Editora: Abril Cultural
Tradução: Edgard Malagodi
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 104
“À primeira vista, a riqueza burguesa aparece
como uma enorme acumulação de mercadorias, e a mercadoria isolada como seu modo
de ser elementar. Mas toda mercadoria se apresenta sob o duplo ponto de vista
de valor de uso e valor de troca.1
Em primeiro lugar, a mercadoria é, na
expressão dos economistas ingleses, “uma coisa qualquer, necessária, útil ou
agradável para a vida”, objeto de necessidades humanas, meio de vida no sentido
mais amplo da palavra. Esse modo de ser da mercadoria como valor de uso
coincide com sua existência natural palpável. Trigo, por exemplo, é um valor de
uso particular que se diferencia dos valores de uso algodão, vidro, papel etc.
O valor de uso só tem valor para o uso, e se efetiva apenas no processo de
consumo. O mesmo valor de uso pode ser utilizado de modos diversos. Contudo, a
soma de suas possíveis utilidades está resumida em seu modo de existência como
coisa com propriedades determinadas. Além disso, o valor de uso é determinado
não só qualitativa como quantitativamente. Segundo sua propriedade natural,
diversos valores de uso possuem medidas diferentes, como fanga de trigo, resma
de papel, vara de tecido.
Qualquer que seja a forma social da riqueza,
os valores de uso formam sempre seu conteúdo, que é, inicialmente, indiferente
a essa forma. É impossível comprovar pelo sabor do trigo quem o cultivou, servo
russo, camponês parcelário francês ou capitalista inglês. Ainda que seja objeto
de necessidades sociais, e estar, por isso, em contexto social, o valor de uso
contudo não expressa nenhuma relação social de produção. Tomemos uma
mercadoria, um diamante, por exemplo, como valor de uso. No diamante não se
pode notar que ele é uma mercadoria. Onde quer que sirva como valor de uso, no
colo de uma dama, onde tem uma finalidade estética na mão de um cortador de
vidro, desempenhando uma função técnica, é sempre diamante e não mercadoria.
Ser valor de uso parece ser pressuposição necessária para a mercadoria, mas não
reciprocamente, pois ser mercadoria parece ser determinação indiferente para o
valor de uso. O valor de uso em sua indiferença frente à determinação econômica
formal, isto é, valor de uso em si mesmo, fica além do campo de investigação da
Economia Política. Apenas entra em seu círculo quando é determinação formal. O
valor de uso é diretamente a base material onde se apresenta uma relação
econômica determinada – o valor de troca.
O valor de troca aparece primeiramente como relação quantitativa em que valores de
uso são trocáveis entre si. Em tal relação formam eles a mesma grandeza de
troca. Assim é possível que um volume de Propércio e oito onças de rapé sejam o
mesmo valor de troca, apesar dos valores de uso incompatíveis do tabaco e da
elegia. Como valor de troca, um valor de uso é exatamente tanto valor quanto o
outro, bastando apenas estar a mão na porção certa. O valor de troca de um
palácio pode ser expresso em determinado número de latas de graxa para botas.
Inversamente, fabricantes londrinos de graxa têm o valor de troca de suas
muitíssimas latas expresso em palácios. Totalmente indiferente, portanto, ao
seu modo natural de existência, e sem consideração à natureza específica da
necessidade para a qual são valores de uso, as mercadorias cobrem-se umas as
outras em quantidades determinadas, substituem-se entre si na troca, valem como
equivalentes e, apesar de sua aparência variegada, apresentam a mesma unidade.
Os valores de uso são imediatamente meios de
subsistência. Mas, inversamente, esses meios de subsistência são eles próprios
produtos da vida social, resultado de força vital humana gasta, trabalho objetivado. Como encarnação do
trabalho social, todas as mercadorias são cristalizações da mesma unidade. É
preciso considerar agora o caráter determinado dessa unidade, isto é, do
trabalho que se apresenta no valor de troca.
Suponhamos que uma onça de ouro, uma tonelada
de ferro, um quintal de trigo e vinte varas de seda sejam valores de troca de
igual grandeza. Como tais equivalentes, nos quais se extinguiu a diferença
qualitativa de seus valores de uso, apresentam volume igual do mesmo trabalho.
O trabalho que uniformemente se objetivou neles deve ser ele próprio uniforme,
sem diferenças, trabalho simples, para o qual é tão indiferente aparecer em
forma de ouro*, ferro, trigo ou seda, como é indiferente ao oxigênio
encontrar-se na ferrugem, na atmosfera, no suco de uvas ou no sangue dos seres
humanos. Mas cavar em busca de ouro, extrair ferro da mina, cultivar trigo e
tecer a seda são modos de trabalho qualitativamente diversos entre si. De fato,
o que concretamente aparece como diversidade de valores de uso aparece em
processo como diversidade da atividade que produz os valores de uso. Sendo
indiferente frente a matéria particular dos valores de uso, o trabalho que põe
o valor de troca é, por isso, indiferente frente a forma particular do próprio
trabalho. Diversos valores de uso são além disso produtos da atividade de
indivíduos distintos, portanto resultado de trabalhos individualmente diferentes.
Mas, como valores de troca, apresentam trabalho igual, sem diferenças, isto é,
trabalho em que a individualidade dos trabalhadores se extinguiu. Trabalho que
põe valor de troca e, por isso, trabalho abstratamente
geral.”
1: ARISTÓTELES. De República. Edit. I. Bekker Oxonii, 1837. Livro Primeiro, cap. IX
– “Pois todo o bem pode servir para dois usos... Um é próprio à coisa como tal,
mas o outro não o é, assim, uma sandália pode servir como calçado, mas também
pode ser trocada. Trata-se, nos dois casos, de valores de uso da sandália,
porque aquele que troca a sandália por aquilo de que necessita, alimentos, por
exemplo, serve-se também da sandália como sandália. Contudo, não é este seu
modo natural de uso. Pois a sandália não foi feita para a troca. O mesmo se
passa com os outros bens.
*: O ouro era a moeda conversível da época de
Marx, posto hoje ocupado pelo dólar.
“O âmbito das mercadorias nunca se fecha definitivamente,
mas, ao contrário, se expande constantemente.”
“A análise da mercadoria através da redução
desta a um trabalho de dupla forma (de um lado, a redução) do valor de uso a
trabalho real, isto é, à atividade produtiva aplicada a um fim, de outro, do
valor de troca a tempo de trabalho, ou seja, a trabalho social igual, é o
resultado crítico final de mais de século e meio de pesquisas da Economia
Política clássica.”
“A principal dificuldade da análise do
dinheiro é vencida quando se compreende que o dinheiro tem a sua origem na
própria mercadoria. Desse pressuposto, apenas resta conceber nitidamente as
idades que lhe são próprias, o que é dificultado em certa medida pelo fato de
que todas as relações burguesas aparecem transformadas em ouro ou prata,
aparecendo como relações monetárias. E a forma dinheiro parece possuir, por
conseguinte, um conteúdo infinitamente variado que lhe é estranho.”
“Enfim, o processo de circulação efetivo
aparece não como totalidade de metamorfoses de uma mercadoria, não como o seu
movimento através de fases opostas, mas sim como mero agregado de numerosas
compras e vendas, processando-se casualmente uma ao lado, ou depois, da outra.
Assim, a determinidade formal desse processo está completamente apagada tanto
mais quanto todo ato individual de circulação, por exemplo, a venda, é
simultaneamente o seu contrário, a compra e vice-versa. Por outro lado, o
processo de circulação é o próprio
movimento das metamorfoses do mundo das mercadorias e deve, por isso,
refleti-lo, reproduzi-lo na totalidade de seu movimento. Como se dá essa reprodução,
veremos na próxima seção. Aqui cabe apenas observar que em M-D-M* os dois
extremos M não estão na mesma relação formal com D. O primeiro M é uma
mercadoria particular e relaciona-se com o dinheiro, como mercadoria geral,
enquanto o dinheiro é a mercadoria geral e se relaciona com o segundo M que é
uma mercadoria individual Daí ser possível traduzir M-D-M para o plano da
lógica abstrata na forma silogística P-G-I em que a particularidade constitui o
primeiro extremo, a generalidade o termo médio, e a individualidade o último
extremo.”
*: M = Mercadoria; D = Dinheiro.
“Se a troca de forma das mercadorias aparece
como mera troca de lugar do dinheiro e se a continuidade do movimento de
circulação fica inteiramente a cargo do dinheiro, pois a mercadoria não dá
nunca mais de um passo em direção oposta ao dinheiro, enquanto este empreende
constantemente o segundo passo pela mercadoria, e diz B onde a mercadoria disse A,
todo movimento parece partir do
dinheiro, embora seja a mercadoria que, na venda, puxe o dinheiro de seu lugar
e que faz, portanto, o dinheiro circular do mesmo modo que, na compra, ela
circula por ação do dinheiro. Além disso, como o dinheiro sempre se defronta
com ela no mesmo relacionamento como meio
de compra, mas como tal só movimenta as mercadorias através da realização
de seus preços, o movimento total da circulação aparece de tal forma que o
dinheiro troca de lugar com as mercadorias, realizando os seus preços
simultaneamente, seja em atos de circulação particulares que se processam um ao
lado do outro, seja sucessivamente, quando a mesma peça de moeda realiza
diferentes preços = mercadorias, um após ao outro. Se considerarmos por
exemplo, M-D-M’-D-M”-D-M’” – etc., sem levar em conta os movimentos
qualitativos que se tornaram irreconhecíveis no processo de circulação efetivo,
só constataremos a mesma operação monótona. D, depois de ter realizado o preço
de M realiza sucessivamente os de M’-M” - etc., e as mercadorias M, M’, M” etc.
colocam-se sempre no lugar abandonado pelo dinheiro. Parece, portanto, que o
dinheiro faz circular as mercadorias ao realizar seus preços. Nessa função de
realizar os preços, o próprio dinheiro circula continuamente, ora trocando
simplesmente de lugar, ora percorrendo um trajeto da circulação, ora
descrevendo um pequeno círculo, onde coincide o ponto de partida com o ponto de
chegada Como melo de circulação, o dinheiro tem sua própria circulação. Por
isso, o movimento de forma das mercadorias em processo aparece como o próprio
movimento do dinheiro, movimento mediador da troca das mercadorias imóveis por
si mesmas. O movimento do processo de circulação das mercadorias se apresenta,
portanto, no movimento do dinheiro como meio de circulação – no curso do dinheiro.
Como os possuidores de mercadorias
apresentaram os produtos de seus trabalhos privados como produtos do trabalho
social ao transformarem uma coisa, o ouro, no modo de ser imediato do tempo de
trabalho geral e, por isso, em dinheiro, o próprio movimento generalizado de
seus trabalhos privados, pelo qual estes operam seu metabolismo, surge agora
para eles como movimento próprio de uma coisa, como circulação do ouro. Para os
possuidores de mercadorias, o próprio movimento social é, por um lado, uma
necessidade exterior e, por outro, um processo mediador puramente formal que
permite a cada indivíduo retirar, em troca do valor de uso que lança na
circulação, outros valores de uso da mesma dimensão de valor. O valor de uso da
mercadoria começa com sua saída da circulação, enquanto o valor de uso do
dinheiro, como meio de circulação, consiste em que circule. O movimento da
mercadoria na circulação é apenas um momento fugidio, enquanto o incessante
deslocar-se em torno dela converte-se na função do dinheiro.”
“O dinheiro,
diferente de moeda, é o resultado do processo de circulação na forma M-D-M e
constitui o ponto de partida do processo na forma D-M-D, isto é, a troca de
dinheiro por mercadoria, para trocar mercadoria por dinheiro. Na primeira
forma, é a mercadoria e na segunda, é o dinheiro que constitui o ponto de
partida e o ponto final desse movimento. Na primeira forma, o dinheiro atua
como mediador da troca de mercadorias, na segunda, é a mercadoria que serve ao
dinheiro como mediador de seu próprio processo de vir-a-ser dinheiro. O
dinheiro que aparece na primeira forma como simples meio, aparece na segunda
como meta final da circulação, enquanto a mercadoria, que na primeira aparece
como meta final, na segunda forma aparece como simples meio. Se o próprio
dinheiro já é o resultado da circulação M-D-M, na forma de D-M-D, o resultado
aparece ao mesmo tempo como seu ponto de partida. Enquanto é em M-D-M que se dá
o metabolismo das mercadorias, é o modo de ser formal da própria mercadoria
resultante desse primeiro processo que constitui o conteúdo efetivo do segundo
processo D-M-D.
Na forma M-D-M ambos os extremos são
mercadorias de idêntica grandeza de valor, mas ao mesmo tempo são valores de
uso qualitativamente diferentes. A troca M-M é o metabolismo efetivo. Na forma
D-M-D, ao contrário, ambos os extremos são igualmente ouro de mesma grandeza de
valor. Trocar ouro por mercadoria, para trocar mercadoria por ouro, ou, se
consideramos o resultado D-D, trocar ouro por ouro parece um absurdo. Mas se
traduzimos D-M-D na fórmula: comprar
para vender, o que não significa
outra coisa do que trocar ouro por ouro, valendo-se de um movimento mediador,
reconhece-se logo a forma dominante da produção burguesa. Todavia, na prática
não se compra para vender: compra-se barato, para vender mais caro. Troca-se
dinheiro por mercadoria para trocar em seguida a mesma mercadoria por uma
quantidade maior de dinheiro, de tal forma que os extremos D-D, se não são
diferentes qualitativamente, ao menos o são quantitativamente. Uma tal
diferença quantitativa pressupõe a troca
de não-equivalentes. Além do mais, mercadoria e dinheiro em si nada mais
são que formas opositivas da própria mercadoria: são portanto, modalidades
distintas da mesma grande valor. O circuito D-M-D oculta portanto, sob as
formas de dinheiro e mercadoria, relações de produção mais desenvolvidas, e constitui
dentro da circulação nada mais do que um reflexo de um movimento superior.”
“Enquanto nos séculos XVI e XVII – a infância
da sociedade burguesa moderna – a ganância universal pelo ouro arrastava povos
e príncipes a cruzadas transoceânicas em busca do Santo Graal de ouro, os
primeiros intérpretes do mundo moderno, os promotores do sistema monetário do
qual o sistema mercantil é apenas uma variante – proclamavam como única riqueza
o ouro e a prata, isto é, o dinheiro. Expressavam, corretamente, a vocação da
sociedade burguesa para fazer dinheiro, isto é, formar, do ponto de vista da
circulação simples de mercadorias, o eterno tesouro, o qual não roem nem a
traça nem a ferrugem. Dizer que uma tonelada de ferro ao preço de 3 libras
esterlinas é uma grandeza de valor igual a 3 libras esterlinas de ouro não
constitui uma resposta ao sistema monetário. Trata-se aqui, não da grandeza do
valor de troca, mas de sua forma adequada. Se o sistema monetário e mercantil
distingue o comércio mundial e os ramos particulares do trabalho nacional, que
desembocam diretamente no comércio mundial, como as únicas fontes autênticas da
riqueza ou do dinheiro, é necessário ter em conta que nessa época a maior parte
da produção nacional se movia sob formas feudais e constituía para os próprios
produtores a fonte imediata de subsistência. Os produtos, em grande parte, não
se transformavam em mercadoria, nem, portanto, em dinheiro; não entravam no
metabolismo social geral; não apareciam, portanto, como objetivação do trabalho
geral abstrato, e, de fato, não criavam riqueza burguesa. O dinheiro, como finalidade da circulação, é o valor
de troca ou riqueza abstrata, e
não um elemento material qualquer da riqueza que constitui o fim determinante e motivo animador da produção. Como era de se esperar, no limiar da
produção burguesa, aqueles profetas desconhecidos estavam agarrados à forma
sólida, palpável e brilhante do valor de troca, a sua forma de mercadoria geral
em oposição a todas as mercadorias particulares. Naquela altura a esfera da
economia burguesa propriamente dita era a esfera da circulação de mercadorias.
Assim do ponto de vista dessa esfera elementar que julgavam todo o complicado
processo da produção burguesa e confundiam dinheiro com capital. A luta
incessante de economistas modernos contra o sistema monetário e mercantil
provém de que esse sistema propaga de um modo bastante ingênuo o segredo da
produção burguesa, ou seja, o fato de que esta se encontra sob o domínio do
valor de troca. Ricardo observa algures, ainda que seja para fazer disso uma
aplicação falsa, que mesmo nas épocas de fome se importam cereais, não porque a
nação passa fome mas porque o negociante de trigo ganha dinheiro. Na crítica
que faz ao sistema monetário e mercantil, a economia política moderna erra ao
combater esse sistema como se fosse uma simples ilusão, uma teoria falsa, não
reconhecendo nele a forma bárbara do seu princípio fundamental. Além disso,
esse sistema não só preserva seu direito histórico como também seu pleno
direito de cidadania em determinadas esferas da economia moderna. Em todas as
etapas do processo burguês de produção, nas quais a riqueza reveste a forma
elementar da mercadoria, o valor de troca assume a forma elementar do dinheiro,
e em todas as fases do processo de produção a riqueza volta a revestir continuamente,
ainda que seja por um momento, a forma elementar geral da mercadoria. Mesmo na
mais desenvolvida economia burguesa as funções específicas do ouro e da prata
como dinheiro, diferentemente de sua função como meio de circulação, e em
oposição as demais mercadorias, não são anuladas, mas apenas restringidas; por
isso o sistema monetário mercantil preserva o seu direito. O fato católico do
ouro e da prata, como encarnação imediata do trabalho social, e por isso, como
modo de ser da riqueza abstrata confrontarem-se com as demais mercadorias
profanas, fere naturalmente o pudor protestante da economia burguesa que, por
temor aos preconceitos do sistema monetário, perde, por muito tempo, a
faculdade de julgar os fenômenos da circulação monetária.”
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