Editora: Planeta
ISBN: 978-85-7665-320-2
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Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 368
Sinopse: Ver Parte
I
“Os escravos a bordo dos navios negreiros eram
considerados uma carga como outra qualquer. Um exemplo. No dia 6 de setembro de
1781, o navio inglês Zong, de Liverpool, saiu da África rumo à Jamaica com
excesso de escravos a bordo. Em 29 de novembro, no meio do Atlântico, sessenta negros
já haviam morrido por doenças, falta de água e comida. “Acorrentados aos pares,
perna direita com perna esquerda e mão direita com mão esquerda, cada escravo tinha
menos espaço do que um homem dentro de um caixão”, escreveu F. O. Shyllon, autor
de Black slaves in Britain. Temendo perder toda a carga antes de chegar ao
destino, o capitão Luke Collingwood decidiu jogar ao mar todos os escravos doentes
ou desnutridos. Ao longo de três dias, 133 negros foram atirados da amurada, vivos.
Só um conseguiu escapar e subir novamente a bordo. O dono do navio, James Gregson,
pediu indenização à seguradora pela carga perdida. A empresa de seguros, em Londres,
recorreu à Justiça. Pelas leis inglesas, se o negro morresse a bordo, por maus-tratos,
fome ou sede, a responsabilidade seria do capitão do navio. Se caísse no mar o seguro
cobriria. Nesse caso, a Justiça decidiu que a seguradora tinha razão. O capitão
era culpado pelas mortes. O caso abriu os olhos dos britânicos para a crueldade
do tráfico negreiro e se tornou um ícone do movimento abolicionista no mundo todo.”
“Escravos eram um patrimônio contabilizável, um
ativo a ser explorado ao máximo em busca de retorno. No Rio de Janeiro, toda pessoa
com alguma projeção social tinha negros cativos. Relato de 1782 do viajante espanhol
Juan Francisco de Aguirre registra que os trinta monges do Convento de São Bento,
então o mais rico do Brasil, viviam dos rendimentos proporcionados por “quatro engenhos
de açúcar, que empregam 1200 escravos, e de algumas casas de aluguel espalhada pela
cidade”. Segundo Aguirre, também os monges beneditinos e os padres jesuítas possuíam
escravos nessa época.
Alguns proprietários tinham mais escravos do que
o necessário para suas atividades. Os cativos excedentes eram alugados a terceiros.
Dessa forma, seus donos conseguiam um ganho extra. Havia até corretores especializados
em intermediar esse tipo de negócio – num sistema parecido com o funcionamento atual
das imobiliárias e locadoras de máquinas e automóveis. O valor do aluguel era inteiramente
repassado ao dono do escravo, sem que o cativo participasse do ganho. “Todos os
que conseguem adquirir uma meia dúzia de escravos passam a viver na mais completa
ociosidade – explorando os rendimentos do trabalho dos seus negros – e a caminhar
pela rua solenemente, com grande empáfia”, descreveu o inglês James Tuckey, em 1803.
“Assim, qualquer pessoa com fumaças de nobreza podia alcançar proveitos dos trabalhos
mais humildes sem degradar-se e sem calejar as mãos”, observou o historiador Sérgio
Buarque de Holanda.”
“Os museus coloniais estão repletos de instrumentos
pavorosos de punição e suplício dos escravos. Havia três categorias de castigo no
Brasil, segundo a classificação feita em 1938 pelo historiador Artur Ramos. A primeira
era o dos instrumentos de captura e contenção. Incluíam correntes e colares de ferro,
algemas, machos e peias (para pés e mãos), além do tronco – um pedaço de madeira
dividido em duas metades com buracos para imobilizar a cabeça, os pés e as mãos
– e o viramundo, espécie de tronco menor, de ferro. A máscara de folha de flandres
era usada para impedir o escravo de comer cana, rapadura ou engolir pepitas e pedras
preciosas. Os anjinhos – anéis de ferro que comprimiam os polegares – eram usados
para obter confissões. Nas surras, usava-se a palmatória ou o bacalhau, chicote
de cabo curto, de ouro ou madeira com cinco pontas de couro retorcido. Ferros quentes
com as iniciais do proprietário ou com a letra F – de fugitivo – também eram utilizados,
além do libambo, argola de ferro presa ao pescoço da qual saía uma haste longa,
também de ferro, voltada para cima, até o topo da cabeça do escravo, com ou sem
chocalhos nas pontas.
Na prática, três instrumentos eram usados com
regularidade: o chicote, o tronco e os grilhões. A punição mais comum era o açoite
do escravo, nas costas ou nas nádegas, quando fugia, cometia algum crime ou alguma
falta grave no trabalho. No começo do século XVII, o frei italiano Jorge Benci recomendava
que as chibatadas não ultrapassassem o número de quarenta por dia, para não mutilar
o escravo. Mas há relatos de viajantes e cronistas com referência a duzentos, trezentos
ou até seiscentos açoites. Quantidade tão absurda de chibatadas deixava as costas
ou as nádegas do escravo em carne viva. Numa época em que não havia antibióticos,
o risco de morte por gangrena ou infecção generalizada era grande. Por isso, banhava-se
o escravo com uma mistura de sal, vinagre ou pimenta malagueta – numa tentativa
de evitar a infecção das feridas.
O pintor Jean Baptiste Debret conta que, no Rio
de Janeiro, escravos acusados de faltas graves, como fuga ou roubo, eram punidos
com cinquenta a duzentas chibatadas. Seu dono tinha de comparecer ao calabouço munido
de autorização do intendente de polícia na qual deveriam constar “o nome do delinquente
e o número de chibatadas que deverá receber”. O carrasco, encarregado de executar
o castigo, recebia uma pataca por cem chibatadas aplicadas. Pataca era uma antiga
moeda de prata no valor de 320 réis. “Todos os dias, entre 9 e 10 horas da manhã,
pode-se ver a fila de negros que devem ser punidos”, escreveu Debret. “Eles vão
presos pelo braço, dois em dois, e conduzidos sob escolta da polícia até o local
designado para o castigo. Para esse fim existem, em todas as praças mais frequentadas
da cidade, pelourinhos erguido com o intuito de exibir os castigados. [...] Depois
de desamarrado (do pelourinho), o negro é deitado no chão, de cabeça para baixo,
a fim de evitar-se a perda de sangue. A chaga escondida sob a fralda da camisa escapa
assim à picada do enxame de moscas que logo procura esse horrível repasto. Finalmente,
terminada a execução, os condenados ajustam a suas calças, e todos, dois por dois,
voltam para a prisão com a mesma escolta que os trouxe. [...] De volta à prisão,
a vítima é submetida a uma segunda prova, não menos dolorosa: a lavagem das chagas
com vinagre e pimenta, operação sanitária destinada a evitar a infecção do ferimento.”
Uma diferença entre a escravidão urbana e a do
campo era o regime de castigos. Nas fazendas e minas de ouro e diamante, os escravos
eram punidos pelo feitor ou diretamente pelas mãos dos seus proprietários. Nas cidades,
essa tarefa era delegada à polícia. O proprietário que não quisesse castigar seu
escravo podia recorrer aos serviços da polícia, mediante pagamento. Os negros eram
punidos em prisões ou nos diversos pelourinhos espalhados pelas cidades. O cônsul
inglês James Henderson testemunhou uma dessas punições no Rio de Janeiro. O seu
relato:
O cavalheiro obteve autorização para que um de seus escravos fugitivos fosse
punido com duzentas chibatadas. Depois que seu nome foi chamado várias vezes, o
escravo apareceu na porta da prisão, onde os negros ficam confinados de forma promíscua.
Uma corda foi colocada ao redor do seu pescoço, enquanto ele era levado para junto
de um grande poste erguido no meio da praça, ao redor do qual seus braços e pernas
foram atados. Uma corda imobilizava seu corpo de tal maneira que tornava qualquer
movimento impossível. O carrasco, um negro degredado, começou a trabalhar de forma
quase mecânica e a cada golpe, que parecia arrancar um pedaço da carne do escravo,
ele assoviava de uma forma particular. As chibatadas foram repetidas sempre no mesmo
lugar e o negro suportou as primeiras cem de forma determinada. Ao receber a primeira
e a segunda chibatada, ele gritou “Jesus”, mas em seguida pendeu sua cabeça contra
um dos lados do poste, sem dizer mais uma única sílaba ou pedir clemência.”
“Outra contribuição fundamental para o entendimento
do Brasil no período foi dada por Henry Koster. Nascido em Portugal, numa família
inglesa, Koster chegou no final de 1809 e durante onze anos percorreu as cidades
e sertões do Nordeste. Morreu em 1820, no Recife, onde foi sepultado. Seu livro,
Travels in Brazil, publicado em Londres em 1816, foi traduzido para o português
pelo mais famoso folclorista brasileiro, o potiguar Luís da Câmara Cascudo. “O depoimento
de Koster é o primeiro, cronologicamente, sobre a psicologia, a etnografia tradicional
do povo nordestino, o sertanejo no seu cenário”, escreveu Câmara Cascudo. “Antes
dele, nenhum estrangeiro atravessara o sertão do Nordeste, do Recife a Fortaleza,
em época de seca, viajando em comboio, bebendo água de borracha, comendo carne assada,
dormindo debaixo das árvores, tão integralmente adaptado ao mundo que escolhera
para viver.”
Koster adorava conviver com o povo nordestino
e participar de suas festas e celebrações religiosas: “Não perdi festa alguma”,
orgulhou-se nos seus diários. (..)Ao viajar pelo interior do Rio Grande do Norte,
ficou impressionado com o isolamento dos sertanejos. Ali, o único contato com a
civilização eram os padres, que percorriam a região celebrando missas, casamentos
e batizados em troca de oferendas e contribuições dos moradores.
“Certos padres obtêm licença do bispo de Pernambuco
e viajam nestes lugares com um altar portátil, construído para esse fim, conduzido
por um cavalo, assim como todos os objetos para as missas”, escreveu Koster. “Esses
padres, no decurso de um ano, ganham de 150 a 200 libras esterlinas, renda considerável
para o Brasil, mas dificilmente conseguida se pensarmos nos sofrimentos e privações
que foram obrigados a suportar. Eles param e erguem o altar onde existe um certo
número de pessoas que podem pagar para ouvir a missa. O ofício é dito as mais das
vezes por três ou quatro xelins, mas quando há um homem rico que tem o orgulho de
possuir um sacerdote, ou é muito devoto, dá oito ou dez mil réis, duas ou três libras
esterlinas, e há quem chegue a pagar cem mil réis, o que é raro. Também presenteiam
às vezes o sacerdote com um boi, ou um ou dois cavalos.”
Koster deixou ainda uma descrição detalhada do
modo de vida no interior nordestino. “Os sertanejos são muito ciumentos e há dez
vezes mais mortes por este motivo do que por qualquer outro”, relatou. “Essa gente
é vingativa. As ofensas muito dificilmente são perdoadas e, na falta de lei, cada
um exerce a justiça pelas suas próprias mãos. [...] O roubo é pouco conhecido. A
terra, nos bons anos, é toda fértil, impossibilitando a necessidade que justificaria
a tentação criminosa, e nas más colheitas todos sofrem igualmente a penúria. [...]
São extremamente ignorantes e poucos possuem os mais modestos rudimentos de instrução.
[...] Os sertanejos são corajosos, sinceros, generosos e hospitaleiros. Quando se
lhes pede um favor, não o sabem negar. Entrando em negócios de gado, ou qualquer
outro, o caráter muda. Procurarão enganar-vos, olhando o sucesso como prova de habilidade,
digna de elogio.”
Existem algumas imagens recorrentes nos relatos
dos inúmeros estrangeiros que visitaram o Brasil no começo do século XIX. A primeira
é a de uma colônia preguiçosa e descuidada, sem vocação para o trabalho, viciada
por mais de três séculos de produção extrativista. O inglês Thomas Lindley, que
percorreu o litoral próximo a Porto Seguro, na Bahia, ficou surpreso ao constatar
que a abundância de recursos naturais do Brasil não resultava em riqueza, desenvolvimento
ou conforto material para os brasileiros. “Num país que, com o cultivo e a indústria,
chegaria à fartura com as benções excessivas da natureza, a maior parte do povo
sobrevive em necessidade e pobreza, enquanto mesmo a minoria restante não conhece
os desfrutes que fazem a vida desejável”, escreveu.” (...)
Outra imagem muito frequente nesses relatos dos
viajantes é a do analfabetismo, da falta de cultura e instrução. “O Brasil não é
lugar de literatura”, afirmou James Henderson “Na verdade, a sua total ausência
é marcada pela proibição geral de livros e a falta dos mais elementares meios pelos
quais seus habitantes possam tomar conhecimento do mundo e do que se passa nele.
Os habitantes estão mergulhados em grande ignorância e sua consequência natural:
o orgulho.” James Henderson, que saiu de Londres em 11 de março de 1819 a bordo
do navio Echo, é um dos viajantes tardios do período de D. João VI no Brasil.
Seus diários de viagem incluem um mapa do país e oito gravuras feitas em pedra,
retratando paisagens e tipos brasileiros. “Neste país de analfabetismo, não se encontra
ninguém que tenha intimidade com a noção de ciência”, observou o botânico inglês
William John Burchell, que percorreu o Brasil alguns anos mais tarde, entre 1825
e 1830, quando a corte já tinha voltado para Portugal. “Aqui, a natureza tem feito
muita coisa – o homem, nada. Aqui, a natureza oferece inumeráveis temas de estudo
e admiração, enquanto os homens continuam a vegetar na escuridão da ignorância e
na extrema pobreza, consequência apenas da preguiça.”
“Todos os dias no final da tarde, D. João VI saía
para passear, às vezes dirigindo ele próprio uma pequena carruagem puxada por mulas.
O historiador Tobias Monteiro acrescenta um detalhe pitoresco nesses passeios: o
ritual que envolvia as necessidades fisiológicas do rei. Segundo ele, à frente da
comitiva ia um moço de cavalariça, a que o povo chamava de “toma largas” – talvez
porque abria espaço à passagem do rei ou por usar vestimentas de abas enormes. Esse
vassalo montava uma besta, de cuja sela pendiam dois alforjes. Num ia a merenda
de D. João VI. No outro, um penico e uma armação composta de três peças que funcionava
como um vaso sanitário portátil, para ser usado em campo aberto. A certa altura
do passeio, o rei murmurava alguma ordem, o moço descia da mula e montava o equipamento.
“Então”, acrescenta o historiador, “o rei descia da carruagem e dele aproximava-se
o camarista, que lhe desabotoava e arriava os calções. Diante dos oficiais e outras
pessoas da comitiva, até da princesa Maria Teresa, sua filha predileta, quando esta
o acompanhava, sentava-se beatamente, como se ninguém lhe estivesse em torno. Satisfeito
o seu desejo, vinha um criado particular limpá-lo e de novo chegava o camarista,
para ajudá-lo a se vestir.”
“Entre 1807 e 1814 (período da ocupação francesa),
Portugal perdeu meio milhão de habitantes. Um sexto da população pereceu de fome
ou nos campos de batalha ou simplesmente fugiu do país. Nunca, em toda sua história,
o país havia perdido um número tão grande de habitantes em tão pouco tempo. Em maio
de 1808, o embaixador de Portugal em Londres, D. Domingos de Sousa Coutinho, escrevia
a D. João no Rio de Janeiro dizendo que o número de refugiados portugueses na Inglaterra
era enorme. “Tem vindo toda a qualidade de gente, em número tal que eu não sei como
lhe acudir”, contou o diplomata. “A maior parte vem carente de tudo, quase nus.”
Como a corte portuguesa estava falida, D. Domingos era obrigado a pedir ajuda financeira
ao governo inglês para socorrer todos esses refugiados. Enquanto isso, em Portugal,
os mais ricos pagavam propinas ao próprio Junot em troca da autorização para embarcar
nos navios que partiam de Lisboa.
“Portugal ficou num estado lamentável de penúria”
escreveu o historiador inglês Sir Charles Oman.
Com seus portos bloqueados, era impossível vender vinhos para seus antigos
compradores ingleses ou manufaturas para os colonos brasileiros. O desemprego tomou
conta de Lisboa. Famintos, os moradores migraram em bando para o interior do país,
em busca do que comer. A capital ficou deserta. Nas ruas não se via nenhum veículo
ou pedestre, com exceção de 20 000 pessoas reduzidas à condição de mendigas, tentando
viver de esmolas.”
“As semanas que antecederam o retorno do rei a
Portugal foram tensas e repletas de aflição. Os ecos da Revolução do Porto haviam
chegado ao Brasil em meados de outubro do ano anterior e bastaram algumas semanas
para inflamar os ânimos dos brasileiros e portugueses que cercavam a corte. Na manhã
de 26 de fevereiro, uma multidão aglomerada no Largo do Rocio, atual Praça Tiradentes,
exigia a presença do rei no centro do Rio de Janeiro e a assinatura da Constituição
liberal. Ao ouvir as notícias, a alguns quilômetros dali, D. João ficou muito assustado
e mandou fechar todas as janelas no Palácio São Cristóvão, como fazia em noites
de trovoadas. “Como devo tratar os revoltosos?”, perguntou ao conde de Palmeia,
ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. “Infelizmente, senhor, não há que
deliberar; é preciso fazer tudo quanto vos pedirem”, respondeu o conde.
Pouco depois chegou o príncipe D. Pedro, que passara
a madrugada em conversas com os rebeldes. Vinha buscar o rei, como exigia a multidão.
D. João ficou apavorado com a lembrança de uma cena da ainda recente Revolução Francesa.
Foi a noite em que milhares de pessoas cercaram o Palácio de Versailles, capturaram
o rei Luís XVI e a rainha Maria Antonieta e os levaram até Paris, onde, tempos mais
tarde e após uma fracassada tentativa de fuga, seriam decapitados na guilhotina.
Apesar do medo que o episódio lhe inspirava, D. João embarcou na carruagem que o
aguardava e seguiu para o centro da cidade. A caminho, no entanto, percebeu que,
em lugar de ofensas e gritos de protestos, a multidão aclamava seu nome. Ao contrário
do odiado Luís XVI, o rei do Brasil era amado e querido pelo povo carioca. Depois
de uma viagem de meia hora, apareceu trêmulo na sacada do Paço Real. Mal conseguiu
balbuciar as palavras que lhe ditaram e que tiveram de ser repetidas por D. Pedro
em alta voz, para delírio da multidão. D. João VI, o último rei absoluto de Portugal
e do Brasil, aceitava, sim, jurar e assinar a Constituição, que lhe tirava parte
de seus poderes.
A euforia de 26 de fevereiro, porém, logo deu
lugar a novas agitações. Os líderes mais radicais achavam as reformas constitucionais
insuficientes. Queriam que o rei cedesse mais. Por isso, uma segunda manifestação
popular foi marcada para o dia 21 de abril, aniversário do enforcamento de Tiradentes.
Aos gritos de “aqui quem manda é o povo” e “haja revolução”, a multidão reunida
na então Praça do Comércio exigia que D. João jurasse a Constituição espanhola,
documento mais radical do que o primeiro, adotado na cidade de Cadiz em 1812, durante
os levantes da Guerra Peninsular, e que havia se tornado uma inspiração para os
revolucionários portugueses em 1820. Queria também que o rei permanecesse no Brasil,
contrariando a decisão das Cortes portuguesas. Desta vez, a manifestação terminou
em tragédia, violentamente reprimida pelas tropas comandadas pelo príncipe D. Pedro.
Trinta pessoas morreram e outras dezenas ficaram feridas. No dia seguinte, a fachada
do elegante prédio desenhado pelo francês Grandjean de Montigny na Praça do Comércio
amanheceu pichada com os dizeres “Açougue dos Bragança”, numa referência à dinastia
portuguesa.
D. João partiu do Rio de Janeiro em 26 de abril,
cinco dias depois do massacre da Praça do Comércio. Sua comitiva incluía cerca de
4000 portugueses – um terço do total que o havia acompanhado na fuga para o Rio
de Janeiro, treze anos antes. Conta-se que o rei embarcou chorando de emoção. Se
dependesse apenas de sua vontade, ficaria no Brasil para sempre. Porém, uma vez
mais, aquele rei gordo, bonachão, sossegado, solitário, indeciso e, muitas vezes,
medroso, curvava-se ao peso das responsabilidades que a História lhe impunha.”
“No caso de D. João VI, seu legado ainda é motivo
de controvérsia. Alguns atribuem ao seu caráter tímido e medroso a derrocada final
da monarquia e do próprio império colonial português. Outros, no entanto, o consideram
um estrategista político que, sem recorrer às armas, enfrentou com sucesso os exércitos
de Napoleão e conseguiu não só preservar os interesses de Portugal como deixar um
Brasil maior e melhor do que havia encontrado ao chegar ao Rio de Janeiro, em 1808.”
“A preservação da integridade territorial brasileira
foi, portanto, uma grande conquista de D. João VI. Sem a mudança da corte portuguesa,
os conflitos regionais teriam se aprofundado, a tal ponto que a separação entre
as províncias seria quase inevitável. “Essas colônias estariam de fato perdidas
para a metrópole se D. João não migrasse para o Brasil”, afirmou em suas memórias
o almirante Sir Sidney Smith, comandante da esquadra que trouxe a corte para o Rio
de Janeiro. “Os ingleses iriam ocupá-las sob pretexto de as defender e, se isto
não acontecesse, a independência da América portuguesa se teria efetuado ao mesmo
tempo e com muito menos resistência do que a da América espanhola.”
Graças a D. João VI, o Brasil se manteve como
um país de dimensões continentais, que hoje é o maior herdeiro da língua e da cultura
portuguesas. “D. João VI veio criar e realmente fundou na América um império, pois
merece bem assim ser classificado o ter dado foros de nacionalidade a uma imensa
colônia amorfa”, escreveu Oliveira Lima. Ironicamente, esse legado não seria desfrutado
por D. João ou pela metrópole portuguesa. “Ele próprio regressava menos rei do que
chegou”, acrescentou Oliveira Lima. “Deixava contudo o Brasil maior do que o encontrara.”
Em outras palavras, ao mudar o Brasil, D. João VI o perdeu para sempre. O resultado
foi a Independência, em 1822. “As portas fechadas durante trezentos anos estavam
abertas de repente, e a colônia ficou fora do controle da metrópole”, assinalou
o historiador Alan K. Manchester. “O contato com o mundo exterior despertou a colônia
entorpecida: introduziram-se nova gente, novo capital e novas ideias. Como consequência,
os brasileiros acharam que seu destino era maior e mais importante”.
Ao contrário do que se imagina, porém, a independência
brasileira resultou menos do desejo de separação dos brasileiros do que das divergências
entre os próprios portugueses. O historiador Sérgio Buarque de Holanda a definiu
como “uma guerra civil entre portugueses”, desencadeada pela Revolução do Porto,
e não por um processo de mobilização da colônia na defesa de interesses comuns contra
a dominação da metrópole. “A Revolução de 1820 foi um movimento anti-brasileiro,
uma explosão de ressentimento, de orgulho ferido”, escreveu o também historiador
José Honório Rodrigues. O resultado, segundo ele, foi oposto ao esperado pelas Cortes
porque “fortificaram o Brasil, sua consciência, seu sentimento nacional, sua unidade,
sua indivisibilidade”.”
“A solução proposta (para conquistar a independência)
– que, afinal, triunfou – era manter a monarquia centralizada e com poderes fortes,
capaz de impedir insurreições populares e movimentos separatistas. “O Brasil, contando
de muitas províncias grandes, mui distantes e despovoadas, precisa para se aumentar,
visto estar ainda na infância, de um centro de poder, de onde as providências se
façam com energia e a força com prontidão”, argumentava um panfleto anônimo publicado
em Lisboa em 1822. “Ora, não há governo mais enérgico que o monárquico. [...] O
caráter geral da Nação exclui claramente a forma republicana.”
Sentimentos dessa natureza fizeram com que o medo
funcionasse como uma força política catalisadora, mantendo o país unido sob a Coroa
no momento em que os regionalistas e interesses divergentes poderiam ter dividido
a antiga colônia portuguesa. “Consumada a separação política”, observou historiadora
Maria Odila Leite da Silva Dias, “não pareciam brilhantes para os homens da geração
da independência as perspectivas da colônia para transformar-se em nação. [...]
Eram bem conscientes da insegurança das tensões internas, sociais e raciais, da
fragmentação, dos regionalismos, da falta de unidade que não dera margem ao aparecimento
de uma consciência nacional capaz de dar força a um movimento revolucionário disposto
a reconstruir a sociedade”.
O que se viu em 1822 foi, portanto, uma ruptura
sob controle, ameaçada pelas divergências internas e pelo oceano de pobreza e marginalização
criado por três séculos de escravidão e exploração colonial. Ao contrário dos Estados
Unidos, onde a independência teve como motor a república e a luta pelos direitos
civis e pela participação popular, no Brasil o sonho republicano estava restrito
a algumas parcelas minoritárias da população. Quando apareceu nas rebeliões regionais,
foi imediatamente reprimido pela Coroa. Por isso, o caminho escolhido em 1822 não
era republicano nem genuinamente revolucionário. Era apenas conciliatório. Em vez
de enfrentadas e resolvidas, as antigas tensões sociais foram todas adiadas e amortecidas.”
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