Editora: UFRJ
ISBN: 978-85-7108-351-6
Tradução: José Paulo Netto
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 240
Sinopse: Segundo
a obra, quando se parte da consideração da totalidade social e, portanto da
gênese da sociedade humana, põe-se em relevo a função central do trabalho, que
é a condição de qualquer relação humana. O trabalho revela-se o princípio que
em geral torna possível o ser social. Mas, se o trabalho possui esta função
central, não podem existir processos ou fenômenos na história da sociedade,
referidos aos indivíduos socializados através do trabalho, que não se possam
vincular, em última analise, à relação sujeito-objeto e ao princípio que a
fundamenta, o próprio trabalho.
“A lógica, para Hegel, de modo algum se esgota
na lógica formal. Esta, ao contrário, não é mais do que um momento subordinado daquela.
A essencialidade do ser e a essencialidade do pensamento coincidem aqui completamente,
e o resultado é o método lógico que, no entanto, para além do seu caráter (ou seja,
para além de ser um método), reflete as leis universais do movimento dialético do
próprio ser1. Hegel mesmo escreve: “Pois o método é apenas a construção
do todo exposta na sua essencialidade”. Por consequência, a lógica de Hegel (ou
o seu método) representa muito mais do que um simples guia metodológico para o conhecimento
seguro da realidade: é já uma teoria da realidade. E o é, evidentemente, apenas
na medida em que capta o universal da realidade, a partir do qual, e só a partir
do qual, deve-se avançar para os problemas concretos da realidade (e, não obstante
e de acordo com o caráter da dialética, a lógica é ao mesmo tempo o resultado de
investigações concretas). Por outra parte, e nesta mesma medida, a lógica é também,
de fato, método. Somente neste sentido abrangente a lógica de Hegel é uma lógica
dialética: sistema das leis de movimento da realidade e, ao mesmo tempo, do pensamento
que a reflete. O fato de que Hegel tenha podido desenvolver a sua lógica de novo
tipo — uma lógica em que método e realidade efetiva, forma e conteúdo, são idênticos
— se explica a partir da sua concepção fundamental da identidade entre identidade
genética e identidade epistemológica da contradição entre ser e consciência. Logo
que se reconhece esta conexão, torna-se fácil compreender que qualquer exposição
subsequente das categorias lógicas da dialética jamais poderá referir-se simplesmente
ou à atividade do pensamento ou à estrutura do ser — sempre terá que se referir
simultaneamente a ambas. Postas assim as coisas, a filosofia pode abandonar o campo
do problema gnosiológico primário, configurado na unidade da contradição entre ser
e consciência, e enfrentar diretamente o estudo das leis de movimento da realidade,
estudo já não mais travado por nenhuma antítese entre lógica e realidade. Mas, de
qualquer maneira, a referência à concepção dialética fundamental e sua permanente
evocação continua sendo necessária; já que nela se alcançou o conhecimento da unidade
dialética do que se contradiz no processo, tal conhecimento se converte, nesta mesma
medida, em parâmetro diretor de qualquer investigação a ser empreendida e que, de
acordo com o conceito de dialética, só pode tomar como objeto processos que expressem
aquela unidade do que é intimamente contraditório.”
1 Cf. V. I. Lenin, Aus dem philosophischen
Nachlass, 1949, p. 142, [Trata-se dos escritos de Lenin publicados postumamente
e conhecidos como Cadernos filosóficos,
Há tradução ao português em V. I. Lenin, Obras
escolhidas em seis tomos, Lisboa-Moscou, Avante!-Progresso, v. 6, 1989.]
“Qualquer começo efetivamente adotado — e toda
ciência deve começar em alguma parte — é, pois, segundo Hegel, algo “vazio”. O objetivo
da filosofia é o conhecimento do todo por meio da pesquisa do seu processo de desenvolvimento.
“O verdadeiro é o todo, mas o todo é tão somente a essência que se atualiza através
do seu desenvolvimento. É essencialmente [...] resultado”5.
5 G. W. F. Hegel, Phänomenologie des Geistes, 1949, p, 21.
“Assim, para o conhecimento do caráter dialético
da realidade objetiva — conhecimento que, como vimos, traz consigo, ao mesmo tempo,
o método — não há outra alternativa senão a de mergulhar nela. Hegel repudia o filosofar
e o teorizar sobre a realidade, especulação abstrata e ilusória. Exige do filósofo
que aprenda a pensar objetivamente. E, para ele, pensar objetivamente significa
mergulhar no objeto, apreender seu movimento interno e não refletir “engenhosamente”
sobre ele, com o que, no mais das vezes, só se consegue considerá-lo como se fosse
algo imóvel e, portanto, de modo outra vez abstrato, Hegel censura os filósofos:
“De fato, em vez de ocupar-se da própria coisa, a sua operação passa ao largo dela;
em vez de centrar-se nela e abandonar-se a ela, esse saber toma sempre um outro
que não ela e aí permanece, onde não cabe a coisa mesma”.12 Com esta
revelação do caráter abstrato e externo à realidade da ciência não dialética, Hegel
mostra, ao mesmo tempo, a razão por que essa ciência jamais pode alcançar a compreensão
da índole dialética da realidade, da unidade do contraditório no interior do processo,
ou, em relação ao método, a compreensão da mediação das manifestações no interior
da totalidade. (...)
Quanto ao modo de abordar a manifestação singular
já dada ao entendimento, Hegel chama a atenção sobre a tendência do pensamento,
na sua representação dessa manifestação singular, a abstraí-la de tudo o que não
é ela mesma. Por isto, Hegel não designa o singular como “concreto”, como é habitual,
mas, ao contrário, designa-o como “abstrato”. Mas como este “abstrato”, ademais,
subsiste ao lado de muitas outras coisas singulares (que aparecem isoladas ao nosso
entendimento) e como está limitado no espaço e no tempo (e, nesta limitação, entra
em uma relação externa com aquelas coisas), Hegel designa-o também como “relativo”.
Para Hegel, “abstrato” e “relativo” são conceitos absolutamente sinônimos.
O sentido cabal do relativo, porém, só se torna
compreensível quando este é concebido a partir da sua oposição ao absoluto. E o
que é o absoluto? Sua essência se revela tão logo lhe é retirada a roupagem metafísica
com que Hegel não pôde deixar de revesti-lo na medida em que, privando-o do núcleo
racional que lhe era inerente, fez dele o fundamento originário e racional de todo
ser. No plano da teoria do conhecimento, o absoluto só pode designar o que é totalmente
contraposto ao singular, abstrato e relativo, ou seja, a conexão de todas as manifestações
singulares ou a totalidade.
Ao mesmo tempo, Hegel introduz outra determinação:
este nexo das coisas nunca se pode conceber como algo estático, mas somente em seu
movimento, posto que se constitui precisamente através do movimento. Já com esta
determinação do conceito de todo Hegel se afasta completamente das ideias imperantes
até então. Contudo, como não pôde compreender as reais condições a partir das quais
é possível apreender concretamente o todo — ele não pôde, ainda, reconhecer claramente
o papel da “práxis” —, Hegel sustentou que o absoluto
só pode ser apreendido pela via da especulação, isto é, só pode ser concebido como
ideia. Mas, deixando-se de lado esta formulação metafísica, seria um erro atribuir
a Hegel a opinião de que o absoluto só existe em nosso pensamento. Sem dúvida, ele
afirma que o absoluto só pode ser apreendido por meio de uma transcendência “especulativa”
do fenômeno singular, razão pela qual o caracteriza também como a “Ideia Absoluta”.
Mas isso não o faz pensar que o Absoluto seja criado pela especulação. Para ele,
o absoluto é a conexão total da própria realidade. Assim, identifica o absoluto
com o “concreto”. Assim como relativo e abstrato são sinônimos, igualmente o são
o absoluto e o “concreto”. Mas o próprio Hegel não declarou que o absoluto só pode
ser apreendido por meio da especulação? Como, então, sem contradizer a sua concepção,
ele prova o caráter concreto do absoluto? Para Hegel, esta prova está dada pelo
fato de que a manifestação singular só pode existir no interior da conexão universal
da totalidade e de que ela só adquire a sua função, o seu sentido e o seu ser (e
se torna concreta) por meio da sua inclusão no processo da totalidade. Deste modo,
Hegel retira da manifestação singular essa aparência sagrada com que se apresenta
ao pensamento ordinário acrítico e que também pode verificar-se na ciência: na verdade,
esta manifestação não é nada até que se determine a sua relação com as outras manifestações
singulares no interior da totalidade do ser concreto ou absoluto. Hegel contrapõe
o autoengano do entendimento que se comporta de maneira não dialética à “razão [Vernunft] dialética”; assim, afirma que o
tratamento que promove separações está de acordo com o entendimento e que o pensamento relacionado à totalidade está de acordo
com a razão.
Um dos méritos insuperáveis de Hegel foi a demonstração
de que algo pode ser “‘bem conhecido” [bekannt]
ao entendimento sem que, por isto, seja concebido também essencialmente; ou, como
diz Hegel, sem que seja “reconhecido” [erkannt].
O modo pelo qual o meramente sabido se torna reconhecido consiste na superação do
seu ser isolado e em sua restituição ao nexo da totalidade a que pertence — a chamada
“mediação”. É precisamente no conceito de mediação que a concepção de Hegel revela
claramente que sua teoria do conhecimento pretende ser — e de fato o é — ao mesmo
tempo uma ciência do ser e um método. Com efeito, em Hegel, “mediação” significa
tanto que os momentos são dialeticamente mediados no interior do processo real quanto
que a pesquisa teórica desta mediação real se faz através do método da mediação.
Expressando com mais exatidão: a mediação consiste
em remeter cada momento a seu contrário no interior do todo e em relação a ele,
pois somente assim se pode reconhecer em cada um deles seu conteúdo total e sua
essência, velados pela abordagem metafísica, que os isola. Fora da mediação, algo
pode ser familiar, mas não reconhecido.”
12 G. W. F. Hegel, Phänomenologie des Geistes, 1949, p, 11.
“Hegel chama “trivial” a representação da unidade
na qual o momento singular desaparece. A contradição viva dos momentos permanece
como a força dinamizadora do movimento do todo; ao mesmo tempo, este movimento é
o fundamento da determinação a partir da qual surgem os momentos e por meio do qual
eles se deixam reconhecer em sua essência. Todo o sistema hegeliano é uma prova
de que, para o idealismo objetivo, não existe uma teoria do conhecimento que não
seja, simultaneamente, uma teoria do ser. E, por isto, a teoria do conhecimento
do idealismo objetivo é essencialmente dialética. E esta é também a razão graças
à qual Marx pode afirmar que, “de acordo com Hegel, a metafísica, a filosofia inteira,
se resume no método”.17”
17 K. Marx, Elend der Philosophie,
in Frühschriften, Kröner, 1932, v. 2, p. 542. [Há tradução
ao português: Miséria da filosofia, São Paulo,
Expressão Popular, 2009.]
“Mas, na superação da metafísica hegeliana, a
filosofia de Feuerbach perdeu a dialética. Sua conquista genial, a explicação antropológica
de Deus, inspirou-se sem dúvida na doutrina de Hegel sobre a alienação de si, mas
Feuerbach interpretou este conceito de forma excessivamente estreita. Ele não incorporou
o que Hegel já compreendera: que a atividade humana, a ação conjunta dos indivíduos
no processo do trabalho é o que engendra a alienação de si. Empenhado na clarificação
materialista das ideias metafísicas que pesavam sobre os homens, ele perdeu de vista
o processo total e não pôde conceitualizar a relação dialética entre atividade subjetiva
e processo objetivo que, enquanto essência da história humana, lhe permitiria explicar
as ideias que criticava, bem como a aparente autonomia com que se erguiam frente
aos homens, dominando-os. Assim, ele geralmente deixa escapar a história, como Marx
observou na sexta das suas Teses sobre Feuerbach7.
E apenas no conceito de “conjunto das relações sociais” — conceito amplo, alheio
a qualquer unilateralidade e que, portanto, expressa de modo compreensivo o movimento
concreto do real — é que Marx vislumbra a garantia de uma explicação correta das
manifestações sociais e ideológicas da alienação.
Contra a tendência de Feuerbach (e, em geral,
do velho materialismo não dialético) de conceber o homem unilateralmente como um
ser passivo, mero produto de circunstâncias sobre as quais carecia de influência,
Marx defende a necessidade de introduzir, na exposição do processo social, também
o aspecto ativo e criador da existência humana que, por seu turno, modifica as próprias
circunstâncias. Para Marx, atividade e passividade, sujeito e objeto do processo
social configuram uma relação dialética insuprimível. É por isto que declara, na
primeira das suas Teses sobre Feuerbach:
“O defeito principal de todo materialismo anterior — incluído o de Feuerbach — reside
em conceber [...] a realidade somente sob a forma [...] de contemplação”. “Sob a
forma de contemplação” significa aqui “de maneira puramente concordante com as leis
naturais”, do que decorre a caracterização de Marx, quando fala em “materialismo
da ciência natural”; é como se o homem dotado de consciência apenas ilusoriamente
fizesse a sua própria história, sendo, ao contrário, verdadeiramente um instrumento
passivo dela, que seria apenas contemplada a
posteriori, quando já realizada. Por isto, Marx qualifica também este materialismo
como “contemplativo” (nona tese). E prossegue explicando que o esquecimento do aspecto
ativo e subjetivo do processo social teve por consequência que este “aspecto ativo
tenha sido desenvolvido pelo idealismo, em oposição ao materialismo”. Aqui, Marx
pensa sobretudo em Hegel, situado nos antípodas de Feuerbach. E, na verdade, Hegel
enfatizou a relação dialética entre atividade e passividade, contra insistência
unilateral de Kant e Fichte sobre a atividade, mas o fez sobre uma base idealista.
Estava reservada ao materialismo dialético a tarefa de resolver o problema da dialética
entre atividade e lei sobre uma base materialista, ou seja, livre das “especulações
idealistas” (Engels).”
7 [As Teses
sobre Feuerbach estão traduzidas ao português em K. Marx e F. Engels, A ideologia alemã, São Paulo, Boitempo,
2007.)
““O método” — escreveu Hegel — “é tão somente
o edifício do todo, erguido no que tem de essencial”. Esta formulação concisa e
plástica vale inteiramente para a dialética materialista. De fato, ela expressa,
em primeiro lugar, a coincidência entre método e a consideração do ser; ao contrário
do que se passa na concepção metafísica, aqui o método não é concebido como meramente
“formal”. E, em segundo lugar, aquele enunciado de Hegel destaca o papel central
do conceito do todo.
Se o pensamento não se orienta de modo consciente
para a captação do todo, a dialética se vê ameaçada pelo perigo, que a experiência
registrou algumas vezes, de recair, em maior ou menor grau, nos procedimentos do
velho materialismo mecanicista, tão duramente criticado por Marx e Engels. Este
perigo implica mais do que aferrar-se a alguma unilateralidade não dialética, o
que, por si só, já seria muito deletério. O verdadeiro perigo, fruto do desconhecimento
da consideração do todo, consiste em aceitar acriticamente como verdadeiros os reflexos
rígidos e inadequados dos processos reais, particularmente as chamadas categorias;
e o materialismo mecanicista, mesmo desenvolvendo seus pontos de vista sob uma máscara
“crítica”, opera desta forma.
“O caráter dialético desta relação se expressa
principalmente no fato de que a própria oposição entre o relativo e o absoluto é
relativa. Portanto, quando Marx, na “Introdução” a Para a crítica da economia política,5 exige que — a partir da primeira representação caótica do todo”
— retroceda-se a “conceitos cada vez mais simples” para, depois “avançar” para o
todo na sua plenitude de articulações, deve-se deixar bem claro que, aqui, este
retrocesso aos conceitos mais simples significa, na dialética, algo completamente
diferente daquele presente no modo de representação da ciência “conforme ao entendimento”,
como Hegel a designou. Estes conceitos, obtidos mediante uma abstração plena de
sentido (Marx) do todo, não são investigados em si mesmos, mas em sua relação com
o todo e no seu movimento relativo a ele, ou seja, como momentos que expressam o
relativo no absoluto. Evidencia-se, portanto, que, quando o pensamento teórico adquire
consciência da necessidade de proceder deste modo, a determinação dos “conceitos
mais simples” levará a um resultado completamente diverso do que se obtém quando
a investigação dos “fatos” é conduzida com ingenuidade metodológica e, portanto,
por um falso conceito de “exatidão”. (...)
O próprio Lenin formula o seu ponto de vista do
seguinte modo:
A diferença entre subjetivismo (ceticismo, sofística etc.) e dialética consiste,
entre outras coisas, em que na dialética (objetiva) também é relativa a diferença
entre relativo e absoluto. Para a dialética objetiva, o absoluto está contido também
no interior do relativo. Para o subjetivismo e a sofística, o relativo é somente
relativo e exclui o absoluto. Marx analisa primeiro, em O capital, a relação mais simples, habitual, fundamental, frequente,
cotidiana e que pode observar-se infinitamente na sociedade (mercantil) burguesa:
a troca de mercadorias. Neste fenômeno elementar (nesta “célula” da sociedade burguesa),
descobrem-se todas as contradições (ou
melhor, os germes de todas as contradições) da sociedade moderna. E a exposição
de Marx nos mostra o desenvolvimento (crescimento e movimento) destas contradições
e desta sociedade em suas partes singulares, do seu nascimento ao seu final.6
E se, além disto, se leva em conta o valor que
Lenin atribui hegeliana de totalidade, não restará qualquer dúvida sobre o seu pensamento
no que diz respeito à ideia de todo que é própria da dialética.
No tratamento do elemento primeiro e “mais simples”
(a mercadoria) da investigação realizada por Marx, fica claro que não é possível
operar a análise dialética de uma “célula” ou “germe” da sociedade burguesa sem
a contínua referência conceitual ao todo. Já a contraposição entre valor de uso
e valor de troca e a descoberta da sua relação concreta pressupõem a sociedade das
mercadorias, uma sociedade que não produz diretamente para o consumo, mas para a
troca, para o mercado, e que se vê obrigada a fazê-lo em consequência da extrema
divisão do trabalho que nela impera. A mercadoria, aqui, é apenas a expressão, nas
coisas, de uma forma das relações entre os homens que é determinante de toda a sociedade,
ou seja, a forma que resulta de uma divisão do trabalho levada ao extremo e da atomização
das relações econômicas. Eis por que é impossível compreender um fenômeno qualquer
da relação mercantil se, ao mesmo tempo, ele não é exposto como um momento da relação
total da sociedade capitalista. Assim, a oposição entre valor de uso e valor de
troca só pode ser concebida como unidade caso seja dado por conhecido o caráter
das condições capitalistas de produção e de troca; e, inversamente, o caráter da
economia capitalista só pode ser captado integralmente através da análise da contraditoriedade
dialética interna da mercadoria. (...)
Nada disso ocorre em Marx. Na análise da mercadoria,
a que retorna muitas vezes em sua investigação, Marx mostra o modo pelo qual, a
partir da análise da relação entre a parte e o todo, a riqueza concreta das contradições
dialéticas se desenvolve crescentemente no interior de um processo unitário, descobrindo-se
assim a essência das manifestações. A demonstração de que a mercadoria é apenas
a expressão reificada de um processo social vivo e complexo, uma célula na qual
se reflete o todo, é uma das melhores conquistas da dialética marxista.”
5: A referência exata é à “Introdução” de 1857
aos manuscritos conhecidas como Grundrisse der Kritik der politischen Okonomie.
Rohenrwurf. 1857-1858 [Elementos fundamentais para a crítica da Economia
política. Rascunho. 1857-1858], traduzida ao português no volume Marx da coleção “Os pensadores”, São Paulo,
Abril Cultura, 1974.]
6 V. I. Lenin, Aus dem philosophischen
Nachlass, 1949, p. 286 e ss.
“Concretamente, a situação é tal que a legalidade
objetiva se impõe com base na contingência subjetiva; mas isto, geralmente, só é
possível na prática mediante aquele comportamento ideológico dos indivíduos que
é dominado pela convicção contraditória de que existe a liberdade subjetiva e, porém
e ao mesmo tempo, de que existem leis naturais “fatais”, reificadas, que transcendem
e limitam essa liberdade. E este fato — isto é, que determinados elementos ideológicos
se convertem em “formas de existência” da práxis — gera a ilusão de que não é a
realidade que configura o pensamento, mas, ao contrário, que é o pensamento que
configura a realidade. Uma prova da grande importância prática da contraposição
entre subjetivação e objetivação é também a circunstância de que os indivíduos capitalistas,
precisamente por razões práticas (ou seja, porque se sentem perturbados em sua ação
por causa desta contradição, percebendo-a como tal), vejam-se obrigados a “superá-la”
conferindo-lhe uma forma mais suportável. A ideologia burguesa pretende essa “superação”
operando o conceito de “cálculo”: com ele, a contradição é aparentemente superada
no âmbito da práxis, sem que o seja no interior da consciência burguesa. Tal conceito
é presidido pela ideia de que, na prática, é possível calcular, de maneira subjetiva
e contingente, com base no talento, na astúcia e na perícia, a legalidade objetiva
que se subtrai à vontade e ao conhecimento individuais. Marx caracteriza assim essa
mistura de cálculo e especulação, que se define pelo reconhecimento simultâneo das
condições objetivas e da liberdade pessoal: “Até hoje, designou-se como liberdade
pessoal o direito de gozar a contingência sem ser molestado”13.
Em suma, deve-se compreender que as situações
contraditórias da subjetivação e da reificação são formas ideológicas não mediadas
— e, portanto, aparentes — da consciência burguesa, e, ao mesmo tempo, condições
necessárias da práxis capitalista. Ou seja: não basta “desmascarar” determinadas
representações como formas de falso reflexo do ser contraditório do capitalismo.
É preciso dar um novo e decisivo passo: apreendê-las conceitualmente como formas
de existência necessárias da práxis capitalista (Marx).
Quando aparecem, no processo econômico, fenômenos
que exibem este caráter dual, mediado pelas contradições dialéticas da realidade
— fenômenos que são mera ilusão ideológica, mas que, por outra parte, na forma desta
ilusão, representam uma condição de existência do processo prático —, Marx fala
em “categorias”. A grande importância que o reconhecimento do papel das categorias
tem para a teoria do materialismo histórico está em que elas representam e expressam
os pontos de fratura do processo em que são mediados ser e consciência, ou seja,
os espaços em que o ser econômico da sociedade se converte em seu ser ideológico.
Isto se torna claro na determinação do conceito
de categorias por parte de Marx. Define-as com grande nitidez, na sua análise da
forma categorial do movimento das mercadorias:
As formas que imprimem aos produtos do trabalho a marca de mercadorias, e
que portanto são premissas da circulação mercantil, possuem já a fixidez de formas
naturais da vida social antes que os homens procurem explicar para si mesmos não
o caráter histórico dessas formas — pois eles as consideram como imutáveis —, mas
o seu conteúdo. É, portanto, essa forma fixa — a forma dinheiro — do mundo das mercadorias
que encobre o caráter social dos trabalhos privados e, portanto, as relações sociais
que os regem, ao invés de explicitá-las. Tais formas constituem precisamente as
categorias da economia política burguesa. Elas têm validade social e, portanto,
são formas conceituais objetivas para as relações de produção deste modo de produção
historicamente determinado, a produção de mercadorias.14
Compreende-se que estas formas conceituais não
são “objetivas” no sentido de refletirem fielmente a realidade. É o que se depreende
da exposição de Marx; as categorias são formas objetivas no sentido de que, no processo
real e econômico, elas cumprem a função de suportes ideológicos para o comportamento
prático dos indivíduos. Daí a precisão de Marx, segundo a qual elas “têm validade
social” e são, portanto, formas objetivas de pensamento.
Também se compreende que o modo pelo qual as categorias
operam está determinado pelas leis gerais do desenvolvimento e que, por isto, elas
não dispõem de autonomia. Para a consciência social a que pertencem, porém, essas
categorias aparecem como forças autônomas, dotadas da “fixidez de formas naturais”
— embora, na verdade, não sejam mais do que ilusão, formações de pensamento fixadas
e reificadas com um grande poder de enganar. Mas, na medida em que representam esta
forma de reflexo reificado e deformado das relações sociais do capitalismo, são
ao mesmo tempo as próprias relações que operam sob forma. Por isto, as categorias
também indicam uma forma de manifestação do real.
A especificidade da categoria consiste em que,
nela, a contradição entre a abstração e o real alcança a identidade dialética. Observemos,
por exemplo, o dinheiro: verificamos, por um lado, que se trata de um poder real,
inserido no processo concreto da economia; mas, por outro lado e na mesma medida,
é uma mera formação ideológica, uma representação enganosa de algo que ele não é,
ou seja, as relações sociais de produção (cuja compreensão última somente se obtém
no nível do conhecimento dialético). Anota Marx: “Diante do ouro e da prata não
se percebe que, como dinheiro, representam uma relação social de produção; eles
são vistos na forma de coisas naturais dotadas de extraordinárias propriedades sociais”.15
Trata-se, sem dúvida, de uma forma ideológica; mas, ao mesmo tempo, é a única que
permite aos indivíduos capitalistas atuar praticamente. Portanto, constitui uma
categoria. Marx sinaliza assim o caráter contraditório da categoria: por um lado,
ela expressa
[...] a mistificação do modo de produção capitalista, a reificação das relações
sociais, o mundo encantado, invertido e posto de ponta-cabeça, no qual monsieur le Capital e madame la Terre projetam sua sombra como
caracteres sociais e, ao mesmo tempo, imediatamente, como simples coisas. [...]
Mas, por outro lado, é igualmente natural que os agentes reais da produção sintam-se
à vontade no interior dessas formas irracionais e alienadas do capital-juro, terra-renda,
trabalho-salário, pois elas são justamente as configurações da ilusão na qual se
movem e com a qual entram em contato diariamente.16
Uma vez que tanto a ciência “burguesa” quanto
o materialismo mecanicista, alheios à dialética, desconhecem o caráter dialético
socialmente condicionado das categorias, ambos incorrem num duplo erro na sua formulação
teórica. Por um lado, identificam nelas um dado imediato da própria realidade, quando,
na verdade, “as categorias são apenas a expressão teórica das relações de produção”.17
Mas, por outro, escapa-lhes o traço específico da categoria: o de ser uma “forma
de existência”, uma condição subjetiva da ação. Em suma: ambos não superam a aparência
da categoria, aparência de mera coisa natural.
Tal como a análise de outros fenômenos do ser
social, a análise da categoria prova que cada manifestação singular só pode ser
cabalmente conceitualizada quando se considera a sua relação com o todo e, inversamente,
que o todo sempre se reflete (sob uma forma qualquer) nos fenômenos, nas “células”
do processo. Na categoria se reflete, antes de mais nada, o fato de que a sociedade
representa uma unidade dialética entre ser e consciência e, portanto, é uma totalidade.
Marx desenvolve em detalhe o ponto de vista metodológico
do pensamento dialético da totalidade na sua “Introdução“ à Para a crítica da economia política, na seção intitulada “O método da economia política”, em que também se ocupa
do problema da categoria. Antes de abordá-lo, porém, ele coloca a questão, prévia,
das premissas metodológicas da ciência econômica em geral. Pouco antes de chegar
à seção mencionada, escreve: “O resultado a que chegamos não é que a produção, a
distribuição, a troca e o consumo sejam idênticos, mas que todos constituem componentes
de uma totalidade, diferenças no interior de uma unidade”. Nesta passagem, portanto,
Marx compreende a totalidade como unidade do diferente. Mas como se alcança o conhecimento
concreto da unidade do diferente e do contraditório no interior do todo? Marx enfrenta
aqui a mesma dificuldade metodológica que Hegel já assinalara como a dificuldade
primária de toda dialética, ou seja, a dificuldade de encontrar um começo.
Marx diz que caberia partir do todo. Considerando-se
um país e sua população, por exemplo, caberia partir da população, pois esta aparece
como o universo da atividade social em seu conjunto, isto é, como o “sujeito do
ato de produção total”. Mas este caminho seria equivocado, porque a abstração vazia
do todo, neste caso “a população”, equivale a “uma representação caótica de um todo”.
Correto é procurar alcançar, “mediante uma determinação mais precisa”, “conceitos
mais simples” e passar “do concreto representado” (ou seja, do todo) “a elementos
abstratos cada vez mais tênues”. E, a partir destes, é necessário — continua Marx
— retornar ao todo, que, então, deixa de aparecer como uma mera “representação caótica”
e é apreendido como “uma rica totalidade que possui múltiplas determinações e relações”.
A elevação dos “momentos singulares” obtidos por abstração e “mais ou menos tênues”
ao todo, ou ao “concreto, “é evidentemente o método científico correto”. Assim se
compreende de onde Marx extrai a sua equalização da totalidade com o concreto: “O
concreto é concreto porque constitui a síntese de múltiplas determinações e, portanto,
é uma unidade do múltiplo”; ou “uma rica totalidade que possui múltiplas determinações
e relações”. O caminho para o conhecimento deste concreto se apresenta como “processo
de síntese, como resultado”. Ou, tomado em seu conjunto: “Seguindo o primeiro caminho,
toda a representação se dissolve na representação abstrata; no segundo, as determinações
abstratas conduzem à reprodução do concreto no pensamento”.
Este duplo movimento do processo do pensamento,
aqui descoberto por Marx, culmina assim na relação entre momento e todo, entre abstrato
e concreto. Mas não se esgota nisto, ou melhor: neste duplo movimento, está apenas
a base metodológica universal que permite descobrir o movimento interno dos momentos,
a sua imanente contraditoriedade que, por seu turno, resulta da contraditoriedade
universal do todo. E a revelação do caráter contraditório tanto dos momentos como
do todo somente se torna possível mediante a observação da dependência recíproca,
que entra em contínua mediação consigo mesma, dos momentos entre si e destes com
a totalidade através da busca por todos os lados da conexão inclusiva, da “conexão
total” (como diz Engels). Este método do conhecimento da contraditoriedade real
das manifestações é tão somente o método, oposto a qualquer ciência não dialética,
da superação do invólucro fenomênico com que a essência social dos fenômenos se
subtrai à consideração do ordinário” (científico ou não): é o método da distinção
da essência de uma coisa em relação à sua forma de manifestação. Este é o caminho
cognoscitivo da dialética, parte essencialíssima da qual é o método da “reprodução
do concreto no pensamento”. Marx assinala muito corretamente que — quanto mais a
dialética da totalidade, resumo do pleno movimento do real, aparece em seu resultado
exclusivamente como “produto do sujeito pensante que se apropria do mundo do único
modo que lhe é possível” — tanto mais o pensamento nada mais faz do que refletir
a realidade; e quanto mais ricas são as determinações trazidas à luz por este pensamento,
tanto mais correta e profundamente se reflete nele a realidade. De acordo com Marx,
foi por não ter compreendido isso que Hegel se iludiu, ao identificar, de maneira
absoluta e idealista, o processo do pensamento com o processo da realidade.”
13 K. Marx e F. Engels, Die deutsche Ideologie, in Frühschriften, Kröner, 1932, v. 2, p. 63.
14 K. Marx, Das Kapital, v. 1, p. 81.
15 Ibid., p. 88; v. 3, p. 880 e ss.
16 Ibid. v. 3, p. 884-885.
17 Marx, Das Elend der Philosophie, in Frühschriften,
ed. cit., v. 2, p. 543.
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