sexta-feira, 25 de outubro de 2019

Anti-Dühring: a revolução da ciência segundo o senhor Eugen Dühring (Parte III) – Friedrich Engels

Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-458-2
Tradução: Nélio Schneider
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 384
Sinopse: Ver Parte I



“Na análise que Marx faz das formas econômicas, no interior das quais se move o processo de circulação das mercadorias, a última forma resultante é o dinheiro.
Esse produto final da circulação das mercadorias é a primeira forma de manifestação do capital. Historicamente, o capital, em seu confronto com a propriedade fundiária, assume invariavelmente a forma do dinheiro, da riqueza monetária, dos capitais comercial e usurário. […] A mesma história se desenrola diariamente diante de nossos olhos. Todo novo capital entra em cena – isto é, no mercado, seja ele de mercadorias, de trabalho ou de dinheiro – como dinheiro, que deve ser transformado em capital mediante um processo determinado.[105]
Trata-se, portanto, uma vez mais, de um fato que Marx constata. Incapaz de refutá-lo, o sr. Dühring o distorce: o capital seria gerado a partir do dinheiro!
Marx passa a investigar, em seguida, os processos pelos quais o dinheiro se transforma em capital e descobre, primeiramente, que a forma em que o dinheiro circula como capital é a inversão da forma em que circula como equivalente universal da mercadoria. O simples possuidor de mercadorias vende para comprar; ele vende o que não precisa e, com o dinheiro negociado, compra o que precisa. O potencial capitalista compra de antemão aquilo de que não precisa; ele compra para vender, mais exatamente, para vender mais caro, para recuperar o valor em dinheiro originalmente investido no negócio da compra, acompanhado de um acréscimo em dinheiro, e a esse acréscimo Marx chama de mais-valor.
De onde provém esse mais-valor? Ele não pode provir nem de o comprador ter comprado as mercadorias abaixo do seu valor nem de o vendedor tê-las vendido acima do seu valor. Porque, nos dois casos, os ganhos e os prejuízos de cada um se equilibram reciprocamente, visto que cada um deles é alternadamente comprador e vendedor. Ele tampouco pode provir da trapaça, pois esta até pode enriquecer um à custa de outro, mas não pode aumentar a soma total que ambos possuem e, portanto, a soma dos valores em circulação. “A totalidade da classe capitalista de um país não pode se aproveitar de si mesma.”[106]
E, no entanto, constatamos que a totalidade da classe dos capitalistas de cada país enriquece continuamente diante dos nossos olhos, vendendo mais caro do que havia comprado, apropriando-se de mais-valor. Estamos, portanto, no mesmo ponto em que começamos: de onde provém esse mais-valor? Essa é a questão que precisa ser resolvida, e isso tem de ser feito pela via puramente econômica, excluindo toda e qualquer trapaça, toda interferência de qualquer poder. A pergunta é esta: como é possível vender continuamente mais caro do que se comprou, mesmo pressupondo-se que continuamente são trocados valores iguais por valores iguais?
A solução dessa questão constitui o feito mais meritório e memorável da obra de Marx. Ela lança a luz do dia sobre áreas econômicas em que, anteriormente, tanto os socialistas como os economistas burgueses tateavam na mais profunda escuridão. Constitui a data de nascimento do socialismo científico e em torno dela este se agrupa.
A solução é a seguinte. O aumento de valor do dinheiro que se pretende transformar em capital não pode provir desse dinheiro nem originar-se da compra, visto que, nesses casos, esse dinheiro apenas concretiza o preço da mercadoria, e esse preço, pressupondo que valores iguais estão sendo trocados, não é diferente do seu valor. Porém, pela mesma razão, o aumento do valor não pode proceder da venda da mercadoria. A mudança tem de ocorrer, portanto, com a mercadoria que é comprada, mas não com seu valor, já que ela é comprada e vendida pelo seu valor; ela tem de ocorrer com seu valor de uso como tal, isto é, a mudança de valor deve decorrer do consumo da mercadoria.
Para poder extrair valor do consumo de uma mercadoria, nosso possuidor de dinheiro teria de ter a sorte de descobrir no mercado [...] uma mercadoria cujo próprio valor de uso possuísse a característica peculiar de ser fonte de valor, cujo próprio consumo fosse, portanto, objetivação de trabalho e, por conseguinte, criação de valor. E o possuidor de dinheiro encontra no mercado uma tal mercadoria específica: a capacidade de trabalho ou força de trabalho.[107]
Como vimos, o trabalho como tal não pode possuir valor, mas esse de modo algum é o caso da força de trabalho. Essa força adquire um valor no momento em que se torna uma mercadoria, sendo que hoje em dia ela é de fato uma mercadoria, e esse valor, “como o de todas as outras mercadorias, é determinado pelo tempo de trabalho necessário para a produção – e, consequentemente, também para a reprodução – desse artigo específico”[108], isto é, pelo tempo de trabalho exigido para a produção dos meios de vida de que o trabalhador necessita para a manutenção da condição em que é capaz de trabalhar e para a procriação da sua espécie. Suponhamos que esses meios de vida representam, dia a dia, um tempo de trabalho de seis horas. Nosso potencial capitalista, que para tocar seu negócio compra força de trabalho, isto é, aluga um trabalhador, pagará a esse trabalhador, portanto, o valor integral diário de sua força de trabalho se lhe pagar uma soma de dinheiro que igualmente representa seis horas de trabalho. Então, depois de ter trabalhado seis horas a serviço do potencial capitalista, o trabalhador fez a prestação completa pelo seu gasto, pelo valor diário pago pela sua força de trabalho. Desse modo, porém, o dinheiro não teria se transformado em capital, não teria gerado nenhum mais-valor. O comprador da força de trabalho, contudo, tem uma ideia bem diferente da natureza do negócio fechado por ele – o fato de serem necessárias apenas 6 horas de trabalho para manter a vida do trabalhador por 24 horas de modo algum o impede de trabalhar 12 horas das 24. O valor da força de trabalho e sua valorização no processo do trabalho são duas grandezas diferentes. O possuidor do dinheiro pagou o valor diário da força de trabalho, pertencendo-lhe, por conseguinte, também o seu uso durante o dia todo, o trabalho com duração de um dia. O fato de o valor que seu uso cria durante um dia ser o dobro do seu próprio valor diário é um golpe de sorte para o comprador, mas, segundo as leis da troca de mercadorias, de modo algum constitui uma injustiça para com o vendedor. Portanto, pela nossa suposição, o trabalhador custa ao possuidor de dinheiro diariamente o valor produzido por seis horas de trabalho, mas ele lhe fornece diariamente o valor produzido por doze horas de trabalho. Diferença a favor do possuidor do dinheiro: seis horas de mais-trabalho não remunerado, um mais-produto não pago, no qual está corporificado o trabalho de seis horas. A mágica foi feita. O mais-valor foi gerado, o dinheiro foi transformado em capital.
Ao demonstrar dessa maneira como surge o mais-valor e qual é a única forma como o mais-valor pode surgir sob o domínio das leis que regem a troca de mercadorias, Marx desvelou o mecanismo do atual modo de produção capitalista e do modo de apropriação baseado nele, revelando o núcleo cristalino em torno do qual se sedimentou toda a atual ordem social.
Contudo, essa geração de capital tem um pressuposto essencial:
Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro tem, portanto, de encontrar no mercado de mercadorias o trabalhador livre, e livre em dois sentidos: de ser uma pessoa livre, que dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e de, por outro lado, ser alguém que não tem outra mercadoria para vender, livre e solto, carecendo absolutamente de todas as coisas necessárias à realização de sua força de trabalho.[109]
Porém, essa relação entre possuidores de dinheiro ou mercadorias, de um lado, e possuidores de nada além da sua própria força de trabalho, do outro, não é uma relação histórico-natural nem é uma relação comum a todos os períodos históricos, “mas é claramente o resultado de um desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções econômicas, da destruição de toda uma série de formas anteriores de produção social”[110]. Mais precisamente, deparamos com esse trabalhador livre na história, pela primeira vez de modo maciço, entre o final do século XV e o início do século XVI, em consequência da dissolução do modo de produção feudal. Com isso, e com a criação do comércio mundial e do mercado mundial que data da mesma época, estava posto o fundamento sobre o qual a massa das riquezas móveis existentes se transformou progressivamente em capital e o modo de produção capitalista, direcionado para a geração de mais-valor, necessariamente passou a ser, cada vez mais, o modo de produção exclusivamente dominante.”
105 Karl Marx, Das Kapital, cit., p. 128 (MEGA-2 II/6, cit., p. 165) [ed. bras.: O capital, Livro I, cit., p. 223] – grifo de Engels. (N. E. A.)
106 Ibidem, p. 147 (MEGA-2 II/6, cit., p. 180) [ed. bras.: ibidem, p. 238]. (N. E. A.)
107 Ibidem, p. 151-2 (MEGA-2 II/6, cit., p. 183) [ed. bras.: ibidem, p. 242] – grifos de Engels. (N. E. A.)
108 Ibidem, p. 155 (MEGA-2 II/6, cit., p. 186) [ed. bras.: ibidem, p. 245]. (N. E. A.)
109 Ibidem, p. 154 (MEGA-2 II/6, cit., p. 185) [ed. bras.: ibidem, p. 244] – grifos de Engels. (N. E. A.)
110 Idem.


“Ora, em que se diferencia a concepção de capital de Dühring da de Marx?
Marx diz:
O capital não inventou o mais-trabalho. Onde quer que uma parte da sociedade detenha o monopólio dos meios de produção, o trabalhador, livre ou não, tem de adicionar ao tempo de trabalho necessário a sua autoconservação um tempo de trabalho excedente, a fim de produzir os meios de subsistência para o possuidor dos meios de produção.[121]
Mais-trabalho, trabalho além do tempo necessário para o autossustento do trabalhador e apropriação do produto desse mais-trabalho por outros (ou seja, a exploração do trabalho) é comum a todas as formas de sociedade até agora existentes, na medida em que se moveram em antagonismos de classes. Porém, segundo Marx, o meio de produção assume o caráter específico de capital só quando o produto desse mais-trabalho assume a forma de mais-valor, quando o possuidor dos meios de produção se defronta com o trabalhador livre – livre de amarras sociais e livre de posse própria – enquanto objeto de espoliação e o explora visando à produção de mercadorias. E isso passou a acontecer em grande escala só a partir do final do século XV e do início do século XVI.”
121 Karl Marx, Das Kapital, cit., p. 227 (MEGA-2 II/6, cit., p. 241-2) [ed. bras.: O capital, Livro I, cit., p. 309]. (N. E. A.)


“A concepção de que capital é pura e simplesmente “meio de produção produzido”, uma vez mais, tem validade geral só na economia política vulgar. Fora dessa economia política vulgar, tão cara ao sr. Dühring, o “meio de produção produzido” ou qualquer soma de valor só se torna capital quando logra obter lucro ou juro, isto é, quando apropria o mais-produto do trabalho não remunerado na forma de mais-valor, mais precisamente nessas duas subformas bem determinadas do mais-valor. Durante esse processo, é absolutamente irrelevante que a totalidade da economia burguesa esteja presa à concepção de que a propriedade de obter lucro ou juro seja automaticamente inerente a qualquer soma de valor empregada, sob condições normais, na produção ou na troca. Em toda a economia clássica, capital e lucro ou capital e juro são tão inseparáveis quanto causa e efeito, pai e filho, ontem e hoje ou, necessariamente, se inter-relacionam com eles. Porém, a palavra “capital”, no seu significado econômico moderno, só passa a ocorrer no momento em que entra em cena a coisa que ela designa, em que a riqueza móvel passa a adquirir cada vez mais função de capital, ao explorar o mais-trabalho de trabalhadores livres visando produzir mercadorias, sendo introduzida, mais exatamente, pela primeira nação de capitalistas da história: pelos italianos dos séculos XV e XVI. E Marx foi o primeiro a analisar até seus fundamentos o modo de apropriação peculiar do capital moderno, a harmonizar o conceito do capital com os fatos históricos dos quais ele havia sido, em última instância, abstraído e aos quais deve sua existência; desse modo, Marx libertou esse conceito econômico das concepções obscuras e claudicantes que aderiam a ele, inclusive na economia burguesa clássica e nos socialistas anteriores; sendo assim, foi exatamente Marx que procedeu com aquela “definitiva e mais rigorosa cientificidade” que o sr. Dühring constantemente proclama em alto e bom som e da qual dolorosamente sentimos falta no seu procedimento.”


“Segundo o sr. Dühring, portanto, o mais-valor marxiano nada seria além do que, na linguagem comum, é chamado de ganho do capital ou lucro. Ouçamos o que diz o próprio Marx. Na página 195 de O capital, o mais-valor é explicado pelos termos postos entre parênteses logo depois dele: “Juro, lucro, renda”[125]. Na página 210, Marx dá um exemplo em que uma quantia de mais-valor de 71 xelins aparece em suas diferentes formas de distribuição: dízimos, impostos locais e estatais = 21 xelins, renda fundiária = 28 xelins, lucro e juro do fazendeiro = 22 xelins, totalizando 71 xelins de mais-valor[126]. – Na página 542, Marx considera que um dos principais problemas de Ricardo foi que ele “não investigou o mais-valor como tal, isto é, independentemente de suas formas particulares, como lucro, renda fundiária etc.” e, por conseguinte, jogou na mesma panela as leis referentes à taxa de mais-valor e as leis da taxa de lucro; diante disso, Marx anuncia: “Mais tarde, no Livro III desta obra, demonstrarei que a mesma taxa de mais-valor pode se expressar nas mais diversas taxas de lucro, assim como as mais diversas taxas de mais-valor, sob determinadas circunstâncias, na mesma taxa de lucro” [127]. Na página 587, consta o seguinte:
O capitalista que produz o mais-valor, isto é, que suga trabalho não pago diretamente dos trabalhadores e o fixa em mercadorias, é, decerto, o primeiro apropriador, porém de modo algum o último proprietário desse mais-valor. Ele tem ainda de dividi-lo com capitalistas que desempenham outras funções na totalidade da produção social, com o proprietário fundiário etc. O mais-valor se divide, assim, em diversas partes. Seus fragmentos cabem a diferentes categorias de pessoas e recebem formas distintas, independentes entre si, como o lucro, o juro, o ganho comercial, a renda fundiária etc. Tais formas modificadas do mais-valor só poderão ser tratadas no Livro III.[128]
E do mesmo modo em muitas outras passagens.
Não há como expressar-se com mais clareza. Em toda oportunidade, Marx chama a atenção para o fato de que seu mais-valor de modo algum deve ser confundido com lucro ou ganho de capital, que este último é, muito antes, uma subforma e, com bastante frequência, até apenas uma fração do mais-valor.”
125 Karl Marx, Das Kapital, cit., p. 195, nota 22 (MEGA-2 II/6, cit. p. 217) [ed. bras.: O capital, Livro I, cit., p. 283, nota 22]. (N. E. A.)
126 Ibidem, p. 210 (MEGA-2 II/6, cit., p. 228-9) [ed. bras.: ibidem, p. 296 – as quantidades citadas por Engels não aparecem da mesma forma no texto atual de O capital]. (N. E. A.)
127 Ibidem, p. 542-3 (MEGA-2 II/6, cit., p. 488) [ed. bras.: ibidem, p. 591]. (N. E. A.)
128 Ibidem, p. 587 (MEGA-2 II/6, cit., p. 522) [ed. bras.: ibidem, cit., p. 639]. (N. E. A.)


“Tudo fica bem quando termina bem.”


“Vimos na Introdução[1] como os filósofos franceses do século XVIII, os precursores da revolução, apelaram para a razão como juíza única de tudo o que existia. O que se pretendia era organizar um Estado racional, uma sociedade racional, e tudo o que contradizia a razão eterna deveria ser eliminado sem dó nem piedade. Vimos igualmente que essa razão eterna, na realidade, nada mais era que o entendimento idealizado do cidadão médio que, justamente, naquela época, estava evoluindo à condição de burguês. Por conseguinte, depois que a Revolução Francesa[2] concretizou essa sociedade e esse Estado racionais, as novas instituições, por mais racionais que fossem em comparação com as condições anteriores, de modo algum se evidenciaram como absolutamente racionais. O Estado racional ruiu completamente. O contrato social rousseauniano concretizou-se no período do Terror[3], diante do qual a burguesia, desenganada de sua própria capacitação para a política, buscou refúgio primeiro na corrupção do Diretório[4] e, por fim, sob a égide do despotismo napoleônico. A paz perpétua prometida havia se revertido numa interminável guerra de conquista. A sociedade racional não se saiu melhor. O antagonismo entre rico e pobre, em vez de dissolver-se no bem-estar universal, aguçou-se com a eliminação da função intermediadora dos privilégios corporativos e afins e da função mitigadora das instituições de caridade da Igreja; o crescimento da indústria sobre bases capitalistas elevou a pobreza e a miséria das massas trabalhadoras ao nível de condição de vida da sociedade. O número de crimes aumentou de ano para ano. Embora não tenham sido aniquilados os vícios feudais que antes corriam soltos, sem pudor, em plena luz do dia, eles foram provisoriamente relegados ao segundo plano. Em compensação, floresceram em profusão ainda maior os vícios burgueses, que até ali haviam sido nutridos sem alarde. O comércio foi se tornando cada vez mais fraudulento. A divisa revolucionária da “fraternidade” concretizou-se nas chicanas e na inveja da competição. A opressão violenta foi substituída pela corrupção, ao passo que a espada o foi pelo dinheiro, que se tornou o principal meio de alavancar o poder social. O direito da primeira noite passou dos senhores feudais para os fabricantes burgueses. A prostituição se disseminou em proporções até ali inauditas. O casamento continuou sendo, como era até então, a forma legalmente reconhecida e o manto oficial para encobrir a prostituição, e ademais ganhou seu complemento nos abundantes casos de adultério. Em suma, comparadas com as esplendorosas promessas dos iluministas, as instituições sociais e políticas erigidas pelo “triunfo da razão” se revelaram caricaturas amargamente decepcionantes. (...)
Nessa época, porém, o modo de produção capitalista e, com ele, o antagonismo entre burguesia e proletariado ainda estavam pouco desenvolvidos. A grande indústria, recém-surgida na Inglaterra, era desconhecida na França. Só a grande indústria desenvolve, por um lado, os conflitos que elevam à condição de necessidade forçosa uma revolução do modo de produção – conflitos não só entre as classes por ele geradas, mas também entre as forças produtivas e as formas de troca por ele criadas; e, por outro lado, ela desenvolve, exatamente no interior dessas gigantescas forças produtivas, também os meios para resolver esses conflitos. Portanto, se por volta de 1800 os conflitos oriundos dessa nova ordem social estavam apenas se formando, isso vale em grau muito maior para os meios de resolvê-los. Embora as massas despossuídas de Paris tenham podido conquistar o domínio por um momento durante o período do Terror, elas só conseguiram provar com isso quanto esse domínio era impossível sob as condições de então. O proletariado que apenas começava a se distinguir dessas massas despossuídas como tronco de uma nova classe, ainda totalmente incapaz de alguma ação política autônoma, apresentava-se como estamento oprimido e padecente que, em sua incapacidade de ajudar a si próprio, poderia, quando muito, obter ajuda de fora, vinda de cima.”
1 Ver “Filosofia” I. (Nota introduzida por Herrmann Ramm: “Mandei imprimir a nota de rodapé da rubrica 14 da separata […] porque o escrito está sendo vendido em duas seções separadas” – carta de Herrmann Ramm a Engels, de 8 de maio de 1878.) (N. E. A)
2 Referência ao período de 1789 a 1795 da Revolução Francesa. (N. E. A.)
3 Período da ditadura democrático-revolucionária dos jacobinos (junho de 1793 a julho de 1794), no qual, em resposta ao terror contrarrevolucionário dos girondistas e monarquistas, eles se valeram do terror revolucionário. (N. E. A.)
4 Governo de transição entre a ditadura dos jacobinos e o consulado, o Diretório (1795-1799) serviu para assegurar os resultados da Revolução. Defendeu os interesses da grande burguesia, sendo contrário tanto à contrarrevolução monarquista como aos anseios democráticos do povo. (N. E. A.)


“Em todas as sociedades que passam por um desenvolvimento natural da produção – e a atual figura entre elas –, não são os produtores que dominam os meios de produção, mas os meios de produção que dominam os produtores. Nesse tipo de sociedade, cada nova alavanca da produção necessariamente se converte num novo meio de subjugação do produtor pelo meio de produção. Isso vale sobretudo para a alavanca da produção que, até a introdução da grande indústria, foi de longe a mais poderosa: a divisão do trabalho. A primeira grande divisão do trabalho, a divisão entre cidade e campo, já condenou a população do campo a uma estupidificação milenar e os citadinos à servidão, cada um deles com seu trabalho manual individual. Ela aniquilou o fundamento do desenvolvimento espiritual de uns e do desenvolvimento físico de outros. Quando o agricultor se apropria do solo e o citadino se apropria de seu trabalho manual, o solo se apropria do agricultor na mesma medida e o trabalho manual se apropria do trabalhador manual na mesma medida. À medida que o trabalho é dividido, o ser humano também o é. A formação plena de uma única atividade exige o sacrifício de todas as demais capacidades físicas e intelectuais. Esse atrofiamento do ser humano cresce na mesma proporção em que aumenta a divisão do trabalho, que atinge seu desenvolvimento máximo na manufatura. A manufatura decompõe o trabalho artesanal em suas operações parciais individuais, atribuindo cada uma delas a um único trabalhador como profissão vitalícia e acorrentando-o, assim, por toda vida, a uma função parcial e a uma determinada ferramenta. “Ela aleija o trabalhador, converte-o numa aberração, promovendo artificialmente sua habilidade detalhista por meio da repressão de um mundo de impulsos e capacidades produtivas [...], o próprio indivíduo é dividido e transformado no motor automático de um trabalho parcial” (Marx)[116] – um motor que, em muitos casos, só atinge a perfeição mediante o aleijamento literal, tanto físico como intelectual, do trabalhador. A maquinaria da grande indústria degrada o trabalhador colocando-o abaixo da máquina, convertendo-o em um mero acessório dela. “Da especialidade vitalícia em manusear uma ferramenta parcial surge a especialidade vitalícia em servir a uma máquina parcial. Abusa-se da maquinaria para transformar o trabalhador, desde a tenra infância, em peça de uma máquina parcial” (Marx)[117]. E não são só os trabalhadores: as classes que direta ou indiretamente espoliam os trabalhadores também são escravizadas pela ferramenta de sua atividade: o burguês cabeça-oca, por seu próprio capital e por sua sanha de lucro; o jurista, por suas concepções jurídicas fossilizadas que o dominam como poder autônomo; os “estamentos cultos” em geral, pelas mais variadas estreitezas e unilateralidades provincianas, por sua miopia física e intelectual, por seu aleijamento decorrente de uma educação moldada para uma só especialidade e pelo acorrentamento vitalício a essa mesma especialidade inclusive quando essa especialidade é a mais absoluta inatividade. (...)
Ao adonar-se de todos os meios de produção visando utilizá-los socialmente de modo planejado, a sociedade aniquila a anterior escravização dos seres humanos pelos seus próprios meios de produção. A totalidade da sociedade obviamente não consegue se libertar sem que cada indivíduo se liberte. O antigo modo de produção precisa, portanto, ser revolucionado desde a base e, principalmente, a antiga divisão do trabalho tem de desaparecer. Ela deve ser substituída por uma organização da produção em que, por um lado, nenhum indivíduo possa transferir para outros a parcela que lhe corresponde no trabalho produtivo, nessa condição natural da existência humana, e, por outro lado, o trabalho produtivo, em vez de ser um meio de escravização, torne-se um meio de libertação dos seres humanos, proporcionando a cada indivíduo a oportunidade de formar plenamente e utilizar em todos os sentidos todas as suas capacidades, tanto físicas como intelectuais, de modo que o trabalho, no lugar de ser uma carga, se torne um prazer.
Hoje isso não é mais uma fantasia, não é mais um desejo piedoso. Tendo em vista o atual desenvolvimento das forças produtivas, o aumento da produção resultante de fatores como a socialização das forças produtivas, a eliminação dos entraves e das perturbações gerados pelo modo de produção capitalista e o desperdício de produtos e meios de produção já é suficiente para reduzir o tempo de trabalho a um parâmetro baixo pelas concepções atuais, presumindo a participação de todos no trabalho.”
116 Karl Marx, Das Kapital, cit., p. 373-4 (MEGA-2 II/6, cit., p. 354-5) [ed. bras.: O capital, Livro I, cit., p. 434]. (N. E. A.)
117 Ibidem, p. 443 (MEGA-2 II/6, cit., p. 409) [ed. bras.: ibidem, p. 494]. (N. E. A.)


“O único valor que a economia conhece é o das mercadorias. O que são mercadorias? São produtos gerados numa sociedade constituída em maior ou menor grau de produtores privados isolados, ou seja, são primeiramente produtos privados. Esses produtos privados se convertem em mercadorias só a partir do momento em que não são mais produzidos para consumo próprio, mas para o consumo de outros, ou seja, para o consumo social, e eles ingressam no consumo social pela troca. Os produtores privados encontram-se, portanto, numa interconexão social, constituem uma sociedade. Seus produtos, embora sejam produtos privados de cada indivíduo, são, ao mesmo tempo, involuntariamente e como que contra sua vontade, também produtos sociais. Ora, em que consiste o caráter social desses produtos privados? Evidentemente, em duas propriedades: em primeiro lugar, no fato de todos eles satisfazerem alguma necessidade humana, tendo valor de uso não só para o produtor, mas também para outros; em segundo lugar, no fato de, embora sendo produtos dos mais diferentes trabalhadores privados, serem produtos do trabalho humano puro e simples, do trabalho universalmente humano. De modo geral, eles podem ingressar na troca na medida em que têm valor de uso também para outros; na medida em que o trabalho humano está contido, no geral, em todos eles, na medida em que contêm o simples dispêndio de força de trabalho humana, eles podem ser comparados, igualados ou distinguidos na troca de acordo com a quantidade desse trabalho que está contido em cada um deles. Em dois produtos privados iguais pode estar contida, sob condições sociais constantes, uma quantidade desigual de trabalho privado, mas sempre só a mesma quantidade de trabalho universalmente humano. Um ferreiro inábil consegue fazer só cinco ferraduras no mesmo intervalo de tempo em que um ferreiro hábil faz dez. Porém, a sociedade não atribui valor à inabilidade casual de um deles; ela reconhece como trabalho universalmente humano somente aquele que resulta, em cada caso, da habilidade média normal. Portanto, cada unidade das cinco ferraduras do primeiro ferreiro não recebe na troca mais valor do que cada unidade das dez do outro fabricadas no mesmo tempo de trabalho. O trabalho privado contém trabalho universalmente humano somente na medida em que é socialmente necessário.
Ao dizer, portanto, que uma mercadoria possui tal valor bem determinado, estou dizendo: 1) que ela é um produto socialmente útil; 2) que ela foi produzida por uma pessoa privada para cômputo privado; 3) que ela, embora sendo produto de trabalho privado, é, como que sem o saber ou querer, também produto de trabalho social, mais precisamente de uma quantidade determinada dele, estipulada pela via social, ou seja, pela troca; 4) que não expresso essa quantidade em trabalho, em tantas horas de trabalho, mas numa outra mercadoria. Ou seja, quando digo que este relógio vale tanto quanto este retalho de tecido e que cada um deles vale cinquenta marcos, estou dizendo o seguinte: no relógio, no tecido e no dinheiro está contida a mesma quantidade de trabalho social. Constato, assim, que o tempo de trabalho social representado por eles foi medido socialmente e considerado igual. E isso não se deu de modo direto, absoluto, como se costuma medir o tempo de trabalho (em horas ou dias de trabalho etc.), mas por um desvio, mediante a troca, de modo relativo. Consequentemente, não posso expressar essa quantidade estipulada de tempo de trabalho em horas de trabalho, cujo número continuo desconhecendo, mas igualmente só mediante um desvio, de modo relativo, em outra mercadoria que representa a mesma quantidade de tempo de trabalho social. O relógio vale tanto quanto o retalho de tecido.
Porém, na mesma medida em que a produção de mercadorias e a troca de mercadorias forçam a sociedade nelas baseada a tomar esse desvio, elas também a forçam a encurtá-lo tanto quanto possível. Dentre a turba ordinária das mercadorias, elas elegem uma mercadoria principesca, na qual o valor de todas as demais pode ser expresso de uma vez por todas. Trata-se de uma mercadoria que é tida como a encarnação imediata do trabalho social e, em consequência, torna-se permutável de modo imediato e incondicional por todas as mercadorias: o dinheiro. O dinheiro já está contido embrionariamente no conceito de valor, sendo apenas o valor desdobrado. Porém, na medida em que o valor das mercadorias se autonomiza no dinheiro em relação às próprias mercadorias, um novo fator é introduzido na sociedade que produz e troca as mercadorias, um fator com novas funções e efeitos sociais.”

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