Editora: WMF Martins
Fontes
ISBN:
978-85-469-0240-8
Tradução e notas: Marcelo
Backes
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 600
“O
processo dialético em Marx metamorfoseia as próprias formas de objetivação dos
objetos num processo, num fluxo. No processo de reprodução simples do capital,
esse modo de ser do processo que transforma as formas de objetivação aparece
muito claramente. A simples “repetição ou continuidade imprime ao processo
caracteres inteiramente novos ou antes dissolve a característica aparente do
seu desenvolvimento isolado”. Pois, “com exceção de toda acumulação, a mera
continuidade do processo de produção, ou a simples reprodução mais cedo ou mais
tarde acaba transformando todo capital em capital acumulado ou em mais-valia
capitalizada. Ainda que, ao entrar no processo de produção, esse capital tenha
sido obtido com o trabalho pessoal de quem o realizou, mais cedo ou mais tarde
ele acaba se tornando, sem equivalente, valor adquirido ou materialização, seja
na forma dinheiro ou em outra, do trabalho não pago de outrem147.
Portanto, o reconhecimento de que os objetos sociais não são coisas, mas
relações entre os homens, intensifica-se até o momento em que os fatos se
dissolvem completamente em processos. Mas se aqui o seu ser aparece como devir,
esse devir não é um simples fluxo geral que passa rapidamente, nem uma durée
réelle vazia de conteúdo, mas a produção e a reprodução ininterruptas
daquelas relações que, arrancadas desse contexto e desfiguradas pelas
categorias da reflexão, surgem para o pensamento burguês como coisas. Somente
nesse momento a consciência do proletariado eleva-se à autoconsciência da
sociedade em seu desenvolvimento histórico. Enquanto consciência da relação
puramente mercantil, o proletariado pode tornar-se consciente apenas como
objeto do processo econômico. Pois a mercadoria é produzida, e mesmo o
trabalhador, como mercadoria, como produtor imediato, é no melhor dos casos uma
engrenagem mecânica nesse mecanismo. Mas, se a substancialidade do capital é
dissolvida no processo ininterrupto de sua produção e reprodução, pode-se
então, desse ponto de vista, tornar consciência de que o proletariado – mesmo
que acorrentado e ainda inconsciente – é o verdadeiro sujeito desse
processo. Abandonando, portanto, a realidade imediata e encontrada pronta,
emerge então a questão148: “Um trabalhador numa fábrica de algodão
produz apenas algodão? Não, produz capital. Produz os valores que servem
novamente para comandar o seu trabalho, para criar por meio deste novos
valores.”
147. Kapital I, MEW23, pp. 595,597-8.
Aqui também o sentido antes ressaltado da transformação da quantidade em
qualidade mostra-se como característica de cada momento singular. Os
momentos quantificados, considerados isoladamente, permanecem, pois,
simplesmente quantitativos. Como momentos do fluxo, eles aparecem como
modificações qualitativas da estrutura econômica do capital.
148 Lohnarbeit und Kapital, MEW 6, p. 410.
“Desse
modo, porém, o problema da realidade efetiva mostra-se sob uma luz
completamente nova. Para falar à maneira de Hegel, o vir-a-ser aparece então
como a verdade do ser, o processo como a verdade das coisas, e isso significa
que às tendências de desenvolvimento da história cabe uma realidade superior à
dos “fatos” da mera empiria. Certamente, como foi mostrado em outra parte149,
na sociedade capitalista o passado reina sobre o presente. Isso significa
simplesmente que o processo antagônico, conduzido não por uma consciência, mas
apenas impulsionado por sua própria dinâmica imanente e cega, revela-se em
todas as suas formas imediatas de manifestação como o domínio do passado sobre
o presente, como o domínio do capital sobre o trabalho; significa, por
conseguinte, que o pensamento que persiste no terreno desse imediatismo
prende-se às respectivas formas solidificadas das etapas particulares e se
confronta desarmado com as tendências ainda assim atuantes enquanto poderes
enigmáticos; que a ação correspondente a esse pensamento nunca está em
condições de dominar essas tendências. Essa imagem de uma rigidez
fantasmagórica, que se move ininterruptamente, torna-se significativa tão logo
essa realidade se dissolve no processo cuja força motriz é o homem. Que isso
seja possível somente a partir do ponto de vista do proletariado explica-se não
apenas pelo fato de que o sentido do processo que se manifesta nessas
tendências é a abolição do capitalismo, mas também de que, para a burguesia,
tornar-se consciente dessa questão significaria seu próprio suicídio
espiritual. Isso se baseia também principalmente no fato de que as “leis” da
realidade reificada do capitalismo, em que a burguesia é obrigada a viver, só
podem se impor por sobre as cabeças daqueles que parecem ser os portadores e
agentes ativos do capital. (...) Pois a ilusão de um racionalismo concluído em
todos os pormenores – ditada pela determinação de classe do ser social e por
isso fundamentada subjetivamente – mostra de maneira ainda mais clara que o
sentido do processo total, que se impõe de todo modo, é incompreensível para
esse racionalismo. E embora não se trate de um único acontecimento, de uma
catástrofe, mas de uma produção e uma reprodução ininterruptas da mesma
relação, embora os aspectos das tendências a serem realizadas e que já se
tornaram “fatos” da empiria estejam diretamente envolvidos na rede do cálculo
racional como fatos reificados, fixos e isolados, isso não altera em nada essa
estrutura fundamental, mas apenas mostra o quanto esse antagonismo dialético
domina todos os fenômenos da sociedade capitalista.”
149. Cf. o ensaio “A mudança de função do
materialismo histórico”; sobre fato e realidade, ver o ensaio “O que é marxismo
ortodoxo?”.
“Agora,
porém, torna-se bastante claro que aquele desenvolvimento social e sua
expressão em pensamento, os quais dão forma ao “fato” a partir da realidade
dada por inteiro (originariamente no estado primitivo), realmente ofereceram a
possibilidade de submeter a natureza ao homem, mas, ao mesmo tempo, tiveram de
servir para encobrir o caráter histórico e social e a natureza desses fatos,
que se baseia na relação entre os homens, a fim de gerar tais “poderes
fantasmagóricos e estranhos opostos a ele”154. Pois, com sua
tendência a excluir o processo, a natureza inflexível do pensamento reificado
alcança no fato uma expressão ainda mais clara do que nas “leis” que a ordenam.
Se nas “leis” ainda é possível descobrir um vestígio da atividade humana, ainda
que frequentemente isso se manifeste numa subjetividade falsa e reificada, a
essência do desenvolvimento capitalista, que se tornou estranha e inflexível
para o homem e se transformou numa coisa impenetrável, cristaliza-se no “fato”
sob uma forma que faz dessa rigidez e dessa alienação um fundamento da
realidade e da concepção de mundo que é totalmente evidente e está acima de
qualquer dúvida. Diante da rigidez desses “fatos”, todo movimento aparece
simplesmente como se ocorresse neles, enquanto toda tendência à sua transformação
surge como simples princípio subjetivo (desejo, juízo de valor, dever).
Somente, portanto, quando é rompida essa prioridade teórica dos “fatos”, quando
é reconhecido o caráter processual de cada um dos fenômenos, pode
tornar-se compreensível que também aquilo que se costuma chamar de “fatos”
conste em processos. Somente então se torna compreensível que os fatos nada
mais são do que partes, aspectos do processo como um todo, destacados,
isolados artificialmente e cristalizados. Isso explica, ao mesmo tempo, por que
o processo como um todo, no qual a essência processual impõe-se sem falsificação,
e cuja essência não é obscurecida por nenhuma rigidez reificada, representa, em
relação aos fatos, a autêntica realidade superior. Certamente, também é possível
compreender por que o pensamento burguês reificado havia de criar exatamente a
partir desses “fatos” seu mais elevado fetiche teórico e prático. Essa
facticidade petrificada, na qual tudo se solidifica em “grandeza fixa”155,
na qual a realidade dada no momento se apresenta numa imutabilidade completa e
absurda, transforma toda compreensão, inclusive a dessa realidade imediata,
numa impossibilidade de método.
Desse
modo, a reificação sob essas formas é levada às últimas consequências: ela
deixa de apontar dialeticamente para além de si mesma; sua dialética passa a
ser mediada apenas pela dialética das formas imediatas de produção. Com isso, o
conflito entre o ser imediato, o pensamento que lhe corresponde nas categorias
de reflexão e a realidade social viva atinge seu extremo.”
154. Ursprung
der Familie etc., MEW21, p. 169.
155. Cf. as observações de Marx sobre
Bentham, cap. I, MEW 23, pp. 636 S.
“O
desenvolvimento da socialdemocracia mostra-nos em medida crescente essa
desintegração da unidade prática e dialética numa justaposição inorgânica de
empirismo e utopismo, de apego aos “fatos” (em seu imediatismo insuperável) e
de ilusionismo vazio e estranho ao presente e à história. Precisamos
considerá-la apenas do ponto de vista sistemático da reificação, para indicar
logo em seguida que nessa atitude esconde-se – por mais que os conteúdos possam
ser revestidos de “socialismo” – uma capitulação completa diante da burguesia.
Pois a justaposição das esferas isoladas da existência social e a fragmentação
do homem conforme a separação dessas esferas corresponde exatamente aos interesses
de classe da burguesia. Particularmente, a dualidade que aqui se manifesta
entre o fatalismo econômico e o utopismo “ético” referente às funções “humanas”
do Estado (dualidade que se exprime em outros termos mas que se encontra
essencialmente na atitude da socialdemocracia) significa que o proletariado se
colocou no terreno das concepções burguesas e, nesse domínio, a burguesia
naturalmente conservará sua superioridade164. O perigo ao qual o
proletariado ficou incessantemente exposto desde seu aparecimento na história,
ou seja, o de ficar aprisionado em seu imediatismo junto com a burguesia,
adquiriu com a socialdemocracia uma forma de organização política que
interrompe artificialmente as mediações já penosamente conquistadas, para
reduzir o proletariado à sua existência imediata, onde ele é um simples
elemento da sociedade capitalista, e não, ao mesmo tempo, o motor de sua
autodissolução e destruição. Essas “leis” fazem com que o proletariado ou se
submeta a elas de modo involuntário e fatalista (as leis naturais da produção),
ou as assimile “eticamente” em sua vontade (o Estado como ideia, como valor
cultural). Enquanto partem de uma dialética objetiva e inacessível para a
consciência reificada, tais leis podem levar o capitalismo ao seu declínio165.
Mas enquanto ele subsistir, tal concepção da sociedade corresponderá aos
interesses de classe elementares da burguesia. O fato de se revelarem as
conexões parciais imanentes dessa existência imediata (quaisquer que sejam os
problemas insolúveis por trás dessas formas abstratas de reflexão) e, ao mesmo
tempo, de se ocultar a conexão unitária e dialética do conjunto oferece à
burguesia todas as vantagens. Nesse terreno, portanto, a socialdemocracia tem,
de antemão, de permanecer sempre a parte mais frágil. Não apenas porque
renuncia espontaneamente à vocação histórica do proletariado, com a intenção de
mostrar uma saída para os problemas do capitalismo que a burguesia não consegue
resolver, tampouco porque assiste fatalisticamente como as “leis” do capitalismo
levam em direção ao abismo, mas também porque ela tem de dar-se por vencida em
cada uma das questões. Pois, diante da superioridade dos recursos do poder, do
conhecimento, da formação, da rotina etc., que a burguesia sem dúvida possui e
possuirá enquanto permanecer como classe dominante, a arma decisiva, a única
superioridade eficaz do proletariado é sua capacidade de ver a totalidade da
sociedade como totalidade concreta e histórica; de compreender as formas
reificadas como processos entre os homens; de elevar positivamente à
consciência o sentido imanente do desenvolvimento, que se apresenta apenas
negativamente nas contradições da forma abstrata da existência, e de transpô-lo
para a prática. Com a ideologia socialdemocrata, o proletariado recai em todas
as antinomias da reificação, analisadas anteriormente em detalhes. O fato de o
princípio “do homem” como valor, como ideal, como dever etc. desempenhar um
papel cada vez mais forte justamente nessa ideologia – ao mesmo tempo, é claro,
com um “discernimento” crescente da necessidade e da legalidade do
acontecimento econômico-factual – é apenas um sintoma dessa recaída no
imediatismo reificado da sociedade burguesa. Pois a justaposição imediata das
leis naturais e do dever são a expressão intelectual mais coerente do ser
social imediato na sociedade burguesa.”
164. Cf. o ensaio “Consciência de classe”.
165. Essas concepções encontram-se em estado
puro no novo escrito programático de Kautsky. Não é preciso ir além da
separação mecânica e rígida entre política e economia para perceber que ele é o
sucessor dos equívocos de Lassale. Sua concepção sobre a democracia é bastante
conhecida para que seja preciso analisá-la aqui. E, no que concerne ao
fatalismo econômico, é característico que mesmo quando Kautsky admite a
impossibilidade de prever concretamente o fenômeno econômico da crise, é
evidente para ele que o curso dos acontecimentos deve se guiar pelas leis da
economia capitalista; p. 57.
“Ainda
mais importante do que essas distinções sistemáticas é o fato de que mesmo
aqueles objetos, que se encontram abertamente no centro do processo dialético,
também só são capazes de perder sua forma reificada num processo demorado. Num
processo em que a tomada de poder pelo proletariado e mesmo a organização
socialista do Estado e da economia significam apenas etapas, com certeza etapas
muito importantes, mas de modo algum o ponto de chegada. Chega a parecer que o
período decisivo de crise do capitalismo tende a intensificar ainda mais a
reificação, a levá-la às últimas consequências. Mais ou menos como no sentido
em que Lassalet180 escreve à Marx: “O velho Hegel costumava dizer:
imediatamente antes que se apresente algo novo em termos de qualidade, o antigo
estado qualitativo concentra-se em sua essência originária e puramente geral,
em sua totalidade simples, superando novamente e retomando em si todas a suas
diferenças e particularidades marcadas, que ele tinha estabelecido enquanto
ainda era viável.” Por outro lado, também é correta a observação de Bukharin181
de que na época da dissolução do capitalismo as categorias fetichistas falham,
de que é necessário recorrer à “forma natural” que lhe é subjacente. Ambas as
concepções encontram-se, porém, apenas aparentemente em contradição, ou melhor,
justamente na seguinte contradição: por um lado, o vazio crescente das formas
de reificação – poder-se-ia dizer, o rompimento de sua crosta devido ao vazio
interno –, sua incapacidade crescente de compreender os fenômenos, mesmo como
fenômenos isolados ou como objetos da reflexão e do cálculo; por outro, vemos
seu crescimento quantitativo, sua expansão vazia e extensiva por toda a
superfície dos fenômenos constituir justamente em seu conflito o signo da
sociedade burguesa declinante. E, com o agravamento crescente dessa oposição,
surge para o proletariado tanto a possibilidade de substituir o invólucro vazio
e roto pelos seus conteúdos positivos, como o perigo pelo menos temporariamente
– de submeter-se ideologicamente a essas formas completamente vazias e ocas da
cultura burguesa. No que diz respeito à consciência do proletariado, o
desenvolvimento funciona de maneira ainda menos automática: para o
proletariado, vale em medida crescente aquilo que o antigo materialismo
mecânico e intuitivo não podia compreender, ou seja, que a transformação e a
emancipação só podem ser o seu próprio ato, “que o próprio educador tem de ser
educado”. O desenvolvimento econômico objetivo foi capaz apenas de criar a
posição do proletariado no processo de produção. Tal posição determinou seu
ponto de vista. Mas o desenvolvimento objetivo só conseguiu colocar ao alcance
do proletariado a possibilidade e a necessidade de transformar a sociedade. No
entanto, essa transformação só pode ser o ato –livre – do próprio
proletariado.”
180.
Carta de 12/12/1851, ed. de G. Mayer, p. 41.
181. Ökonomie der Transiormationsperiode, pp.
50-1.
“Pois uma
revolução política apenas sanciona uma situação econômico-social que já se
impôs, pelo menos parcialmente, na realidade econômica. A revolução substitui à
força pelo direito novo, “correto” e “justo” a antiga ordem jurídica,
considerada “injusta”. O ambiente social da vida não experimenta nenhuma
reacomodação radical (historiadores conservadores da grande Revolução Francesa
também acentuam esse caráter inalterável – e relativo – das condições “sociais”
durante essa época). A revolução social, ao contrário, dirige-se exatamente
para a modificação desse ambiente. E toda modificação semelhante vai tão
profundamente contra os instintos do homem médio, que ele enxerga nisso uma
ameaça catastrófica à vida em geral, um poder cego da natureza, tal como
uma inundação ou um terremoto. Sem conseguir compreender a essência do
processo, sua defesa totalmente desesperada volta-se para a luta contra as manifestações
imediatas que ameaçam sua existência habitual. Assim, os proletários
educados à maneira da pequena burguesia rebelavam-se contra fábricas e máquinas
no início do desenvolvimento capitalista; a teoria de Proudhon também pode ser
concebida como eco dessa defesa desesperada do antigo e habitual ambiente
social.
Nesse
ponto, o caráter revolucionário do marxismo torna-se mais facilmente
compreensível. O marxismo é a doutrina da revolução exatamente porque
compreende a essência do processo (em oposição aos seus sintomas e às suas
formas de manifestação), porque mostra sua tendência decisiva que aponta para o
futuro (em oposição aos fenômenos cotidianos). Justamente por isso ele é, ao
mesmo tempo, a expressão ideológica da classe proletária que visa a emancipar a
si mesma. Essa libertação se efetua, em primeiro lugar, sob a forma de
rebeliões efetivas contra os fenômenos mais opressivos da ordem econômica
capitalista e do seu Estado. Isoladas em si mesmas, essas lutas, que nunca
conseguem sair vitoriosas mesmo em caso de sucesso, só podem tornar-se de fato
revolucionárias quando o proletariado torna-se consciente daquilo que une esses
conflitos uns aos outros e ao processo que impele inevitavelmente ao fim do
capitalismo. Ao propor como programa a “reforma da consciência”, o jovem Marx
já estava antecipando a essência de sua atividade posterior. Pois, por um lado,
sua doutrina não é utópica, visto que parte do processo tal como se desdobra na
realidade e não desenvolve nenhum “ideal” em relação a ele, mas pretende apenas
revelar o seu sentido inerente. Simultaneamente, essa doutrina tem de ir além
do que foi dado e focar a consciência do proletariado no conhecimento da
essência e não na vivência do dado imediato. “A reforma da consciência”, diz
Marx2, “consiste apenas em deixar que o mundo se dê conta de sua
consciência, em despertá-lo do sonho sobre si mesmo, em explicar-lhe suas
próprias ações [...] Revelar-se-á, então, que há muito tempo o mundo possui
o sonho de algo do qual precisa possuir apenas a consciência para possui-lo
efetivamente.”
2. Carta
dos Anais franco-alemães, MEW I, p. 346 (grifado por mim).
“Ninguém
acredita (e muito menos o Partido Comunista Russo) que se possa afinal
simplesmente “decretar” o socialismo. Os fundamentos do modo de produção
capitalista e com eles a “necessidade de leis naturais” que se impõe
inevitavelmente não são de modo algum eliminados quando o proletariado toma o
poder ou quando impõe às instituições uma socialização dos meios de produção,
mesmo que bastante ampla. Mas a sua erradicação e substituição pelo modo de
economia socialista, conscientemente organizado, não deve ser concebida
simplesmente como um processo lento e complicado, mas, antes, como uma luta
obstinada e conduzida conscientemente. É preciso lutar para tomar aos
poucos o terreno dessa “necessidade”. Toda sobrevalorização da maturidade das
circunstâncias, do poder do proletariado, toda subestimação do poder das forças
opostas é paga amargamente sob a forma de crises, recuos, de desenvolvimentos
econômicos que nos levam inevitavelmente de volta ao ponto de partida. No
entanto, a observação de que o poder do proletariado e a possibilidade de
controlar conscientemente a ordem econômica são frequentemente muito limitados
não deveria nos levar a concluir que a “economia” do socialismo irá prevalecer
por si mesma ou pelas “leis cegas” de suas forças motrizes, como no
capitalismo. Interpretando uma carta a Kautsky, de 22 de setembro de 1891,
Lênin7 diz: “Engels não considera absolutamente que a ‘econômica’
removeria imediatamente por si mesma todas as dificuldades do caminho [...] A
adaptação da política à economia ocorrerá infalivelmente, mas não de uma só vez
nem de maneira simples, fácil e imediata.” O controle consciente e organizado
da ordem econômica só pode ser efetuado conscientemente, e o órgão de sua
efetuação é justamente o Estado proletariado, o sistema dos sovietes. Portanto,
os sovietes são, de fato, “uma antecipação da situação jurídica” de uma fase
posterior da divisão de classes, mas não significam uma utopia vazia e suspensa
no ar; pelo contrário, são o único meio apropriado para um dia dar vida a
essa situação antecipada. Pois o socialismo jamais seria alcançado “por si
mesmo”, como resultado de um desenvolvimento econômico natural. De fato, as
leis naturais do capitalismo levam inevitavelmente à sua última crise, mas no
fim do seu caminho se encontraria a aniquilação de toda civilização, uma
nova barbárie.
É
exatamente esta a diferença mais profunda entre as revoluções burguesas e
proletárias. A essência brilhantemente arrebatadora das revoluções burguesas
baseia-se no fato de que, numa sociedade cuja estrutura absolutista e feudal está
profundamente minada pelo capitalismo já fortemente desenvolvido, elas tiram
as consequências políticas, estatais e jurídicas, entre outras, de um
desenvolvimento socioeconômico já amplamente executado. Porém, o elemento
efetivamente revolucionário é a transformação econômica da ordem de produção
feudal em ordem de produção capitalista, de modo que, do ponto de vista
teórico, seria plenamente concebível a realização desse desenvolvimento sem
revolução burguesa, sem transformação política por parte da burguesia
revolucionária, e aquilo que não foi eliminado da superestrutura feudal e
absolutista mediante as “revoluções vindas de cima”, esgota-se “por si mesmo”
na época do capitalismo já desenvolvido. (O desenvolvimento alemão corresponde
em parte a esse esquema.)
Certamente,
uma revolução proletária também seria inconcebível se seus pressupostos e
precondições econômicas já não tivessem sido produzidos no seio da sociedade
capitalista pelo desenvolvimento da produção capitalista. A enorme diferença
entre os dois tipos de desenvolvimento consiste, porém, no fato de que o
capitalismo desenvolveu-se como modo econômico já no interior do feudalismo,
exaurindo-o. Em contrapartida, seria uma fantástica utopia imaginar que no
interior do capitalismo pudesse surgir algo que tendesse ao socialismo e
diferisse, de um lado, dos pressupostos econômicos objetivos de sua
possibilidade (que só após e em consequência da derrocada do capitalismo
poderiam ser convertidos em elementos reais do modo de produção
socialista), e, de outro, do desenvolvimento do proletariado como classe. Que
se pense no desenvolvimento sofrido pela manufatura e pelo sistema capitalista
de arrendamento ainda durante a existência da ordem social feudal. Para ambos,
bastava remover as barreiras jurídicas ao seu livre desenvolvimento. Já a
concentração do capital em cartéis, trustes etc. constitui, ao contrário, um
pressuposto incontornável da transformação do modo de produção capitalista em
socialista.
No
entanto, mesmo a concentração capitalista mais desenvolvida permanecerá
qualitativamente distinta, inclusive em termos econômicos, de uma organização
socialista e não permitirá transformar-se “por si mesma” em socialista nem
converter-se “legalmente” em socialista, no quadro da sociedade capitalista.”
7. Lenin-Zinoviev, Gegen den Strom, p. 409.
“Uma
tarefa se torna visível em sua possibilidade abstrata muito antes das formas
concretas de sua realização.”
“A
Crise ideológica do proletariado reside justamente no fato de essa
tendência ainda não ter se tornado realidade, embora em vários casos as
precondições econômicas e sociais para a sua realização tenham sido dadas. Essa
crise ideológica mostra-se, por um lado, no fato de que a situação
objetivamente muito precária da sociedade burguesa ainda se reflete na mente
dos proletários com sua antiga solidez; mostra-se também no fato de que em
muitos aspectos o proletariado continua preso às formas capitalistas de
pensamento e sensibilidade. Por outro, esse aburguesamento do proletariado
adquire uma forma de organização própria nos partidos operários mencheviques e
nas lideranças sindicais controladas por eles. Essas organizações passam a
trabalhar conscientemente para conservar a mera espontaneidade dos movimentos
proletários tal como ela se apresenta (sua dependência em relação ao seu ensejo
imediato, sua fragmentação por profissão, país etc.), e para impedir que eles
voltem sua atenção para a totalidade, seja pela concentração territorial,
profissional etc., seja pela unificação do movimento econômico com o político.
Com isso, os sindicatos acabam se encarregando mais de atomizar, de
despolitizar o movimento e de encobrir a relação com o todo, enquanto os
partidos mencheviques cumprem a função de fixar ideológica e organizacionalmente
a reificação na consciência do proletariado, de mantê-lo no nível do
aburguesamento relativo. No entanto, só podem desempenhar essa tarefa porque o
proletariado se encontra num estado de crise ideológica; porque esse
desenvolvimento ideológico na ditadura e no socialismo também é teoricamente
impossível para o proletariado; porque a crise, além do abalo econômico do
capitalismo, também implica uma mudança ideológica do proletariado, que se
desenvolveu no capitalismo sob a influência das formas de vida da sociedade
burguesa. Por certo, essa mudança ideológica surgiu a partir da crise econômica
e da oportunidade objetiva que esta criou para uma tomada do poder, mas sua
evolução em nenhum momento se deu paralelamente, de modo automático e
“regular”, à crise objetiva. A única solução para essa crise é a livre ação
do proletariado.”
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