sexta-feira, 8 de maio de 2020

História e Consciência de Classe: Estudos sobre a dialética marxista (Parte II) – György Lukács

Editora: WMF Martins Fontes
ISBN: 978-85-469-0240-8
Tradução e notas: Marcelo Backes
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 600
Sinopse: Ver Parte I



“Para o indivíduo – seja ele capitalista ou proletário –, o mundo ao seu redor, o meio social (e a natureza, enquanto seu reflexo e projeção teórica) devem aparecer como submetidos a um destino brutal e absurdo, como sendo para ele eternamente estranhos. Esse mundo só pode ser compreendido por ele se assumir, na teoria, a forma de “leis eternas da natureza”, isto é, se adquirir uma racionalidade estranha ao homem, incapaz de ser influenciada ou penetrada pelas possibilidades da ação do indivíduo; se o homem adotar a seu respeito uma atitude puramente contemplativa e fatalista. Num mundo como esse, a possibilidade de ação oferece apenas dois caminhos, que, no entanto, são dois modos aparentes de mudar o mundo. Em primeiro lugar, a utilização para fins humanos determinados (a técnica, por exemplo) das “leis” imutáveis, aceitas com fatalismo e conhecidas segundo o modo já indicado. Em segundo, a ação dirigida apenas para o interior, a tentativa de realizar a transformação do mundo no único ponto do mundo que permaneceu livre, o homem (ética). Mas como a mecanização do mundo mecaniza necessariamente também seu sujeito (o homem), essa ética permanece igualmente abstrata, apenas normativa, e não realmente ativa e criadora de objetos, mesmo em relação à totalidade do homem isolado do mundo. Ela simplesmente permanece prescritiva, com um caráter imperativo. O elo metódico entre a Crítica da razão pura e a Crítica da razão prática, de Kant é obrigatório e inelutável. E todo “marxista” que abandonou a consideração da totalidade do processo histórico, o método de Hegel e Marx, no estudo da realidade econômica e social, para se reaproximar de algum modo da consideração “crítica” do método não-histórico de uma ciência específica que busca “leis”, deve necessariamente – desde que se ataque o problema da ação – retornar à ética imperativa abstrata da escola kantiana.
Afinal, o rompimento com a consideração da totalidade rompe também a unidade da teoria e prática. A ação, a práxis – nas quais Marx faz culminar suas Teses sobre Feuerbachimplicam, por essência, uma penetração, uma transformação da realidade. Mas a realidade só pode ser compreendida e penetrada como totalidade, e somente um sujeito que é ele mesmo uma totalidade é capaz dessa penetração. Não é a toa que o jovem Hegel10 põe como primeira exigência de sua filosofia o princípio segundo o qual “o verdadeiro deve ser compreendido e exprimido não somente como substância mas igualmente como sujeito”. Ele desmascarou assim, a falha mais grave, o limite último da filosofia clássica alemã, ainda que o cumprimento real dessa exigência tenha sido recusado à sua própria filosofia; esta permaneceu, sob vários aspectos, prisioneira dos mesmos limites que a dos seus predecessores. Somente a Marx estava reservado descobrir concretamente essa “verdade enquanto sujeito” e estabelecer, assim, a unidade da teoria e da práxis, ao centrar na realidade do processo histórico e limitar a ela a realização da totalidade reconhecida e ao determinar, portanto, a totalidade cognoscível e aquela a ser conhecida. A superioridade metódica e científica do ponto de vista da classe (em oposição ao do indivíduo) já foi esclarecida no que precede. Agora é também o fundamento dessa superioridade que se torna claro: somente a classe, por sua ação, pode penetrar a realidade social e transformá-la em sua totalidade. Por isso, por ser a consideração da totalidade, a “crítica” que se exerce a partir desse ponto de vista é a unidade dialética da teoria e da práxis. Ela é, numa unidade dialética indissolúvel, ao mesmo tempo fundamento e consequência, reflexo e motor do processo histórico-dialético. O proletariado, como sujeito do pensamento da sociedade, rompe de um só golpe o dilema da impotência, isto é, o dilema do fatalismo das leis puras e da ética das intenções puras.
Se, portanto, para o marxismo, o conhecimento do caráter historicamente limitado do capitalismo (o problema da acumulação) torna-se uma questão vital, é porque somente esse elo, a unidade da teoria e da prática, pode fazer manifestar como fundamentado a necessidade da revolução social, da transformação total da totalidade da sociedade. É somente no caso de o caráter cognoscível e o próprio conhecimento desse elo poderem ser concebidos como produtos do processo que o círculo do método dialético – essa determinação da dialética que também vem de Hegel– pode se fechar.”
10.Phänomenologie des Geistes. Prefácio.


“O proletariado é, ao mesmo tempo, o produto da crise permanente do capitalismo e o executor das tendências que impelem o capitalismo para a crise. “O proletariado”, diz Marx13, “executa o julgamento ao produzir o proletariado.” Ao reconhecer sua situação, ele age. Ao combater o capitalismo, reconhece sua situação na sociedade.
No entanto, a consciência de classe do proletariado, a verdade do processo como “sujeito”, está longe de ser estável, ou de progredir segundo “leis” mecânicas. Ela é a consciência do próprio processo dialético; ela é igualmente um conceito dialético. Pois o aspecto prático e ativo da consciência de classe, sua essência verdadeira, só pode se tornar visível em sua forma autêntica quando o processo histórico exige imperiosamente sua entrada em vigor, quando uma crise aguda da economia a leva à ação. Do contrário, correspondendo à crise permanente e latente, ela permanece teórica e latente14: confronta as questões e os conflitos individuais da atualidade com suas exigências como “mera” consciência, como “soma ideal”, segundo as palavras de Rosa Luxemburgo.
No entanto, na unidade dialética da teoria e da práxis, que Marx reconheceu e descreveu na luta emancipatória do proletariado, não pode haver uma simples consciência, nem como “pura” teoria, nem como simples exigência, como simples dever ou norma de ação. A exigência também tem sua realidade. Isto é, o nível do processo histórico que imprime à consciência de classe do proletariado um caráter de exigência, um caráter “latente e teórico”, deve se transformar em realidade correspondente e, enquanto tal, intervir de maneira ativa na totalidade do processo. Essa forma da consciência de classe proletária é o partido. Rosa Luxemburgo reconheceu antes e mais claramente que muitos outros o caráter essencialmente espontâneo das ações da massa revolucionária (sublinhando, assim, outro aspecto dessa constatação anterior, segundo a qual essas ações são o produto necessário de um processo econômico necessário). Não é um acaso, portanto, o fato de ela ter compreendido, igualmente muito antes de outros, o papel do partido na revolução15. Para os vulgarizadores mecanicistas, o partido era uma simples forma de organização, e o movimento de massa, bem como a revolução, não passavam de um problema de organização. Rosa Luxemburgo reconheceu cedo que a organização é, antes, uma consequência do que uma condição prévia do processo revolucionário, do mesmo modo como o proletariado só pode se constituir em classe no processo e por ele. Nesse processo, que o partido não pode nem provocar, nem evitar, cabe, portanto, ao partido o papel elevado de ser o portador da consciência de classe do proletariado, a consciência de sua missão histórica. Enquanto a atitude aparentemente mais ativa e mais “real” para um observador superficial – que atribui ao partido, antes de tudo ou exclusivamente, as tarefas de organização – é reduzida a uma posição de fatalismo inconsistente quando confrontada com a realidade da revolução, a concepção de Rosa Luxemburgo torna-se a fonte da verdadeira atividade revolucionária. Se o partido tiver a preocupação “de realizar, em cada fase e em cada momento da luta, a soma total do poder existente, já exercido e ativo, do proletariado, exprimindo-a na sua posição de combate; de nunca deixar que a tática da socialdemocracia, em termos de decisão e rigor, fique abaixo do nível efetivo da relação de forças, mas de fazer com que caminhe à frente dessa relação”16, no momento agudo da revolução, o partido transformará seu caráter de exigência em realidade ativa, pois fará penetrar no movimento de massa espontâneo a verdade que lhe é imanente, elevar-se-á da necessidade econômica de sua origem à liberdade da ação consciente. E essa passagem da exigência à realidade acaba se tornando a alavanca da organização verdadeiramente revolucionária e conforme à classe do proletariado. O conhecimento torna-se ação, a teoria torna-se palavra de ordem, a massa ativa, seguindo as palavras de ordem, incorpora-se de forma cada vez mais forte, consciente e estável no nível da vanguarda organizada. As palavras de ordem corretas dão origem organicamente às condições e às possibilidades da organização técnica do proletariado em luta.
A consciência de classe é a “ética” do proletariado, a unidade de sua teoria e de sua práxis, o ponto em que a necessidade econômica de sua luta emancipadora se transforma dialeticamente em liberdade. Uma vez reconhecido o partido como forma histórica e portador ativo da consciência de classe, ele se torna, ao mesmo tempo, o portador da ética do proletariado em luta. Essa função deve determinar sua política. Nem sempre essa política estará de acordo com a realidade empírica momentânea; em tais momentos, suas palavras de ordem podem ser ignoradas; a marcha necessária da história lhe renderá não somente justiça, mas a força moral de uma consciência de classe correta e de uma ação também correta e conforme à classe trará igualmente seus frutos – no plano da política prática e real17.
Pois a força do partido é uma força moral: ela é alimentada pela confiança das massas espontaneamente revolucionárias, coagidas pela evolução econômica a sublevar-se, pelo sentimento das massas de que o partido é a objetivação de sua vontade mais íntima, ainda que não inteiramente clara para si mesmas, a forma visível e organizada de sua consciência de classe. Somente depois que o partido lutar por essa confiança e merecê-la poderá tornar-se um líder da revolução. Pois somente então o impulso espontâneo das massas tenderá, com toda a sua energia e cada vez mais instintivamente, na direção do partido e de sua própria tomada de consciência.”
13. Die heilige Familie, MEW 2, p. 37.
14. Massenstreik, 2ª ed., p. 48.
15. Sobre os limites da sua visão, cf. os ensaios “Notas críticas [...]” e “Observações metodológicas sobre a questão da organização”. Contentamo-nos por ora em apresentar seu ponto de vista.
16.Massenstreik, p. 38.
17. Cf. a bela passagem na brochura de Junis, Futurus-Verlag, p. 92.


“Pois, se a sociedade atual não pode ser percebida de modo algum na sua totalidade a partir de uma situação de classe determinada, se a própria reflexão consciente, levada até o extremo e incidindo sobre os interesses da classe, reflexão essa que se pode atribuir a uma classe, não disser respeito à totalidade da sociedade, então essa classe só poderá desempenhar um papel subordinado e nunca poderá intervir na marcha da história como fator de conservação ou de progresso. Tais classes estão, em geral, predestinadas à passividade, a uma oscilação inconsequente entre as classes dominantes e aquelas revolucionárias, e suas explosões eventuais revestem-se necessariamente de um caráter elementar, vazio e sem finalidade e, mesmo em caso de vitória acidental, estão condenadas a uma derrota final.
A vocação de uma classe para a dominação significa que é possível, a partir dos seus interesses e da sua consciência de classe, organizar o conjunto da sociedade conforme esses interesses. E a questão que em última análise decide toda a luta a classes é a seguinte: qual classe dispõe, no momento determinado, dessa capacidade e dessa consciência de classe? Isso não elimina o papel da violência na história, nem garante uma vitória automática aos interesses de classes destinados a prevalecer e que, nesse caso, são portadores dos interesses do desenvolvimento social. Pelo contrário, em primeiro lugar, as próprias condições para que os interesses de uma classe possam se afirmar são muito frequentemente criados por intermédio de violência mais brutal (por exemplo, a acumulação primitiva do capital). Em segundo, é justamente nas questões da violência, nas situações em que as classes se enfrentam na luta pela existência, que os problemas da consciência de classe constituem os momentos finalmente decisivos. (...)
Mesmo as classes capazes de dominação, no entanto, não devem ser colocadas todas no mesmo plano, no que concerne à estrutura interna de sua consciência de classe. O que importa aqui é saber em que medida elas estão em condições de se conscientizar das ações que devem executar e executam efetivamente para conquistar e organizar sua posição dominante. Portanto, o que importa é saber até que ponto a classe em questão realiza “conscientemente” ou “inconscientemente” as tarefas que lhe são impostas pela história, e até que ponto essa consciência é verdadeira ou falsa. Não se trata de distinções puramente acadêmicas. Pois, independentemente dos problemas da cultura, em que as dissonâncias resultantes dessas questões são de uma importância decisiva, o destino de uma classe depende da sua capacidade de esclarecer e resolver, em todas suas decisões práticas, os problemas que lhe impõe a evolução histórica. Vê-se de novo, de maneira inteiramente clara, que com a consciência de classe não se trata do pensamento de indivíduos, por mais evoluídos que sejam, muito menos do conhecimento científico. (...)
Essa situação se manifesta com uma evidência ainda maior na burguesia de hoje, que na origem partiu em luta contra a sociedade absolutista e feudal com o conhecimento das interdependências econômicas, mas que era absolutamente incapaz de concluir sua ciência específica, sua própria ciência de classe. Ela também tinha de fracassar teoricamente em relação à teoria das crises. E, nesse caso, não lhe serve de nada que a solução teórica esteja cientificamente à sua altura. Porque aceitar, mesmo teoricamente, essa solução equivaleria a não mais considerar os fenômenos da sociedade do ponto de vista da burguesia. E disso nenhuma classe é capaz, ou melhor, seria preciso que renunciasse voluntariamente à sua dominação. Portanto, a barreira que faz da consciência de classe da burguesia uma “falsa” consciência é objetiva; é a situação da própria classe. É a consequência objetiva da estrutura econômica da sociedade, e não algo arbitrário, subjetivo ou psicológico. Pois a consciência de classe da burguesia, embora possa refletir com clareza sobre todos os problemas da organização dessa dominação, da revolução capitalista e de sua penetração no conjunto da produção, deve necessariamente se obscurecer no momento em que surgem problemas, cuja solução remete para além do capitalismo, mesmo no interior da experiência da burguesia. Sua descoberta das “leis naturais” da economia, que representa uma consciência clara em comparação com a Idade Média feudal ou mesmo com o período de transição do mercantilismo, torna-se de maneira imanente e dialética uma “lei natural que se baseia na ausência de consciência daqueles que nela tomam parte”15.”
15.Engels, Umrisse zu einer Kritik der Nationalökonomie, MEWI, p. 515.


“Em períodos pré-capitalistas, o homem nunca conseguiu se conscientizar (nem mesmo por meio de uma consciência adjudicada) das verdadeiras “forças motrizes que se escondem por trás dos motivos das ações humanas na história”. Na verdade, elas permaneceram ocultas como forças cegas da evolução histórica por trás dos motivos. Os fatores ideológicos não “recobrem” somente os interesses econômicos, não são bandeiras e palavras de ordem, mas parte integrante e elementos da própria luta real. Certamente, quando o sentido sociológico dessas lutas é procurado por meio do materialismo histórico, então esses interesses podem, sem nenhuma dúvida, ser descobertos como momentos de explicação finalmente decisivos. Mas a diferença intransponível em relação ao capitalismo é o fato de que, na época capitalista, os aspectos econômicos não estão mais escondidos “por trás” da consciência, mas encontram-se presentes na própria consciência (embora inconscientes ou recalcados etc.). Com o capitalismo, com o desaparecimento das estruturas estamentais e com a constituição de uma sociedade com articulações puramente econômicas, a consciência de classe chegou ao estágio em que pôde se tornar consciente. Agora a luta social se reflete numa luta ideológica pela consciência, pelo desvelamento ou dissimulação do caráter de classe da sociedade. Mas a possibilidade dessa luta já anuncia as contradições dialéticas, a dissolução interna da pura sociedade de classes. “Quando a filosofia”, diz Hegel, “se mostra pessimista é sinal de que uma forma de vida envelheceu e ela não pode ser rejuvenescida, apenas reconhecida; a coruja de Minerva só levanta voo ao entardecer”.”


“Para o proletariado, a verdade é uma arma portadora da vitória e o é tanto mais quanto mais audaciosa for. A raiva desesperada com que a ciência burguesa combate o materialismo histórico é compreensível: tão logo se vê obrigada a colocar-se ideologicamente nesse terreno, está perdida. Isso também permite compreender por que, para o proletariado, e somente para o proletariado, uma noção correta da essência da sociedade é um fator de poder de primeiríssima ordem, talvez até a arma decisiva.”


“Os marxistas vulgares sempre ignoraram essa função única da consciência na luta de classe do proletariado e, em vez da grande luta pelos princípios que remetem às questões últimas do processo econômico objetivo, colocaram um “realismo político” mesquinho. Certamente, o proletariado deve partir dos dados da situação momentânea. Mas ele se distingue das outras classes por não se ater às particularidades dos acontecimentos históricos, por não ser simplesmente movido por eles, mas por constituir ele próprio a essência das forças motrizes e, agindo de maneira centralizada, por influenciar o centro do processo social de desenvolvimento. Na medida em que se afastam desse ponto de vista central, do que é metodologicamente a origem da consciência de classe proletária, os marxistas vulgares colocam-se no nível da consciência da burguesia. E somente a um marxista vulgar pode surpreender o fato de que, nesse nível, em seu próprio terreno de combate, a burguesia seja necessariamente superior ao proletariado, tanto econômica como ideologicamente. Além disso, somente ele pode concluir desse fato, que deriva exclusivamente da sua atitude, que a burguesia em geral ocupa uma posição de superioridade. Pois é evidente que, nesse terreno, a burguesia – excetuando-se aqui todos os seus meios reais de poder – tem mais conhecimento e experiência à sua disposição; não há nada de surpreendente também no fato de encontrar-se numa posição de superioridade sem nenhum mérito próprio, se sua concepção fundamental é aceita pelo seu adversário. A superioridade do proletariado em relação à burguesia, que, aliás, é superior ao primeiro sob todos os pontos de vista (intelectual, organizacional etc.), reside exclusivamente no fato de ser capaz de considerar a sociedade a partir do seu centro, como um todo coerente e, por isso, agir de maneira centralizada, modificando a realidade; no fato de, para sua consciência de classe, teoria e práxis coincidirem e também, por conseguinte, de poder lançar conscientemente sua própria ação na balança do desenvolvimento social como fator decisivo. Quando os marxistas vulgares rompem essa unidade, cortam o nervo que liga a teoria proletária à ação proletária numa unidade. Reduzem a teoria ao tratamento “científico” dos sintomas do desenvolvimento social e fazem da práxis uma engrenagem fixa e sem objetivo dos acontecimentos de um processo que renunciam dominar metodicamente pelo pensamento.
A consciência de classe que nasce dessa posição deve demonstrar a mesma estrutura interna que a da burguesia. Mas quando, por força do desenvolvimento, as mesmas contradições dialéticas são levadas à superfície da consciência, sua consequência para o proletariado é ainda mais fatal do que para a burguesia. Pois a auto-ilusão da “falsa consciência” que nasce na burguesia pelo menos está de acordo com sua situação de classe, apesar de todas as contradições dialéticas e toda falsidade objetiva. Embora a falsa consciência não possa salvá-la do declínio e da intensificação contínua dessas contradições, pode lhe dar possibilidades internas de continuar a luta, condições internas para o êxito, mesmo que passageiro. No proletariado, porém, semelhante consciência não somente está maculada por essas contradições internas (burguesas), como também contradiz as necessidades daquela ação para a qual impele sua situação econômica, independentemente do que seja capaz de pensar a esse respeito. O proletário deve agir de maneira proletária, mas sua própria teoria marxista vulgar lhe obstrui a visão do caminho correto. E essa contradição dialética entre a ação objetiva e economicamente necessária do proletariado e a teoria marxista vulgar (burguesa) está em constante crescimento. Isto é, o papel de estimulador ou inibidor da teoria correta ou incorreta cresce com a aproximação das lutas decisivas na guerra de classes. O “reino da liberdade”, o fim da “pré-história da humanidade” significa precisamente que as relações objetificadas entre os homens, que as reificações começam a restituir seu poder ao homem. Quanto mais esse processo se aproxima do seu fim, tanto maior é a importância da consciência do proletariado sobre sua missão histórica, isto é, da sua consciência de classe; tanto mais forte e mais diretamente essa consciência de classe tem de determinar cada uma de suas ações. Pois o poder cego das forças motrizes só conduz “automaticamente” ao seu fim, em direção ao auto-aniquilamento, enquanto esse ponto estiver ao seu alcance. Quando o instante da passagem ao “reino da liberdade” é dado de modo objetivo, isso se manifesta com mais precisão no fato de as forças cegas impelirem para o abismo de uma forma realmente cega, com uma violência cada vez maior e aparentemente irresistível, e apenas a vontade consciente do proletariado pode proteger a humanidade de uma catástrofe. Em outros termos, desde que a crise econômica final do capitalismo entrou em cena, o destino da revolução (e com ela o da humanidade) depende da maturidade ideológica do proletariado, da sua consciência de classe.
Assim é definida a função única da consciência de classe para o proletariado, em oposição à sua função para outras classes. Justamente porque é impossível para o proletariado libertar-se como classe sem suprimir a sociedade de classes em geral, sua consciência, que é a última consciência de classe na história da humanidade, deve coincidir, de um lado, com o desvendamento da essência da sociedade e, de outro, tornar-se uma unidade cada vez mais íntima da teoria e da práxis. Para o proletariado, sua ideologia não é uma “bandeira” de luta, nem um pretexto para as próprias finalidades, mas é a finalidade e a arma por excelência. Toda tática proletária sem princípios rebaixa o materialismo histórico à mera “ideologia”, impõe ao proletariado um método de luta burguês (ou pequeno-burguês); despoja-o de suas melhores forças ao atribuir à sua consciência de classe o papel de uma consciência burguesa, papel de simples acompanhamento ou de inibição (isto é, de inibição apenas para o proletariado), em vez da função motriz determinada à consciência proletária.”


“Há muito tempo Marx41 chamou a atenção para esse perigo, que reside particularmente na luta “econômica” dos sindicatos. “Ao mesmo tempo, os trabalhadores [...] não devem exagerar para si mesmos o resultado dessas lutas. Não devem esquecer que lutam contra os efeitos e não contra as causas desses efeitos [...], que aplicam paliativos e não curam a própria doença. Por isso, não deveriam se consumir apenas nessas inevitáveis lutas de guerrilha [...], mas trabalhar simultaneamente para a transformação radical e usar sua força organizada como uma alavanca para a emancipação definitiva das classes trabalhadoras, isto é, para a abolição definitiva do sistema de assalariamento.”
A origem de todo oportunismo está justamente em partir dos efeitos e não das causas, das partes e não do todo, dos sintomas e não do fato em si; em ver no interesse particular e na luta por sua realização não um meio de educação em vista do combate final, cujo resultado depende da aproximação da consciência psicológica em relação à consciência adjudicada, mas algo valioso em si e por si ou, pelo menos, algo que em si e por si caminha em direção ao objetivo; numa palavra, está em confundir o verdadeiro estado de consciência psicológica dos proletários com a consciência de classe do proletariado.
O caráter funesto que essa confusão tem na prática comprova-se pelo fato de o proletariado demonstrar frequentemente, como consequência dessa confusão, uma unidade e coesão muito menores em sua ação do que aquelas que corresponderiam à unidade das tendências econômicas objetivas. A força e a superioridade da verdadeira consciência prática de classe reside justamente na capacidade de perceber, por trás dos sintomas dissociadores do processo econômico, sua unidade como desenvolvimento total da sociedade. Porém, tal movimento de conjunto ainda não é capaz de demonstrar, na época do capitalismo, uma unidade imediata em suas manifestações exteriores. O fundamento econômico de uma crise mundial, por exemplo, constitui seguramente uma unidade e, como tal, pode ser compreendido economicamente como uma unidade. Mas sua manifestação espaciotemporal será uma sucessão e uma justaposição de fenômenos separados não somente em diferentes países, mas também em diferentes ramos da produção de cada país. Quando então o pensamento burguês “transforma as diferentes partes da sociedade em outras tantas diferentes sociedades”42, comete na verdade um grave erro teórico, mas as consequências práticas imediatas dessa teoria errônea correspondem inteiramente aos interesses da classe capitalista. Por um lado, embora a classe burguesa seja, em teoria, incapaz de ter uma compreensão maior dos detalhes e dos sintomas do processo econômico (incapacidade que, em última análise, também a condena ao fracasso na prática), por outro, interessa-lhe sobretudo impor, no que concerne à atividade prática imediata da vida cotidiana, esse seu tipo de ação também ao proletariado. É justamente nesse caso e somente nele que a superioridade organizacional da burguesia se exprime claramente entre outras coisas, ao passo que a organização do proletariado, modelada de maneira totalmente diferente, sua capacidade de organizar-se como classe, não pode impor-se na prática. Sendo assim, quanto mais a crise econômica do capitalismo avança, mais claramente se manifesta essa unidade do processo econômico, apreensível também na prática. Embora ela tenha existido nas épocas ditas normais e, portanto, tenha sido percebida do ponto de vista de classe do proletariado, a distância entre a manifestação e o fundamento último era muito grande para poder conduzir a consequências práticas na ação do proletariado. Isso muda nos períodos decisivos de crises. A unidade do processo em seu conjunto é trazida para uma distância palpável. A tal ponto, que mesmo a teoria do capitalismo não consegue esquivar-se totalmente dela, mesmo que jamais possa apreendê-la adequadamente. Nessa situação, o destino do proletariado, e com ele o destino de toda evolução da humanidade, depende de ele dar ou não esse único passo, que desde então se tornou objetivamente possível. Pois, mesmo que os sintomas se manifestem separadamente (segundo o país, o ramo da produção, enquanto crises “econômicas” ou “políticas” etc.), mesmo que o reflexo correspondente na consciência psicológica imediata dos trabalhadores tenha um caráter isolado, hoje já é possível e necessário ir além dessa consciência; e essa necessidade é sentida instintivamente por camadas cada vez mais amplas do proletariado. A teoria do oportunismo, cuja função foi aparentemente de mero entrave ao desenvolvimento objetivo até a crise aguda, toma agora uma direção diretamente oposta. Ela visa a impedir que a consciência de classe do proletariado avance do simples dado psicológico à adequação ao desenvolvimento objetivo em seu conjunto, visa a reduzir a consciência de classe do proletariado ao nível de um dado psicológico e, assim, dar uma orientação contrária ao movimento dessa consciência de classe, até então apenas instintivamente existente. Essa teoria, que, com certa indulgência, ainda podia ser considerada como equívoco durante o tempo em que a possibilidade prática de unificação da consciência de classe proletária não estava dada econômica e objetivamente, assume nessa situação o caráter de um engano consciente (pouco importa se seus porta-vozes estão ou não psicologicamente conscientes dele). Em relação aos instintos corretos do proletariado, ela cumpre a mesma função que sempre exerceu a teoria capitalista: denuncia a concepção correta da situação econômica geral, a consciência de classe correta do proletariado e sua forma organizacional (o partido comunista) como algo irreal, como um princípio contrário aos “verdadeiros” interesses dos operários (interesses imediatos, nacionais ou profissionais tomados isoladamente), como estranho à sua consciência de classe “autêntica” (dada psicologicamente).
Porém, ainda que a consciência de classe não tenha realidade psicológica, ela não é mera ficção. O caminho infinitamente penoso e cheio de revezes da revolução proletária, seu eterno retorno ao ponto de partida, sua autocrítica constante, da qual fala Marx na célebre passagem do Dezoito brumário, encontra sua explicação justamente na realidade dessa consciência.
Somente a consciência do proletariado pode mostrar a saída para a crise do capitalismo. Enquanto não existir essa consciência, a crise será permanente, retornará ao seu ponto de partida, repetirá essa situação até que, finalmente, após infinitos sofrimentos e terríveis atalhos, a lição pedagógica da história conclui o processo da consciência no proletariado e coloca-lhe nas mãos a condução da história. Nesse momento, o proletariado não tem escolha. Ele tem de se tornar uma classe, como disse Marx43, não somente “em relação ao capital” mas “para si mesmo”; isto é, elevar a necessidade econômica de sua luta de classe ao nível de uma vontade consciente, de uma consciência de classe ativa. Os pacifistas e humanitaristas da luta de classes, que trabalham voluntária ou involuntariamente para retardar esse processo de crise já tão longo e doloroso, ficariam apavorados se compreendessem quanto sofrimento infligem ao proletariado prolongando essa lição. Pois o proletariado não pode furtar-se à sua vocação. Trata-se de saber apenas quanto deve sofrer ainda antes de alcançar a maturidade ideológica, o conhecimento correto de sua situação de classe, a consciência de classe.
Certamente, essas hesitações e mesmo essa obscuridade são um sintoma de crise da sociedade burguesa. Como produto do capitalismo, o proletariado está necessariamente submetido às formas de existência do seu produtor. Essa forma de existência é a inumanidade, a reificação. Decerto, por sua simples existência, o proletariado é a crítica, a negação dessas formas de existência. No entanto, até que a crise objetiva do capitalismo se complete, até que o próprio proletariado tenha adquirido uma visão completa dessa crise e a verdadeira consciência de classe, ele é mera crítica da reificação e, como tal, eleva-se apenas negativamente acima do que nega. De fato, quando a crítica não é capaz de ir além da simples negação de uma parte, quando não é sequer capaz de aspirar à totalidade, então ela não consegue de modo algum ultrapassar o que nega, como o demonstra, por exemplo, o caráter pequeno-burguês da maior parte dos sindicalistas. Essa simples crítica, feita do ponto de vista do capitalismo, mostra-se da maneira mais marcante na separação dos diferentes âmbitos de luta. A mera ocorrência da separação já indica que a consciência do proletariado ainda se encontra provisoriamente sujeita à reificação. Ainda que lhe seja evidentemente mais fácil discernir o caráter inumano de sua situação de classe no plano econômico do que no plano político, e no plano político mais fácil do que no plano cultural, todas essas separações demonstram justamente o poder não superado das formas de vida capitalistas sobre o próprio proletariado.”
41. Lohn, Preis und Profit, MEW 16, p. 152.
42. Elend der Philosophie, MEW 4, p. 131.
43. Elend der Philosophie, MEW 4, p. 181.

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