domingo, 6 de outubro de 2019

História e dialética: Estudos sobre a metodologia da dialética marxista (Parte I) — Leo Kofler

Editora: UFRJ

ISBN: 978-85-7108-351-6

Tradução: José Paulo Netto

Opinião: ★★★★☆

Páginas: 240

Sinopse: Segundo a obra, quando se parte da consideração da totalidade social e, portanto da gênese da sociedade humana, põe-se em relevo a função central do trabalho, que é a condição de qualquer relação humana. O trabalho revela-se o princípio que em geral torna possível o ser social. Mas, se o trabalho possui esta função central, não podem existir processos ou fenômenos na história da sociedade, referidos aos indivíduos socializados através do trabalho, que não se possam vincular, em última analise, à relação sujeito-objeto e ao princípio que a fundamenta, o próprio trabalho.


“A lógica, para Hegel, de modo algum se esgota na lógica formal. Esta, ao contrário, não é mais do que um momento subordinado daquela. A essencialidade do ser e a essencialidade do pensamento coincidem aqui completamente, e o resultado é o método lógico que, no entanto, para além do seu caráter (ou seja, para além de ser um método), reflete as leis universais do movimento dialético do próprio ser1. Hegel mesmo escreve: “Pois o método é apenas a construção do todo exposta na sua essencialidade”. Por consequência, a lógica de Hegel (ou o seu método) representa muito mais do que um simples guia metodológico para o conhecimento seguro da realidade: é já uma teoria da realidade. E o é, evidentemente, apenas na medida em que capta o universal da realidade, a partir do qual, e só a partir do qual, deve-se avançar para os problemas concretos da realidade (e, não obstante e de acordo com o caráter da dialética, a lógica é ao mesmo tempo o resultado de investigações concretas). Por outra parte, e nesta mesma medida, a lógica é também, de fato, método. Somente neste sentido abrangente a lógica de Hegel é uma lógica dialética: sistema das leis de movimento da realidade e, ao mesmo tempo, do pensamento que a reflete. O fato de que Hegel tenha podido desenvolver a sua lógica de novo tipo — uma lógica em que método e realidade efetiva, forma e conteúdo, são idênticos — se explica a partir da sua concepção fundamental da identidade entre identidade genética e identidade epistemológica da contradição entre ser e consciência. Logo que se reconhece esta conexão, torna-se fácil compreender que qualquer exposição subsequente das categorias lógicas da dialética jamais poderá referir-se simplesmente ou à atividade do pensamento ou à estrutura do ser — sempre terá que se referir simultaneamente a ambas. Postas assim as coisas, a filosofia pode abandonar o campo do problema gnosiológico primário, configurado na unidade da contradição entre ser e consciência, e enfrentar diretamente o estudo das leis de movimento da realidade, estudo já não mais travado por nenhuma antítese entre lógica e realidade. Mas, de qualquer maneira, a referência à concepção dialética fundamental e sua permanente evocação continua sendo necessária; já que nela se alcançou o conhecimento da unidade dialética do que se contradiz no processo, tal conhecimento se converte, nesta mesma medida, em parâmetro diretor de qualquer investigação a ser empreendida e que, de acordo com o conceito de dialética, só pode tomar como objeto processos que expressem aquela unidade do que é intimamente contraditório.”

1 Cf. V. I. Lenin, Aus dem philosophischen Nachlass, 1949, p. 142, [Trata-se dos escritos de Lenin publicados postumamente e conhecidos como Cadernos filosóficos, Há tradução ao português em V. I. Lenin, Obras escolhidas em seis tomos, Lisboa-Moscou, Avante!-Progresso, v. 6, 1989.]

 

 

“Qualquer começo efetivamente adotado — e toda ciência deve começar em alguma parte — é, pois, segundo Hegel, algo “vazio”. O objetivo da filosofia é o conhecimento do todo por meio da pesquisa do seu processo de desenvolvimento. “O verdadeiro é o todo, mas o todo é tão somente a essência que se atualiza através do seu desenvolvimento. É essencialmente [...] resultado”5.

5 G. W. F. Hegel, Phänomenologie des Geistes, 1949, p, 21.

 

 

“Assim, para o conhecimento do caráter dialético da realidade objetiva — conhecimento que, como vimos, traz consigo, ao mesmo tempo, o método — não há outra alternativa senão a de mergulhar nela. Hegel repudia o filosofar e o teorizar sobre a realidade, especulação abstrata e ilusória. Exige do filósofo que aprenda a pensar objetivamente. E, para ele, pensar objetivamente significa mergulhar no objeto, apreender seu movimento interno e não refletir “engenhosamente” sobre ele, com o que, no mais das vezes, só se consegue considerá-lo como se fosse algo imóvel e, portanto, de modo outra vez abstrato, Hegel censura os filósofos: “De fato, em vez de ocupar-se da própria coisa, a sua operação passa ao largo dela; em vez de centrar-se nela e abandonar-se a ela, esse saber toma sempre um outro que não ela e aí permanece, onde não cabe a coisa mesma”.12 Com esta revelação do caráter abstrato e externo à realidade da ciência não dialética, Hegel mostra, ao mesmo tempo, a razão por que essa ciência jamais pode alcançar a compreensão da índole dialética da realidade, da unidade do contraditório no interior do processo, ou, em relação ao método, a compreensão da mediação das manifestações no interior da totalidade. (...)

Quanto ao modo de abordar a manifestação singular já dada ao entendimento, Hegel chama a atenção sobre a tendência do pensamento, na sua representação dessa manifestação singular, a abstraí-la de tudo o que não é ela mesma. Por isto, Hegel não designa o singular como “concreto”, como é habitual, mas, ao contrário, designa-o como “abstrato”. Mas como este “abstrato”, ademais, subsiste ao lado de muitas outras coisas singulares (que aparecem isoladas ao nosso entendimento) e como está limitado no espaço e no tempo (e, nesta limitação, entra em uma relação externa com aquelas coisas), Hegel designa-o também como “relativo”. Para Hegel, “abstrato” e “relativo” são conceitos absolutamente sinônimos.

O sentido cabal do relativo, porém, só se torna compreensível quando este é concebido a partir da sua oposição ao absoluto. E o que é o absoluto? Sua essência se revela tão logo lhe é retirada a roupagem metafísica com que Hegel não pôde deixar de revesti-lo na medida em que, privando-o do núcleo racional que lhe era inerente, fez dele o fundamento originário e racional de todo ser. No plano da teoria do conhecimento, o absoluto só pode designar o que é totalmente contraposto ao singular, abstrato e relativo, ou seja, a conexão de todas as manifestações singulares ou a totalidade.

Ao mesmo tempo, Hegel introduz outra determinação: este nexo das coisas nunca se pode conceber como algo estático, mas somente em seu movimento, posto que se constitui precisamente através do movimento. Já com esta determinação do conceito de todo Hegel se afasta completamente das ideias imperantes até então. Contudo, como não pôde compreender as reais condições a partir das quais é possível apreender concretamente o todo — ele não pôde, ainda, reconhecer claramente o papel da “práxis” , Hegel sustentou que o absoluto só pode ser apreendido pela via da especulação, isto é, só pode ser concebido como ideia. Mas, deixando-se de lado esta formulação metafísica, seria um erro atribuir a Hegel a opinião de que o absoluto só existe em nosso pensamento. Sem dúvida, ele afirma que o absoluto só pode ser apreendido por meio de uma transcendência “especulativa” do fenômeno singular, razão pela qual o caracteriza também como a “Ideia Absoluta”. Mas isso não o faz pensar que o Absoluto seja criado pela especulação. Para ele, o absoluto é a conexão total da própria realidade. Assim, identifica o absoluto com o “concreto”. Assim como relativo e abstrato são sinônimos, igualmente o são o absoluto e o “concreto”. Mas o próprio Hegel não declarou que o absoluto só pode ser apreendido por meio da especulação? Como, então, sem contradizer a sua concepção, ele prova o caráter concreto do absoluto? Para Hegel, esta prova está dada pelo fato de que a manifestação singular só pode existir no interior da conexão universal da totalidade e de que ela só adquire a sua função, o seu sentido e o seu ser (e se torna concreta) por meio da sua inclusão no processo da totalidade. Deste modo, Hegel retira da manifestação singular essa aparência sagrada com que se apresenta ao pensamento ordinário acrítico e que também pode verificar-se na ciência: na verdade, esta manifestação não é nada até que se determine a sua relação com as outras manifestações singulares no interior da totalidade do ser concreto ou absoluto. Hegel contrapõe o autoengano do entendimento que se comporta de maneira não dialética à “razão [Vernunft] dialética”; assim, afirma que o tratamento que promove separações está de acordo com o entendimento e que o pensamento relacionado à totalidade está de acordo com a razão.

Um dos méritos insuperáveis de Hegel foi a demonstração de que algo pode ser “‘bem conhecido” [bekannt] ao entendimento sem que, por isto, seja concebido também essencialmente; ou, como diz Hegel, sem que seja “reconhecido” [erkannt]. O modo pelo qual o meramente sabido se torna reconhecido consiste na superação do seu ser isolado e em sua restituição ao nexo da totalidade a que pertence — a chamada “mediação”. É precisamente no conceito de mediação que a concepção de Hegel revela claramente que sua teoria do conhecimento pretende ser — e de fato o é — ao mesmo tempo uma ciência do ser e um método. Com efeito, em Hegel, “mediação” significa tanto que os momentos são dialeticamente mediados no interior do processo real quanto que a pesquisa teórica desta mediação real se faz através do método da mediação.

Expressando com mais exatidão: a mediação consiste em remeter cada momento a seu contrário no interior do todo e em relação a ele, pois somente assim se pode reconhecer em cada um deles seu conteúdo total e sua essência, velados pela abordagem metafísica, que os isola. Fora da mediação, algo pode ser familiar, mas não reconhecido.”

12 G. W. F. Hegel, Phänomenologie des Geistes, 1949, p, 11.

 

 

“Hegel chama “trivial” a representação da unidade na qual o momento singular desaparece. A contradição viva dos momentos permanece como a força dinamizadora do movimento do todo; ao mesmo tempo, este movimento é o fundamento da determinação a partir da qual surgem os momentos e por meio do qual eles se deixam reconhecer em sua essência. Todo o sistema hegeliano é uma prova de que, para o idealismo objetivo, não existe uma teoria do conhecimento que não seja, simultaneamente, uma teoria do ser. E, por isto, a teoria do conhecimento do idealismo objetivo é essencialmente dialética. E esta é também a razão graças à qual Marx pode afirmar que, “de acordo com Hegel, a metafísica, a filosofia inteira, se resume no método”.17

17 K. Marx, Elend der Philosophie, in Frühschriften, Kröner, 1932, v. 2, p. 542. [Há tradução ao português: Miséria da filosofia, São Paulo, Expressão Popular, 2009.]

 

 

“Mas, na superação da metafísica hegeliana, a filosofia de Feuerbach perdeu a dialética. Sua conquista genial, a explicação antropológica de Deus, inspirou-se sem dúvida na doutrina de Hegel sobre a alienação de si, mas Feuerbach interpretou este conceito de forma excessivamente estreita. Ele não incorporou o que Hegel já compreendera: que a atividade humana, a ação conjunta dos indivíduos no processo do trabalho é o que engendra a alienação de si. Empenhado na clarificação materialista das ideias metafísicas que pesavam sobre os homens, ele perdeu de vista o processo total e não pôde conceitualizar a relação dialética entre atividade subjetiva e processo objetivo que, enquanto essência da história humana, lhe permitiria explicar as ideias que criticava, bem como a aparente autonomia com que se erguiam frente aos homens, dominando-os. Assim, ele geralmente deixa escapar a história, como Marx observou na sexta das suas Teses sobre Feuerbach7. E apenas no conceito de “conjunto das relações sociais” — conceito amplo, alheio a qualquer unilateralidade e que, portanto, expressa de modo compreensivo o movimento concreto do real — é que Marx vislumbra a garantia de uma explicação correta das manifestações sociais e ideológicas da alienação.

Contra a tendência de Feuerbach (e, em geral, do velho materialismo não dialético) de conceber o homem unilateralmente como um ser passivo, mero produto de circunstâncias sobre as quais carecia de influência, Marx defende a necessidade de introduzir, na exposição do processo social, também o aspecto ativo e criador da existência humana que, por seu turno, modifica as próprias circunstâncias. Para Marx, atividade e passividade, sujeito e objeto do processo social configuram uma relação dialética insuprimível. É por isto que declara, na primeira das suas Teses sobre Feuerbach: “O defeito principal de todo materialismo anterior — incluído o de Feuerbach — reside em conceber [...] a realidade somente sob a forma [...] de contemplação”. “Sob a forma de contemplação” significa aqui “de maneira puramente concordante com as leis naturais”, do que decorre a caracterização de Marx, quando fala em “materialismo da ciência natural”; é como se o homem dotado de consciência apenas ilusoriamente fizesse a sua própria história, sendo, ao contrário, verdadeiramente um instrumento passivo dela, que seria apenas contemplada a posteriori, quando já realizada. Por isto, Marx qualifica também este materialismo como “contemplativo” (nona tese). E prossegue explicando que o esquecimento do aspecto ativo e subjetivo do processo social teve por consequência que este “aspecto ativo tenha sido desenvolvido pelo idealismo, em oposição ao materialismo”. Aqui, Marx pensa sobretudo em Hegel, situado nos antípodas de Feuerbach. E, na verdade, Hegel enfatizou a relação dialética entre atividade e passividade, contra insistência unilateral de Kant e Fichte sobre a atividade, mas o fez sobre uma base idealista. Estava reservada ao materialismo dialético a tarefa de resolver o problema da dialética entre atividade e lei sobre uma base materialista, ou seja, livre das “especulações idealistas” (Engels).”

7 [As Teses sobre Feuerbach estão traduzidas ao português em K. Marx e F. Engels, A ideologia alemã, São Paulo, Boitempo, 2007.)

 

 

““O método” — escreveu Hegel — “é tão somente o edifício do todo, erguido no que tem de essencial”. Esta formulação concisa e plástica vale inteiramente para a dialética materialista. De fato, ela expressa, em primeiro lugar, a coincidência entre método e a consideração do ser; ao contrário do que se passa na concepção metafísica, aqui o método não é concebido como meramente “formal”. E, em segundo lugar, aquele enunciado de Hegel destaca o papel central do conceito do todo.

Se o pensamento não se orienta de modo consciente para a captação do todo, a dialética se vê ameaçada pelo perigo, que a experiência registrou algumas vezes, de recair, em maior ou menor grau, nos procedimentos do velho materialismo mecanicista, tão duramente criticado por Marx e Engels. Este perigo implica mais do que aferrar-se a alguma unilateralidade não dialética, o que, por si só, já seria muito deletério. O verdadeiro perigo, fruto do desconhecimento da consideração do todo, consiste em aceitar acriticamente como verdadeiros os reflexos rígidos e inadequados dos processos reais, particularmente as chamadas categorias; e o materialismo mecanicista, mesmo desenvolvendo seus pontos de vista sob uma máscara “crítica”, opera desta forma.

 

 

“O caráter dialético desta relação se expressa principalmente no fato de que a própria oposição entre o relativo e o absoluto é relativa. Portanto, quando Marx, na “Introdução” a Para a crítica da economia política,5 exige que — a partir da primeira representação caótica do todo” — retroceda-se a “conceitos cada vez mais simples” para, depois “avançar” para o todo na sua plenitude de articulações, deve-se deixar bem claro que, aqui, este retrocesso aos conceitos mais simples significa, na dialética, algo completamente diferente daquele presente no modo de representação da ciência “conforme ao entendimento”, como Hegel a designou. Estes conceitos, obtidos mediante uma abstração plena de sentido (Marx) do todo, não são investigados em si mesmos, mas em sua relação com o todo e no seu movimento relativo a ele, ou seja, como momentos que expressam o relativo no absoluto. Evidencia-se, portanto, que, quando o pensamento teórico adquire consciência da necessidade de proceder deste modo, a determinação dos “conceitos mais simples” levará a um resultado completamente diverso do que se obtém quando a investigação dos “fatos” é conduzida com ingenuidade metodológica e, portanto, por um falso conceito de “exatidão”. (...)

O próprio Lenin formula o seu ponto de vista do seguinte modo:

A diferença entre subjetivismo (ceticismo, sofística etc.) e dialética consiste, entre outras coisas, em que na dialética (objetiva) também é relativa a diferença entre relativo e absoluto. Para a dialética objetiva, o absoluto está contido também no interior do relativo. Para o subjetivismo e a sofística, o relativo é somente relativo e exclui o absoluto. Marx analisa primeiro, em O capital, a relação mais simples, habitual, fundamental, frequente, cotidiana e que pode observar-se infinitamente na sociedade (mercantil) burguesa: a troca de mercadorias. Neste fenômeno elementar (nesta “célula” da sociedade burguesa), descobrem-se todas as contradições (ou melhor, os germes de todas as contradições) da sociedade moderna. E a exposição de Marx nos mostra o desenvolvimento (crescimento e movimento) destas contradições e desta sociedade em suas partes singulares, do seu nascimento ao seu final.6

E se, além disto, se leva em conta o valor que Lenin atribui hegeliana de totalidade, não restará qualquer dúvida sobre o seu pensamento no que diz respeito à ideia de todo que é própria da dialética.

No tratamento do elemento primeiro e “mais simples” (a mercadoria) da investigação realizada por Marx, fica claro que não é possível operar a análise dialética de uma “célula” ou “germe” da sociedade burguesa sem a contínua referência conceitual ao todo. Já a contraposição entre valor de uso e valor de troca e a descoberta da sua relação concreta pressupõem a sociedade das mercadorias, uma sociedade que não produz diretamente para o consumo, mas para a troca, para o mercado, e que se vê obrigada a fazê-lo em consequência da extrema divisão do trabalho que nela impera. A mercadoria, aqui, é apenas a expressão, nas coisas, de uma forma das relações entre os homens que é determinante de toda a sociedade, ou seja, a forma que resulta de uma divisão do trabalho levada ao extremo e da atomização das relações econômicas. Eis por que é impossível compreender um fenômeno qualquer da relação mercantil se, ao mesmo tempo, ele não é exposto como um momento da relação total da sociedade capitalista. Assim, a oposição entre valor de uso e valor de troca só pode ser concebida como unidade caso seja dado por conhecido o caráter das condições capitalistas de produção e de troca; e, inversamente, o caráter da economia capitalista só pode ser captado integralmente através da análise da contraditoriedade dialética interna da mercadoria. (...)

Nada disso ocorre em Marx. Na análise da mercadoria, a que retorna muitas vezes em sua investigação, Marx mostra o modo pelo qual, a partir da análise da relação entre a parte e o todo, a riqueza concreta das contradições dialéticas se desenvolve crescentemente no interior de um processo unitário, descobrindo-se assim a essência das manifestações. A demonstração de que a mercadoria é apenas a expressão reificada de um processo social vivo e complexo, uma célula na qual se reflete o todo, é uma das melhores conquistas da dialética marxista.”

5: A referência exata é à “Introdução” de 1857 aos manuscritos conhecidas como Grundrisse der Kritik der politischen Okonomie. Rohenrwurf. 1857-1858 [Elementos fundamentais para a crítica da Economia política. Rascunho. 1857-1858], traduzida ao português no volume Marx da coleção “Os pensadores”, São Paulo, Abril Cultura, 1974.]

6 V. I. Lenin, Aus dem philosophischen Nachlass, 1949, p. 286 e ss.

 

 

“Concretamente, a situação é tal que a legalidade objetiva se impõe com base na contingência subjetiva; mas isto, geralmente, só é possível na prática mediante aquele comportamento ideológico dos indivíduos que é dominado pela convicção contraditória de que existe a liberdade subjetiva e, porém e ao mesmo tempo, de que existem leis naturais “fatais”, reificadas, que transcendem e limitam essa liberdade. E este fato — isto é, que determinados elementos ideológicos se convertem em “formas de existência” da práxis — gera a ilusão de que não é a realidade que configura o pensamento, mas, ao contrário, que é o pensamento que configura a realidade. Uma prova da grande importância prática da contraposição entre subjetivação e objetivação é também a circunstância de que os indivíduos capitalistas, precisamente por razões práticas (ou seja, porque se sentem perturbados em sua ação por causa desta contradição, percebendo-a como tal), vejam-se obrigados a “superá-la” conferindo-lhe uma forma mais suportável. A ideologia burguesa pretende essa “superação” operando o conceito de “cálculo”: com ele, a contradição é aparentemente superada no âmbito da práxis, sem que o seja no interior da consciência burguesa. Tal conceito é presidido pela ideia de que, na prática, é possível calcular, de maneira subjetiva e contingente, com base no talento, na astúcia e na perícia, a legalidade objetiva que se subtrai à vontade e ao conhecimento individuais. Marx caracteriza assim essa mistura de cálculo e especulação, que se define pelo reconhecimento simultâneo das condições objetivas e da liberdade pessoal: “Até hoje, designou-se como liberdade pessoal o direito de gozar a contingência sem ser molestado”13.

Em suma, deve-se compreender que as situações contraditórias da subjetivação e da reificação são formas ideológicas não mediadas — e, portanto, aparentes — da consciência burguesa, e, ao mesmo tempo, condições necessárias da práxis capitalista. Ou seja: não basta “desmascarar” determinadas representações como formas de falso reflexo do ser contraditório do capitalismo. É preciso dar um novo e decisivo passo: apreendê-las conceitualmente como formas de existência necessárias da práxis capitalista (Marx).

Quando aparecem, no processo econômico, fenômenos que exibem este caráter dual, mediado pelas contradições dialéticas da realidade — fenômenos que são mera ilusão ideológica, mas que, por outra parte, na forma desta ilusão, representam uma condição de existência do processo prático —, Marx fala em “categorias”. A grande importância que o reconhecimento do papel das categorias tem para a teoria do materialismo histórico está em que elas representam e expressam os pontos de fratura do processo em que são mediados ser e consciência, ou seja, os espaços em que o ser econômico da sociedade se converte em seu ser ideológico.

Isto se torna claro na determinação do conceito de categorias por parte de Marx. Define-as com grande nitidez, na sua análise da forma categorial do movimento das mercadorias:

As formas que imprimem aos produtos do trabalho a marca de mercadorias, e que portanto são premissas da circulação mercantil, possuem já a fixidez de formas naturais da vida social antes que os homens procurem explicar para si mesmos não o caráter histórico dessas formas — pois eles as consideram como imutáveis —, mas o seu conteúdo. É, portanto, essa forma fixa — a forma dinheiro — do mundo das mercadorias que encobre o caráter social dos trabalhos privados e, portanto, as relações sociais que os regem, ao invés de explicitá-las. Tais formas constituem precisamente as categorias da economia política burguesa. Elas têm validade social e, portanto, são formas conceituais objetivas para as relações de produção deste modo de produção historicamente determinado, a produção de mercadorias.14

Compreende-se que estas formas conceituais não são “objetivas” no sentido de refletirem fielmente a realidade. É o que se depreende da exposição de Marx; as categorias são formas objetivas no sentido de que, no processo real e econômico, elas cumprem a função de suportes ideológicos para o comportamento prático dos indivíduos. Daí a precisão de Marx, segundo a qual elas “têm validade social” e são, portanto, formas objetivas de pensamento.

Também se compreende que o modo pelo qual as categorias operam está determinado pelas leis gerais do desenvolvimento e que, por isto, elas não dispõem de autonomia. Para a consciência social a que pertencem, porém, essas categorias aparecem como forças autônomas, dotadas da “fixidez de formas naturais” — embora, na verdade, não sejam mais do que ilusão, formações de pensamento fixadas e reificadas com um grande poder de enganar. Mas, na medida em que representam esta forma de reflexo reificado e deformado das relações sociais do capitalismo, são ao mesmo tempo as próprias relações que operam sob forma. Por isto, as categorias também indicam uma forma de manifestação do real.

A especificidade da categoria consiste em que, nela, a contradição entre a abstração e o real alcança a identidade dialética. Observemos, por exemplo, o dinheiro: verificamos, por um lado, que se trata de um poder real, inserido no processo concreto da economia; mas, por outro lado e na mesma medida, é uma mera formação ideológica, uma representação enganosa de algo que ele não é, ou seja, as relações sociais de produção (cuja compreensão última somente se obtém no nível do conhecimento dialético). Anota Marx: “Diante do ouro e da prata não se percebe que, como dinheiro, representam uma relação social de produção; eles são vistos na forma de coisas naturais dotadas de extraordinárias propriedades sociais”.15 Trata-se, sem dúvida, de uma forma ideológica; mas, ao mesmo tempo, é a única que permite aos indivíduos capitalistas atuar praticamente. Portanto, constitui uma categoria. Marx sinaliza assim o caráter contraditório da categoria: por um lado, ela expressa

[...] a mistificação do modo de produção capitalista, a reificação das relações sociais, o mundo encantado, invertido e posto de ponta-cabeça, no qual monsieur le Capital e madame la Terre projetam sua sombra como caracteres sociais e, ao mesmo tempo, imediatamente, como simples coisas. [...] Mas, por outro lado, é igualmente natural que os agentes reais da produção sintam-se à vontade no interior dessas formas irracionais e alienadas do capital-juro, terra-renda, trabalho-salário, pois elas são justamente as configurações da ilusão na qual se movem e com a qual entram em contato diariamente.16

Uma vez que tanto a ciência “burguesa” quanto o materialismo mecanicista, alheios à dialética, desconhecem o caráter dialético socialmente condicionado das categorias, ambos incorrem num duplo erro na sua formulação teórica. Por um lado, identificam nelas um dado imediato da própria realidade, quando, na verdade, “as categorias são apenas a expressão teórica das relações de produção”.17 Mas, por outro, escapa-lhes o traço específico da categoria: o de ser uma “forma de existência”, uma condição subjetiva da ação. Em suma: ambos não superam a aparência da categoria, aparência de mera coisa natural.

Tal como a análise de outros fenômenos do ser social, a análise da categoria prova que cada manifestação singular só pode ser cabalmente conceitualizada quando se considera a sua relação com o todo e, inversamente, que o todo sempre se reflete (sob uma forma qualquer) nos fenômenos, nas “células” do processo. Na categoria se reflete, antes de mais nada, o fato de que a sociedade representa uma unidade dialética entre ser e consciência e, portanto, é uma totalidade.

Marx desenvolve em detalhe o ponto de vista metodológico do pensamento dialético da totalidade na sua “Introdução“ à Para a crítica da economia política, na seção intitulada “O método da economia política”, em que também se ocupa do problema da categoria. Antes de abordá-lo, porém, ele coloca a questão, prévia, das premissas metodológicas da ciência econômica em geral. Pouco antes de chegar à seção mencionada, escreve: “O resultado a que chegamos não é que a produção, a distribuição, a troca e o consumo sejam idênticos, mas que todos constituem componentes de uma totalidade, diferenças no interior de uma unidade”. Nesta passagem, portanto, Marx compreende a totalidade como unidade do diferente. Mas como se alcança o conhecimento concreto da unidade do diferente e do contraditório no interior do todo? Marx enfrenta aqui a mesma dificuldade metodológica que Hegel já assinalara como a dificuldade primária de toda dialética, ou seja, a dificuldade de encontrar um começo.

Marx diz que caberia partir do todo. Considerando-se um país e sua população, por exemplo, caberia partir da população, pois esta aparece como o universo da atividade social em seu conjunto, isto é, como o “sujeito do ato de produção total”. Mas este caminho seria equivocado, porque a abstração vazia do todo, neste caso “a população”, equivale a “uma representação caótica de um todo”. Correto é procurar alcançar, “mediante uma determinação mais precisa”, “conceitos mais simples” e passar “do concreto representado” (ou seja, do todo) “a elementos abstratos cada vez mais tênues”. E, a partir destes, é necessário — continua Marx — retornar ao todo, que, então, deixa de aparecer como uma mera “representação caótica” e é apreendido como “uma rica totalidade que possui múltiplas determinações e relações”. A elevação dos “momentos singulares” obtidos por abstração e “mais ou menos tênues” ao todo, ou ao “concreto, “é evidentemente o método científico correto”. Assim se compreende de onde Marx extrai a sua equalização da totalidade com o concreto: “O concreto é concreto porque constitui a síntese de múltiplas determinações e, portanto, é uma unidade do múltiplo”; ou “uma rica totalidade que possui múltiplas determinações e relações”. O caminho para o conhecimento deste concreto se apresenta como “processo de síntese, como resultado”. Ou, tomado em seu conjunto: “Seguindo o primeiro caminho, toda a representação se dissolve na representação abstrata; no segundo, as determinações abstratas conduzem à reprodução do concreto no pensamento”.

Este duplo movimento do processo do pensamento, aqui descoberto por Marx, culmina assim na relação entre momento e todo, entre abstrato e concreto. Mas não se esgota nisto, ou melhor: neste duplo movimento, está apenas a base metodológica universal que permite descobrir o movimento interno dos momentos, a sua imanente contraditoriedade que, por seu turno, resulta da contraditoriedade universal do todo. E a revelação do caráter contraditório tanto dos momentos como do todo somente se torna possível mediante a observação da dependência recíproca, que entra em contínua mediação consigo mesma, dos momentos entre si e destes com a totalidade através da busca por todos os lados da conexão inclusiva, da “conexão total” (como diz Engels). Este método do conhecimento da contraditoriedade real das manifestações é tão somente o método, oposto a qualquer ciência não dialética, da superação do invólucro fenomênico com que a essência social dos fenômenos se subtrai à consideração do ordinário” (científico ou não): é o método da distinção da essência de uma coisa em relação à sua forma de manifestação. Este é o caminho cognoscitivo da dialética, parte essencialíssima da qual é o método da “reprodução do concreto no pensamento”. Marx assinala muito corretamente que — quanto mais a dialética da totalidade, resumo do pleno movimento do real, aparece em seu resultado exclusivamente como “produto do sujeito pensante que se apropria do mundo do único modo que lhe é possível” — tanto mais o pensamento nada mais faz do que refletir a realidade; e quanto mais ricas são as determinações trazidas à luz por este pensamento, tanto mais correta e profundamente se reflete nele a realidade. De acordo com Marx, foi por não ter compreendido isso que Hegel se iludiu, ao identificar, de maneira absoluta e idealista, o processo do pensamento com o processo da realidade.”

13 K. Marx e F. Engels, Die deutsche Ideologie, in Frühschriften, Kröner, 1932, v. 2, p. 63.

14 K. Marx, Das Kapital, v. 1, p. 81.

15 Ibid., p. 88; v. 3, p. 880 e ss.

16 Ibid. v. 3, p. 884-885.

17 Marx, Das Elend der Philosophie, in Frühschriften, ed. cit., v. 2, p. 543.

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