Editora: Cortez
ISBN: 978-85-249-1513-0
Tradução: Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Léwy
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 272
Sinopse: O livro
reconstitui as vicissitudes do conceito de ideologia nas versões diferentes que
lhe dão Marx e Lenin, bem como nos esforços que marcam as reflexões de Lukács,
Korsch, Gramsci, Goldmann, Marcuse, Adorno e Horkheimer.
“O
positivismo “clássico” de Comte ou Durkheim não é um anacronismo do século
XIX; encontramos representantes dele até em nossos dias e ele exerce uma
influência considerável sobre a sociologia moderna, especialmente nos países
anglo-saxões. Um exemplo entre outros inumeráveis: George Lundberg (1895-1966),
durante vários anos presidente da American
Society of Sociology e editor da revista Sociometry. De acordo com Lundberg, “ao considerar a sociologia
como uma ciência natural, vamos estudar o comportamento social humano com o
mesmo espírito objetivo que o biólogo estuda uma colmeia, uma colônia de
térmites ou a organização e o funcionamento de um organismo”. Para alcançar
esta objetividade é suficiente “colocar de lado nossos sentimentos” e
“eliminar”, na análise das evidências empíricas, “a influência das crenças ou
desejos pessoais”. Trata-se, na sua opinião, de um problema puramente
“técnico”: “ele havia desenvolvido uma técnica aperfeiçoada de evitar, controlar e corrigir
estas influências (exteriores) na ciência”.37
Na
realidade, a “boa vontade” positivista enaltecida por Durkheim e seus
discípulos é uma ilusão ou uma mistificação. Liberar-se por um “esforço de
objetividade” das pressuposições éticas, sociais ou políticas fundamentais de
seu próprio pensamento é uma façanha que faz pensar irresistivelmente na
célebre história do Barão de Münchhausen, este herói picaresco que consegue,
através de um golpe genial, escapar ao pântano onde ele e seu cavalo estavam
sendo tragados, ao puxar a si próprio pelos cabelos... Os que pretendem ser sinceramente
seres objetivos são simplesmente aqueles nos quais as pressuposições estão mais
profundamente enraizadas. Para se liberar destes “preconceitos” é necessário,
antes de tudo, reconhecê-los como tais: ora, a sua principal característica é
que eles não são considerados como tais, mas como verdades evidentes,
incontestáveis, indiscutíveis. Ou melhor, em geral eles não são sequer
formulados, e permanecem implícitos, subjacentes à investigação científica, às
vezes ocultos ao próprio pesquisador. Eles constituem o que a sociologia do
conhecimento designa como o campo do
comprovado como evidente, um conjunto de convicções, atitudes ou ideias (do
pesquisador e de seu grupo de referência) que escapa à dúvida, à distância
crítica ou ao questionamento.38
É suficiente
examinar a obra dos positivistas, de Comte e Durkheim até nossos dias, para se
dar conta de que eles estão inteiramente fora da condição de “privados de
preconceitos”. Suas análises estão fundadas sobre premissas político-sociais
tendenciosas e ligadas ao ponto de vista e à visão social de mundo de grupos
sociais determinados. Sua pretensão à neutralidade é às vezes uma ilusão, às
vezes um ocultamento deliberado, e, frequentemente, uma mistura bastante
complexa dos dois. É inútil insistir, aliás, neste aspecto, já que os
positivistas mais lúcidos como Karl Popper mostraram, eles próprios, o ridículo
desta doutrina tradicional da ciência social sem preconceitos e sem prenoções.
Quanto a Max Weber, como se sabe, ele considerava as pressuposições, os valores,
os pontos de vista ou a visão de mundo não somente como inevitáveis, mas também
como constituindo a própria condição de toda atividade científico-social
significativa.
Dito isto, há um “núcleo
racional” na problemática positivista: a vontade
de conhecimento, a investigação obstinada da verdade, a intenção de verdade é uma condição
necessária da prática científica. Se a investigação é deliberadamente submetida
a outros fins considerados mais importantes do que a verdade — imperativos
éticos, políticos ou simplesmente pecuniários —, ela está condenada de antemão
do ponto de vista de sua validade cognitiva, de seu conteúdo de conhecimento.
Neste caso, ela deixa de ser ciência para se tornar outra coisa: sermão, mistificação, propaganda, publicidade etc. Sem
ter intenção de buscar a verdade, o discurso não tem conteúdo científico: ele
se torna simples instrumento a
serviço de objetivos extracientíficos. Esta condição — aliás quase tautológica:
para ter acesso à verdade é necessário querer ter acesso à verdade — é
necessária mas de forma alguma suficiente para assegurar a objetividade
científica. Ela elimina os determinantes exteriores diretos, mas não o
condicionamento estrutural (sociocultural) do pensamento; ela permite afastar a mistificação sicofanta, mas não o ponto de vista
de classe.”
37. Cf. George A Lundberg, Clarence C Schrag, Otto N Larsen, Sociology, Harper and Brothers, Nova
York, 1958, p 6, 16, 736, 744 etc
38. Cf. Kurt Wolff, Versuch zu
einer Wissenssoziologie, Luchterhand, Berlim Neuwied, 1968, cap 1.
“Weber
parte da temática rickertiana da Wertbeziehung
(a relação com os valores) como fundamento das ciências sociais e históricas;
mas, contrariamente a Rickert, ele não acreditava em valores “objetivos”,
universais, absolutos. Ele se aproxima, deste ponto de vista, do relativismo
histórico de Dilthey, apesar de mencionar muito raramente este autor em seus
trabalhos.40 É, portanto, somente com relação a valores específicos,
os Kulturwertideen (ideias-de-valor
culturais) particulares de uma época, uma nação ou uma fé religiosa, que se
pode selecionar, no caos infinito dos fenômenos sociais, o que nos parece
importante, digno de interesse, significativo. Em outras palavras: “Não existe
análise científica diretamente ‘objetiva’ da vida cultural ou... dos fenômenos
sociais, que seja independente de pontos de vista específicos e ‘unilaterais’,
que fazem com que estas manifestações sejam, explícita ou implicitamente,
consciente ou inconscientemente, selecionadas como objeto de pesquisa,
conformadas e organizadas no corpo de exposição”.41
Longe de
ser, aos olhos de Weber, um elemento negativo, a Wertbezeihung é a condição sine
qua non de todo conhecimento histórico-social, o pressuposto indispensável
de toda pesquisa científica no domínio dos fenômenos culturais. Max Weber não
examina de maneira mais precisa a gênese social destas Wertideen, pontos de vista ou visões de mundo. Em uma passagem de
seu ensaio de 1904 sobre a objetividade do conhecimento científico-social, ele
reconhece (com reservas) a existência de uma Wahlverwandtschaft (afinidade eletiva) entre as visões de mundo e
os interesses de classe, mas esta hipótese não é prosseguida, aprofundada ou
levada em consideração em seus escritos metodológicos.42 Os valores
e os Gesichtspunkte (pontos de vista)
são para ele determinantes nos vários níveis da investigação científico-social:
1) eles orientam a escolha do objeto de conhecimento; 2) eles orientam a direção da investigação empírica; 3)
eles determinam o que é para nós importante
ou sem importância, essencial ou acessório, significativo ou
insignificante, interessante ou sem interesse; 4) eles determinam a formação do
aparelho conceitual utilizado; 5) e, sobretudo, eles fornecem a problemática (Fragestellung) da pesquisa, as questões
que se colocam (ou não se colocam) à realidade.43
Em uma das
mais belas passagens de seus ensaios sobre a teoria da ciência, Weber resume
sua concepção com uma metáfora surpreendente (que relembra irresistivelmente certas
formulações de Dilthey): “A luz que estas ideias de valores supremos difundem
ilumina a cada momento apenas uma parte finita, incessantemente variável, da
onda caótica e prodigiosa de acontecimentos que escoa através do tempo”.
44 Não há dúvida que esta primeira parte (na ordem lógica do processo de
conhecimento) de seu método pertence, no essencial, ao universo espiritual do
historicismo alemão e se opõe, de forma radical e irreconciliável, às teses
clássicas do positivismo, a seu modelo científico-natural e, em particular, à
ideia de que “o conhecimento da realidade deveria ou poderia ser uma cópia (Abbildung) ‘sem pressuposições’ de fatos
‘objetivos’...” 45 Encontra-se aliás aqui e em seus escritos
metodológicos polêmicas explícitas contra o positivismo; elas não se dirigem
nunca a Comte ou Durkheim, soberbamente ignorados ou tratados em quantidade
negligenciável, mas à filosofia do Iluminismo e à economia política, cuja visão
de mundo racionalista, estreitamente vinculada ao desenvolvimento das ciências
naturais, impediu-os de descobrir o caráter problemático de seu próprio ponto
de vista, considerado evidente em si próprio (selbstverstandlich). Ele critica também a influência da biologia
nas ciências históricas, que havia: a) estimulado a pretensão de descobrir a
realidade social por um conjunto de “leis” do tipo científico-natural e de
validade geral; b) criado a ilusão de que “o crepúsculo dos deuses de todos os
pontos de vista axiológicos (Wertgesichtspunkte)”
poderia agora “se ampliar a todas as ciências”. De acordo com Weber, este
impacto da biologia no século XIX é uma das principais razões pelas quais a
tendência naturalista persistia na ciência econômica, apesar do fato de que “a
crítica socialista e os trabalhos dos historiadores tinham começado a
transformar em problemas os seus pontos de vista axiológicos (Wertgesichtspunkte) originais”.46
Observemos, de passagem, esta justaposição entre socialismo e historicismo,
unidos no campo antipositivista, no qual o próprio Weber parece se situar.
Em que
medida se pode, então, falar de uma convergência entre Max Weber e a
problemática positivista? Sua teoria da ciência social como necessariamente
fundamentada sobre um ponto de vista preliminar não está no polo oposto da
exigência de Durkheim de “afastar as prenoções”? É na segunda versão de sua Wissenschaftslehre, que analisa as
condições de possibilidade de objetividade do conhecimento científico-social,
que ele vai se aproximar do positivismo.
Poderia se
resumir a démarche de Weber nos
seguintes termos: sua teoria da Wertbeziehung
das questões é de tendência historicista; sua teoria de Wert-freiheit (neutralidade axiológica ou “sem julgamentos de
valor”) das respostas é de orientação positivista. O resultado desta dualidade
é, em nossa opinião, uma contradição irresolvível no próprio coração de sua
teoria da ciência.
Para poder
discutir de forma precisa a concepção weberiana da separação entre julgamentos
de fato e julgamentos de valor, é necessário distinguir dois aspectos que se
tende geralmente a confundir: 1) a não-dedução dos fatos a partir dos valores;
2) a não-dedução dos valores a partir dos fatos.
É a partir
do primeiro aspecto que Weber formula sua doutrina da ciência social Wert-frei, isto é, livre de julgamentos
de valor (ou “axiologicamente neutra”). Os valores determinaram as questões da
investigação, mas as respostas devem ser estritamente Wert-frei; o objeto da pesquisa foi definido a partir de um ponto
de vista valorativo, mas a démarche
concreta da pesquisa científica sobre este objeto é submetida a regras
objetivas e universais, a um tipo de conhecimento de validade absoluta; os
valores forjaram nossos instrumentos conceituais, mas a forma de utilizá-los no
estudo científico da causalidade é regida por normas gerais. Os pressupostos das
ciências culturais são subjetivos, mas isso não tem por consequência
absolutamente que os resultados da
pesquisa devam ser, eles próprios, “subjetivos”, isto é, válidos para uns e não
para outros; o interesse do objeto de
estudo pode mudar de um cientista para outro, mas as conclusões da investigação
empírico-causal deveriam ser aceitáveis e, neste sentido, “objetivas”. De
acordo com uma frase, que se tornou célebre, do ensaio sobre a objetividade
científico-social, “na esfera das ciências sociais uma demonstração científica,
metodicamente correta, que pretende ter atingido seu objetivo, deve poder ser
reconhecida como exata da mesma maneira por um chinês...”, apesar do fato de que este não tenha nenhuma
sensibilidade, interesse ou simpatia por nossos valores éticos e culturais.47
Este exemplo é característico da forma através da qual Weber concebia (na sua
teoria da ciência) as fontes históricas dos valores e dos pontos de vista:
quase sempre ele os relaciona a culturas
nacionais ou religiosas.
Esta é,
talvez, uma das razões pela qual ele acreditava na possibilidade da
“neutralidade axiológica” dos resultados científicos. É, realmente, mais fácil
conceber um chinês contemporâneo de
Weber que aceitasse as conclusões de A ética protestante e o espírito do capitalismo do que um marxista alemão
que vivesse em Heidelberg; é mais fácil imaginar um chinês que considera
válidos os resultados de sua pesquisa sobre a exploração dos camponeses pelos junkers na Alemanha Oriental, que um
economista ou historiador alemão conservador, social ou politicamente
identificado com a aristocracia prussiana. Se Weber tivesse aprofundado a ideia
que ele menciona, de passagem, sobre a afinidade eletiva entre visões de mundo
e classes sociais, ele teria talvez percebido de outra forma os problemas da
objetividade nas ciências sociais. Mas, é exatamente aí que se toca nos limites
decorrentes de sua própria visão de mundo e de seu próprio ponto de vista...
Segue-se a
esta premissa weberiana — a possibilidade de resultados axiologicamente neutros
no conhecimento científico-social — um imperativo categórico para os
pesquisadores científicos: a separação total e rigorosa (na pesquisa
científica) entre fatos e valores, constatações e julgamentos. Ele via na
infração deste imperativo um dos mais graves perigos que ameaçam as ciências
sociais: “A confusão permanente entre discussão científica dos fatos e
argumentação axiológica é uma das particularidades mais frequentes e mais nefastas
nos trabalhos de nossa especialidade”.48
Esta
confusão — voluntária ou não — tem para Weber dois resultados negativos: a)
enganar o leitor (ou o auditório) ao apresentar julgamentos de valor como fatos
objetivos que “falam por si próprios”; b) impedir um real conhecimento
científico do objeto: “cada vez que um homem de ciência faz intervir seu
próprio julgamento de valor, não há mais compreensão integral dos fatos”.49
Weber reconhecia que esta separação é “difícil”: é, confessa ele, um obstáculo
contra o qual nos chocamos constantemente. Ela permanece, entretanto, sendo um
postulado válido, sobre o qual não se pode transigir.50
O segundo
aspecto da heterogeneidade entre julgamentos de fato e de valor sobre o qual
insiste Weber é, como já mencionamos, a impossibilidade lógica de deduzir um
imperativo prático ou ético a partir de constatações de fato: “Não existe
absolutamente nenhum ponto que conduza da verdade puramente ‘empírica’ da realidade dada pelos meios de explicação
causal, à afirmação ou contestação da ‘validade’ de não importa qual julgamento de valor...”51
A ciência pode demonstrar que as condições sociais se desenvolvem em uma certa
direção; ela não permite responder à questão: deve-se ou não contribuir para
este desenvolvimento?52 Os dados empíricos não podem servir de
“pedestal” para a demonstração de validade deste ou daquele julgamento de
valor.53
Contrariamente
ao que pretendiam os seus epígonos positivistas, Weber não acreditava
absolutamente em um “consenso” de valores ou em um desaparecimento das visões
de mundo (ideologias). Em uma das passagens mais marcantes do discurso “A
ciência como vocação”, de 1919, ele apresenta o conflito de valores como um
confronto entre deuses (ou entre deuses e demônios), que se combatem
eternamente, e que a ciência não pode absolutamente resolver. Por exemplo,
“qual é o homem que teria a pretensão de refutar ‘cientificamente’ a ética do Sermão da Montanha ou por exemplo a
máxima ‘não oponha resistência ao mal’ ou ainda a parábola das duas faces?...
Em cada caso escolher entre a dignidade da religião... e a dignidade de um ser
viril que prega uma outra coisa, a saber, ‘resista ao mal, senão você é
responsável por sua vitória’. De acordo com as convicções profundas de cada
ser, uma destas éticas tomará a face do diabo, a outra, a face de Deus...”54
A partir desta visão dramática e lúcida dos antagonismos axiológicos, Weber
rejeita toda ilusão de uma solução puramente “científica” para as questões
éticas ou políticas.
Ele recusa
também, de forma cortante e explícita, a via do ecletismo como caminho para a
verdade: o compromisso entre valores opostos não tem nada a ver com a
objetividade científica e a “síntese” política ou a “linha média” não é de
forma alguma mais objetiva que as posições radicais: “A ‘média exata’ não é de
modo nenhum uma verdade mais científica que os ideais extremados dos partidos
de direita ou de esquerda”.55
A Wissenschaftslehre de Weber é um
edifício imponente, cuja arquitetura rigorosa e coerência lógica impõem o
respeito e a admiração. Não é por acaso que ele serve de ponto de referência
obrigatório para toda tentativa séria
de fundamentar ou refutar a tese da neutralidade axiológica das ciências
sociais (os positivistas vulgares se contentam em repetir fastidiosamente as
velhas receitas de Durkheim). Esta arquitetura não comporta nenhuma fissura
lógica; é apenas se situando em um terreno externo à lógica abstrata de sua
demonstração que se pode descobrir a falha nessa formidável couraça
metodológica. É a partir de uma perspectiva de sociologia do conhecimento
que se revela o calcanhar-de-aquiles da teoria weberiana da ciência.
Não se
pode senão estar de acordo com Weber sobre o postulado da heterogeneidade
lógica entre fatos e valores, sua pertinência a esferas distintas, níveis
diferentes de raciocínio. É verdade também que não se pode mais deduzir
logicamente um julgamento de valor a partir de um julgamento de fato e
vice-versa. Como o diz a célebre fórmula de Poincaré, premissas no indicativo
não podem em nenhum caso conduzir a conclusões no imperativo. Entretanto, existe uma ligação decisiva entre
valores e fatos, um vínculo que não é lógico,
mas sociológico; ele se manifesta em dois sentidos:
1. O conhecimento (ou a
ignorância) dos fatos, da verdade objetiva, pode ter uma influência poderosa
sobre as opções práticas, éticas, sociais ou políticas de certos grupos ou
camadas sociais. Por exemplo: a crença em que o aumento do salário seja a causa
principal da inflação pode ter um efeito paralisante sobre a atividade
reivindicativa dos operários, sua atitude face às greves etc.
2. Os julgamentos de valor,
os pontos de vista de classe, as ideologias, utopias e visões de mundo dos
grupos sociais influenciam de forma decisiva — direta ou indireta, consciente
ou não — o conjunto da atividade científica e cognitiva no domínio das ciências
sociais. Isto é, tanto a problemática como a pesquisa empírica dos fatos e de
sua causalidade, assim como sua interpretação social e histórica de conjunto.
Examinemos
mais de perto essa segunda proposição, que é, no momento, a mais importante
para a análise crítica da Wissenschaftslehre
weberiana. Como vimos, Weber reconhecia a influência dos valores na
definição das questões, mas não das respostas da pesquisa científico-social.
Ora; a primeira observação que se impõe é esta: o tipo de resposta possível não
é já largamente predeterminado pela própria formulação da questão! Por exemplo,
quando Durkheim coloca a questão de saber “por que certos órgãos do corpo
social são privilegiados”, qualquer que
seja a resposta, o conjunto da démarche
cognitiva está viciado pela própria natureza da questão. Um crítico marxista de
Durkheim não colocará em dúvida somente a resposta apresentada por A divisão do trabalho social, mas a
própria questão, na medida em que sua formulação contém já uma concepção muito
discutível e ideologicamente carregada da estrutura social. E, por sua vez, um
sociólogo não-marxista, ao ler História e consciência de classe, diante da questão que domina esta obra — “qual é a classe social cuja
consciência possível pode romper o véu da reificação” —, recusará não a
resposta de Lukács (“o proletariado”), mas sobretudo a própria questão enquanto
tal, como falsa ou não-científica, ou ideológica. Os exemplos poderiam ser
multiplicados.
Na
realidade, a problemática de uma
investigação científico-social não é somente um corte do objeto: ela define um
certo campo de visibilidade (e de não-visibilidade), impõe uma certa forma de
conceber este objeto, e circunscreve os limites de variação das respostas
possíveis.56 A carga valorativa ou ideológica da problemática
repercute, portanto, necessariamente sobre o conjunto da pesquisa e é normal
que isso seja questionado pelos cientistas que não partilham estes valores ou
pressuposições: eles se recusam, com razão, a partir de seu ponto de vista, a
se situar sobre um terreno minado e aceitar um campo teórico que lhes parece
falso de antemão.
O próprio
Weber reconhecia, como vimos, o papel da Wertbeziehung
na escolha dos elementos importantes, na distinção entre o essencial e o
não-essencial etc. Ora, como lembrava Lucien Goldmann em sua crítica da teoria
weberiana da objetividade: “Os elementos escolhidos determinam de antemão, por
si só, o resultado do estudo. Os valores sendo os ‘nossos’, os de nossa cultura
ou de nossa sociedade, sobretudo desta ou daquela classe social, o que uma
perspectiva eliminará como não-essencial pode ser, ao contrário, muito
importante em uma outra perspectiva”.57 Sendo a realidade social uma
totalidade dialética, a escolha do essencial não pode ser neutra; um dos
principais problemas da ciência social é precisamente a determinação dos
aspectos essenciais de um fenômeno. É evidente que uma história da Revolução
Francesa para a qual o importante, significativo e essencial são o Terror e os
massacres estará em total contradição com uma interpretação que vê, na
conquista das liberdades republicanas, o aspecto decisivo dos acontecimentos de
1789-1793.
Esta
dificuldade havia sido pressentida pelo discípulo de Max Weber e autor da obra
mais autorizada sobre sua Wissenschaftslehre,
Alexander von Schelting. Ele propõe a seguinte questão: que garantia temos de
que os aspectos escolhidos por nossos valores estão realmente no centro de um
fenômeno histórico determinado e não são algo periférico? Como obter a partir
da visão subjetiva e parcial inspirada em nossos valores uma visão da totalidade histórica de um
acontecimento? Ele reconhece não encontrar na teoria da ciência weberiana uma
resposta a esta inquietação e sugere, a título de solução, a démarche seguinte: o processo de
conhecimento passa por duas fases — inicialmente, a Wertbeziehung de certos aspectos da realidade histórica de acordo
com nossas ideias de valores; em segundo lugar, a compreensão da estrutura
total interna de um fenômeno histórico, na qual se inserem os aspectos
escolhidos por nossos valores.58 Ora, esta solução imaginária não
resolve o problema: ela supõe a questão resolvida de antemão! Como descobrir os
elementos objetivamente essenciais que permitem compreender a estrutura social
se a escolha entre o essencial e o acessório é, como o demonstrou de forma
marcante Weber, inevitavelmente determinada por nossos valores subjetivos? A
passagem entre as duas etapas da pesquisa, a “subjetiva” e a “objetiva”, que
parece válida em si mesma em von Schelting, é precisamente o problema que se
tem a resolver.
Parece-nos,
portanto, que Pietro Rossi tinha razão ao enfatizar, em sua intervenção no
Congresso de Sociologia Alemã, em Heidelberg (dedicado em 1964 a Max Weber),
que “a Wertbeziehung não pode ser
confinada somente ao primeiro estágio do procedimento científico e se limitar a
definir a área de pesquisa. Ao contrário, a ligação com os pressupostos de
valor é evidente em todos os estágios posteriores de investigação. Eles
determinam a direção geral e as decisões metodológicas que daí decorrem; e, sob
forma de hipóteses explicativas, eles influenciam também o desenvolvimento da
explicação. Se isto é verdade, a aceitação de certos pressupostos de valor
condiciona direta ou indiretamente os resultados da pesquisa — mas isto é
precisamente o que Weber negava”.59
Em certos
momentos, o próprio Weber reconheceu que os valores interferem no próprio
conteúdo da pesquisa e em seus resultados: “É verdade que no campo de nossa
disciplina as concepções pessoais de mundo intervém habitualmente sem cessar na
argumentação científica, perturbam-na permanentemente, levando a avaliar
diversamente o peso desta argumentação, inclusive na esfera da descoberta das
relações causais simples, segundo o resultado aumente ou diminua as chances dos
ideais pessoais, o que vale dizer, a possibilidade de querer uma coisa
determinada. Com esta afirmação, os editores e os colaboradores desta revista
não se julgarão certamente ‘estranhos ao que é humano”.60 Mas ele
considerava isto simplesmente como uma “fraqueza humana” (menschliche Schwache)61 que não colocava em questão sua
concepção de objetividade nas ciências sociais. Ora, ao designar o problema
como uma “fraqueza”, ele absolutamente não a resolveu... Ainda mais que esta
estranha “fraqueza” parece se estender ao conjunto dos cientistas sociais como
sugere o próprio Max Weber pela menção “autocrítica” aos editores de Archiv für Sozialwissenschaft (do qual
ele fazia parte). O único remédio que Weber parece propor para esta enfermidade
é “o dever elementar do controle científico de si próprio”62 — o que
nos conduz à velha problemática positivista “clássica” da “boa vontade” e às
aventuras do Barão de Münchhausen, capaz de retirar a si mesmo do pântano
apoiando-se sobre o seu próprio sistema capilar. Apesar de seu soberbo rigor e
inteligência, a démarche de Weber
chegou, em última análise, aos mesmos impasses que o positivismo mais limitado.
Alexander
von Schelting parece implicitamente reconhecer a impossibilidade, no quadro da
teoria weberiana da ciência, de resolver o problema do papel concreto dos
valores na pesquisa científico-social: “A questão”, escreveu ele, “de saber se
e em que medida os ‘julgamentos de valor’ expressam (ou não podem senão
expressar) de fato no seio da atividade empírico-científica... assim como a
questão inversa; se e em que medida a penetração dos valores pode de todo ser
‘evitada’ factualmente, não nos interessa aqui. Esta questão não é um problema
lógico”.63 Realmente, não se pode senão estar de acordo com von
Schelting: o problema não é lógico, mas factual, vulgarmente empírico
(acrescentaríamos também: sociológico).
Mas isto não significa absolutamente que se possa ignorá-lo ou fazer abstração
dele na construção de uma teoria da ciência social! Se se confirma — como
pensamos e von Schelting parece disposto a aceitar — que a exclusão dos valores
da própria pesquisa empírica é na prática
impossível e irrealizável, para que serve o imperativo categórico da Wissenschaftslehre weberiana: “Você não
cometerá um julgamento de valor”? Se se reconhece que os valores estão, de
fato, sempre presentes na ciência social, não seria necessário abandonar a miragem
de um conhecimento Wert-frei da
sociedade e procurar outros caminhos de acesso à objetividade científica? Por
que manter a exigência quimérica de um “autocontrole científico”, se se sabe
que ele está condenado de antemão ao fracasso no seu vão objetivo de um
conhecimento axiológico neutro?
Na
realidade, a própria obra de Max Weber, apesar de sua integridade científica
indiscutível, e seu esforço sincero e obstinado no sentido de eliminar os
julgamentos de valor da pesquisa, ilustra perfeitamente este fracasso:
encontramos aí exemplos abundantes da “interferência” de seus Wert-ideen no estudo empírico da
causalidade. Seu escrito mais notável, A ética protestante e o espírito do capitalismo, é geralmente considerado uma tentativa de refutação “espiritualista”
do materialismo histórico. Isso nos parece uma interpretação reducionista da
obra e o próprio Weber insiste que seria despropositado e doutrinário afirmar
que o capitalismo enquanto sistema econômico é uma criação da Reforma
protestante. Mas há certas passagens
do livro onde Weber é conduzido por seu desejo (axiologicamente motivado) de
refutar o marxismo, e permite a esta aspiração, valorativamente carregada,
interferir na análise empírica da causalidade. Por exemplo, examinando este
representante típico do espírito capitalista, Benjamin Franklin, para quem a
busca do dinheiro era um fim em si mesmo, uma vocação moral, Weber enfatiza:
“no século XVIII, nas condições pequeno-burguesas, no meio das florestas da
Pensilvânia, onde os negócios ameaçavam degenerar em troca pela simples falta
de dinheiro, onde se encontravam apenas vestígios de grandes empresas
industriais, onde os bancos não estavam senão nos seus primeiros passos, o
mesmo fato (de fazer dinheiro ML) pôde ser considerado por Benjamin Franklin
como a essência da conduta moral, e mesmo recomendado em nome do dever. Falar
aqui de ‘reflexo’ das condições ‘materiais’ sobre a ‘superestrutura das ideias’
seria um puro absurdo”. A explicação da atitude de Benjamin Franklin deve ser
buscada por conseguinte (segundo Weber) na educação puritana que ele havia
recebido de seu pai e não em quaisquer circunstâncias econômicas.64
Ora, o que Max Weber parece esquecer ou negligenciar no calor da sua polêmica
contra o materialismo histórico é que B. Franklin nasceu e viveu a sua
juventude (até a idade dos 17 anos) em Boston,
a primeira cidade da América e a mais capitalista de todas; que, em seguida,
viveu menos “nas florestas da Pensilvânia” do que na Filadélfia, a segunda ou terceira cidade da América, bastante
próspera no século XVIII; e que, além disso, morou durante vários anos em Londres, sem dúvida na época o maior
centro da economia capitalista do mundo inteiro.65 Este exemplo é
particularmente impressionante, mas de fato é
o conjunto da obra de Weber — e especialmente sua sociologia política — que
é tributário de um certo ponto de vista axiológico e limitado por um certo
horizonte de classe; o que não significa, de forma alguma, que sua obra não
tenha, apesar destas limitações, um valor científico bastante grande.”
40. Ver a este respeito H. Stuart Hughes, Consciousness and Society, The Reorientation of European Social Thought
1890-1930, Paladin, St. Alberts, 1974, p. 309-310. Uma outra diferença entre Rickert e Weber é que este último não exclui
de forma tão taxativa o estudo das leis nas ciências históricas, apesar de lhe
atribuir um lugar subordinado como simples meio auxiliar no conhecimento do
fenômeno individual e único. Ver Max Weber, Essais sur la Théorie
de la Science (trad. Julien Freund), Librairie Plon, Paris, 1965, p.
162-165.
41. Max
Weber, Théorie de la Science, p 152,
cf Max Weber, Gesammelte Aufsdtze zur
Wissentchaftslehre, Tübingen, J C B Mohr, 1922, p 178 179 NB. Revimos e
corrigimos às vezes a tradução francesa de acordo com o texto original.
42. M. Weber, Théorie de la Science, p 128 129 Wissentchaftslehre, p 153.
43. M. Weber, Théorie de la Science, p 151 152, 163, 168 169, 171 172,
Wiisemchaftslehre, p 170, 178, 182, 184.
44. ld, p 212, Wissentchaftslehre, p 213 214.
45. Id, p 183.
46. Id, p 173 175 Wissentchaftslehre,
p 185 186.
47. Id, p 131 132, cf também p 137 138 168
172 e Wissentchaftslehre, p. 473.
48. Id, p 134.
49. M. Weber, “La science comme vocation”, 1919, Le savant e le politique, UGE, 1963, p 82, cf também Wissentchaftslehre, p 471 72.
50. M. Weber, Wissentchaftslehre,
p 459.
51. M. Weber, “Roscher und Kmes II Kmes und das Irrationalitätsproblem”,
1905, Wissentchaftslehre, p 61.
52. M. Weber, Wissentchaftslehre,
p 471.
53. M. Weber, Théorie de la
science, p 212.
54. M. Weber, La savant et le politique, p 85.
55. M. Weber, Théorie de la science, p 130, Wissentchaftslehre,
p 154-155 e também p 460.
56. Ver a este respeito L Althusser, Lire le Capital, Maspéro, Paris, 1965,
tomo I, p 27-28.
57. L. Goldmann, Les sciences
humames et la philosophie, p 43.
58. A. von Schelting, Max Webers Wissenschaftslehre, J C B Mohr,
Tübingen, 1934, p 405-412.
59. P. Rossi, “Discussion on Value freedom and Objectivity” em O Stammer
(ed.), Max Weber and Sociology Today, Harper and Row, Nova York, 1972, p. 75
76.
60. M.
Weber, Théorie de la Science, p 126.
61. M.
Weber, Wissentchaftslehre, p 151.
62. M.
Weber, Théorie de la Science, p 193.
62: M.
Weber, Théorie de la Science, (tr
Juhen Freund), Libraine Plon Paris, p 193.
63. A von Schelting, op cit, p 62.
64. M. Weber, op cit, p 80-81.
65. Para uma discussão detalhada destas
questões, ver nosso ensaio “Marx et Weber notes sur un dialogue imphcite”, Dialectique et Révolution, Ed Anthropos,
Paris, 1973.
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