais infeliz dos mundos?”
“O mundo da década de 1840 era completamente dominado
pelas potências europeias, política e economicamente, às quais se somavam os Estados
Unidos. A Guerra do Ópio de 1839-42 demonstrara que a única grande potência não
europeia sobrevivente, o Império da China, estava inerte em face de uma agressão
econômica e militar do Ocidente. Nada, ao que parecia, poderia obstar a invasão
de canhoneiras ou de regimentos ocidentais que lhe traziam o comércio e as bíblias.
E dentro deste domínio ocidental, a Grã-Bretanha era a maior potência, graças a
seu maior número de canhoneiras, comércio e bíblias. A supremacia britânica era
tão absoluta que mal necessitava de um controle político para funcionar. Não restavam
quaisquer outras potências coloniais, exceto com a conivência britânica, e consequentemente
não havia rivais. O império francês estava reduzido a umas poucas ilhas espalhadas
e a algumas feitorias comerciais, embora estivesse no processo de se reabilitar
no Mediterrâneo e na Argélia.
Os holandeses, recuperados na Indonésia sob o
olhar vigilante da nova feitoria britânica de Singapura, mal eram competidores;
os espanhóis retinham Cuba, as Filipinas e algumas vagas pretensões na África; as
colônias portuguesas estavam esquecidas. O comércio britânico dominava a Argentina,
o Brasil e o sul dos Estados Unidos tanto quanto a colônia espanhola de Cuba ou
as colônias britânicas na índia. Os investimentos britânicos tinham os seus mais
fortes interesses no norte dos Estados Unidos ou em qualquer local que fosse economicamente
desenvolvido. Nunca, em toda a história do mundo, uma única potência havia exercido
uma hegemonia mundial como a dos britânicos na metade do século XIX, pois mesmo
os maiores impérios ou hegemonias do passado tinham sido meramente regionais – como
no caso dos chineses, dos maometanos e dos romanos. Desde então, nenhuma outra potência
jamais conseguiu estabelecer uma hegemonia comparável, e nem há possibilidades de
que isto venha a acontecer no futuro, já que nenhuma potência pôde nem poderá reivindicar
para si o título de “oficina do mundo”.
Contudo, o futuro declínio da Grã-Bretanha já
era visível. Observadores inteligentes, mesmo nas décadas de 1830 e 1840, como Tocqueville
e Haxthausen, já previam que o tamanho e os recursos potenciais dos Estados Unidos
e da Rússia viriam a transformá-los nos gêmeos gigantes do mundo; dentro da Europa,
a Alemanha (como previu Frederick Engels em 1844) logo viria também entrar na competição
em termos iguais. Só a França havia decisivamente se retirado da competição pela
hegemonia internacional, embora isto ainda não fosse evidente a ponto de dar garantias
aos estadistas britânicos ou de outros países.
Em poucas palavras, o mundo da década de 1840
se achava fora de equilíbrio. As forças de mudança econômica, técnica e social desencadeadas
nos últimos 50 anos não tinham paralelo, eram irresistíveis mesmo para o mais superficial
dos observadores. Por exemplo, era inevitável que, mais cedo ou mais tarde, a escravidão
ou a servidão (exceto nas remotas regiões ainda não atingidas pela nova economia,
onde permaneciam como relíquias) teria de ser abolida, como era inevitável que a
Grã-Bretanha não poderia para sempre permanecer o único país industrializado. Era
inevitável que as aristocracias proprietárias de terras e as monarquias absolutas
perderiam força em todos os países em que uma forte burguesia estava se desenvolvendo,
quaisquer que fossem as fórmulas ou acordos políticos que encontrassem para conservar
sua situação econômica, sua influência e sua força política. Além do mais, era inevitável
que a injeção de consciência política e de permanente atividade política entre as
massas, que foi o grande legado da Revolução Francesa, significaria, mais cedo ou
mais tarde, um importante papel dessas mesmas massas na política. E dada a notável
aceleração da mudança social desde 1830, e o despertar do movimento revolucionário
mundial, era claramente inevitável que as mudanças – quaisquer que fossem seus motivos
institucionais – não poderiam mais ser adiadas.
Tudo isto teria sido o bastante para dar aos homens
da década de 1840 a consciência de uma mudança pendente. Mas não o bastante para
explicar o que se sentia concretamente em toda a Europa: a consciência de uma revolução
social iminente. Era bastante significativo que essa consciência não se limitasse
aos revolucionários, que a preparavam meticulosamente, nem às classes governantes,
cujo temor das massas pobres é patente em tempos de mudança social. Os próprios
pobres sentiam-na e as suas camadas mais cultas a expressavam, como escreveu o cônsul
americano em Amsterdã durante a fome de 1847, relatando os sentimentos dos emigrantes
alemães que passavam pela Holanda: “Todas as pessoas bem informadas expressam a
crença de que a atual crise esta tão profundamente entrelaçada com os acontecimentos
do atual período que ela não é senão o começo da grande Revolução, que eles consideram
que, mais cedo ou mais tarde, venha a dissolver o atual estado de coisas”.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário