quinta-feira, 8 de abril de 2021

1808: como uma rainha louca, um príncipe medroso e uma corte corrupta enganaram Napoleão e mudaram a história de Portugal e do Brasil (Parte II), de Laurentino Gomes

Editora: Planeta

ISBN: 978-85-7665-320-2

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Opinião: ★★☆☆☆

Páginas: 368

Sinopse: Ver Parte I



“Os escravos a bordo dos navios negreiros eram considerados uma carga como outra qualquer. Um exemplo. No dia 6 de setembro de 1781, o navio inglês Zong, de Liverpool, saiu da África rumo à Jamaica com excesso de escravos a bordo. Em 29 de novembro, no meio do Atlântico, sessenta negros já haviam morrido por doenças, falta de água e comida. “Acorrentados aos pares, perna direita com perna esquerda e mão direita com mão esquerda, cada escravo tinha menos espaço do que um homem dentro de um caixão”, escreveu F. O. Shyllon, autor de Black slaves in Britain. Temendo perder toda a carga antes de chegar ao destino, o capitão Luke Collingwood decidiu jogar ao mar todos os escravos doentes ou desnutridos. Ao longo de três dias, 133 negros foram atirados da amurada, vivos. Só um conseguiu escapar e subir novamente a bordo. O dono do navio, James Gregson, pediu indenização à seguradora pela carga perdida. A empresa de seguros, em Londres, recorreu à Justiça. Pelas leis inglesas, se o negro morresse a bordo, por maus-tratos, fome ou sede, a responsabilidade seria do capitão do navio. Se caísse no mar o seguro cobriria. Nesse caso, a Justiça decidiu que a seguradora tinha razão. O capitão era culpado pelas mortes. O caso abriu os olhos dos britânicos para a crueldade do tráfico negreiro e se tornou um ícone do movimento abolicionista no mundo todo.”

 

 

“Escravos eram um patrimônio contabilizável, um ativo a ser explorado ao máximo em busca de retorno. No Rio de Janeiro, toda pessoa com alguma projeção social tinha negros cativos. Relato de 1782 do viajante espanhol Juan Francisco de Aguirre registra que os trinta monges do Convento de São Bento, então o mais rico do Brasil, viviam dos rendimentos proporcionados por “quatro engenhos de açúcar, que empregam 1200 escravos, e de algumas casas de aluguel espalhada pela cidade”. Segundo Aguirre, também os monges beneditinos e os padres jesuítas possuíam escravos nessa época.

Alguns proprietários tinham mais escravos do que o necessário para suas atividades. Os cativos excedentes eram alugados a terceiros. Dessa forma, seus donos conseguiam um ganho extra. Havia até corretores especializados em intermediar esse tipo de negócio – num sistema parecido com o funcionamento atual das imobiliárias e locadoras de máquinas e automóveis. O valor do aluguel era inteiramente repassado ao dono do escravo, sem que o cativo participasse do ganho. “Todos os que conseguem adquirir uma meia dúzia de escravos passam a viver na mais completa ociosidade – explorando os rendimentos do trabalho dos seus negros – e a caminhar pela rua solenemente, com grande empáfia”, descreveu o inglês James Tuckey, em 1803. “Assim, qualquer pessoa com fumaças de nobreza podia alcançar proveitos dos trabalhos mais humildes sem degradar-se e sem calejar as mãos”, observou o historiador Sérgio Buarque de Holanda.”

 

 

“Os museus coloniais estão repletos de instrumentos pavorosos de punição e suplício dos escravos. Havia três categorias de castigo no Brasil, segundo a classificação feita em 1938 pelo historiador Artur Ramos. A primeira era o dos instrumentos de captura e contenção. Incluíam correntes e colares de ferro, algemas, machos e peias (para pés e mãos), além do tronco – um pedaço de madeira dividido em duas metades com buracos para imobilizar a cabeça, os pés e as mãos – e o viramundo, espécie de tronco menor, de ferro. A máscara de folha de flandres era usada para impedir o escravo de comer cana, rapadura ou engolir pepitas e pedras preciosas. Os anjinhos – anéis de ferro que comprimiam os polegares – eram usados para obter confissões. Nas surras, usava-se a palmatória ou o bacalhau, chicote de cabo curto, de ouro ou madeira com cinco pontas de couro retorcido. Ferros quentes com as iniciais do proprietário ou com a letra F – de fugitivo – também eram utilizados, além do libambo, argola de ferro presa ao pescoço da qual saía uma haste longa, também de ferro, voltada para cima, até o topo da cabeça do escravo, com ou sem chocalhos nas pontas.

Na prática, três instrumentos eram usados com regularidade: o chicote, o tronco e os grilhões. A punição mais comum era o açoite do escravo, nas costas ou nas nádegas, quando fugia, cometia algum crime ou alguma falta grave no trabalho. No começo do século XVII, o frei italiano Jorge Benci recomendava que as chibatadas não ultrapassassem o número de quarenta por dia, para não mutilar o escravo. Mas há relatos de viajantes e cronistas com referência a duzentos, trezentos ou até seiscentos açoites. Quantidade tão absurda de chibatadas deixava as costas ou as nádegas do escravo em carne viva. Numa época em que não havia antibióticos, o risco de morte por gangrena ou infecção generalizada era grande. Por isso, banhava-se o escravo com uma mistura de sal, vinagre ou pimenta malagueta – numa tentativa de evitar a infecção das feridas.

O pintor Jean Baptiste Debret conta que, no Rio de Janeiro, escravos acusados de faltas graves, como fuga ou roubo, eram punidos com cinquenta a duzentas chibatadas. Seu dono tinha de comparecer ao calabouço munido de autorização do intendente de polícia na qual deveriam constar “o nome do delinquente e o número de chibatadas que deverá receber”. O carrasco, encarregado de executar o castigo, recebia uma pataca por cem chibatadas aplicadas. Pataca era uma antiga moeda de prata no valor de 320 réis. “Todos os dias, entre 9 e 10 horas da manhã, pode-se ver a fila de negros que devem ser punidos”, escreveu Debret. “Eles vão presos pelo braço, dois em dois, e conduzidos sob escolta da polícia até o local designado para o castigo. Para esse fim existem, em todas as praças mais frequentadas da cidade, pelourinhos erguido com o intuito de exibir os castigados. [...] Depois de desamarrado (do pelourinho), o negro é deitado no chão, de cabeça para baixo, a fim de evitar-se a perda de sangue. A chaga escondida sob a fralda da camisa escapa assim à picada do enxame de moscas que logo procura esse horrível repasto. Finalmente, terminada a execução, os condenados ajustam a suas calças, e todos, dois por dois, voltam para a prisão com a mesma escolta que os trouxe. [...] De volta à prisão, a vítima é submetida a uma segunda prova, não menos dolorosa: a lavagem das chagas com vinagre e pimenta, operação sanitária destinada a evitar a infecção do ferimento.”

Uma diferença entre a escravidão urbana e a do campo era o regime de castigos. Nas fazendas e minas de ouro e diamante, os escravos eram punidos pelo feitor ou diretamente pelas mãos dos seus proprietários. Nas cidades, essa tarefa era delegada à polícia. O proprietário que não quisesse castigar seu escravo podia recorrer aos serviços da polícia, mediante pagamento. Os negros eram punidos em prisões ou nos diversos pelourinhos espalhados pelas cidades. O cônsul inglês James Henderson testemunhou uma dessas punições no Rio de Janeiro. O seu relato:

O cavalheiro obteve autorização para que um de seus escravos fugitivos fosse punido com duzentas chibatadas. Depois que seu nome foi chamado várias vezes, o escravo apareceu na porta da prisão, onde os negros ficam confinados de forma promíscua. Uma corda foi colocada ao redor do seu pescoço, enquanto ele era levado para junto de um grande poste erguido no meio da praça, ao redor do qual seus braços e pernas foram atados. Uma corda imobilizava seu corpo de tal maneira que tornava qualquer movimento impossível. O carrasco, um negro degredado, começou a trabalhar de forma quase mecânica e a cada golpe, que parecia arrancar um pedaço da carne do escravo, ele assoviava de uma forma particular. As chibatadas foram repetidas sempre no mesmo lugar e o negro suportou as primeiras cem de forma determinada. Ao receber a primeira e a segunda chibatada, ele gritou “Jesus”, mas em seguida pendeu sua cabeça contra um dos lados do poste, sem dizer mais uma única sílaba ou pedir clemência.”

 

 

“Outra contribuição fundamental para o entendimento do Brasil no período foi dada por Henry Koster. Nascido em Portugal, numa família inglesa, Koster chegou no final de 1809 e durante onze anos percorreu as cidades e sertões do Nordeste. Morreu em 1820, no Recife, onde foi sepultado. Seu livro, Travels in Brazil, publicado em Londres em 1816, foi traduzido para o português pelo mais famoso folclorista brasileiro, o potiguar Luís da Câmara Cascudo. “O depoimento de Koster é o primeiro, cronologicamente, sobre a psicologia, a etnografia tradicional do povo nordestino, o sertanejo no seu cenário”, escreveu Câmara Cascudo. “Antes dele, nenhum estrangeiro atravessara o sertão do Nordeste, do Recife a Fortaleza, em época de seca, viajando em comboio, bebendo água de borracha, comendo carne assada, dormindo debaixo das árvores, tão integralmente adaptado ao mundo que escolhera para viver.”

Koster adorava conviver com o povo nordestino e participar de suas festas e celebrações religiosas: “Não perdi festa alguma”, orgulhou-se nos seus diários. (..)Ao viajar pelo interior do Rio Grande do Norte, ficou impressionado com o isolamento dos sertanejos. Ali, o único contato com a civilização eram os padres, que percorriam a região celebrando missas, casamentos e batizados em troca de oferendas e contribuições dos moradores.

“Certos padres obtêm licença do bispo de Pernambuco e viajam nestes lugares com um altar portátil, construído para esse fim, conduzido por um cavalo, assim como todos os objetos para as missas”, escreveu Koster. “Esses padres, no decurso de um ano, ganham de 150 a 200 libras esterlinas, renda considerável para o Brasil, mas dificilmente conseguida se pensarmos nos sofrimentos e privações que foram obrigados a suportar. Eles param e erguem o altar onde existe um certo número de pessoas que podem pagar para ouvir a missa. O ofício é dito as mais das vezes por três ou quatro xelins, mas quando há um homem rico que tem o orgulho de possuir um sacerdote, ou é muito devoto, dá oito ou dez mil réis, duas ou três libras esterlinas, e há quem chegue a pagar cem mil réis, o que é raro. Também presenteiam às vezes o sacerdote com um boi, ou um ou dois cavalos.”

Koster deixou ainda uma descrição detalhada do modo de vida no interior nordestino. “Os sertanejos são muito ciumentos e há dez vezes mais mortes por este motivo do que por qualquer outro”, relatou. “Essa gente é vingativa. As ofensas muito dificilmente são perdoadas e, na falta de lei, cada um exerce a justiça pelas suas próprias mãos. [...] O roubo é pouco conhecido. A terra, nos bons anos, é toda fértil, impossibilitando a necessidade que justificaria a tentação criminosa, e nas más colheitas todos sofrem igualmente a penúria. [...] São extremamente ignorantes e poucos possuem os mais modestos rudimentos de instrução. [...] Os sertanejos são corajosos, sinceros, generosos e hospitaleiros. Quando se lhes pede um favor, não o sabem negar. Entrando em negócios de gado, ou qualquer outro, o caráter muda. Procurarão enganar-vos, olhando o sucesso como prova de habilidade, digna de elogio.”

Existem algumas imagens recorrentes nos relatos dos inúmeros estrangeiros que visitaram o Brasil no começo do século XIX. A primeira é a de uma colônia preguiçosa e descuidada, sem vocação para o trabalho, viciada por mais de três séculos de produção extrativista. O inglês Thomas Lindley, que percorreu o litoral próximo a Porto Seguro, na Bahia, ficou surpreso ao constatar que a abundância de recursos naturais do Brasil não resultava em riqueza, desenvolvimento ou conforto material para os brasileiros. “Num país que, com o cultivo e a indústria, chegaria à fartura com as benções excessivas da natureza, a maior parte do povo sobrevive em necessidade e pobreza, enquanto mesmo a minoria restante não conhece os desfrutes que fazem a vida desejável”, escreveu.” (...)

Outra imagem muito frequente nesses relatos dos viajantes é a do analfabetismo, da falta de cultura e instrução. “O Brasil não é lugar de literatura”, afirmou James Henderson “Na verdade, a sua total ausência é marcada pela proibição geral de livros e a falta dos mais elementares meios pelos quais seus habitantes possam tomar conhecimento do mundo e do que se passa nele. Os habitantes estão mergulhados em grande ignorância e sua consequência natural: o orgulho.” James Henderson, que saiu de Londres em 11 de março de 1819 a bordo do navio Echo, é um dos viajantes tardios do período de D. João VI no Brasil. Seus diários de viagem incluem um mapa do país e oito gravuras feitas em pedra, retratando paisagens e tipos brasileiros. “Neste país de analfabetismo, não se encontra ninguém que tenha intimidade com a noção de ciência”, observou o botânico inglês William John Burchell, que percorreu o Brasil alguns anos mais tarde, entre 1825 e 1830, quando a corte já tinha voltado para Portugal. “Aqui, a natureza tem feito muita coisa – o homem, nada. Aqui, a natureza oferece inumeráveis temas de estudo e admiração, enquanto os homens continuam a vegetar na escuridão da ignorância e na extrema pobreza, consequência apenas da preguiça.”

 

 

“Todos os dias no final da tarde, D. João VI saía para passear, às vezes dirigindo ele próprio uma pequena carruagem puxada por mulas. O historiador Tobias Monteiro acrescenta um detalhe pitoresco nesses passeios: o ritual que envolvia as necessidades fisiológicas do rei. Segundo ele, à frente da comitiva ia um moço de cavalariça, a que o povo chamava de “toma largas” – talvez porque abria espaço à passagem do rei ou por usar vestimentas de abas enormes. Esse vassalo montava uma besta, de cuja sela pendiam dois alforjes. Num ia a merenda de D. João VI. No outro, um penico e uma armação composta de três peças que funcionava como um vaso sanitário portátil, para ser usado em campo aberto. A certa altura do passeio, o rei murmurava alguma ordem, o moço descia da mula e montava o equipamento. “Então”, acrescenta o historiador, “o rei descia da carruagem e dele aproximava-se o camarista, que lhe desabotoava e arriava os calções. Diante dos oficiais e outras pessoas da comitiva, até da princesa Maria Teresa, sua filha predileta, quando esta o acompanhava, sentava-se beatamente, como se ninguém lhe estivesse em torno. Satisfeito o seu desejo, vinha um criado particular limpá-lo e de novo chegava o camarista, para ajudá-lo a se vestir.”

 

 

“Entre 1807 e 1814 (período da ocupação francesa), Portugal perdeu meio milhão de habitantes. Um sexto da população pereceu de fome ou nos campos de batalha ou simplesmente fugiu do país. Nunca, em toda sua história, o país havia perdido um número tão grande de habitantes em tão pouco tempo. Em maio de 1808, o embaixador de Portugal em Londres, D. Domingos de Sousa Coutinho, escrevia a D. João no Rio de Janeiro dizendo que o número de refugiados portugueses na Inglaterra era enorme. “Tem vindo toda a qualidade de gente, em número tal que eu não sei como lhe acudir”, contou o diplomata. “A maior parte vem carente de tudo, quase nus.” Como a corte portuguesa estava falida, D. Domingos era obrigado a pedir ajuda financeira ao governo inglês para socorrer todos esses refugiados. Enquanto isso, em Portugal, os mais ricos pagavam propinas ao próprio Junot em troca da autorização para embarcar nos navios que partiam de Lisboa.

“Portugal ficou num estado lamentável de penúria” escreveu o historiador inglês Sir Charles Oman.

Com seus portos bloqueados, era impossível vender vinhos para seus antigos compradores ingleses ou manufaturas para os colonos brasileiros. O desemprego tomou conta de Lisboa. Famintos, os moradores migraram em bando para o interior do país, em busca do que comer. A capital ficou deserta. Nas ruas não se via nenhum veículo ou pedestre, com exceção de 20 000 pessoas reduzidas à condição de mendigas, tentando viver de esmolas.”

 

 

“As semanas que antecederam o retorno do rei a Portugal foram tensas e repletas de aflição. Os ecos da Revolução do Porto haviam chegado ao Brasil em meados de outubro do ano anterior e bastaram algumas semanas para inflamar os ânimos dos brasileiros e portugueses que cercavam a corte. Na manhã de 26 de fevereiro, uma multidão aglomerada no Largo do Rocio, atual Praça Tiradentes, exigia a presença do rei no centro do Rio de Janeiro e a assinatura da Constituição liberal. Ao ouvir as notícias, a alguns quilômetros dali, D. João ficou muito assustado e mandou fechar todas as janelas no Palácio São Cristóvão, como fazia em noites de trovoadas. “Como devo tratar os revoltosos?”, perguntou ao conde de Palmeia, ministro dos Negócios Estrangeiros e da Guerra. “Infelizmente, senhor, não há que deliberar; é preciso fazer tudo quanto vos pedirem”, respondeu o conde.

Pouco depois chegou o príncipe D. Pedro, que passara a madrugada em conversas com os rebeldes. Vinha buscar o rei, como exigia a multidão. D. João ficou apavorado com a lembrança de uma cena da ainda recente Revolução Francesa. Foi a noite em que milhares de pessoas cercaram o Palácio de Versailles, capturaram o rei Luís XVI e a rainha Maria Antonieta e os levaram até Paris, onde, tempos mais tarde e após uma fracassada tentativa de fuga, seriam decapitados na guilhotina. Apesar do medo que o episódio lhe inspirava, D. João embarcou na carruagem que o aguardava e seguiu para o centro da cidade. A caminho, no entanto, percebeu que, em lugar de ofensas e gritos de protestos, a multidão aclamava seu nome. Ao contrário do odiado Luís XVI, o rei do Brasil era amado e querido pelo povo carioca. Depois de uma viagem de meia hora, apareceu trêmulo na sacada do Paço Real. Mal conseguiu balbuciar as palavras que lhe ditaram e que tiveram de ser repetidas por D. Pedro em alta voz, para delírio da multidão. D. João VI, o último rei absoluto de Portugal e do Brasil, aceitava, sim, jurar e assinar a Constituição, que lhe tirava parte de seus poderes.

A euforia de 26 de fevereiro, porém, logo deu lugar a novas agitações. Os líderes mais radicais achavam as reformas constitucionais insuficientes. Queriam que o rei cedesse mais. Por isso, uma segunda manifestação popular foi marcada para o dia 21 de abril, aniversário do enforcamento de Tiradentes. Aos gritos de “aqui quem manda é o povo” e “haja revolução”, a multidão reunida na então Praça do Comércio exigia que D. João jurasse a Constituição espanhola, documento mais radical do que o primeiro, adotado na cidade de Cadiz em 1812, durante os levantes da Guerra Peninsular, e que havia se tornado uma inspiração para os revolucionários portugueses em 1820. Queria também que o rei permanecesse no Brasil, contrariando a decisão das Cortes portuguesas. Desta vez, a manifestação terminou em tragédia, violentamente reprimida pelas tropas comandadas pelo príncipe D. Pedro. Trinta pessoas morreram e outras dezenas ficaram feridas. No dia seguinte, a fachada do elegante prédio desenhado pelo francês Grandjean de Montigny na Praça do Comércio amanheceu pichada com os dizeres “Açougue dos Bragança”, numa referência à dinastia portuguesa.

D. João partiu do Rio de Janeiro em 26 de abril, cinco dias depois do massacre da Praça do Comércio. Sua comitiva incluía cerca de 4000 portugueses – um terço do total que o havia acompanhado na fuga para o Rio de Janeiro, treze anos antes. Conta-se que o rei embarcou chorando de emoção. Se dependesse apenas de sua vontade, ficaria no Brasil para sempre. Porém, uma vez mais, aquele rei gordo, bonachão, sossegado, solitário, indeciso e, muitas vezes, medroso, curvava-se ao peso das responsabilidades que a História lhe impunha.”

 

 

“No caso de D. João VI, seu legado ainda é motivo de controvérsia. Alguns atribuem ao seu caráter tímido e medroso a derrocada final da monarquia e do próprio império colonial português. Outros, no entanto, o consideram um estrategista político que, sem recorrer às armas, enfrentou com sucesso os exércitos de Napoleão e conseguiu não só preservar os interesses de Portugal como deixar um Brasil maior e melhor do que havia encontrado ao chegar ao Rio de Janeiro, em 1808.”

 

 

“A preservação da integridade territorial brasileira foi, portanto, uma grande conquista de D. João VI. Sem a mudança da corte portuguesa, os conflitos regionais teriam se aprofundado, a tal ponto que a separação entre as províncias seria quase inevitável. “Essas colônias estariam de fato perdidas para a metrópole se D. João não migrasse para o Brasil”, afirmou em suas memórias o almirante Sir Sidney Smith, comandante da esquadra que trouxe a corte para o Rio de Janeiro. “Os ingleses iriam ocupá-las sob pretexto de as defender e, se isto não acontecesse, a independência da América portuguesa se teria efetuado ao mesmo tempo e com muito menos resistência do que a da América espanhola.”

Graças a D. João VI, o Brasil se manteve como um país de dimensões continentais, que hoje é o maior herdeiro da língua e da cultura portuguesas. “D. João VI veio criar e realmente fundou na América um império, pois merece bem assim ser classificado o ter dado foros de nacionalidade a uma imensa colônia amorfa”, escreveu Oliveira Lima. Ironicamente, esse legado não seria desfrutado por D. João ou pela metrópole portuguesa. “Ele próprio regressava menos rei do que chegou”, acrescentou Oliveira Lima. “Deixava contudo o Brasil maior do que o encontrara.” Em outras palavras, ao mudar o Brasil, D. João VI o perdeu para sempre. O resultado foi a Independência, em 1822. “As portas fechadas durante trezentos anos estavam abertas de repente, e a colônia ficou fora do controle da metrópole”, assinalou o historiador Alan K. Manchester. “O contato com o mundo exterior despertou a colônia entorpecida: introduziram-se nova gente, novo capital e novas ideias. Como consequência, os brasileiros acharam que seu destino era maior e mais importante”.

Ao contrário do que se imagina, porém, a independência brasileira resultou menos do desejo de separação dos brasileiros do que das divergências entre os próprios portugueses. O historiador Sérgio Buarque de Holanda a definiu como “uma guerra civil entre portugueses”, desencadeada pela Revolução do Porto, e não por um processo de mobilização da colônia na defesa de interesses comuns contra a dominação da metrópole. “A Revolução de 1820 foi um movimento anti-brasileiro, uma explosão de ressentimento, de orgulho ferido”, escreveu o também historiador José Honório Rodrigues. O resultado, segundo ele, foi oposto ao esperado pelas Cortes porque “fortificaram o Brasil, sua consciência, seu sentimento nacional, sua unidade, sua indivisibilidade”.”

 

 

“A solução proposta (para conquistar a independência) – que, afinal, triunfou – era manter a monarquia centralizada e com poderes fortes, capaz de impedir insurreições populares e movimentos separatistas. “O Brasil, contando de muitas províncias grandes, mui distantes e despovoadas, precisa para se aumentar, visto estar ainda na infância, de um centro de poder, de onde as providências se façam com energia e a força com prontidão”, argumentava um panfleto anônimo publicado em Lisboa em 1822. “Ora, não há governo mais enérgico que o monárquico. [...] O caráter geral da Nação exclui claramente a forma republicana.”

Sentimentos dessa natureza fizeram com que o medo funcionasse como uma força política catalisadora, mantendo o país unido sob a Coroa no momento em que os regionalistas e interesses divergentes poderiam ter dividido a antiga colônia portuguesa. “Consumada a separação política”, observou historiadora Maria Odila Leite da Silva Dias, “não pareciam brilhantes para os homens da geração da independência as perspectivas da colônia para transformar-se em nação. [...] Eram bem conscientes da insegurança das tensões internas, sociais e raciais, da fragmentação, dos regionalismos, da falta de unidade que não dera margem ao aparecimento de uma consciência nacional capaz de dar força a um movimento revolucionário disposto a reconstruir a sociedade”.

O que se viu em 1822 foi, portanto, uma ruptura sob controle, ameaçada pelas divergências internas e pelo oceano de pobreza e marginalização criado por três séculos de escravidão e exploração colonial. Ao contrário dos Estados Unidos, onde a independência teve como motor a república e a luta pelos direitos civis e pela participação popular, no Brasil o sonho republicano estava restrito a algumas parcelas minoritárias da população. Quando apareceu nas rebeliões regionais, foi imediatamente reprimido pela Coroa. Por isso, o caminho escolhido em 1822 não era republicano nem genuinamente revolucionário. Era apenas conciliatório. Em vez de enfrentadas e resolvidas, as antigas tensões sociais foram todas adiadas e amortecidas.”

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