Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-458-2
Tradução: Nélio Schneider
Opinião: ★★★☆☆
Sinopse: Publicada em livro
originalmente em 1878, a obra reúne materiais escritos entre 1877-1878 para o
jornal dos social-democratas alemães, o Vorwärts. Anti-Dühring,
considerado um dos melhores escritos de Engels e leitura imprescindível para a
introdução ao pensamento marxiano, foi concebido como uma resposta ao também
alemão Eugen Dühring, que havia criado sua própria versão do socialismo,
baseada em uma teoria “autocrática” que excluía a teoria marxiana.
O livro é
dividido em três seções – Filosofia, Economia Política e Socialismo – e, em
cada uma, Engels discute temas como moral, igualdade, liberdade, necessidade,
verdades eternas, a dialética “quantidade e qualidade”, teoria do poder, teoria
do valor, renda fundiária, entre outros assuntos.
“Quando submetemos a natureza ou a história humana, ou nossa própria
atividade intelectual, à análise pensante, o que nos salta à vista, em primeiro
lugar, é a imagem de um entrelaçamento infinito de interconexões e interações,
no qual nada permanece o que e como era nem onde estava, mas tudo se move, se
modifica, devém e fenece. A visão original, ingênua mas objetivamente correta
do mundo é a da filosofia grega antiga, e o primeiro que a expressou com
clareza foi Heráclito: tudo é e também não é, pois tudo flui[8], encontra-se em constante mudança, em constante devir e
fenecer. Porém, por mais corretamente que capte o caráter universal da visão de
conjunto dos fenômenos, essa visão não é suficiente para explicar os pormenores
que compõem essa visão de conjunto; e, enquanto não lograrmos fazer isso,
tampouco teremos clareza sobre a visão de conjunto. Para conhecer esses
pormenores, temos de retirá-los do seu contexto natural ou histórico e examinar
cada um deles quanto à sua constituição, suas causas e seus efeitos específicos
etc.[9]. Essa tarefa cabe, primeiramente, à ciência da natureza e à pesquisa
histórica – ramos de investigação que, por boas razões, tinham uma posição
apenas subordinada entre os gregos do período clássico, visto que eles tinham,
antes de tudo, de carrear material. Os primórdios da pesquisa exata da natureza
só seriam desenvolvidos pelos gregos do período alexandrino[10] e, mais tarde,
na Idade Média, pelos árabes[11]; entretanto, uma ciência da natureza de
verdade só teve início na segunda metade do século XV e, a partir daí, fez
progressos cada vez mais rápidos. A decomposição da natureza em suas partes
individuais, a subdivisão dos diferentes processos e objetos naturais em
classes bem determinadas, a investigação do interior dos corpos orgânicos
quanto às suas múltiplas configurações anatômicas constituíram a condição
básica para os gigantescos progressos que os últimos quatrocentos anos nos
proporcionaram em termos de conhecimento da natureza. Porém, essa condição
igualmente nos legou o hábito de apreender as coisas da natureza e os processos
naturais em seu isolamento, à parte do grande conjunto de conexões; de
apreendê-las, por conseguinte, não em seu movimento, mas em sua estagnação, não
como elementos essencialmente mutáveis, mas como elementos sólidos, não em sua
vida, mas em sua morte. E, quando, por obra de Bacon e Locke, esse modo de
conceber as coisas foi transferido da ciência da natureza para a filosofia, ele
deu origem à tacanhice específica dos últimos séculos, a saber, ao modo
metafísico de pensar[12].
Para o metafísico, as coisas e seus retratos ideais, os conceitos,
constituem objetos de investigação isolados, a serem analisados um após o outro
e um sem o outro – objetos sólidos, petrificados, dados de uma vez para sempre.
Ele pensa unicamente mediante antagonismos não mediados: ele diz sim, sim, não,
não, e o que passar disso é do mal[13]. Para ele, uma coisa existe ou não
existe: uma coisa tampouco pode ser, simultaneamente, ela própria e outra
coisa. Positivo e negativo se excluem de modo absoluto; causa e efeito
igualmente se encontram num antagonismo petrificado. À primeira vista, esse
modo de pensar nos parece extremamente plausível, porque é o do assim chamado
senso comum. Só que o senso comum, um camarada tão respeitável quando se
encontra no território caseiro das suas quatro paredes, passa a viver aventuras
admiráveis assim que ousa adentrar o vasto mundo da pesquisa; e a concepção
metafísica, por mais justificada e até necessária que seja em campos tão
vastos, que se expandem de acordo com a natureza do objeto, cedo ou tarde topa
com alguma barreira, além da qual ela se torna unilateral, tacanha e abstrata,
perdendo-se em contradições insolúveis, porque diante das coisas individuais
esquece o nexo entre elas, diante do ser dessas coisas esquece seu devir e
fenecer, diante do seu repouso esquece seu movimento, porque de tantas árvores
não vê o mato. (...) Todo ser orgânico, a cada instante, é o mesmo e não é o
mesmo; a cada instante ele processa substâncias trazidas a ele de fora e
excreta outras; a cada instante morrem células do seu corpo e novas se formam;
depois de um período mais ou menos longo, todas as substâncias desse corpo
foram totalmente renovadas, substituídas por outros átomos dessas substâncias,
de tal forma que todo ser organizado é sempre o mesmo e, ainda assim, sempre
diferente. Num exame mais preciso, descobrimos também que os dois polos de um
antagonismo, como positivo e negativo, são tão inseparáveis um do outro quanto
opostos um ao outro e que, apesar de todo o seu caráter antagônico,
interpenetram-se reciprocamente; descobrimos igualmente que causa e efeito são
representações que só têm validade como tais quando aplicadas ao caso
individual, mas, assim que examinamos o caso individual em sua conexão
universal com a totalidade do mundo, causa e efeito se fundem, se dissolvem na
noção da interação universal, na qual causas e efeitos trocam continuamente sua
posição, e o que agora e aqui é efeito depois e ali se transforma em causa, e
vice-versa.
Todos esses processos e métodos de pensar não cabem na moldura do
pensamento metafísico. Para a dialética, em contrapartida, que concebe as
coisas e seus retratos conceituais essencialmente em seu nexo, em seu
encadeamento, em seu movimento, em seu devir e fenecer, processos como os
anteriormente mencionados são outras tantas confirmações do seu próprio modo de
proceder. A natureza é a prova da dialética, e temos de afirmar a respeito da
moderna ciência da natureza que ela forneceu para essa prova um material extremamente
abundante e cada dia mais volumoso, comprovando, desse modo, que, na natureza,
as coisas acontecem, em última instância, de maneira dialética, e não
metafísica.”
8 A famosa frase “tudo flui” baseia-se em formulações de Aristóteles,
mas aparece na referida forma somente em Simplício, comentarista de Aristóteles
na Antiguidade tardia (Simplicius, Commentaria
in Aristotelis Physicorum libros IV posteriores, org. Diels, Berlim, 1895,
p. 1.313). Engels provavelmente se apoiou nas explanações de Hegel sobre
Heráclito (G. W. F. Hegel, Vorlesungen
über die Geschichte der Philosophie, org. K. L. Michelet, Berlim, 1833, v.
1, p. 333). (N. E. A.)
9 Engels desenvolveu essas conexões em 1874, na nota “Wechselwirkung” da
Dialektik der Natur (1873-1882) [Dialética
da natureza] (MEGA-2 I/26, Berlim, Dietz, 1985, p. 23-4). (N. E. A.)
10 O período alexandrino compreende a época do helenismo (que se inicia
com Alexandre III, rei da Macedônia, e vai até 30 antes da nossa era) e a época
do Império Romano até sua divisão em 395. Nesse período, a cidade portuária
egípcia de Alexandria se tornou um centro da ciência natural antiga. Em alguns
ramos dessa ciência, houve consideráveis avanços: na matemática (sobretudo
graças a Euclides), na mecânica (sobretudo graças a Arquimedes) e na astronomia
(sobretudo graças a Hiparco). O ponto alto da atuação desses eruditos situa-se
na época do helenismo. Alexandria permaneceu importante para a ciência natural
até a destruição da sua famosa biblioteca (390) e, depois disso, até a invasão
dos árabes (640). Engels formulou uma apreciação extensa desse período em 1875,
no texto “Die successive Entwicklung”, em Dialektik
der Natur, cit., p. 53, mencionando-o também na Introdução de 1875-1876, em
ibidem, p. 72. (N. E. A.)
11 Esse parecer se encontra também na Introdução de 1875-1876 a Dialektik der Natur, cit., p. 67,
formulada entre novembro de 1875 e maio de 1876. (N. E. A.)
12 Uma caracterização detalhada desse período da “moderna investigação
da natureza” foi feita por Engels na Introdução de 1875-1876 à Dialektik der Natur, cit., p. 67-75. (N.
E. A.)
13 Referência a uma passagem bíblica do Novo Testamento, “Evangelho de
Mateus”, cap. 5 e 37. (N. E. A.)
“Hegel era idealista, isto é, as ideias em sua mente não equivaliam,
para ele, a retratos mais ou menos abstratos das coisas e dos processos reais,
mas, em vez disso, as coisas e seu desenvolvimento eram apenas retratos
realizados da “ideia” que já existia em algum lugar antes do mundo. Desse modo,
tudo foi posto de cabeça para baixo e o nexo real do mundo foi completamente
invertido. E, por mais correta e genial que tenha sido a apreensão de alguns
nexos individuais por Hegel, por causa das razões apontadas, inclusive nos
detalhes, muita coisa só podia resultar remendada, artificial, arranjada, em
suma, errada. O sistema hegeliano foi em si um aborto colossal – mas também foi
o último da sua espécie. É que tal sistema ainda padecia de uma contradição
interna insanável: por um lado, tinha como pressuposto essencial a concepção
histórica, segundo a qual a história humana é um processo de desenvolvimento
que, por sua natureza, não poderá chegar à sua finalização intelectual pela
descoberta de uma assim chamada verdade absoluta; por outro lado, porém, ele
afirmava ser o suprassumo justamente dessa verdade absoluta. Um sistema de
conhecimento da natureza e da história que abrange tudo e que finaliza tudo de
uma vez por todas está em contradição com as leis básicas do pensamento
dialético; entretanto, isso de modo algum exclui, antes inclui, a possibilidade
de que o conhecimento sistemático da totalidade do mundo exterior avance a
passos gigantescos de geração em geração.”
“A luta de classes entre o proletariado e a
burguesia passou para o primeiro plano da história dos países mais avançados da
Europa, na mesma proporção em que ali se desenvolviam, de um lado, a grande
indústria e, de outro, o recém-conquistado domínio político da burguesia. As
doutrinas da economia burguesa sobre a identidade dos interesses de capital e
trabalho, sobre a harmonia universal e o bem-estar geral do povo como
consequência da livre concorrência eram desmentidas de modo cada vez mais
contundente pelos fatos. (...) Porém, a antiga concepção idealista da história,
que ainda não havia sido descartada, não tomou conhecimento de nenhuma luta de
classes baseada em interesses materiais, e de modo geral não sabia de nenhum
interesse material; a produção, assim como todas as relações econômicas,
aparecia apenas à margem, como elemento subordinado da “história da cultura”.
Os novos fatos obrigaram a submissão de toda
a história pregressa a uma nova investigação, e então ficou evidente que toda a
história até ali fora a história da lutas de classes, que essas classes da
sociedade que combatem umas às outras são, em cada caso, produtos das relações
de produção e de intercâmbio, em suma, das relações econômicas de sua época, e
que, portanto, cada estrutura econômica da sociedade constitui a base real, a
partir da qual deve ser explicada, em última instância, toda a superestrutura
das instituições jurídicas e políticas, bem como o modo de representação
religiosa, filosófica e de qualquer natureza de cada período histórico. Com
isso, o idealismo havia sido expulso do seu último refúgio, o da concepção da
história; estava dada uma concepção materialista da história e havia sido
descoberta a maneira de explicar a consciência dos seres humanos a partir do
seu ser, em vez de explicar o seu ser a partir de sua consciência, como havia
sido feito até ali.
Porém, o socialismo existente até aquele
momento era tão incompatível com essa concepção materialista da história quanto
a concepção de natureza do materialismo francês era incompatível com a
dialética e a ciência natural mais recente. O socialismo existente até aquele
momento criticava o modo de produção capitalista vigente e suas consequências,
mas não era capaz de explicá-los e, portanto, de lidar com eles; só o que ele conseguia
fazer era condená-los como ruins. Por um lado, tratava-se de expor esse modo de
produção capitalista em seu nexo histórico e em sua necessidade para um
determinado período histórico – e, portanto, de expor também a necessidade do
seu desaparecimento. Mas, por outro lado, de desvelar seu caráter intrínseco
que continuava oculto, visto que a crítica feita até aquele momento se lançara
mais sobre as consequências perversas do que sobre o andamento da coisa em si.
Isso aconteceu mediante a descoberta do mais-valor. Ficou comprovado que a
apropriação de trabalho não pago é a forma básica do modo de produção
capitalista e da espoliação do trabalhador por ela levada a efeito; que, mesmo
que o capitalista compre a força de trabalho do seu trabalhador pelo valor
cheio que ela tem como mercadoria no mercado, ainda assim ele conseguirá
extrair dela um valor maior do que pagou; e que esse mais-valor constitui, em
última instância, a soma de valor a partir da qual se acumula a massa sempre
crescente de capital nas mãos das classes possuidoras. Assim estava explicado o
percurso tanto da produção capitalista como da produção de capital.
Devemos a Marx essas duas grandes
descobertas: a concepção materialista da história e a revelação do mistério da
produção capitalista mediante o mais-valor. Elas fizeram do socialismo uma
ciência que agora deve, em primeiro lugar, continuar a ser elaborada em todos
os seus pormenores e em todas as suas conexões[20].”
20 Eugen Dühring, Cursus der
Philosophie als streng wissenschaftlicher Weltanschauung und Lebensgestaltung (Leipzig,
Koschny, 1875). A primeira tiragem da obra se deu em meados
de outubro de 1874, a segunda, em meados de dezembro do mesmo ano, e a
terceira, em fevereiro de 1875. (N. E. A.)
“De suas viagens científicas, Darwin havia trazido para casa o ponto de
vista de que as espécies das plantas e dos animais não são constantes, mas
variáveis. Para continuar no encalço dessa ideia, não havia campo melhor à sua
disposição que o da criação de animais e plantas. Justamente para isso a
Inglaterra é o país clássico; as realizações de outros países, por exemplo da
Alemanha, nem remotamente podem fornecer um parâmetro para o que foi alcançado
nesse tocante na Inglaterra. Sendo que a maior parte dos êxitos foi atingida
nos últimos cem anos, a constatação dos fatos ofereceu poucas dificuldades.
Ora, Darwin descobriu que essa criação provocara artificialmente, em animais e
plantas da mesma espécie, diferenças maiores do que aquelas que ocorrem em
espécies geralmente reconhecidas como distintas. Portanto, estava provada, por
um lado, até certo grau, a mutabilidade das espécies e, por outro lado, a
possibilidade de antepassados comuns para organismos que possuíam
características de espécies distintas. Darwin passou a analisar, então, se na
natureza não haveria causas que – sem a intenção consciente de um criador –
teriam de provocar, com o tempo, mudanças nos organismos vivos, parecidas com
aquelas provocadas pela criação artificial. Ele encontrou essas causas na
desproporção entre o número gigantesco de germes criados pela natureza e o
número pequeno de organismos que realmente chegam à maturidade. Ora, visto que
cada germe busca desenvolver-se, surge necessariamente uma luta pela existência
que se manifesta não só como combate ou devoração direta, física, mas também
como luta por espaço e luz, inclusive no caso das plantas. E é evidente que,
nessa luta, quem tem as melhores perspectivas de chegar à maturidade e
reproduzir-se são aqueles indivíduos que possuem alguma peculiaridade individual,
por mais insignificante que seja, mas que representa uma vantagem na luta pela
existência. Sendo assim, essas peculiaridades individuais tendem a tornar-se
hereditárias e, ocorrendo em mais indivíduos da mesma espécie, tendem a
intensificar-se na direção tomada mediante transmissão hereditária cumulativa;
ao passo que os indivíduos que não possuem essa peculiaridade sucumbem mais
facilmente na luta pela existência e desaparecem gradativamente. Desse modo,
uma espécie se modifica pela seleção natural, mediante a sobrevivência do mais
apto.”
“Aliás, não há por que assustar-se com o fato
de que o estágio de conhecimento em que hoje nos encontramos não é nem um pouco
mais definitivo do que todos os que o precederam. Ele já abrange uma enorme
quantidade de material teórico e exige de quem pretende familiarizar-se com
qualquer disciplina uma especialização muito grande dos estudos. Porém, quem
aplica o parâmetro da verdade definitiva, imutável e autêntica de última
instância a conhecimentos que, pela natureza do assunto, permaneceram relativos
para longas séries de gerações e que precisaram ser complementados pouco a
pouco ou o aplica até mesmo a conhecimentos que, como na cosmogonia, geologia,
história da humanidade, sempre permanecerão lacunosos e incompletos, em razão
da incompletude do material histórico, atesta a sua própria insciência e
equivocação, mesmo que o pano de fundo propriamente dito não seja constituído,
como no nosso caso, pela pretensão à infalibilidade pessoal. Verdade e erro,
assim como todas as determinações do pensamento que se movem por meio de
oposições polares, possuem validade absoluta só para um campo extremamente
restrito, como acabamos de ver e como o sr. Dühring também saberia caso tivesse
algum conhecimento dos primeiros elementos da dialética, que tratam exatamente
da insuficiência de todas as oposições polares. No momento em que aplicamos a
oposição de verdade e erro fora do campo restrito recém-mencionado, ela se
torna relativa e, desse modo, sem serventia para expressar-se de modo
científico; e, se tentamos aplicá-la como absolutamente válida fora daquele
campo, aí mesmo é que nos damos mal; os dois polos da oposição revertem em seu
contrário – a verdade vira erro, o erro vira verdade.”
“Repelimos toda pretensão descabida de impingir-nos qualquer dogmatismo
moral na condição de lei consuetudinária eterna, definitiva e doravante
imutável, sob o pretexto de que também o mundo moral teria seus princípios
permanentes, localizados acima da história e das diferenças étnicas. Afirmamos,
em contraposição, que toda teoria moral concebida até agora é, em última
instância, produto da respectiva condição econômica da sociedade. E como, até
agora, a sociedade se moveu por força de antagonismos de classes, a moral
sempre foi uma moral de classes: ou ela justificou a dominação e os interesses
da classe dominante, ou então, quando a classe oprimida se tornou
suficientemente forte, representou a indignação contra essa dominação e os
interesses futuros dos oprimidos. Ninguém duvida que, nesse processo, tenha
ocorrido, em termos gerais, um progresso tanto na moral como nos demais ramos
do conhecimento humano. Porém, ainda não transcendemos a moral de classes. Uma
moral realmente humana, que esteja acima dos antagonismos de classes e acima da
lembrança desses antagonismos, só será possível num estágio da sociedade em que
o antagonismo de classes não só foi superado, como também foi esquecido para a
práxis da vida.”
“Trata-se aqui apenas de outra formulação do
velho e apreciado método ideológico, em outras partes também chamado
apriorístico, de identificar as propriedades de um objeto não a partir do
próprio objeto, mas de derivá-las argumentativamente do conceito do objeto.
Primeiro, formula-se, a partir do objeto, o conceito do objeto; em seguida, inverte-se
tudo e mede-se o objeto por seu retrato, pelo conceito. Dali por diante, não é
o conceito que deve se orientar pelo objeto, mas o objeto pelo conceito. (...)
Ora, quando algum ideólogo dessa linha
formula a moral e o direito a partir do conceito ou dos assim chamados
elementos mais simples “da sociedade”,
em vez de fazê-lo a partir das relações sociais reais das pessoas que o
rodeiam, que material ele tem à disposição para realizar essa formulação?
Claramente, são dois tipos de material: em primeiro lugar, o resíduo escasso do
conteúdo real que possivelmente ainda está presente nas abstrações colocadas
como base e, em segundo lugar, o conteúdo que nosso ideólogo reintroduz a
partir de sua própria consciência. E o que ele encontra em sua consciência?
Sobretudo, noções morais e jurídicas como expressão – positiva ou negativa,
afirmativa ou polêmica – correspondente, em maior ou menor grau, às relações
sociais e políticas nas quais ele vive; além disso, talvez encontre concepções
extraídas da bibliografia pertinente; por fim, possivelmente ache ainda algumas
excentricidades pessoais. Nosso ideólogo pode virar e mexer como quiser: a
realidade histórica que ele jogou porta afora volta a entrar pela janela e,
acreditando esboçar uma teoria moral e jurídica para todos os mundos e todas as
épocas, ele de fato confecciona um retrato desfigurado das correntes
conservadoras ou revolucionárias do seu tempo – desfigurado por ter sido
desarraigado do seu chão real e posto de cabeça para baixo como num espelho côncavo.”
“Naturalmente, é antiquíssima a concepção de
que, como pessoas, todos os seres humanos têm algo em comum e, também, são
iguais no tocante a esse elemento comum. Porém, a moderna exigência de
igualdade é totalmente diferente disso; ela consiste, muito antes, em derivar
daquela qualidade comum do existir humano, daquela igualdade das pessoas como
seres humanos, a reivindicação de equivalência política ou social de todos os
seres humanos ou então, pelo menos, de todos os cidadãos de um Estado ou de
todos os membros de uma sociedade. Até que daquela concepção original de
igualdade relativa pudesse ser extraída a consequência da igualdade de direitos
no Estado e na sociedade, ou mesmo até que essa consequência pudesse aparecer
como algo natural e óbvio, foi preciso que transcorressem (e de fato
transcorreram) milênios. Em relação às comunidades mais antigas, de cunho
natural-espontâneo, podia-se falar de igualdade de direitos quando muito entre
os membros da comunidade; mulheres, escravos e estrangeiros estavam por si sós
excluídos disso. Entre os gregos e os romanos, as desigualdades entre os seres
humanos eram mais valorizadas do que qualquer igualdade. Os antigos certamente
considerariam maluquice a ideia de que gregos e bárbaros, livres e escravos,
cidadãos do Estado e tutelados, cidadãos romanos e súditos dos romanos (para
usar uma expressão bem abrangente) deveriam ter direito à equivalência
política. Sob o cesarismo romano, todas essas diferenças foram se diluindo
gradativamente, com exceção da diferença entre livres e escravos; surgiu, desse
modo, pelo menos para os livres, a igualdade entre as pessoas privadas e, em
sua base, se desenvolveu o direito romano, a composição mais bem acabada que
conhecemos do direito fundado na propriedade privada. Porém, enquanto
perdurasse o antagonismo entre livres e escravos, não se poderia falar de
extrair consequências legais da igualdade universalmente humana; hoje em dia, ainda verificamos isso nos Estados escravistas
da União norte-americana. O cristianismo tinha ciência de uma só igualdade de todos os seres humanos: a da igual
pecaminosidade hereditária, que correspondia totalmente ao seu caráter de
religião de escravos e oprimidos. Ao lado desta, ele conhecia, quando muito, a
igualdade dos eleitos, que, no entanto, foi enfatizada só nas suas origens. Os
vestígios da posse comum de bens, igualmente presentes nos primórdios da nova
religião, podem ser derivados mais da união dos perseguidos do que de
concepções de igualdade realmente existentes.
Não demorou muito para que a consolidação do
antagonismo entre sacerdotes e leigos pusesse fim também a esse rudimento de
igualdade cristã. – A invasão da Europa Ocidental pelos germanos eliminou por
séculos todas as concepções de igualdade mediante a edificação gradativa de uma
hierarquia social e política sumamente intrincada, sem igual até aquele
momento; e, concomitantemente, ela envolveu a Europa Ocidental e a Central no
movimento histórico, criando pela primeira vez um território cultural compacto
e, nesse território, também pela primeira vez, um sistema de Estados
preponderantemente nacionalistas que se influenciavam de maneira recíproca e
mantinham uns aos outros em xeque. Desse modo, preparou-se o único terreno no
qual se poderia falar, numa época posterior, de equivalência humana, de
direitos humanos.
Ademais, a Idade Média feudal desenvolveu em
seu interior a classe vocacionada para tornar-se, em sua configuração
posterior, a portadora da moderna exigência de igualdade: a burguesia. Sendo no
início um estamento feudal, a burguesia havia desenvolvido a indústria
preponderantemente artesanal e a troca de produtos no interior da sociedade
feudal a um nível relativamente elevado quando, no final do século XV, os
grandes descobrimentos marítimos lhe descortinaram uma carreira nova e bem mais
abrangente. O comércio para fora da Europa, que até aquele momento havia sido
realizado apenas entre a Itália e o Levante, foi estendido até a América e a
Índia e logo suplantou em importância tanto a troca dos países europeus entre
si como a circulação interna de cada país em particular. O ouro e a prata da
América inundaram a Europa e se infiltraram como elemento desagregador em todas
as fendas, fissuras e poros da sociedade feudal. O empreendimento artesanal não
conseguia mais atender à demanda crescente; nas indústrias de ponta dos países
mais avançados, ele foi substituído pela manufatura.
Contudo, essa portentosa viravolta nas
condições econômicas da vida em sociedade não foi seguida de imediato pela
mudança correspondente de sua estruturação política. A ordem estatal permaneceu
feudal, enquanto a sociedade se tornava cada vez mais burguesa. O comércio em
grande escala (ou seja, principalmente o comércio internacional e mais ainda o
comércio mundial) exige possuidores de mercadorias que sejam livres, que não
tenham seus movimentos tolhidos, que como tais tenham direitos iguais, que
possam comerciar com base num direito que, pelo menos em nível local, seja
igual para todos. A passagem do artesanato para a manufatura tem como
pressuposto a existência de uma certa quantidade de trabalhadores livres –
livres, por um lado, das amarras da guilda e, por outro, dos meios de valer-se
por si sós da sua força de trabalho – que podem contratar com o fabricante o
aluguel de sua força de trabalho, ou seja, que, como contraentes, estão em
igualdade de direitos com ele. E, por fim, a igualdade e a equivalência de
todos os trabalhos humanos, por serem e na medida em que são trabalho humano em termos gerais, encontrou a sua
expressão inconsciente, mas mais enfática, na lei do valor da moderna economia
burguesa, segundo a qual o valor de uma mercadoria é medido pelo trabalho
socialmente necessário nela contido. [b], [206] – Porém, onde as condições econômicas exigiam
liberdade e igualdade de direitos, a ordem política lhes contrapôs, a cada
passo, amarras corporativas e privilégios excepcionais. Prerrogativas locais,
taxas alfandegárias diferenciadas, leis de exceção de todo tipo não atingiam,
no comércio, só os estrangeiros ou os habitantes das colônias, mas bastantes
vezes também categorias inteiras dos próprios integrantes do Estado; em toda
parte e de modo sempre renovado, privilégios corporativos atravancavam o
desenvolvimento da manufatura. Em lugar nenhum, o caminho estava desimpedido e
os concorrentes burgueses tinham as mesmas chances – e, no entanto, essa era a
exigência principal e cada vez mais urgente.
A exigência de libertação das amarras feudais
e de implementação da igualdade jurídica mediante a eliminação das
desigualdades feudais logo assumiria forçosamente dimensões maiores, bastando
que fosse posta na ordem do dia pelo progresso econômico da sociedade. Se ela
fosse atendida com base no interesse da indústria e do comércio, seria preciso
exigir a mesma igualdade de direitos também para a grande multidão dos
camponeses que, em todos os estágios da servidão (a começar pelo da escravidão
completa), eram obrigados a oferecer a maior parte do seu tempo de trabalho de
graça para o magnânimo senhor feudal e, além disso, pagar inúmeros tributos a
ele e ao Estado. Por outro lado, não havia como não exigir que os privilégios
feudais, a isenção de impostos da nobreza e as prerrogativas políticas dos
estamentos individuais também fossem abolidos. E, visto que não se vivia mais
num império mundial, como havia sido o romano, mas sim num sistema de Estados
independentes que se encontravam aproximadamente no mesmo nível de
desenvolvimento burguês e que se relacionavam uns com os outros em pé de
igualdade, é óbvio que a exigência assumiu um caráter universal, que transcendia
as fronteiras de cada Estado em nível individual, é óbvio que liberdade e
igualdade foram proclamadas como direitos humanos.
Nesse tocante, é sintomático do caráter especificamente burguês desses direitos
humanos que a Constituição norte-americana, a primeira a reconhecer os direitos
humanos, tenha, no mesmo fôlego, confirmado a escravidão dos negros vigente na
América do Norte: as prerrogativas de classe foram excomungadas, e as
prerrogativas de raça, santificadas[207].
Entretanto, como se sabe, a partir do momento
em que a burguesia deixa a crisálida da burguesia feudal, em que o estamento
medieval passa a ser uma classe moderna, ela é constante e inevitavelmente
acompanhada pela sua sombra, pelo proletariado. E, da mesma forma, as
exigências burguesas de igualdade são acompanhadas pelas exigências proletárias
de igualdade. A partir do momento em que é levantada a exigência burguesa de
abolição das prerrogativas de classe,
ela é secundada pela exigência proletária da abolição das próprias classes – primeiro em sua forma religiosa, apoiando-se no
cristianismo primitivo, e mais tarde embasando-se nas próprias teorias
burguesas da igualdade. Os proletários tomam os burgueses pela palavra: a
igualdade não deve ser apenas aparente, não só no âmbito do Estado, mas deve
ser realizada realmente, também no âmbito social e econômico. E principalmente
depois que a burguesia francesa, a partir da Grande Revolução, trouxe para o
primeiro plano a igualdade burguesa, o proletariado francês lhe respondeu ponto
por ponto com a exigência de igualdade social e econômica; a igualdade se
transformou em grito de guerra especialmente do proletariado francês.
A exigência de igualdade na boca do
proletariado tem, portanto, um duplo significado. Ou ela é a reação natural contra
as gritantes desigualdades sociais, contra o contraste entre ricos e pobres,
entre senhores e servos, entre glutões e esfomeados – esse é o caso
principalmente nos primórdios, como na guerra dos camponeses – e, como tal, é
simplesmente expressão do instinto revolucionário, tendo nisso, e só nisso, a
sua justificativa. Ou, então, ela surge da reação contra a exigência burguesa
de igualdade, extrai dessa exigência outras mais avançadas, mais ou menos
corretas, serve de meio de agitação para estimular os trabalhadores contra os
capitalistas valendo-se das afirmações dos próprios capitalistas e, nesse caso,
fica de pé ou cai junto com a própria igualdade burguesa. Nos dois casos, o
conteúdo real da exigência proletária de igualdade é a exigência da abolição das classes. Toda exigência de
igualdade que vai além disso necessariamente se esvai no absurdo. (...)
Assim, a própria concepção da igualdade, em
sua forma tanto burguesa como proletária, é um produto histórico para cuja
confecção se fizeram necessárias certas relações históricas, as quais, por sua
vez, pressupõem uma longa história prévia. Portanto, ela é tudo menos uma
verdade eterna. E se hoje, aos olhos do grande público, ela parece algo óbvio –
num sentido ou no outro –, se ela, como diz Marx, “já possui a fixidez de um
preconceito popular” [208], isso não é por efeito de
sua verdade axiomática, mas por efeito da difusão universal e da
contemporaneidade duradoura das ideias do século XVIII.”
b O primeiro a
abordar essa derivação das modernas concepções de igualdade a partir das
condições econômicas da sociedade burguesa foi Marx, em O capital. (Nota de Engels.)
206 Karl Marx, Das Kapital. Kritik der politischen Oekonomie, Bd. 1, Buch 1: Der Produktionsprocess des Kapitals (2.
ed. rev., Hamburgo, 1872), p. 35-6 (MEGA-2 II/6, Berlim, Dietz, 1987, p. 91-2)
[ed. bras.: O capital: crítica da
economia política, Livro I, O
processo de produção do capital, trad. Rubens Enderle, São Paulo, Boitempo,
2013, p. 135s]. (N. E. A.)
207 A Constituição dos Estados Unidos da
América, de 17 de setembro de 1787, sancionou faticamente a escravidão no
artigo IV, alínea 2. Os artigos complementares 1-10 de 1791, nos quais foram
formulados os direitos fundamentais, não mudaram nada quanto a isso. Só depois
da guerra civil de 1861-1865, os artigos complementares 13 (1865), 14 (1868) e
15 (1870) aboliram a escravidão e estabeleceram a igualdade civil formal de
todos os cidadãos. (N. E. A.)
208 Karl Marx, Das Kapital, cit., p. 36 (MEGA-2 II/6, cit., p. 91) [ed. bras.: O capital, Livro I, cit., p. 136]. (N.
E. A.)
“Hegel foi o primeiro a expor corretamente a relação entre liberdade e
necessidade. Para ele, liberdade é ter noção da necessidade. “Cega a necessidade só é enquanto não é conceituada.”[242] A liberdade não reside na tão sonhada
independência em relação às leis da natureza, mas no conhecimento dessas leis e
na possibilidade proporcionada por ele de fazer com que elas atuem, conforme um
plano, em função de determinados fins. Isso vale com referência tanto às leis
da natureza externa como àquelas que regulam a existência corporal e espiritual
do próprio ser humano – duas classes de leis que podemos separar uma da outra,
quando muito, em termos de concepção, mas não na realidade. Em consequência,
liberdade da vontade nada mais é que a capacidade de decidir com conhecimento
de causa. Portanto, quanto mais livre o
juízo de um ser humano em relação a uma determinada questão, maior será a necessidade de que esse juízo seja
determinado, ao passo que a incerteza baseada no desconhecimento, que
aparentemente escolhe de modo arbitrário entre muitas possibilidades diferentes
e contraditórias de decisão, comprova, justamente por isso, sua falta de
liberdade, seu ser dominado exatamente pelos objetos que ela deveria dominar. A
liberdade consiste, portanto, no domínio sobre nós mesmos e sobre a natureza
exterior baseado no conhecimento das necessidades naturais; desse modo, é
necessariamente um produto do desenvolvimento histórico. Os primeiros seres
humanos a se separarem do reino animal foram, em todos os aspectos essenciais,
tão carentes de liberdade quanto os próprios animais; porém, todo progresso
cultural foi um passo rumo à liberdade. No limiar da história da humanidade,
está a descoberta da transformação do movimento mecânico em calor: a produção
do fogo por fricção; no final do desenvolvimento até aqui está a descoberta da
transformação de calor em movimento mecânico: a máquina a vapor. – E, apesar da
gigantesca revolução libertadora que a máquina a vapor efetua no mundo social
(ainda falta mais da metade por realizar), é indubitável que o fogo resultante
da fricção a supera em termos de efeito libertador em relação ao mundo. Porque
o fogo resultante da fricção deu ao ser humano, pela primeira vez, o domínio
sobre uma força da natureza e, desse modo, separou-o definitivamente do reino
animal. A máquina a vapor jamais provocará um salto tão tremendo no
desenvolvimento da humanidade, por mais que seja encarada como representante de
todas as forças produtivas nela apoiadas, cujo auxílio é indispensável para
possibilitar um estado de sociedade em que não haja mais diferenças de classes,
preocupação com os meios individuais de existência e na qual, pela primeira
vez, será possível falar de liberdade humana real, de uma existência em
harmonia com as leis da natureza conhecidas. Toda a história humana, porém,
ainda é muito recente e seria ridículo querer atribuir às nossas atuais
concepções qualquer validade absoluta, o que decorre do simples fato de que
toda a história até aqui pode ser caracterizada como a história do período que
vai da descoberta prática da transformação do movimento mecânico em calor até a
descoberta prática da transformação de calor em movimento mecânico.”
242 G. W. F. Hegel, Encyclopädie
der philosophischen Wissenschaften im Grundrisse, cit., Teil 1, p. 294 [ed.
bras.: Enciclopédia das ciências
filosóficas, cit., v. I, p. 275]. (N. E. A.)
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