Editora: Martin Claret
ISBN: 978-85-7232-762-6
Tradução: Alex Marins
Opinião: ★☆☆☆☆
Páginas: 517
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Sinopse: Ver Parte
I
“Dado que a
condição do homem é uma condição
de guerra de todos contra todos, sendo neste caso cada um governado por sua
própria razão, e não havendo nada, de que possa lançar mão, que não possa
servir-lhe de ajuda para a preservação de sua vida contra seus inimigos,
segue-se daqui que numa tal condição todo homem tem direito a todas as coisas,
incluindo os corpos dos outros. Portanto, enquanto perdurar este direito de
cada homem a todas as coisas, não poderá haver para nenhum homem (por mais
forte e sábio que seja) a segurança de viver todo o tempo que geralmente a
natureza permite aos homens viver. Consequentemente é um preceito ou regra
geral da razão, que todo homem deve esforçar-se pela paz, na medida em que
tenha esperança de consegui-la, e caso não a consiga pode procurar e usar todas
as ajudas e vantagens da guerra. A primeira parte desta regra encerra a lei
primeira e fundamental de natureza, isto é, procurar a paz, e segui-la. A
segunda encerra a suma do direito de natureza, isto é, por todos os meios que
pudermos, defendermo-nos a nós mesmos.
Desta lei
fundamental de natureza, mediante a qual se ordena a todos os homens que
procurem a paz, deriva esta segunda lei: Que um homem concorde, quando outros
também o façam, e na medida em que tal considere necessário para a paz e para a
defesa de si mesmo, em renunciar a seu direito a todas as coisas,
contentando-se, em relação aos outros homens, com a mesma liberdade que aos
outros homens permite em relação a si mesmo. Porque enquanto cada homem detiver
seu direito de fazer tudo quanto queira, todos os homens se encontrarão numa
condição de guerra. Mas se os outros homens não renunciarem a seu direito, assim
como ele próprio, nesse caso não há razão para que alguém se prive do seu, pois
isso equivaleria a oferecer-se como presa (coisa a que ninguém é obrigado), e
não a dispor-se para a paz. É esta a lei do Evangelho: Faz aos outros o que
queres que te façam a ti. E esta é a lei de todos os homens: Quod tibi
jïeri non vis, alteri ne feceris.”
“Vivendo num
Estado, se eu me vir forçado a livrar-me de um ladrão prometendo-lhe dinheiro,
sou obrigado a pagá-lo, a não ser que a lei civil disso me dispense. Porque
tudo o que posso fazer legitimamente sem obrigação posso também compactuar
legitimamente por medo, e o que eu compactuar legitimamente não posso
legitimamente romper.”
“Porque o
testemunho de um tal acusador, se não for prestado voluntariamente, deve
considerar-se corrompido pela natureza, e portanto não deve ser aceito; e
quando o testemunho de um homem não vai receber crédito, ele não é obrigado a
prestá-lo. Também as acusações arrancadas pela tortura não devem ser aceitas
como testemunhos. Porque a tortura é para ser usada como meio de conjetura, de
esclarecimento num exame posterior e de busca da verdade; e o que nesse caso é
confessado contribui para aliviar quem é torturado, não para informar os
torturadores. Portanto não deve ser aceito como testemunho suficiente porque,
quer o torturado se liberte graças a uma verdadeira ou a uma falsa acusação, o
fará pelo direito de preservar sua vida.”
“Nesta lei de
natureza reside a fonte e a origem da justiça. Porque sem um pacto anterior não
há transferência de direito, e todo homem tem direito a todas as coisas,
consequentemente, nenhuma ação pode ser injusta. Mas, depois de celebrado um
pacto, rompê-lo é injusto. E a definição da injustiça não é outra senão o não
cumprimento de um pacto. E tudo o que não é injusto é justo.
Ora, como os
pactos de confiança mútua são inválidos sempre que de qualquer dos lados existe
receio de não cumprimento, embora a origem da justiça seja a celebração dos
pactos, não pode haver realmente injustiça antes de ser removida a causa desse
medo; o que não pode ser feito enquanto os homens se encontram na condição
natural de guerra. Portanto, para que as palavras
“justo” e “injusto” possam ter lugar, é necessária alguma
espécie de poder coercitivo, capaz de obrigar igualmente os homens ao
cumprimento de seus pactos, mediante o terror de algum castigo que seja
superior ao beneficio que esperam tirar do rompimento do pacto, e capaz de
fortalecer aquela propriedade que os homens adquirem por contrato mútuo, como
recompensa do direito universal a que renunciaram. E não pode haver tal poder
antes de erigir-se um Estado. O mesmo pode deduzir-se também da definição comum
da justiça nas Escolas, pois nelas se diz que a justiça é a vontade constante
de dar a cada um o que é seu. Portanto, onde não há o seu, isto é, não há
propriedade, não pode haver injustiça. E onde não foi estabelecido um poder
coercitivo, isto é, onde não há Estado, não há propriedade, pois todos os
homens têm direito a todas as coisas. Portanto, onde não há Estado nada pode
ser injusto. De modo que a natureza da justiça consiste no cumprimento dos
pactos válidos, mas a validade dos pactos só começa com a instituição de um
poder civil suficiente para obrigar os homens a cumpri-los, e é também só aí
que começa a haver propriedade.”
“Portanto quem
declarar que considera razoável enganar aos que o ajudam não pode razoavelmente
esperar outros meios de salvação senão os que dependem de seu próprio poder.
Portanto quem quebra seu pacto, e ao mesmo tempo declara que pode fazê-lo de
acordo com a razão, não pode ser aceito por qualquer sociedade que se constitua
em vista da paz e da defesa, a não ser devido a um erro dos que o aceitam. E se
for aceito não se pode continuar a admiti-lo, quando se vê o perigo desse erro;
e não seria razoável esse homem contar com esses erros como garantia de sua
segurança. Portanto alguém que seja deixado fora ou expulso de uma sociedade
está condenado a perecer, e se viver nessa sociedade será graças aos erros dos
outros homens, os quais ele não podia prever e com os quais não podia contar,
portanto, contra a razão de sua preservação. Assim, todos os homens que não
contribuem para sua destruição fazem-no apenas por ignorância do que a eles
próprios beneficia.”
“Ainda há outros
que, embora reconhecendo o cumprimento da palavra dada como uma lei de
natureza, não obstante abrem exceção para certas pessoas, tais como os hereges
e todos aqueles que não têm como costume o cumprimento de seus pactos; e também
isto é contra a razão. Pois se qualquer defeito de um homem for suficiente para
dispensá-lo do cumprimento de um pacto, o mesmo deveria ter sido, perante a
razão, suficiente para tê-lo impedido de celebrá-lo.”
“A justiça das
ações não faz com que aos homens se chamem justos, e sim inocentes; e a
injustiça das mesmas (também chamada injúria) faz-lhes atribuir apenas o nome
de culpados.”
“O mesmo se passa
no Estado: os homens podem perdoar uns aos outros suas dívidas, mas não os
roubos ou outras violências que lhes causem dano. Porque não pagar uma dívida é
uma injúria feita a eles mesmos, ao passo que o roubo e a violência são
injúrias feitas à pessoa do Estado.”
(por questões de espaço não é possível
inserir todo o trecho, mas atentar para todo o capítulo XV, a partir do parágrafo
acima)
“O fim último,
causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o
domínio sobre os outros), introduzindo restrições a si mesmos, conforme os
vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida
mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra
que é a consequência necessária (conforme se mostrou) das paixões naturais dos
homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito,
forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos e ao respeito
àquelas leis de natureza que foram expostas nos capítulos décimo quarto e
décimo quinto.
Porque as leis de
natureza (como a justiça, a equidade, a modéstia, a piedade, ou, em resumo,
fazer aos outros o que queremos que nos façam) por si mesmas, na ausência do
temor de algum poder capaz de levá-las a ser respeitadas, são contrárias a
nossas paixões naturais, as quais nos fazem tender para a parcialidade, o
orgulho, a vingança e coisas semelhantes. E os pactos sem a espada não passam
de palavras, sem força para dar qualquer segurança a ninguém. Portanto, apesar
das leis de natureza (que cada um respeita quando tem vontade de respeitá-las e
quando pode fazê-lo com segurança), se não for instituído um poder
suficientemente grande para nossa segurança, cada um confiará, e poderá
legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como proteção
contra todos os outros.”
“Mesmo que haja
uma grande multidão, se as ações de cada um dos que a compõem forem
determinadas segundo o juízo individual e os apetites individuais de cada um,
não poderá esperar-se que ela seja capaz de dar defesa e proteção a ninguém,
seja contra o inimigo comum, seja contra as injúrias feitas uns aos outros.
Porque divergindo em opinião quanto ao melhor uso e aplicação de sua força, em
vez de se ajudarem, só se atrapalham uns aos outros, e devido a essa oposição
mútua reduzem a nada sua força. E devido a tal não apenas facilmente serão
subjugados por um pequeno número que se haja posto de acordo, mas, além disso,
mesmo sem haver inimigo comum, facilmente farão guerra uns aos outros, por
causa de seus interesses particulares. Pois se fosse lícito supor uma grande
multidão capaz de consentir na observância da justiça e das outras leis da
natureza, sem um poder comum que mantivesse a todos em respeito, igualmente o
seria supor a humanidade inteira capaz do mesmo. Nesse caso não haveria, nem
seria necessário, qualquer governo civil, ou qualquer Estado, pois haveria paz
sem sujeição.”
“É certo que há
algumas criaturas vivas, como as abelhas e as formigas, que vivem sociavelmente
umas com as outras (e por isso são contadas por Aristóteles entre as criaturas
políticas), sem outra direção senão seus juízos e apetites particulares, nem
linguagem através da qual possam indicar umas às outras o que consideram
adequado para o beneficio comum. Assim, talvez haja alguém interessado em saber
por que a humanidade não pode fazer o mesmo. Ao que tenho a responder o
seguinte.
Primeiro, que os
homens estão constantemente envolvidos numa competição pela honra e pela
dignidade, o que não ocorre no caso dessas criaturas. E é devido a isso que
surgem entre os homens a inveja e o ódio, e finalmente a guerra, ao passo que
entre aquelas criaturas tal não acontece.
Segundo, que entre
essas criaturas não há diferença entre o bem comum e o bem individual e, dado
que por natureza tendem para o bem individual, acabam por promover o bem comum.
Mas o homem só encontra felicidade na comparação com os outros homens, e só
pode tirar prazer do que é eminente.
Terceiro, que,
como essas criaturas não possuem (ao contrário do homem) o uso da razão, elas
não veem nem julgam ver qualquer erro na administração de sua existência comum.
Ao passo que entre os homens são em grande número os que se julgam mais sábios,
e mais capacitados que os outros para o exercício do poder público. E esses se
esforçam por empreender reformas e inovações, uns de uma maneira e outros de
outra, acabando assim por levar o país à desordem e à guerra civil.
Quarto, que essas
criaturas, embora sejam capazes de certo uso da voz, para dar a conhecer umas
às outras seus desejos e outras afecções, apesar disso, carecem daquela arte
das palavras mediante a qual alguns homens são capazes de apresentar aos outros
o que é bom sob a aparência do mal, e o que é mau sob a aparência do bem; ou
então aumentando ou diminuindo a importância visível do bem ou do mal, semeando
o descontentamento entre os homens e perturbando a seu bel-prazer a paz em que
os outros vivem.
Quinto, as
criaturas irracionais são incapazes de distinguir entre injúria e dano, e
consequentemente basta que estejam satisfeitas para nunca se ofenderem com seus
semelhantes. Ao passo que o homem é tanto mais implicativo quanto mais
satisfeito se sente, pois é neste caso que tende mais para exibir sua sabedoria
e para controlar as ações dos que governam o Estado.
Por último, o
acordo vigente entre essas criaturas é natural, ao passo que o dos homens surge
apenas através de um pacto, isto é, artificialmente. Portanto não é de admirar
que seja necessária alguma coisa mais, além de um pacto, para tornar constante
e duradouro seu acordo: ou seja, um poder comum que os mantenha em respeito, e
que dirija suas ações no sentido do beneficio comum.
A única maneira de
constituir um poder comum, capaz de defender a comunidade das invasões dos
estrangeiros e das injúrias uns dos outros, garantindo-lhes assim uma segurança
suficiente para que, mediante seu próprio labor e graças aos frutos da terra,
possam alimentar-se e viver satisfeitos, é conferir toda sua força e poder a um
homem, ou a uma assembleia de homens, que possa reduzir suas diversas vontades,
por pluralidade de votos, a uma só vontade. O que equivale a dizer: designar um
homem ou uma assembleia de homens como representante de suas pessoas,
considerando-se e reconhecendo-se cada um como autor de todos os atos que
aquele que representa sua pessoa praticar ou vier a realizar, em tudo o que
disser respeito à paz e segurança comuns. Todos submetendo assim suas vontades
à vontade do representante, e suas decisões a sua decisão. Isto é mais do que
consentimento, ou concórdia, é uma verdadeira unidade de todos eles, numa só e
mesma pessoa, realizada por um pacto de cada homem com todos os homens, de um
modo que é como se cada homem dissesse a cada homem: cedo e transfiro meu
direito de governar-me a mim mesmo a este homem, ou a esta assembleia de
homens, com a condição de transferires a ele teu direito, autorizando de
maneira semelhante todas as suas ações. Feito isto, à multidão assim unida numa
só pessoa se chama Estado, em latim civitas.
Esta é a geração
daquele enorme Leviatã, ou antes (para falar em termos mais reverentes) daquele
Deus Mortal, ao qual devemos, abaixo do Deus Imortal, nossa paz e defesa. Pois
graças a esta autoridade que lhe é dada por cada indivíduo no Estado, é-lhe
conferido o uso de tamanho poder e força que o terror assim inspirado o torna
capaz de conformar as vontades de todos eles, no sentido da paz em seu próprio
país, e da ajuda mútua contra os inimigos estrangeiros.
É nele que
consiste a essência do estado, a qual pode ser assim definida: “Uma grande
multidão institui a uma pessoa, mediante pactos recíprocos uns com os outros,
para em nome de cada um como autora, poder usar a força e os recursos de todos,
da maneira que considerar conveniente, para assegurara paz e a defesa comum.
Soberano é aquele
que representa essa pessoa. Dele se diz que possui poder soberano. Todos os
restantes são súditos.
O poder soberano
pode ser adquirido de duas maneiras. Uma delas é a força natural, como quando
um homem obriga seus filhos a submeterem-se, e a submeterem seus próprios
filhos, a sua autoridade, na medida em que é capaz de destruí-los em caso de
recusa. Ou como quando um homem sujeita através da guerra seus inimigos a sua
vontade, concedendo-lhes a vida com essa condição. A outra é quando os homens
concordam entre si em submeterem-se a um homem, ou a uma assembleia de homens,
voluntariamente, com a esperança de serem protegidos por ele contra todos os
outros. Este último pode ser chamado um Estado Político, ou um Estado por
instituição. Ao primeiro pode chamar-se um Estado por aquisição.”
“O detentor do
poder soberano não pode justamente ser morto, nem de qualquer outra maneira
pode ser punido por seus súditos.”
“Isso sem levar em
conta que a condição do homem nunca pode deixar de ter uma ou outra
incomodidade, e que a maior que é possível cair sobre o povo em geral, em qualquer
forma de governo, é de pouca monta quando comparada com as misérias e horríveis
calamidades que acompanham a guerra civil, ou aquela condição dissoluta de
homens sem senhor, sem sujeição às leis e a um poder coercitivo capaz de atar
suas mãos, impedindo a rapina e a vingança. E também sem levar em conta que o
que mais impulsiona os soberanos governantes não é qualquer prazer ou vantagem
que esperem recolher do prejuízo ou debilitamento causado a seus súditos, em
cujo vigor consiste sua própria força e glória, e sim a obstinação daqueles
que, contribuindo de má vontade para sua própria defesa, tornam necessário que
seus governantes deles arranquem tudo o que podem em tempo de paz, a fim de
obterem os meios para resistir ou vencer a seus inimigos, em qualquer
emergência ou súbita necessidade. Porque todos os homens são dotados por
natureza de grandes lentes de aumento (ou seja, as paixões e o amor de si),
através das quais todo pequeno pagamento aparece como um imenso fardo; mas são
destituídos daquelas lentes prospectivas (a saber, a ciência moral e civil) que
permitem ver de longe as misérias que os ameaçam, e que sem tais pagamentos não
podem ser evitadas.”
“Quem quer que
considere demasiado grande o poder soberano, procurará fazer que ele se torne menor,
e para tal precisará submeter-se a um poder capaz de limitá-lo. Isto é, a um
poder ainda maior.”
“Assim, nunca um
grande Estado popular se conservou, a não ser graças a um inimigo exterior que
uniu seu povo, ou graças à reputação de algum homem eminente em seu seio, ou ao
conselho secreto de uns poucos, ou ao medo recíproco de duas facções
equivalentes, mas nunca graças à consulta aberta da assembleia. Quanto aos
Estados muito pequenos, sejam eles populares ou monárquicos, não há sabedoria
humana capaz de conservá-los para além do que durar a rivalidade entre seus
poderosos vizinhos.”
“Os milagres são
feitos maravilhosos, mas o que é maravilhoso para um pode não sê-lo para outro.
A santidade pode ser fingida, e os sucessos visíveis deste mundo são as mais
das vezes obra de Deus através de causas naturais e vulgares. Portanto ninguém
pode infalivelmente saber pela razão natural que alguém recebeu uma revelação
sobrenatural da vontade de Deus. Pode, quando muito, ter uma crença e, conforme
seus sinais pareçam maiores ou menores, ser uma crença mais firme ou uma crença
mais frágil.”
“Algum defeito de
entendimento, algum erro de raciocínio ou alguma brusca força das paixões é a
fonte de todo crime. O defeito de entendimento é ignorância, e o de raciocínio
é opinião errônea.”
“Aqueles que
enganam com a esperança de não serem descobertos, geralmente se enganam a si
mesmos (as trevas em que pensam estar escondidos não são mais do que sua
própria cegueira), e não são mais sábios do que as crianças que pensam
esconder-se quando tapam seus próprios olhos.”
“Poucos são os
crimes que não podem ser resultado da ira.”
“Expus até aqui a
natureza do homem (cujo orgulho e outras paixões o obrigaram a submeter-se ao
governo), juntamente com o grande poder de seu governante, ao qual comparei com
o Leviatã, tirando essa comparação dos dois últimos versículos do capítulo 41
de Jó, onde Deus, após ter estabelecido o grande poder do Leviatã, lhe chamou
Rei dos Soberbos. “Não há nada na Terra”, disse ele, “que se lhe possa
comparar. Ele é feito de maneira a nunca ter medo. Ele vê todas as coisas
abaixo dele, e é o Rei de todos os Filhos da Soberba.”
“Não existe nesta
vida nenhuma ação do homem que não seja o começo de uma cadeia de consequências
tão longa que nenhuma providência humana é suficientemente alta para dar ao
homem uma ideia do final. E nesta cadeia estão ligados acontecimentos
agradáveis e desagradáveis, de tal maneira que quem quiser fazer alguma coisa
para seu prazer tem de aceitar sofrer todas as dores a ele ligadas. Dores estas
que são as punições naturais daquelas ações que são o início de um mal maior
que o bem. E daqui resulta que a intemperança é naturalmente castigada com
doenças, a precipitação com desastres, a injustiça com a violência dos
inimigos, o orgulho com a ruína, a covardia com a opressão, o governo
negligente dos príncipes com a rebelião, e a rebelião com a carnificina.”
“Quanto a quem
foram os autores originais dos vários livros das Sagradas Escrituras, é coisa
que não foi tornada evidente por qualquer suficiente testemunho ou outra
história (que é a única prova em matéria de fato), nem pode sê-lo por quaisquer
argumentos da razão natural, pois a razão não serve para convencer da verdade
dos fatos, mas apenas da verdade das consequências.”
“E
consequentemente que é agora legítimo o soberano punir alguém que oponha o
espírito particular às leis, pois o rei ocupa o mesmo lugar no Estado que
Abraão ocupava em sua própria família.
Do mesmo deriva
também um terceiro ponto: que assim como ninguém, exceto Abraão em sua família,
também ninguém exceto o soberano num Estado cristão pode conhecer o que é, ou o
que não é a palavra de Deus. Pois Deus falou apenas a Abraão e só ele podia
saber o que Deus disse e interpretar isso para a família. E, portanto, também
aqueles que ocupam o lugar de Abraão num Estado são os únicos intérpretes
daquilo que Deus falou.”
“Mas aqui alguém
poderá perguntar se nesse tempo os pastores eram obrigados a viver de
contribuições voluntárias, como de esmolas. Pois quem (disse São Paulo, 1 Cor
9,7) vai para a guerra à sua própria custa? Quem alimenta o rebanho, e não bebe
o leite do rebanho? E também, “Não sabeis que os que ministram sobre coisas
sagradas vivem das coisas do templo, e que os que ajudam no altar partilham do
altar?”. Quer dizer, recebem parte do que é oferecido no altar, para seu
sustento. E conclui então: “E assim o Senhor determinou que os que pregam o
Evangelho vivam do Evangelho”. Desta passagem pode sem dúvida inferir-se que os
pastores da Igreja deviam ser sustentados por seus rebanhos, mas não competia
aos pastores determinar a quantidade ou a espécie de seus emolumentos, como
quem numa partilha decide seu próprio quinhão. Portanto, seus emolumentos
deviam necessariamente ser determinados pela gratidão e liberalidade de cada um
dos membros de seu rebanho, ou então pela congregação inteira. Mas não podia
ser pela congregação inteira, pois nessa época as decisões desta não eram leis.
Portanto, o sustento dos pastores, antes de os imperadores e soberanos civis o
determinarem por lei, não era mais do que a benevolência. Os que serviam no
altar viviam do que lhes era oferecido. E também os pastores podem aceitar o
que lhes é oferecido por seu rebanho, mas não podem exigir o que não lhes é
oferecido. A que juízes podiam recorrer, se não tinham tribunais? Ou, se entre
eles tinham árbitros, quem podia executar suas sentenças, visto que não tinham
poder para armar seus funcionários? Resta portanto apenas a congregação inteira
como podendo atribuir a quaisquer pastores da Igreja um sustento certo, e mesmo
isto somente no caso de seus decretos terem a força de leis (e não apenas de
cânones), leis essas que só poderiam ser feitas pelos imperadores, reis e
outros soberanos civis. O direito dos dízimos da lei de Moisés não podia ser
aplicado aos ministros do Evangelho desse tempo, porque Moisés e os Sumos
Sacerdotes eram os soberanos civis do povo, abaixo de Deus, cujo Reino entre os
judeus era presente, ao passo que o Reino de Deus pelo Cristo ainda está para
vir.”
“Portanto, todo
aquele que desejar sinceramente cumprir as ordens de Deus, ou que se arrepender
verdadeiramente de suas transgressões, ou que amar a Deus com todo o seu
coração, e ao próximo como a si mesmo, tem toda a obediência necessária à sua
entrada no reino de Deus, pois se Deus exigisse uma inocência perfeita não
haveria carne que se salvasse.”
“As leis de Deus,
portanto, nada mais são do que as leis de natureza, a principal das quais é que
não devemos violar a nossa fé, isto é, uma ordem para obedecer aos nossos
soberanos civis, que constituímos acima de nós por um pacto mútuo. E esta lei
de Deus que ordena a obediência à lei civil ordena por consequência a
obediência a todos os preceitos da Bíblia, a qual (como mostrei no capítulo
precedente) é a única lei naqueles lugares onde o soberano civil assim o
estabeleceu, e nos outros lugares é apenas conselho, que cada um, por sua conta
e risco, pode sem injustiça recusar obedecer.”
“A parte mais
escura do reino de Satanás é aquela que se encontra fora da Igreja de Deus,
isto é, entre aqueles que não acreditam em Jesus Cristo, mas não podemos dizer
que a Igreja goza portanto (como a terra de Goshen) de toda a luz necessária
para a realização da obra que Deus nos destinou. Como explicar que na
cristandade tenha sempre havido, quase desde os tempos dos apóstolos, tantas
lutas para se expulsarem uns aos outros de seus lugares, quer por meio de
guerra externa, quer por meio de guerra civil? Tanto estrebuchar a cada pequena
aspereza da própria fortuna, e a cada pequena eminência na dos outros homens? E
tanta diversidade na maneira de correr para o mesmo alvo, a felicidade, como se
não fosse noite entre nós, ou pelo menos neblina? Estamos portanto ainda nas
trevas.”
“Constitui também
vã e falsa filosofia dizer que o casamento repugna à castidade, ou continência,
e portanto, transformá-lo em vício moral, como o fazem aqueles que alegam
castidade e continência para negarem o casamento do clero. Pois confessam que
se trata apenas de uma constituição da Igreja que exige daquelas ordens
sagradas que continuamente servem o altar e administram a eucaristia uma
contínua abstinência de mulheres sob a alegação de contínua castidade,
continência e pureza. Portanto, chamam ao legítimo uso da esposa falta de
castidade e de continência, e assim fazem do casamento um pecado, ou pelo menos
uma coisa tão impura e suja que torna um homem impróprio para o altar. Se a lei
fosse feita porque o uso de mulheres é incontinência e contrário à castidade,
então todo o casamento seria vício. Se é porque se trata de uma coisa demasiado
impura e suja para um homem consagrado a Deus, muito mais outras ocupações
naturais, necessárias e diárias que todos os homens têm, tornariam os homens
impróprios para serem padres, porque são muito mais sujas.”
“As fadas, seja
qual for a nação onde habitem, só têm um rei universal, que alguns de nossos
poetas denominam rei Oberon, mas as Escrituras denominam Belzebu, príncipe dos
demônios. Do mesmo modo os eclesiásticos, seja qual for o domínio em que se
encontrem, só reconhecem um rei universal, o Papa.
Os eclesiásticos
são homens espirituais e padres fantasmagóricos. As fadas são espíritos e
fantasmas. As fadas e os fantasmas habitam as trevas, as solidões e os túmulos.
Os eclesiásticos caminham na obscuridade da doutrina, em mosteiros, igrejas e
claustros.
Os eclesiásticos
têm suas igrejas catedrais, as quais, seja qual for a vila onde são erguidas,
por virtude da água benta e de certos encantos denominados exorcismos, possuem
o poder de transformar essas vilas em cidades, isto é, em sedes do império.
Também as fadas têm seus castelos encantados e alguns fantasmas gigantescos que
dominam as regiões circunvizinhas.
As fadas não podem
ser presas nem levadas a responder pelo mal que fazem. Do mesmo modo os
eclesiásticos desaparecem dos tribunais da justiça civil.
Os eclesiásticos
tiram dos jovens o uso da razão por meio de certos encantos compostos de
metafísica e milagres e tradições e Escrituras deturpadas, pelo que estes ficam
incapazes seja para o que for, exceto para executarem aquilo que lhes for
ordenado. Do mesmo modo as fadas, segundo se diz, tiram as crianças de seus
berços e transformam-nas em loucos naturais, a que o vulgo chama duendes e que
têm tendência para praticar o mal.
As velhas
contadeiras de histórias não especificaram em que oficina ou laboratório as
fadas fabricam seus encantamentos, mas os laboratórios do clero são bem
conhecidos como sendo as Universidades que receberam sua disciplina da
autoridade pontifícia.
Quando alguém
desagrada às fadas, diz-se que estas enviam seus duendes para beliscá-lo. Os
eclesiásticos, quando algum Estado civil lhes desagrada, também mandam seus
duendes, isto é, súditos supersticiosos e encantados para beliscar em seus
príncipes, pregando a sedição, ou um príncipe encantado com promessas para
beliscar outro.
As fadas não se
casam, mas entre elas há incubi, que copulam com gente de carne e osso. Os
padres também não se casam.
Os eclesiásticos
tiram a nata da terra por meio de donativos de homens ignorantes que têm medo
deles e por meio de dízimos; o mesmo acontece na fábula das fadas, segundo a
qual elas entram nas leiterias e se banqueteiam com a nata que retiram do
leite.
A história também
não conta que tipo de dinheiro corre no reino das fadas. Mas os eclesiásticos,
naquilo que recebem, aceitam a mesma moeda que nós, muito embora, quando têm de
fazer algum pagamento, o façam com canonizações, indulgências e missas.
A estas e outras
semelhanças entre o Papado e o reino das fadas se pode acrescentar mais uma,
que assim como as fadas só têm existência na fantasia de gente ignorante, que
se alimenta das tradições contadas pelas velhas ou pelos antigos poetas, também
o poder espiritual do Papa (fora dos limites de seu próprio domínio civil)
consiste apenas no medo, em que se encontra o povo seduzido, de ser
excomungado, por ouvir os falsos milagres, as falsas tradições e as falsas
interpretações das Escrituras.”
“Contudo penso que
nada é devido à antiguidade em si, pois se reverenciamos a época, a presente é
a mais antiga. Se se tratar da antiguidade do autor, não tenho certeza de que
aqueles a quem dão tal honra fossem mais antigos quando escreveram do que eu
que estou escrevendo. Mas se atentarmos bem, o louvor dos autores antigos
resulta, não do respeito dos mortos, mas sim da competição e da inveja mútua
dos vivos.”
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