sexta-feira, 8 de maio de 2020

História e Consciência de Classe: Estudos sobre a dialética marxista (Parte IV) – György Lukács

Editora: WMF Martins Fontes
ISBN: 978-85-469-0240-8
Tradução e notas: Marcelo Backes
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 600
Sinopse: Ver Parte I

“O processo dialético em Marx metamorfoseia as próprias formas de objetivação dos objetos num processo, num fluxo. No processo de reprodução simples do capital, esse modo de ser do processo que transforma as formas de objetivação aparece muito claramente. A simples “repetição ou continuidade imprime ao processo caracteres inteiramente novos ou antes dissolve a característica aparente do seu desenvolvimento isolado”. Pois, “com exceção de toda acumulação, a mera continuidade do processo de produção, ou a simples reprodução mais cedo ou mais tarde acaba transformando todo capital em capital acumulado ou em mais-valia capitalizada. Ainda que, ao entrar no processo de produção, esse capital tenha sido obtido com o trabalho pessoal de quem o realizou, mais cedo ou mais tarde ele acaba se tornando, sem equivalente, valor adquirido ou materialização, seja na forma dinheiro ou em outra, do trabalho não pago de outrem147. Portanto, o reconhecimento de que os objetos sociais não são coisas, mas relações entre os homens, intensifica-se até o momento em que os fatos se dissolvem completamente em processos. Mas se aqui o seu ser aparece como devir, esse devir não é um simples fluxo geral que passa rapidamente, nem uma durée réelle vazia de conteúdo, mas a produção e a reprodução ininterruptas daquelas relações que, arrancadas desse contexto e desfiguradas pelas categorias da reflexão, surgem para o pensamento burguês como coisas. Somente nesse momento a consciência do proletariado eleva-se à autoconsciência da sociedade em seu desenvolvimento histórico. Enquanto consciência da relação puramente mercantil, o proletariado pode tornar-se consciente apenas como objeto do processo econômico. Pois a mercadoria é produzida, e mesmo o trabalhador, como mercadoria, como produtor imediato, é no melhor dos casos uma engrenagem mecânica nesse mecanismo. Mas, se a substancialidade do capital é dissolvida no processo ininterrupto de sua produção e reprodução, pode-se então, desse ponto de vista, tornar consciência de que o proletariado – mesmo que acorrentado e ainda inconsciente – é o verdadeiro sujeito desse processo. Abandonando, portanto, a realidade imediata e encontrada pronta, emerge então a questão148: “Um trabalhador numa fábrica de algodão produz apenas algodão? Não, produz capital. Produz os valores que servem novamente para comandar o seu trabalho, para criar por meio deste novos valores.”
147. Kapital I, MEW23, pp. 595,597-8. Aqui também o sentido antes ressaltado da transformação da quantidade em qualidade mostra-se como característica de cada momento singular. Os momentos quantificados, considerados isoladamente, permanecem, pois, simplesmente quantitativos. Como momentos do fluxo, eles aparecem como modificações qualitativas da estrutura econômica do capital.
148 Lohnarbeit und Kapital, MEW 6, p. 410.


“Desse modo, porém, o problema da realidade efetiva mostra-se sob uma luz completamente nova. Para falar à maneira de Hegel, o vir-a-ser aparece então como a verdade do ser, o processo como a verdade das coisas, e isso significa que às tendências de desenvolvimento da história cabe uma realidade superior à dos “fatos” da mera empiria. Certamente, como foi mostrado em outra parte149, na sociedade capitalista o passado reina sobre o presente. Isso significa simplesmente que o processo antagônico, conduzido não por uma consciência, mas apenas impulsionado por sua própria dinâmica imanente e cega, revela-se em todas as suas formas imediatas de manifestação como o domínio do passado sobre o presente, como o domínio do capital sobre o trabalho; significa, por conseguinte, que o pensamento que persiste no terreno desse imediatismo prende-se às respectivas formas solidificadas das etapas particulares e se confronta desarmado com as tendências ainda assim atuantes enquanto poderes enigmáticos; que a ação correspondente a esse pensamento nunca está em condições de dominar essas tendências. Essa imagem de uma rigidez fantasmagórica, que se move ininterruptamente, torna-se significativa tão logo essa realidade se dissolve no processo cuja força motriz é o homem. Que isso seja possível somente a partir do ponto de vista do proletariado explica-se não apenas pelo fato de que o sentido do processo que se manifesta nessas tendências é a abolição do capitalismo, mas também de que, para a burguesia, tornar-se consciente dessa questão significaria seu próprio suicídio espiritual. Isso se baseia também principalmente no fato de que as “leis” da realidade reificada do capitalismo, em que a burguesia é obrigada a viver, só podem se impor por sobre as cabeças daqueles que parecem ser os portadores e agentes ativos do capital. (...) Pois a ilusão de um racionalismo concluído em todos os pormenores – ditada pela determinação de classe do ser social e por isso fundamentada subjetivamente – mostra de maneira ainda mais clara que o sentido do processo total, que se impõe de todo modo, é incompreensível para esse racionalismo. E embora não se trate de um único acontecimento, de uma catástrofe, mas de uma produção e uma reprodução ininterruptas da mesma relação, embora os aspectos das tendências a serem realizadas e que já se tornaram “fatos” da empiria estejam diretamente envolvidos na rede do cálculo racional como fatos reificados, fixos e isolados, isso não altera em nada essa estrutura fundamental, mas apenas mostra o quanto esse antagonismo dialético domina todos os fenômenos da sociedade capitalista.”
149. Cf. o ensaio “A mudança de função do materialismo histórico”; sobre fato e realidade, ver o ensaio “O que é marxismo ortodoxo?”.


“Agora, porém, torna-se bastante claro que aquele desenvolvimento social e sua expressão em pensamento, os quais dão forma ao “fato” a partir da realidade dada por inteiro (originariamente no estado primitivo), realmente ofereceram a possibilidade de submeter a natureza ao homem, mas, ao mesmo tempo, tiveram de servir para encobrir o caráter histórico e social e a natureza desses fatos, que se baseia na relação entre os homens, a fim de gerar tais “poderes fantasmagóricos e estranhos opostos a ele”154. Pois, com sua tendência a excluir o processo, a natureza inflexível do pensamento reificado alcança no fato uma expressão ainda mais clara do que nas “leis” que a ordenam. Se nas “leis” ainda é possível descobrir um vestígio da atividade humana, ainda que frequentemente isso se manifeste numa subjetividade falsa e reificada, a essência do desenvolvimento capitalista, que se tornou estranha e inflexível para o homem e se transformou numa coisa impenetrável, cristaliza-se no “fato” sob uma forma que faz dessa rigidez e dessa alienação um fundamento da realidade e da concepção de mundo que é totalmente evidente e está acima de qualquer dúvida. Diante da rigidez desses “fatos”, todo movimento aparece simplesmente como se ocorresse neles, enquanto toda tendência à sua transformação surge como simples princípio subjetivo (desejo, juízo de valor, dever). Somente, portanto, quando é rompida essa prioridade teórica dos “fatos”, quando é reconhecido o caráter processual de cada um dos fenômenos, pode tornar-se compreensível que também aquilo que se costuma chamar de “fatos” conste em processos. Somente então se torna compreensível que os fatos nada mais são do que partes, aspectos do processo como um todo, destacados, isolados artificialmente e cristalizados. Isso explica, ao mesmo tempo, por que o processo como um todo, no qual a essência processual impõe-se sem falsificação, e cuja essência não é obscurecida por nenhuma rigidez reificada, representa, em relação aos fatos, a autêntica realidade superior. Certamente, também é possível compreender por que o pensamento burguês reificado havia de criar exatamente a partir desses “fatos” seu mais elevado fetiche teórico e prático. Essa facticidade petrificada, na qual tudo se solidifica em “grandeza fixa”155, na qual a realidade dada no momento se apresenta numa imutabilidade completa e absurda, transforma toda compreensão, inclusive a dessa realidade imediata, numa impossibilidade de método.
Desse modo, a reificação sob essas formas é levada às últimas consequências: ela deixa de apontar dialeticamente para além de si mesma; sua dialética passa a ser mediada apenas pela dialética das formas imediatas de produção. Com isso, o conflito entre o ser imediato, o pensamento que lhe corresponde nas categorias de reflexão e a realidade social viva atinge seu extremo.”
154. Ursprung der Familie etc., MEW21, p. 169.
155. Cf. as observações de Marx sobre Bentham, cap. I, MEW 23, pp. 636 S.


“O desenvolvimento da socialdemocracia mostra-nos em medida crescente essa desintegração da unidade prática e dialética numa justaposição inorgânica de empirismo e utopismo, de apego aos “fatos” (em seu imediatismo insuperável) e de ilusionismo vazio e estranho ao presente e à história. Precisamos considerá-la apenas do ponto de vista sistemático da reificação, para indicar logo em seguida que nessa atitude esconde-se – por mais que os conteúdos possam ser revestidos de “socialismo” – uma capitulação completa diante da burguesia. Pois a justaposição das esferas isoladas da existência social e a fragmentação do homem conforme a separação dessas esferas corresponde exatamente aos interesses de classe da burguesia. Particularmente, a dualidade que aqui se manifesta entre o fatalismo econômico e o utopismo “ético” referente às funções “humanas” do Estado (dualidade que se exprime em outros termos mas que se encontra essencialmente na atitude da socialdemocracia) significa que o proletariado se colocou no terreno das concepções burguesas e, nesse domínio, a burguesia naturalmente conservará sua superioridade164. O perigo ao qual o proletariado ficou incessantemente exposto desde seu aparecimento na história, ou seja, o de ficar aprisionado em seu imediatismo junto com a burguesia, adquiriu com a socialdemocracia uma forma de organização política que interrompe artificialmente as mediações já penosamente conquistadas, para reduzir o proletariado à sua existência imediata, onde ele é um simples elemento da sociedade capitalista, e não, ao mesmo tempo, o motor de sua autodissolução e destruição. Essas “leis” fazem com que o proletariado ou se submeta a elas de modo involuntário e fatalista (as leis naturais da produção), ou as assimile “eticamente” em sua vontade (o Estado como ideia, como valor cultural). Enquanto partem de uma dialética objetiva e inacessível para a consciência reificada, tais leis podem levar o capitalismo ao seu declínio165. Mas enquanto ele subsistir, tal concepção da sociedade corresponderá aos interesses de classe elementares da burguesia. O fato de se revelarem as conexões parciais imanentes dessa existência imediata (quaisquer que sejam os problemas insolúveis por trás dessas formas abstratas de reflexão) e, ao mesmo tempo, de se ocultar a conexão unitária e dialética do conjunto oferece à burguesia todas as vantagens. Nesse terreno, portanto, a socialdemocracia tem, de antemão, de permanecer sempre a parte mais frágil. Não apenas porque renuncia espontaneamente à vocação histórica do proletariado, com a intenção de mostrar uma saída para os problemas do capitalismo que a burguesia não consegue resolver, tampouco porque assiste fatalisticamente como as “leis” do capitalismo levam em direção ao abismo, mas também porque ela tem de dar-se por vencida em cada uma das questões. Pois, diante da superioridade dos recursos do poder, do conhecimento, da formação, da rotina etc., que a burguesia sem dúvida possui e possuirá enquanto permanecer como classe dominante, a arma decisiva, a única superioridade eficaz do proletariado é sua capacidade de ver a totalidade da sociedade como totalidade concreta e histórica; de compreender as formas reificadas como processos entre os homens; de elevar positivamente à consciência o sentido imanente do desenvolvimento, que se apresenta apenas negativamente nas contradições da forma abstrata da existência, e de transpô-lo para a prática. Com a ideologia socialdemocrata, o proletariado recai em todas as antinomias da reificação, analisadas anteriormente em detalhes. O fato de o princípio “do homem” como valor, como ideal, como dever etc. desempenhar um papel cada vez mais forte justamente nessa ideologia – ao mesmo tempo, é claro, com um “discernimento” crescente da necessidade e da legalidade do acontecimento econômico-factual – é apenas um sintoma dessa recaída no imediatismo reificado da sociedade burguesa. Pois a justaposição imediata das leis naturais e do dever são a expressão intelectual mais coerente do ser social imediato na sociedade burguesa.”
164. Cf. o ensaio “Consciência de classe”.
165. Essas concepções encontram-se em estado puro no novo escrito programático de Kautsky. Não é preciso ir além da separação mecânica e rígida entre política e economia para perceber que ele é o sucessor dos equívocos de Lassale. Sua concepção sobre a democracia é bastante conhecida para que seja preciso analisá-la aqui. E, no que concerne ao fatalismo econômico, é característico que mesmo quando Kautsky admite a impossibilidade de prever concretamente o fenômeno econômico da crise, é evidente para ele que o curso dos acontecimentos deve se guiar pelas leis da economia capitalista; p. 57.


“Ainda mais importante do que essas distinções sistemáticas é o fato de que mesmo aqueles objetos, que se encontram abertamente no centro do processo dialético, também só são capazes de perder sua forma reificada num processo demorado. Num processo em que a tomada de poder pelo proletariado e mesmo a organização socialista do Estado e da economia significam apenas etapas, com certeza etapas muito importantes, mas de modo algum o ponto de chegada. Chega a parecer que o período decisivo de crise do capitalismo tende a intensificar ainda mais a reificação, a levá-la às últimas consequências. Mais ou menos como no sentido em que Lassalet180 escreve à Marx: “O velho Hegel costumava dizer: imediatamente antes que se apresente algo novo em termos de qualidade, o antigo estado qualitativo concentra-se em sua essência originária e puramente geral, em sua totalidade simples, superando novamente e retomando em si todas a suas diferenças e particularidades marcadas, que ele tinha estabelecido enquanto ainda era viável.” Por outro lado, também é correta a observação de Bukharin181 de que na época da dissolução do capitalismo as categorias fetichistas falham, de que é necessário recorrer à “forma natural” que lhe é subjacente. Ambas as concepções encontram-se, porém, apenas aparentemente em contradição, ou melhor, justamente na seguinte contradição: por um lado, o vazio crescente das formas de reificação – poder-se-ia dizer, o rompimento de sua crosta devido ao vazio interno –, sua incapacidade crescente de compreender os fenômenos, mesmo como fenômenos isolados ou como objetos da reflexão e do cálculo; por outro, vemos seu crescimento quantitativo, sua expansão vazia e extensiva por toda a superfície dos fenômenos constituir justamente em seu conflito o signo da sociedade burguesa declinante. E, com o agravamento crescente dessa oposição, surge para o proletariado tanto a possibilidade de substituir o invólucro vazio e roto pelos seus conteúdos positivos, como o perigo pelo menos temporariamente – de submeter-se ideologicamente a essas formas completamente vazias e ocas da cultura burguesa. No que diz respeito à consciência do proletariado, o desenvolvimento funciona de maneira ainda menos automática: para o proletariado, vale em medida crescente aquilo que o antigo materialismo mecânico e intuitivo não podia compreender, ou seja, que a transformação e a emancipação só podem ser o seu próprio ato, “que o próprio educador tem de ser educado”. O desenvolvimento econômico objetivo foi capaz apenas de criar a posição do proletariado no processo de produção. Tal posição determinou seu ponto de vista. Mas o desenvolvimento objetivo só conseguiu colocar ao alcance do proletariado a possibilidade e a necessidade de transformar a sociedade. No entanto, essa transformação só pode ser o ato –livre – do próprio proletariado.”
180. Carta de 12/12/1851, ed. de G. Mayer, p. 41.
181. Ökonomie der Transiormationsperiode, pp. 50-1.


“Pois uma revolução política apenas sanciona uma situação econômico-social que já se impôs, pelo menos parcialmente, na realidade econômica. A revolução substitui à força pelo direito novo, “correto” e “justo” a antiga ordem jurídica, considerada “injusta”. O ambiente social da vida não experimenta nenhuma reacomodação radical (historiadores conservadores da grande Revolução Francesa também acentuam esse caráter inalterável – e relativo – das condições “sociais” durante essa época). A revolução social, ao contrário, dirige-se exatamente para a modificação desse ambiente. E toda modificação semelhante vai tão profundamente contra os instintos do homem médio, que ele enxerga nisso uma ameaça catastrófica à vida em geral, um poder cego da natureza, tal como uma inundação ou um terremoto. Sem conseguir compreender a essência do processo, sua defesa totalmente desesperada volta-se para a luta contra as manifestações imediatas que ameaçam sua existência habitual. Assim, os proletários educados à maneira da pequena burguesia rebelavam-se contra fábricas e máquinas no início do desenvolvimento capitalista; a teoria de Proudhon também pode ser concebida como eco dessa defesa desesperada do antigo e habitual ambiente social.
Nesse ponto, o caráter revolucionário do marxismo torna-se mais facilmente compreensível. O marxismo é a doutrina da revolução exatamente porque compreende a essência do processo (em oposição aos seus sintomas e às suas formas de manifestação), porque mostra sua tendência decisiva que aponta para o futuro (em oposição aos fenômenos cotidianos). Justamente por isso ele é, ao mesmo tempo, a expressão ideológica da classe proletária que visa a emancipar a si mesma. Essa libertação se efetua, em primeiro lugar, sob a forma de rebeliões efetivas contra os fenômenos mais opressivos da ordem econômica capitalista e do seu Estado. Isoladas em si mesmas, essas lutas, que nunca conseguem sair vitoriosas mesmo em caso de sucesso, só podem tornar-se de fato revolucionárias quando o proletariado torna-se consciente daquilo que une esses conflitos uns aos outros e ao processo que impele inevitavelmente ao fim do capitalismo. Ao propor como programa a “reforma da consciência”, o jovem Marx já estava antecipando a essência de sua atividade posterior. Pois, por um lado, sua doutrina não é utópica, visto que parte do processo tal como se desdobra na realidade e não desenvolve nenhum “ideal” em relação a ele, mas pretende apenas revelar o seu sentido inerente. Simultaneamente, essa doutrina tem de ir além do que foi dado e focar a consciência do proletariado no conhecimento da essência e não na vivência do dado imediato. “A reforma da consciência”, diz Marx2, “consiste apenas em deixar que o mundo se dê conta de sua consciência, em despertá-lo do sonho sobre si mesmo, em explicar-lhe suas próprias ações [...] Revelar-se-á, então, que há muito tempo o mundo possui o sonho de algo do qual precisa possuir apenas a consciência para possui-lo efetivamente.”
2. Carta dos Anais franco-alemães, MEW I, p. 346 (grifado por mim).


“Ninguém acredita (e muito menos o Partido Comunista Russo) que se possa afinal simplesmente “decretar” o socialismo. Os fundamentos do modo de produção capitalista e com eles a “necessidade de leis naturais” que se impõe inevitavelmente não são de modo algum eliminados quando o proletariado toma o poder ou quando impõe às instituições uma socialização dos meios de produção, mesmo que bastante ampla. Mas a sua erradicação e substituição pelo modo de economia socialista, conscientemente organizado, não deve ser concebida simplesmente como um processo lento e complicado, mas, antes, como uma luta obstinada e conduzida conscientemente. É preciso lutar para tomar aos poucos o terreno dessa “necessidade”. Toda sobrevalorização da maturidade das circunstâncias, do poder do proletariado, toda subestimação do poder das forças opostas é paga amargamente sob a forma de crises, recuos, de desenvolvimentos econômicos que nos levam inevitavelmente de volta ao ponto de partida. No entanto, a observação de que o poder do proletariado e a possibilidade de controlar conscientemente a ordem econômica são frequentemente muito limitados não deveria nos levar a concluir que a “economia” do socialismo irá prevalecer por si mesma ou pelas “leis cegas” de suas forças motrizes, como no capitalismo. Interpretando uma carta a Kautsky, de 22 de setembro de 1891, Lênin7 diz: “Engels não considera absolutamente que a ‘econômica’ removeria imediatamente por si mesma todas as dificuldades do caminho [...] A adaptação da política à economia ocorrerá infalivelmente, mas não de uma só vez nem de maneira simples, fácil e imediata.” O controle consciente e organizado da ordem econômica só pode ser efetuado conscientemente, e o órgão de sua efetuação é justamente o Estado proletariado, o sistema dos sovietes. Portanto, os sovietes são, de fato, “uma antecipação da situação jurídica” de uma fase posterior da divisão de classes, mas não significam uma utopia vazia e suspensa no ar; pelo contrário, são o único meio apropriado para um dia dar vida a essa situação antecipada. Pois o socialismo jamais seria alcançado “por si mesmo”, como resultado de um desenvolvimento econômico natural. De fato, as leis naturais do capitalismo levam inevitavelmente à sua última crise, mas no fim do seu caminho se encontraria a aniquilação de toda civilização, uma nova barbárie.
É exatamente esta a diferença mais profunda entre as revoluções burguesas e proletárias. A essência brilhantemente arrebatadora das revoluções burguesas baseia-se no fato de que, numa sociedade cuja estrutura absolutista e feudal está profundamente minada pelo capitalismo já fortemente desenvolvido, elas tiram as consequências políticas, estatais e jurídicas, entre outras, de um desenvolvimento socioeconômico já amplamente executado. Porém, o elemento efetivamente revolucionário é a transformação econômica da ordem de produção feudal em ordem de produção capitalista, de modo que, do ponto de vista teórico, seria plenamente concebível a realização desse desenvolvimento sem revolução burguesa, sem transformação política por parte da burguesia revolucionária, e aquilo que não foi eliminado da superestrutura feudal e absolutista mediante as “revoluções vindas de cima”, esgota-se “por si mesmo” na época do capitalismo já desenvolvido. (O desenvolvimento alemão corresponde em parte a esse esquema.)
Certamente, uma revolução proletária também seria inconcebível se seus pressupostos e precondições econômicas já não tivessem sido produzidos no seio da sociedade capitalista pelo desenvolvimento da produção capitalista. A enorme diferença entre os dois tipos de desenvolvimento consiste, porém, no fato de que o capitalismo desenvolveu-se como modo econômico já no interior do feudalismo, exaurindo-o. Em contrapartida, seria uma fantástica utopia imaginar que no interior do capitalismo pudesse surgir algo que tendesse ao socialismo e diferisse, de um lado, dos pressupostos econômicos objetivos de sua possibilidade (que só após e em consequência da derrocada do capitalismo poderiam ser convertidos em elementos reais do modo de produção socialista), e, de outro, do desenvolvimento do proletariado como classe. Que se pense no desenvolvimento sofrido pela manufatura e pelo sistema capitalista de arrendamento ainda durante a existência da ordem social feudal. Para ambos, bastava remover as barreiras jurídicas ao seu livre desenvolvimento. Já a concentração do capital em cartéis, trustes etc. constitui, ao contrário, um pressuposto incontornável da transformação do modo de produção capitalista em socialista.
No entanto, mesmo a concentração capitalista mais desenvolvida permanecerá qualitativamente distinta, inclusive em termos econômicos, de uma organização socialista e não permitirá transformar-se “por si mesma” em socialista nem converter-se “legalmente” em socialista, no quadro da sociedade capitalista.”
7. Lenin-Zinoviev, Gegen den Strom, p. 409.


“Uma tarefa se torna visível em sua possibilidade abstrata muito antes das formas concretas de sua realização.”


A Crise ideológica do proletariado reside justamente no fato de essa tendência ainda não ter se tornado realidade, embora em vários casos as precondições econômicas e sociais para a sua realização tenham sido dadas. Essa crise ideológica mostra-se, por um lado, no fato de que a situação objetivamente muito precária da sociedade burguesa ainda se reflete na mente dos proletários com sua antiga solidez; mostra-se também no fato de que em muitos aspectos o proletariado continua preso às formas capitalistas de pensamento e sensibilidade. Por outro, esse aburguesamento do proletariado adquire uma forma de organização própria nos partidos operários mencheviques e nas lideranças sindicais controladas por eles. Essas organizações passam a trabalhar conscientemente para conservar a mera espontaneidade dos movimentos proletários tal como ela se apresenta (sua dependência em relação ao seu ensejo imediato, sua fragmentação por profissão, país etc.), e para impedir que eles voltem sua atenção para a totalidade, seja pela concentração territorial, profissional etc., seja pela unificação do movimento econômico com o político. Com isso, os sindicatos acabam se encarregando mais de atomizar, de despolitizar o movimento e de encobrir a relação com o todo, enquanto os partidos mencheviques cumprem a função de fixar ideológica e organizacionalmente a reificação na consciência do proletariado, de mantê-lo no nível do aburguesamento relativo. No entanto, só podem desempenhar essa tarefa porque o proletariado se encontra num estado de crise ideológica; porque esse desenvolvimento ideológico na ditadura e no socialismo também é teoricamente impossível para o proletariado; porque a crise, além do abalo econômico do capitalismo, também implica uma mudança ideológica do proletariado, que se desenvolveu no capitalismo sob a influência das formas de vida da sociedade burguesa. Por certo, essa mudança ideológica surgiu a partir da crise econômica e da oportunidade objetiva que esta criou para uma tomada do poder, mas sua evolução em nenhum momento se deu paralelamente, de modo automático e “regular”, à crise objetiva. A única solução para essa crise é a livre ação do proletariado.

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