Editora: WMF Martins
Fontes
ISBN:
978-85-469-0240-8
Tradução e notas: Marcelo
Backes
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 600
“O empenho
filosófico do jovem Marx orientava-se, em grande medida, no sentido de refutar
as diversas teorias equivocadas da consciência (tanto a teoria “idealista” da
escola hegeliana quanto a “materialista” de Feuerbach) e alcançar uma concepção
correta sobre o papel da consciência na história. Já a Correspondência de 1843
concebe a consciência como imanente ao desenvolvimento. A consciência não está
além do desenvolvimento histórico real. Não deve ser introduzida no mundo
somente pelo filósofo; o filósofo não tem, portanto, o direito de lançar um
olhar arrogante sobre as pequenas lutas do mundo e de desprezá-las.
“Mostramos-lhe simplesmente [ao mundo] o porquê da sua luta na realidade, e a
consciência é algo que ele tem de adquirir, mesmo que não queira.” Trata-se
então somente de “explicar-lhes suas próprias ações”44. A grande
polêmica contra Hegel45, na Sagrada
família, concentra-se principalmente nesse ponto. A
insuficiência de Hegel consiste no fato de ele deixar apenas aparentemente que
o espírito absoluto componha de fato a história. Em relação aos processos
históricos, a transcendência da consciência resultante dessa insuficiência
torna-se, nos discípulos de Hegel, uma oposição arrogante e reacionária entre o
“espírito” e a “massa”, oposição cujas debilidades, cujos absurdos e
retrocessos a um nível já superado por Hegel são criticados impiedosamente por
Marx. A crítica aforística a Feuerbach serve como complemento disso. Por outro
lado, a ideia alcançada pelo materialismo de que a consciência é algo que
pertence a este mundo passa a ser vista como uma simples fase do
desenvolvimento, como a fase da “sociedade burguesa”, e a isso se opõe “a
atividade prático-crítica”, a “transformação do mundo” como tarefa da
consciência. Assim estava dado o fundamento filosófico para o ajuste de contas
com os utopistas. Com efeito, no pensamento destes mostra-se a mesma dualidade
de movimento social e consciência. A consciência aparece na sociedade como
sendo de outro mundo e a retira do falso caminho até então percorrido para o
caminho correto. O caráter não desenvolvido do movimento proletário ainda não
lhes permite perceber na própria história, na maneira pela qual o proletariado
se organiza em classe, ou seja, na consciência de classe do proletariado, a
portadora do desenvolvimento. Ainda não estão em condição de “prestar contas do
que se desenrola diante dos seus olhos e de se tornar o seu porta-voz”46.
44. Cartas dos Anais franco-alemães, MEW
I, p. 345.
45. Cf. o ensaio “O que é marxismo
ortodoxo?”.
46. Elend der Philosophie, MEW 4, p. 143. Cf. também 111, 3, de Das kommunistische
Manifest, MEW 4, pp. 489
ss.
“Pois é
claro que toda a estrutura da produção capitalista repousa sobre essa
interação entre uma necessidade submetida a leis estritas em todos os fenômenos
isolados e uma irracionalidade relativa do processo como um todo. “A divisão do
trabalho, tal como existe na manufatura, implica a autoridade absoluta do
capitalista sobre homens que constituem simples membros de um mecanismo de
conjunto que lhes pertence; a divisão social do trabalho opõe produtores
independentes de mercadorias, que não reconhecem outra autoridade além daquela
da concorrência, da coerção exercida pela pressão dos seus interesses mútuos.”29
Isso porque a racionalização capitalista, que se baseia no cálculo econômico
privado, reclama em toda manifestação da vida essa relação mútua entre o
pormenor submetido a leis e a totalidade contingente; ela pressupõe uma
sociedade assim estruturada; produz e reproduz essa estrutura na medida em que
se apossa da sociedade. Isso tem seu fundamento já na essência do cálculo
especulador, da prática econômica dos possuidores de mercadorias, no estágio em
que a troca de mercadorias se tornou universal. A concorrência entre os
diversos proprietários de mercadorias seria impossível se à racionalidade dos
fenômenos isolados correspondesse também uma configuração exata, racional e
funcional das leis para toda a sociedade. Para que um cálculo racional seja
possível, os sistemas de leis que regulam todas as particularidades de sua produção
devem ser dominados por completo pelo proprietário de mercadorias. As
oportunidades de exploração, as leis do “mercado” devem ser igualmente
racionais, no sentido de que elas devem ser calculáveis e avaliadas segundo
suas possibilidades. No entanto, não podem ser dominadas por uma “lei” como o
são os fenômenos isolados, não podem de modo algum ser organizadas
racionalmente por inteiro. Por si só, isso não exclui, evidentemente, o
predomínio de uma “lei” sobre a totalidade. Contudo, essa “lei” deveria ser, de
um lado, o produto “inconsciente” da atividade autônoma dos proprietários de
mercadorias, que atuam sem depender uns dos outros, ou seja, uma lei das
“contingências” que reagisse umas sobre as outras e não a de uma organização
realmente racional. De outro, esse sistema de leis deve não somente se impor
aos indivíduos, mas ainda jamais ser inteiramente adequadamente cognoscível.
Pois o conhecimento completo da totalidade asseguraria ao sujeito desse
conhecimento tal monopólio, que acabaria suprimindo a economia política.”
29. Kapital, I, IV, MEW 23, p. 377.
“O que há
de novo no racionalismo moderno é que ele reivindica para si – e sua
reivindicação vai crescendo ao longo do desenvolvimento – a descoberta do princípio
da ligação entre todos os fenômenos que se opõem à vida do homem na
natureza e na sociedade. Em contrapartida, todos os racionalismos anteriores
nunca passaram de sistemas parciais. Os problemas “últimos” da
existência humana persistem numa irracionalidade que escapa ao entendimento humano.
Quanto mais tal sistema racional e parcial é ligado a essas questões “últimas”
da existência, mais cruamente revela-se seu caráter simplesmente parcial de
auxiliar e que não apreende a “essência”.”
“Marx
exprimiu claramente a posição particular do proletariado na sociedade e na
história, o ponto de vista a partir do qual sua essência adquire importância
como sujeito-objeto idêntico do processo histórico-social de desenvolvimento,
já em sua primeira crítica à Filosofia
do direito, de Hegel: “Quando o proletariado anuncia a
dissolução da ordem mundial até então existente, exprime apenas o segredo de
sua própria existência, pois ele é a dissolução efetiva dessa ordem mundial.”
Sendo assim, o autoconhecimento do proletariado é, ao mesmo tempo, o
conhecimento objetivo da essência da sociedade. Enquanto persegue os seus fins
de classe, o proletariado realiza de maneira consciente os fins – objetivos –
do desenvolvimento da sociedade, os quais, sem a sua intervenção consciente,
teriam de permanecer como possibilidades abstratas e barreiras objetivas.
Mas o que
se modificou socialmente com essa atitude e até mesmo com a possibilidade de
tomar intelectualmente uma posição em relação à sociedade? “De início”:
absolutamente nada. Pois o proletariado aparece como produto da ordem social
capitalista. Suas formas de existência – como mostramos na primeira seção – são
constituídas de tal maneira, que a reificação deve se manifestar nelas do modo
mais marcante e mais penetrante, produzindo a desumanização mais profunda.
Portanto, o proletariado partilha a reificação de todas as manifestações de
vida com a burguesia. Diz Marx108: “A classe possuidora e a classe
do proletariado apresentam a mesma auto-alienação humana. Mas a primeira
sente-se à vontade e confirmada nessa auto-alienação, reconhece a alienação
como seu próprio poder e possui nela a aparência de uma existência humana. A
segunda se sente aniquilada na alienação, percebe nela sua impotência e a
realidade de uma existência desumana.”
“Por
certo, mesmo no primeiro caso, a ciência histórica segundo o ideal de
conhecimento de Rickert apareceria como extremamente problemática. Pois os
“fatos” da história, a despeito de toda “caracterização de valor”, têm de
permanecer numa facticidade bruta e incompreendida, visto que toda
possibilidade de compreendê-los realmente, de perceber seu verdadeiro sentido, sua
real função no processo histórico, tornou-se sistematicamente impossível
com a renúncia do método a um conhecimento da totalidade. Mas a questão da
história universal, como mostramos111, é um problema de método que
surge necessariamente em toda exposição até do menor capítulo da história, do
menor recorte. Pois a história como totalidade (história universal) não é nem a
soma simplesmente mecânica dos acontecimentos históricos isolados, nem um
princípio heurístico que transcende cada acontecimento histórico e que,
portanto, só poderia se impor por meio de uma disciplina própria, a filosofia
da história. A totalidade da história é, antes de tudo, ela mesma um poder
histórico real– ainda que inconsciente e por isso desconhecida até hoje –, que
não se deixa separar da realidade (e, portanto, do conhecimento) dos fatos
históricos isolados, sem suprimir também sua realidade e sua facticidade. Ela é
o fundamento último e real de sua realidade, de sua facticidade, portanto, da
verdadeira possibilidade de conhecê-las, mesmo como fatos isolados. Já evocamos
a teoria das crises de Sismondi para mostrar como a utilização deficiente da
categoria da totalidade impediu o conhecimento real de um fenômeno isolado, a
despeito da observação exata de todos os seus detalhes. Nessa mesma ocasião,
vimos que a integração na totalidade (cuja condição é admitir que a verdadeira
realidade histórica é precisamente o todo do processo histórico) muda
não somente nosso julgamento sobre o fenômeno isolado de maneira decisiva, mas
também provoca uma mudança fundamental no conteúdo desse fenômeno, enquanto
fenômeno isolado. A oposição entre essa atitude, que isola os fenômenos
históricos, e o ponto de vista da totalidade se impõe de maneira ainda mais
flagrante se compararmos, por exemplo, a concepção burguesa e econômica da
função da máquina com aquela de Marx112: “As contradições e os
antagonismos inseparáveis da utilização capitalista da maquinaria não existem
porque não nascem da própria maquinaria, mas de sua utilização capitalista!
Sendo assim, uma vez que a maquinaria, considerada isoladamente, encurta o
tempo de trabalho, enquanto seu uso capitalista prolonga a jornada de trabalho;
uma vez que, por si só, ameniza o trabalho, enquanto seu uso capitalista
aumenta sua intensidade; uma vez que, por si só, representa uma vitória do
homem sobre as forças da natureza, enquanto seu uso capitalista o coloca sob o
jugo dessas forças; uma vez que, por si só, aumenta a riqueza dos produtores,
enquanto seu uso capitalista os empobrece etc., o economista burguês explica
que a consideração da maquinaria em si prova rigorosamente que todas essas
contradições patentes não passam de uma aparência da realidade comum, mas que,
em si, isto é, também na teoria, não existem.”
111. Cf. o ensaio, “O que é o marxismo
ortodoxo?”.
112. Kapital I, MEW 23, p. 465
“A
realidade imediata não pode, nem para o homem que a vive, nem para o
historiador, ser dada imediatamente em suas formas estruturais verdadeiras.
Estas devem ser primeiro buscadas e encontradas – e o caminho que leva à sua
descoberta é o caminho do conhecimento do processo de desenvolvimento histórico
como totalidade. À primeira vista – e todos aqueles que insistem no imediatismo
nunca conseguirão superar essa “primeira vista” –, parece que ir mais longe
implica um movimento de puro pensamento, um processo de abstração. Mas essa
aparência surge dos hábitos de pensar e de sentir do simples imediatismo, no
qual as formas imediatamente dadas dos objetos, sua existência e seu modo de
ser imediatos aparecem como o que é primeiro, real, objetivo, enquanto suas
“relações” se mostram como algo secundário e meramente subjetivo. Para esse
imediatismo, toda modificação real deve representar algo incompreensível. O
fato inegável da modificação se reflete, para as formas de consciência do
imediatismo, como catástrofe, como mudança brutal e repentina, que vem do
exterior e exclui toda mediação113. Para poder com a mudança, o
pensamento deve superar a separação rígida dos seus objetos; deve colocar suas
interrelações e a interação dessas “relações” e das “coisas” no mesmo plano de
realidade. Quanto mais se distancia do simples imediatismo, mais se estende a
malha dessas “relações”, quanto mais completa a integração das “coisas” ao
sistema dessas relações, mais a mudança parece perder seu caráter
incompreensível, despojar-se de sua essência aparentemente catastrófica e
tornar-se, assim, compreensível.”
113 Na própria história, qualquer um pode ver
facilmente que uma concepção que não se refere à história mundial nem à totalidade
do processo de desenvolvimento acaba por transformar os pontos de mudança mais
decisivos da história em catástrofes absurdas, visto que suas causas situam-se
fora daqueles domínios em que suas consequências apresentam-se como sendo as
mais catastróficas. Basta pensar na migração dos povos, na linha descendente da
história alemã desde o Renascimento etc.”
“Desde a
Guerra Mundial e a Revolução Mundial, a incapacidade completa de todos os
pensadores e historiadores burgueses de ver os acontecimentos presentes da
história mundial como história universal permanecerá como uma das mais
horríveis lembranças para qualquer homem em são juízo. E esse fracasso total,
que levou historiados meritórios e pensadores perspicazes ao piedoso ou
desprezível nível intelectual do pior jornalismo de província, não pode ser
sempre explicado como mero resultado de pressões exteriores (censura, adaptação
aos interesses “nacionais” de classe etc.). A razão metódica para esse fracasso
baseia-se também no fato de que relação contemplativa e imediata entre sujeito
e objeto do conhecimento cria justamente esse espaço intermediário e irracional,
“obscuro e vazio”, conforme a descrição de Fichte. Essa obscuridade e esse
vazio, presentes no conhecimento do passado, mas ocultos pelo distanciamento
criado pelo tempo, pelo espaço e pela mediação histórica, são agora
necessariamente desvendados. Talvez a bela parábola de Ernst Bloch possa
ilustrar esse limite teórico com mais clareza do que uma análise detalhada, que
de todo modo não pode ser tratada aqui. Quando a natureza torna-se paisagem –
em oposição, por exemplo, à vida inconsciente do camponês na natureza –, o
imediatismo artístico vivenciado na paisagem, que evidentemente passou por
muitas mediações, pressupõe nesse caso uma distância espacial entre o
observador e a paisagem. O observador está fora dela, do contrário seria
impossível que a natureza se tornasse uma paisagem para ele. Se ele tentasse
integrar a si mesmo e a natureza que o envolve imediatamente e espacialmente na
“natureza como paisagem”, sem sair desse imediatismo contemplativo e estético,
logo ficaria claro que a paisagem começa a ser paisagem apenas a partir
de uma distância determinada (embora variável) em relação ao observador, e que
este só pode ter com a natureza essa relação de paisagem como observador
espacialmente separado. Evidentemente, isso é apenas um exemplo que esclarece a
situação teórica, pois a relação com a paisagem encontra na arte sua expressão
adequada e não problemática, embora não se possa esquecer que na arte também se
estabelece essa mesma distância intransponível entre o sujeito e o objeto,
sempre presente na vida moderna, e que a arte pode significar apenas a
configuração, e não a resolução dessa problemática. No entanto, tão logo a
história é impelida para o presente – e isso é inevitável, visto que nos
interessamos pela história para compreender realmente o presente –, esse
“espaço nocivo”, segundo as palavras de Bloch, torna-se evidente. Como
resultado da incapacidade de compreender a história, a atitude contemplativa da
burguesia polariza-se em dois extremos: os “grandes indivíduos” como criadores
soberanos da história e as “leis naturais” do meio histórico. Ambos são
igualmente impotentes – quer estejam separados ou reunidos – quando desafiados
a produzir uma interpretação do presente em toda a sua novidade radical119.”
119. Remeto novamente ao dilema do antigo
materialismo exposto por Plekhanov. Conforme Marx mostrou em sua crítica contra
Bruno Bauer (Die heilige Familie, MEW 2, pp. 82 ss.), a posição lógica de toda
concepção burguesa da história tende à mecanização da “massa” e à
irracionalização do herói. No entanto, pode-se encontrar, em Carlyle ou
Nietzsche, exatamente a mesma dualidade de pontos de vista. Mesmo um
historiador tão prudente como Rickert (apesar das ressalvas, por exemplo, op.
cit., p. 380) tende a considerar o “meio” e o “movimento das massas” como
determinados por leis naturais e apenas a personalidade individual como
individualidade histórica (op. cit., pp. 444, 460-1 etc.).
“Tanto a
forma objetiva do presente, elaborada intelectualmente, quanto o ponto de
partida objetivo dessas mesmas elaborações fazem parte da sua essência social.
Se, portanto, o ponto de vista do proletariado é confrontado com o da classe
burguesa, o pensamento proletário não exige de modo algum uma tábula rasa, um
recomeço “sem pressupostos” para a compreensão da realidade, como o fez o
pensamento burguês em relação às formas feudais da Idade Média – pelo menos em
sua tendência fundamental. É justamente porque o pensamento proletário tem por
objetivo prático a transformação fundamental do conjunto da sociedade
que ele concebe a sociedade burguesa e todas as suas produções intelectuais e
artísticas como ponto de partida para seu próprio método. A função metodológica
das categorias da mediação consiste no fato de que, com sua ajuda, aquelas
significações imanentes que advêm necessariamente aos objetos da sociedade
burguesa (mas que também estão necessariamente ausentes do surgimento imediato
desses objetos na sociedade burguesa e, portanto, do seu reflexo mental no
pensamento da burguesia) podem tornar-se objetivamente ativas e com isso ser
elevadas ao nível da consciência do proletariado. Ou seja, não é nem um mero
acaso, nem um problema puramente teórico-científico o fato de a burguesia
deter-se teoricamente no imediatismo, enquanto o proletariado vai além dele. Na
diferença dessas duas atitudes teóricas expressa-se, antes, a distinção do ser
social de ambas as classes. Certamente, o conhecimento resultante do ponto de
vista do proletariado é aquele objetiva e cientificamente superior. Deve-se ao
seu método a solução daqueles problemas em torno dos quais os maiores
pensadores da época burguesa se debateram inutilmente, ou seja, o adequado
conhecimento histórico do capitalismo, que para o pensamento burguês devia
permanecer inalcançável. Contudo, essa gradação objetiva do valor cognitivo do
método novamente se mostra, por um lado, como problema histórico-social, como
consequência necessária dos tipos de sociedade representados por ambas as
classes e suas sucessões históricas, de modo que o “falso”, o “unilateral” da
compreensão burguesa da história aparece como fator necessário na construção
metódica do conhecimento social127. Por outro, isso mostra que todo
método está necessariamente ligado ao ser da classe concernente. Para a
burguesia, seu método ascende diretamente do seu ser social, o que significa
que o simples imediatismo adere ao seu pensamento como algo exterior, mas, por
isso mesmo, também como uma barreira insuperável do seu pensamento. Para o
proletário, ao contrário, trata-se de superar internamente essa barreira do
imediatismo no ponto departida, no momento em que assume seu ponto de
vista. E visto que o método dialético produz e reproduz continuamente seus
próprios aspectos essenciais, que sua essência é a negação de um
desenvolvimento retilíneo e plano do pensamento, o proletariado encontra-se repetidas
vezes confrontado com esse problema do ponto de partida tanto em seu
esforço para compreender a realidade, como em cada passo prático e histórico.
Para o proletariado, a barreira do imediatismo tornou-se uma barreira interna.
Com isso, o problema é formulado claramente; com semelhante formulação do
problema, já se abre caminho para uma possível resposta128.”
127. De
fato, Engels também aceitou a teoria hegeliana do falso (que tem sua melhor
definição no prefácio à Fenomenologia, Werke, II, pp. 30 ss.). Cf., por
exemplo, a crítica do papel do “mal” na história. Feuerbach, MEW 21, p.
287. Isso se refere, no entanto, somente aos representantes efetivamente
originais do pensamento burguês. Epígonos, ecléticos e meros defensores dos
interesses da classe declinante pertencem a uma ordem de consideração
totalmente diferente.
128. Sobre
essa diferença entre proletariado e burguesia, cf. o ensaio “Consciência de
classe”.
“A
quantificação dos objetos e o fato de serem determinados por categorias abstratas
da reflexão manifesta-se na vida do trabalhador diretamente como um processo de
abstração, que se efetua nele próprio, que o separa de sua força de trabalho,
obrigando-o a vendê-la como uma mercadoria que lhe pertence. Ao vender essa sua
única mercadoria, e visto que ela é inseparável de sua pessoa física, o
trabalhador insere a si mesmo e a ela num processo parcial, produzido mecânica
e racionalmente, que ele já descobriu pronto, acabado e funcionando sem ele, e
no qual ele é inserido como mero número reduzido a uma quantidade abstrata,
como um instrumento específico mecanizado e racionalizado.
Desse
modo, para o trabalhador, o caráter reificado da manifestação imediata da
sociedade capitalista é levado ao extremo. Evidentemente, também para os capitalistas
existe essa duplicação da personalidade, essa dilaceração do homem num elemento
do movimento das mercadorias e num espectador (objetivo e impotente) desse
movimento131. Mas, para a sua consciência, esse movimento assume
necessariamente a forma de uma atividade – decerto objetivamente aparente –, de
um efeito do seu sujeito. Essa aparência esconde dele o verdadeiro estado das
coisas, enquanto para o trabalhador, a quem é negada essa margem de atividade
aparente, a dilaceração do seu sujeito conserva a forma brutal do que tende a
ser sua escravização sem limites. Por isso, enquanto objeto, é obrigado a
sofrer um processo em que se transforma em mercadoria e se reduz à simples
quantidade.”
131. Nisso
se baseiam categorialmente todas as chamadas teorias da abstinência. A isso
pertence sobretudo o significado, destacado por Max Weber, da “ascese
intramundana” para o nascimento do “espírito” do capitalismo. Marx também
constata esse fato, quando ressalta que, para os capitalistas, “seu próprio
consumo privado é considerado como um roubo na acumulação do seu capital, assim
como na contabilidade italiana os gastos privados figuram ao lado do débito dos
capitalistas, oposto ao capital”. Kapital I, MEW 23, p. 619.
“Isso nos
permite compreender o motivo pelo qual somente no proletariado a transformação
em mercadoria da produção do indivíduo, antes separada de toda a sua
personalidade, converte-se numa consciência revolucionária de classe. Com
efeito, mostramos na primeira seção que a estrutura fundamental da reificação
pode ser comprovada por todas as formas sociais do capitalismo moderno
(burocracia). No entanto, essa estrutura só se torna evidente e só pode se
tornar consciente na relação de trabalho do proletariado. Antes de tudo, seu
trabalho possui, já no seu ser imediatamente dado, a forma nua e abstrata da
mercadoria, enquanto em outras formas essa estrutura esconde-se atrás de uma
fachada de “trabalho intelectual”, de “responsabilidade” etc. (às vezes atrás
das formas de “patriarcalismo”); e quanto mais profundamente a reificação se
estender na “alma” daquele que vende sua produção como mercadoria, mais
ilusória será essa aparência (jornalismo). A essa dissimulação objetiva da
forma mercantil corresponde um elemento subjetivo, ou seja, embora o processo que
reifica o trabalhador e o transforma em mercadoria o desumanize, atrofiando e
mutilando sua “alma” – enquanto ele não se rebelar conscientemente contra isso
–, sua essência humana e anímica não são transformadas em mercadoria. Portanto,
ele pode objetivar-se internamente de maneira completa contra essa sua
existência, enquanto o homem reificado na burocracia etc. reifica-se,
mecaniza-se, torna-se mercadoria, também naqueles órgãos que poderiam ser os
únicos portadores de sua rebelião contra essa reificação. Seus pensamentos,
sentimentos etc. são igualmente reificados em seu ser qualitativo. “Porém, é
muito mais difícil”, diz Hegel137, “tornar fluidos os pensamentos
rígidos do que a existência sensível.” Por fim, essa corrupção assume também
formas objetivas. O trabalhador vê sua posição no processo de produção ora como
algo definitivo, ora como uma forma imediata do caráter em si da mercadoria (a
insegurança da oscilação diária do mercado etc.). Em contrapartida, em outras
formas existe tanto a aparência de uma estabilidade (a rotina do serviço, a
aposentadoria etc.) como a possibilidade – abstrata – de uma ascensão individual
à classe dominante. Com isso, cultiva-se uma “consciência de status” apropriada
para impedir de maneira eficaz o surgimento da consciência de classe. Desse
modo, a negatividade puramente abstrata na existência do trabalhador constitui
objetivamente não apenas a forma mais típica de manifestação da reificação, o
modelo estrutural para a socialização capitalista; é também, subjetivamente e
por essa razão, o ponto em que essa estrutura pode ser elevada à consciência e,
dessa maneira, rompida na prática. “O trabalho enquanto determinação deixou de
constituir com o indivíduo uma particularidade”, diz Marx138; é
preciso apenas que as falsas formas de manifestação dessa existência sejam
abolidas em seu imediatismo, para que a própria existência surja como classe
para o proletariado.”
137. Werke n, p. 27.
“No
entanto, a condição social do proletariado e seu ponto de vista correspondente
ultrapassam de maneira qualitativamente decisiva o exemplo aqui mencionado. A
peculiaridade do capitalismo consiste exatamente no fato de ele superar todas
“as barreiras naturais” e transformar o conjunto das relações entre os homens
numa relação puramente social142. Aprisionado nas categorias
fetichistas, o pensamento burguês faz com que os efeitos dessas relações
recíprocas dos homens se solidifiquem; por isso, esse pensamento permanece
intelectualmente atrasado em relação ao desenvolvimento objetivo. As categorias
abstratas e racionais da reflexão, que constituem a expressão objetiva e
imediata dessa – primeira – socialização efetiva de toda a sociedade humana,
aparecem para o pensamento burguês como algo último e insuperável. (Por isso, o
pensamento burguês encontra-se numa relação imediata com elas.) O proletariado,
porém, está colocado no centro desse processo de socialização. Essa metamorfose
do trabalho em mercadoria elimina, por um lado, tudo o que é “humano” da
existência imediata do proletariado e, por outro, o mesmo desenvolvimento anula
em medida crescente tudo o que é “natural”, toda relação direta com a natureza
partindo das formas sociais, de tal modo que, justamente em sua objetividade
distante da humanidade e mesmo inumana, o homem socializado pode revelar-se
como seu núcleo. E é nessa objetivação, nessa racionalização e coisificação de
todas as formas sociais que aparece claramente, pela primeira vez, a estrutura
da sociedade constituída a partir das relações dos homens entre si.”
142. Cf. a esse respeito a análise de Marx
sobre o exército industrial de reserva e sobre a superpopulação. Kapital I, MEW23, pp. 657 ss.
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