Editora: Cortez
ISBN: 978-85-249-1513-0
Tradução: Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Léwy
Páginas: 272
Opinião: ★★★☆☆
Sinopse: Ver Parte I
“Na
realidade, a problemática de uma
investigação científico-social não é somente um corte do objeto: ela define um
certo campo de visibilidade (e de não-visibilidade), impõe uma certa forma de
conceber este objeto, e circunscreve os limites de variação das respostas
possíveis.56 A carga valorativa ou ideológica da problemática
repercute, portanto, necessariamente sobre o conjunto da pesquisa e é normal
que isso seja questionado pelos cientistas que não partilham estes valores ou
pressuposições: eles se recusam, com razão, a partir de seu ponto de vista, a
se situar sobre um terreno minado e aceitar um campo teórico que lhes parece
falso de antemão.”
56. Ver a este respeito L. Althusser, Lire le Capital, Maspero, Paris, 1965,
tomo I, p 27-28
“O
marxismo foi a primeira corrente a colocar o problema do condicionamento
histórico e social do pensamento e a “desmascarar” as ideologias de classe por
detrás do discurso pretensamente neutro e objetivo dos economistas e outros
cientistas sociais.”
“Em nossa
opinião, é em algumas passagens do Dezoito Brumário que
se encontra a definição marxista mais precisa, mais concreta e mais fértil das
ideologias e das visões de mundo enquanto expressão de uma classe social
determinada (o conceito utilizado por Marx é o de “superestrutura”). Trata-se
de célebre parágrafo que analisa a relação entre os representantes do partido
democrático e sua classe, a pequena burguesia. Examinemos algumas das ideias
que Marx sugere — explícita ou implicitamente — neste texto de uma
surpreendente riqueza.2
a) É a
classe que “cria e forma” as visões sociais de mundo (“superestruturas”), mas
estas são sistematizadas e desenvolvidas por seus “representantes políticos e
literários”, isto é, seus ideólogos (ou utopistas). A visão social de mundo
(ideológica ou utópica) com seus diversos componentes corresponde não somente
aos interesses materiais de classe mas também à sua situação social — conceito mais amplo, que permite superar a
tentativa reducionista que relaciona as ideologias apenas ao “interesse”
(economicamente definido).
b) Os
intelectuais são relativamente autônomos com relação à classe. Eles podem ser
separados dela por um “abismo” social e cultural; sua “situação pessoal” não
deve ser de todo necessariamente a mesma que aquela da classe que ele
representa. O que os faz representantes desta classe é a ideologia (ou utopia)
que eles produzem.
c) O que
define uma ideologia (ou utopia) não é esta ou aquela ideia isolada, tomada em
si própria, este ou aquele conteúdo doutrinário, mas uma certa “forma de
pensar”, uma certa problemática, um
certo horizonte intelectual (“limites
da razão”). De outro lado, a ideologia não é necessariamente uma mentira
deliberada; ela pode comportar (e comporta geralmente) uma parte importante de ilusões e de auto-ilusões.”
2. Marx, Le
Dix-huit Brumaire de Louis Bonaparte, Éditions Sociales, Paris, 1948, p
199, 201: “Sobre as diferentes formas de propriedade, sobre as condições de
existência social, se eleva toda uma superestrutura de impressões, de ilusões,
de formas de pensar e de concepções filosóficas particulares. A classe inteira
as cria e as forma sobre a base destas condições materiais e das relações
sociais correspondentes. Não é necessário supor que os representantes
democratas são todos shop-keepers
(lojistas) ou que eles se entusiasmam por estes últimos. Eles podem, pela sua
cultura e sua situação pessoal, ser separados deles por um abismo. O que os faz
representantes da pequena burguesia é que suas cabeças não podem superar os
limites que a própria pequena burguesia não supera em sua vida e que, por
consequência, eles são teoricamente impulsionados para os mesmos problemas e
para as mesmas soluções as quais o seu interesse material e a situação social
impulsionam na prática os pequeno burgueses Tal é, de uma forma geral, a
relação que existe entre os representantes
políticos e literários de uma classe e a classe que eles representam”.
“É nesta
ótica que é necessário compreender a célebre distinção entre “clássicos” e
“vulgares” que atravessa o conjunto de seus trabalhos econômicos e que define,
no interior de uma mesma perspectiva burguesa, um polo autenticamente
científico e um polo superficial e apologético (desprovido de valor do ponto de
vista do conhecimento) — com certas figuras intermediárias (John Stuart Mill
etc.) entre os dois.
Para Marx,
os “clássicos” — isto é, os fisiocratas, Adam Smith e sobretudo Ricardo — têm
um valor científico inegável porque eles procuravam descobrir a conexão interna
das relações de produção burguesa; são capazes, em uma certa medida, de
perceber a realidade por detrás da aparência: por exemplo, reduzindo a renda e
os juros a uma parcela do lucro e não a um ganho cuja fonte seria “O Dinheiro”
ou “A Terra” (mas eles continuam a meio caminho, não colocando a questão-chave:
de onde vem o próprio lucro?). De outro lado, os clássicos reconhecem e
exprimem as contradições da realidade; sua teoria se desenvolve no meio do
“adubo fértil das contradições” (Dünger
der Widersprüché) e isso lhes permitia compreender, até um certo ponto, o
processo real.4
Os
“vulgares” — Malthus, Mc Culloch, J. B. Say, Senior etc. —, pelo contrário, não
fizeram mais que sistematizar, dogmatizar, “pedantizar” e proclamar como
verdades eternas as concepções cotidianas (banais, autossuficientes e
limitadas) dos agentes da produção capitalista. Em outros termos, eles ficaram
ao nível da aparência, da superfície imediata das coisas; por exemplo, eles
defendem com obstinação a tese banal e superficial segundo a qual o Capital é a
fonte dos juros, a Terra da renda e o Trabalho do salário — tese que
corresponde evidentemente aos interesses das classes dominantes. Além disso,
procuram negar pura e simplesmente as contradições do capitalismo ou ao menos
demonstrar que estas contradições não são senão aparentes.5
Como
explicar esta diferença capital, do ponto de vista da profundidade e da
qualidade científica, entre economistas que se situam apesar de tudo no mesmo
horizonte ideológico, em uma mesma “posição de classe”? Acham-se em Marx dois
tipos de explicação bastante diversas para esta clivagem. Uma é de caráter
primordialmente psicológico e moral;
ela se desenvolve por dois argumentos estreitamente ligados:
a) Os
clássicos produziram a ciência por interesse científico, ainda que tivessem
cometido erros; os vulgares, pelo contrário, procuraram “acomodar” a ciência
aos interesses que lhes eram estranhos e exteriores.6
b) Os
clássicos (sobretudo Ricardo) se caracterizaram pela lealdade, pelo
desinteresse, pela imparcialidade, pela ausência de opiniões preconcebidas,
pelo amor à verdade. Os vulgares, pelo contrário, eram falsificadores
deliberados, ao serviço da apologética burguesa: eles eram de má-fé.7 Marx os chama por
termos carregados de indignação e de desprezo: “vendidos”, “sicofantas”,
aduladores dos interesses das classes dominantes, que se esforçavam, através de
seus escritos, em justificar seus privilégios, rendas e sinecuras, e que eram estipendiados
por eles para perpetuar a confusão.8 (...)
É no
Posfácio à segunda edição alemã de O
capital (1873) que Marx formula de forma mais precisa esta explicação:
“Na medida
em que é burguesa... a economia política não pode continuar sendo uma ciência
senão quando a luta de classes permanece latente ou não se manifesta senão por
fenômenos isolados. Tomemos a Inglaterra, o período onde esta não havia ainda
se desenvolvido, e é também este o período clássico da economia política”. Pelo
contrário, após 1830, “na França e na Inglaterra a burguesia se apodera do
poder político. Desde então, na teoria como na prática, a luta de classes
reveste-se de formas mais e mais acentuadas, mais e mais ameaçadoras. Ela faz
soar a hora da economia burguesa científica. Daí em diante, não se trata mais
de saber se este ou aquele teorema é verdadeiro, mas ele é agradável ou não à
polícia, útil ou prejudicial, cômodo incômodo ao capital. A pesquisa
desinteressada cedeu lugar o pugilato remunerado, a investigação conscienciosa
à má-fé, aos miseráveis subterfúgios da apologética”.10
Em outras
palavras: não é senão por uma análise sócio-histórica, em termos de classes
sociais, que se pode compreender a evolução de uma ciência social (neste caso,
a economia política), seus avanços ou seus recuos do ponto de vista científico.
A história da ciência não pode ser separada da história em geral, da história
da luta de classes em particular. Encontra-se uma análise semelhante, em um
outro contexto, em Friedrich Engels. Em uma carta a Franz Mehring de
14 de julho de 1893, ele enfatiza que as vitórias de Luther
sobre a religião católica, de Hegel sobre Kant, de Rousseau sobre Montesquieu e
de Adam Smith sobre os mercantilistas
não podem ser compreendidas senão em relação com a história social e econômica.11
Isso não queria dizer que Engels estabelecia um traço de igualdade entre
religião, filosofia, doutrina política e ciência econômica; trata-se
simplesmente de mostrar que esta última não pode escapar aos condicionamentos
sociais e não se move no espaço e no tempo de forma independente do movimento
histórico concreto.
Se nós
retornamos à distinção marxista entre os clássicos e os vulgares, percebemos,
portanto, que a explicação psicológica que ele avança (boa ou má-fé,
honestidade ou servidão estipendiada etc.) reconduz a uma explicação
sociológica que ele desenvolve em outro lugar. As duas explicações não são
contraditórias: mas é o social que
esclarece e explica o psicológico. O período no qual a burguesia é
revolucionária ou no qual ela não é ameaçada “por baixo”, isto é, pelo
proletariado, é o que favorece — ou ao menos que permite — a honestidade
científica. Pelo contrário, uma vez no poder, a burguesia se torna conservadora
e sente a necessidade, ou melhor, ela exige uma apologética vulgar em defesa de
suas novas posições conquistadas, face ao perigo que representa o avanço do
movimento operário e do socialismo. A ciência “imparcial” dos clássicos, não
submetida de forma direta a um interesse exterior, exprime o grau elevado de
autonomia da ciência econômica, possível em uma época na qual a burguesia não é
contestada por uma força revolucionária nova; a doutrina “venal” dos vulgares,
diretamente a serviço de um interesse exterior à ciência, corresponde a um
período no qual a burguesia se viu diante de um questionamento, tanto na teoria
como na prática, da exploração capitalista.”
4. Marx, Das Kapital, Dietz
Verlag, Berlim, 1968, I, p 95, III, p. 838-39, e Theorien über den Mehrwert, Dietz Verlag, Berlim, 1972, in, p 80.
5. Marx, Das Kapital I, p 95,
128, III, p 80, 839, e Mehrwert, in,
p 80, 261, 268, 445. Sobre a diferença entre sociologia vulgar e
sociologia científica, ver Gönen Therborn, Science,
Class and Society, NLB, Londres,
1980, p 428.
6. Mehrwert, II, p 112.
7. Mehrwert, II, p 113, 119
501, 557, Kapital I, p 21, 461
8. Mehrwert,
II, p 108 e carta de Marx a Kugelmann, 11/6/1868 em Marx, Engels, Ausgewãhlte Briefe, Dietz Verlag,
Berlim, 1953, p 242.
10. Marx, ”Posfácio a segunda edição alemã”, Le Capital, Garnier Flammarion, 1969, p
579 580, tradução corrigida de acordo com o original alemão Kapital I, p 21.
11. Marx, Engels, Études
Philosophiques, Éditions Sociales, Paris, 1951, p 139 140.
“O ponto
de vista burguês não era entre os clássicos — como entre os vulgares — uma
submissão deliberada aos interesses de classe, uma apologia direta e servil de
certos privilégios, mas uma visão social
de mundo que orienta, inspira e estrutura — conscientemente ou não — o
conjunto de seu pensamento. Trata-se, como o enfatizava o Dezoito Brumário, de um sistema
de ilusões e atitudes, de uma certa, forma de pensar, de uma certa problemática e de um certo horizonte intelectual (aspectos inseparáveis que se condicionam
reciprocamente, momentos diversos de uma mesma totalidade ideológica).
É antes de
tudo pela problemática que a
ideologia (burguesa) se manifesta no terreno do conhecimento científico entre
os clássicos. Realmente, a problemática, isto é, o sistema de questões, define
o campo cognitivo de uma ciência. Ora, Ricardo e os clássicos não colocaram certas questões — que são
para Marx essenciais.
Os
clássicos descobriram que o valor era a expressão do tempo de trabalho, mas
eles jamais se colocaram a questão de saber por
que o trabalho tomava a forma de valor do objeto produzido. Por qual razão
eles jamais levantaram esta questão? De acordo com Marx, porque para eles “esta
forma que demonstra claramente que ela pertence a uma sociedade na qual a
produção domina o homem e não o homem a produção era para sua consciência
burguesa uma necessidade tão evidentemente natural quanto o próprio trabalho
produtivo”.13 Tocamos aqui em uma clivagem decisiva, que expõe a diferença essencial entre a economia
política e Marx: “a economia política clássica/científica é burguesa sobretudo
porque para ela a produção burguesa é a produção em geral. Uma forma
específica, historicamente dada, da produção — o capitalismo — é considerada
por ela como absoluta, eterna, a-histórica, natural, e as contradições do modo
de produção capitalista são explicadas como contradições naturais da produção
enquanto tal”.14
Isso nos
conduz ao conceito de horizonte
intelectual que se articula diretamente com o conceito de problemática, e
que constitui em nossa opinião uma das imagens mais férteis e mais
interessantes do campo teórico marxista que exploramos aqui. Este conceito nos
permite localizar, de forma mais precisa, o papel da ideologia na constituição
de um saber científico: ela lhe circunscreve os limites.
Ricardo,
enfatiza Marx, apesar da profundidade científica de suas análises, “continua
prisioneiro do horizonte burguês”; os clássicos e ele não podiam, enquanto
pensadores burgueses, apreender certos aspectos decisivos da realidade
socioeconômica; do ponto de vista burguês que era o deles, era impossível (nicht möglich) superar as
inconsequências, as meias-verdades e as contradições irresolvidas. Em outras
palavras: a ciência burguesa não podia ir além de um certo limite
intransponível (unüberschreitbaren
Schranke): Ricardo pôde descobrir a contradição entre o lucro e o salário,
mas ele a considerava uma contradição que expressava as leis naturais da
sociedade.15
Os
economistas clássicos não estavam direta ou deliberadamente submetidos a um
interesse exterior à ciência como os vulgares, mas eram interiormente
“prisioneiros” de um ponto de vista ideológico que corresponde aos interesses
de uma classe; sua teoria está ligada à forma de conceber as práticas travadas
no interior e que dizem respeito à produção capitalista.16 Poderia
se aplicar a eles o mesmo raciocínio que Marx esboça no Dezoito Brumário, substituindo
representantes democratas por “economistas” e shopkeepers por “empresários”: não se deve imaginar que os
economistas clássicos eram todos donos de fábrica ou que se entusiasmavam por
estes últimos. O que os fazia representantes científicos da burguesia é que seu
pensamento não podia superar os limites que o próprio burguês não supera em sua
vida e que, por consequência, são teoricamente impelidos para os mesmos
problemas e para as mesmas soluções às quais os burgueses na prática são
conduzidos por seu interesse material e sua situação social.
Sem dúvida
alguma, estamos aqui diante de um conceito de ideologia que não tem nada a ver
com a mentira, a falsificação ou a mistificação: não é a vontade de conhecer a verdade por parte dos clássicos que está
colocada em questão, mas a possibilidade
de conhecê-la, a partir de sua problemática e no quadro de seu horizonte de
classe. Isso não impede que, no interior
destes limites, sua busca possa produzir conhecimentos científicos importantes:
a ideologia burguesa não implica a negação
de toda ciência, mas a existência de barreiras que restringem o campo de
visibilidade cognitiva.”
14. Kapital I, p 539, in, p
252, Mehrwert, III, p. 50, 255, 491.
15. Marx, Contribution à la Critique de l’Economie Politique, Editions Sociales, Paris, 1977, p 37, Grundrisse der Kritik der politischen Okonomie, Europäische
Verlaganstalt, 1953, p. 449; Kapital
I, p 19, III, p. 838; sublinhado por nós ML.
16. Mehrwert,
III, p 261.
“1) Rosa Luxemburgo
não concebia o engajamento na luta de classes senão das ciências que se ocupam
das “questões sociais”: distinguindo assim ciências da sociedade e da natureza,
ela escapa tanto à hipoteca positivista quanto à armadilha de uma
“ideologização” das ciências naturais.
2) Uma
ciência social não-partidária é uma ilusão “no momento”: é apenas no futuro,
isto é, em uma sociedade sem classes, que poderá existir uma ciência
“universalmente humana” (voltaremos a esta questão).
Em sua Introdução à economia política, ela
mostra como, em uma ciência social determinada, “as vias do conhecimento
burguês e do conhecimento proletário divergem” em relação a todas as questões,
inclusive aquelas que são à primeira vista abstratas e indiferentes às lutas
sociais: a oposição entre economia mundial e “economia nacional”, entre o
método histórico e o método naturalista etc. Isso não quer dizer que as “vias
do conhecimento burguês” não possam conduzir a resultados científicos
importantes. Rosa Luxemburgo insiste sobre o valor das descobertas científicas
dos fundadores da economia política (Quesnay, Boisgillebert, Adam Smith,
Ricardo), que ousaram mostrar o capitalismo “em sua nudez clássica”. Ela
percebe a relação do marxismo com esta ciência de origem burguesa como uma superação
dialética: as descobertas de Marx “não são senão a continuação da economia
política tal qual os sábios burgueses a criaram, mas são uma continuação cujos
resultados finais estão em completa contradição com os pontos de partida
deles”.55
Essa superação
é o resultado do fato de que o pensamento de Marx representa “sobre o terreno
da filosofia, da história e da economia o ponto de vista do proletariado”: os
marxistas são os “porta-vozes do proletariado moderno”, “os ideólogos da classe
operária” — o termo ideologia sendo concebido aqui como em Lenin, no seu
sentido amplo de forma de pensamento ligado ao ponto de vista de uma classe
social.56 É porque Marx se situa do ponto de vista do proletariado
revolucionário que ele pode chegar a “um observatório mais elevado” (hörheren Warte) de onde ele pode
“perceber os limites das formas
econômicas burguesas”.57 Esta metáfora “topológica” nos parece
particularmente feliz: ela sugere uma ligação entre o ponto de vista de classe
e o horizonte de visibilidade da “paisagem social”. Ela abre caminho a uma
compreensão das condições histórico-sociais que explicam o advento do marxismo
e seu lugar no movimento da ciência social: não o Fiat Lux miraculoso de um gênio individual, mas a expressão teórica
de um ponto de vista de classe novo, o do proletariado moderno, que provoca a
emergência de um “observatório mais elevado” e que cria a possibilidade
objetiva de um conhecimento mais vasto da realidade social.”
55. R. Luxemburg, Introduction a
l’Économie Politique, Editions Anthropos, 1970, p. 58, 70-71.
56. R. Luxemburg, “Karl Marx”, 1903, e “Stillstand und Fortschritt des
Marxismus”, 1903, em Gesammelte Werke,
Dietz Verlag, Berlim, 1970, 1/2, p. 367, 375, Introduction a l’Économie Politique, p. 70.
57. R. Luxemburg, “Aus den literarischen
Nachlass von Karl Marx”, 1905, em Gesammelte
Werke, 112, p. 469.
“Para
Lukács, o marxismo está, como toda forma de conhecimento da sociedade,
necessariamente ligado à consciência de uma classe social, a seu ponto de vista.
Em polêmica com o marxismo positivista da Segunda Internacional, ele escreveu:
“A questão colocada pelo ‘austromarxismo’, a separação metodológica entre a
ciência ‘pura’ do marxismo e o socialismo (Cf. Hilferding, O capital financeiro) é, como todas as questões semelhantes, um
falso problema. Porque o método marxista, a dialética materialista enquanto
conhecimento da realidade, não é possível senão a partir do ponto de vista de
classe, do ponto de vista da luta do proletariado”.67 Ciência e
consciência coincidem para o proletariado porque ele é, ao mesmo tempo, o
sujeito e o objeto do conhecimento: o conhecimento de si significa ao mesmo
tempo o conhecimento correto de toda a sociedade. Esta consciência de classe
não é dada imediatamente ao proletariado: ela é um produto de luta de classes,
como todo fato social; ela é o resultado de uma longa evolução que conduziu do
utopismo até a Comuna de 1817 e até os nossos dias. Lukács desenvolve aqui um
conceito muito preciso da consciência de classe: não se trata nem da soma nem
da média do que os indivíduos que compõem a classe, tomados um a um, pensam;
ela não é a consciência empírica, psicologicamente descritível, dos membros da
classe, mas o sentido, tornado
consciente, da situação histórica da classe. A consciência que pode ser
“adjudicada” (zugerechnet) à classe
é, em última análise, a reação racional adequada que corresponde à sua situação
objetiva.68
Ora,
segundo Lukács — e aqui está a pedra de toque de História e consciência de classe —, é apenas do ponto de vista do proletariado (isto é, a
partir de sua consciência de classe “adjudicada”) que o conjunto da sociedade,
o movimento da totalidade social se torna visível.
Em outras palavras: “o conhecimento que resulta do ponto de vista do
proletariado é, objetiva e cientificamente, mais elevado. Ele contém o
conhecimento histórico adequado do capitalismo, tornado inacessível para o
pensamento burguês”. Isso não quer dizer que a ciência burguesa resulta
simplesmente da falsa consciência ou da ideologia: trata-se de estabelecer uma
“gradação objetiva em valor de conhecimento dos métodos” e, nesta hierarquia, a
obra de grandes burgueses (que Lukács, seguindo Marx, distingue dos epígonos)
representa “um momento necessário no edifício metodológico do conhecimento
social”.69
Contudo,
Lukács não se limita a esta afirmação da superioridade cognitiva do ponto de
vista proletário; ele procura — e essa é, sem dúvida, uma das contribuições
mais importantes e essenciais do livro justificá-la por argumentos históricos e
sociais concretos. Ele avança a este respeito duas respostas que podem ser
consideradas complementares. Inicialmente, ele desenvolve a ideia de que, pela
resistência a sua redução à condição de simples mercadoria, por sua luta contra
a “coisificação” total de sua força de trabalho, o operário tende a descobrir e
a colocar em questão o conjunto do processo de reificação: “Ao se manifestar, a
objetividade especial deste tipo de mercadoria que, sob uma aparência
reificada, é uma relação entre homens, sob uma aparência quantitativa, um
núcleo qualitativo vivo, permite revelar o caráter fetichista de toda mercadoria, caráter assentado sobre a
força de trabalho como mercadoria”.70 É a partir desta hipótese que
Lukács pode considerar que para o proletariado a consciência de si é já,
simultaneamente, conhecimento (científico) do conjunto das relações sociais do
capitalismo.
O segundo
argumento nos parece, sem dúvida alguma, o mais decisivo: o ponto de vista de
classe do proletariado representa um nível cognitivo mais elevado porque para o
proletariado o conhecimento mais perfeitamente objetivo de sua situação de
classe é uma necessidade vital, uma questão de vida ou de morte; a verdade é uma condição sine qua non de seu triunfo como classe
revolucionária: o proletariado “recebe sua arma mais afiada das mãos da ciência
verdadeira, da visão clara da realidade tendo em vista a ação. Enquanto nas
lutas de classes do passado, as ideologias mais diversas, as formas religiosas,
morais ou outras expressões da ‘falsa consciência’ eram decisivas, a luta de
classes do proletariado, guerra emancipadora da última classe oprimida,
encontrou na revelação da verdade, ao mesmo tempo, seu grito de guerra e sua
arma mais eficaz”.71
Encontramos
aqui o aspecto crucial que distingue radicalmente o proletariado da burguesia
como classe revolucionária. A vitória das forças burguesas contra o mundo
feudal não exigia um conhecimento objetivo da realidade histórica e social: “o
sentido de suas ações lhes permanecia oculto e era confiado à ‘astúcia da
razão’ do processo de evolução”. O proletariado, pelo contrário, foi colocado
pela história diante da tarefa de uma transformação consciente da sociedade.72
Este
raciocínio, presente de forma fragmentária e não-sistemática em História e consciência de classe, é, em nossa opinião, uma das contribuições mais ricas e mais profundas
de Lukács (e do marxismo historicista) para uma explicação coerente do marxismo
por si próprio.
Consequentemente,
de acordo com Lukács, a diferença entre o marxismo e o pensamento burguês não é
puramente científica, puramente cognitiva. O materialismo histórico não é
somente um instrumento de conhecimento; ele é também, ao mesmo tempo, um
instrumento de ação. O pensamento burguês é essencialmente contemplativo: o sujeito se acha diante de um universo de objetos
sociais independentes de si próprio e inalteráveis, que ele observa — segundo o método científico-natural.
O ponto de vista do proletariado, pelo contrário, visa a transformação
revolucionária da realidade social, o que instaura uma relação dialética entre
o sujeito e o objeto: o proletariado é ao mesmo tempo o sujeito e o objeto do
conhecimento e da história. Em sua luta revolucionária, coincidem a teoria e a
práxis, e se passa sem transição do saber à ação. Reconhecendo a situação, o
proletariado age; combatendo o capitalismo, ele reconhece sua posição na
sociedade.73”
67 G. Lukács, Histoire et Consciente de Classe, p. 41.
68. Ibid,
p 73. Para uma discussão mais detalhada do conceito de consciência de classe
”adjudicada” (zugerechnetes bewusstsein)
remetemos a nossa obra Pour une
sociologie des intellectuels revolutionnaires: l’évolution politique de Lukács,
1907 1927, Presses Universitaires de France, Paris, 1976, p 205 206 O jovem
filósofo e militante trotskista Franz Jakubowski publicou nos anos 30 uma
marcante defesa e exemplificação das teses de Lukács (e Korsch) sob o título
Les superstructures idéologiques dans la conception matérialiste de l’histoire
— edição francesa EDI, Paris, 1971 com um interessante prefácio de Jean Mane Brohm.
69. Lukács, op cit, p 204-205,
40.
70. Lukács, op cit, p 221.
71. Ibid, p 258 59.
72. Ibid, p 96.
73. Lukács, op cit, p 20, 252,
259.
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