Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-458-2
Tradução: Nélio Schneider
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 384
“Na análise que Marx faz das formas
econômicas, no interior das quais se move o processo de circulação das
mercadorias, a última forma resultante é o dinheiro.
Esse produto final da circulação das
mercadorias é a primeira forma de
manifestação do capital. Historicamente, o capital, em seu confronto com a
propriedade fundiária, assume invariavelmente a forma do dinheiro, da riqueza
monetária, dos capitais comercial e usurário. […] A mesma história se desenrola
diariamente diante de nossos olhos. Todo novo capital entra em cena – isto é,
no mercado, seja ele de mercadorias, de trabalho ou de dinheiro – como
dinheiro, que deve ser transformado em capital mediante um processo determinado.[105]
Trata-se, portanto, uma vez mais, de um fato
que Marx constata. Incapaz de refutá-lo, o sr. Dühring o distorce: o capital
seria gerado a partir do dinheiro!
Marx passa a investigar, em seguida, os
processos pelos quais o dinheiro se transforma em capital e descobre,
primeiramente, que a forma em que o dinheiro circula como capital é a inversão
da forma em que circula como equivalente universal da mercadoria. O simples
possuidor de mercadorias vende para comprar; ele vende o que não precisa e, com
o dinheiro negociado, compra o que precisa. O potencial capitalista compra de
antemão aquilo de que não precisa;
ele compra para vender, mais exatamente, para vender mais caro, para recuperar
o valor em dinheiro originalmente investido no negócio da compra, acompanhado
de um acréscimo em dinheiro, e a esse acréscimo Marx chama de mais-valor.
De onde provém esse mais-valor? Ele não pode
provir nem de o comprador ter comprado as mercadorias abaixo do seu valor nem
de o vendedor tê-las vendido acima do seu valor. Porque, nos dois casos, os
ganhos e os prejuízos de cada um se equilibram reciprocamente, visto que cada
um deles é alternadamente comprador e vendedor. Ele tampouco pode provir da
trapaça, pois esta até pode enriquecer um à custa de outro, mas não pode
aumentar a soma total que ambos possuem e, portanto, a soma dos valores em
circulação. “A totalidade da classe capitalista de um país não pode se
aproveitar de si mesma.”[106]
E, no entanto, constatamos que a totalidade
da classe dos capitalistas de cada país enriquece continuamente diante dos
nossos olhos, vendendo mais caro do que havia comprado, apropriando-se de
mais-valor. Estamos, portanto, no mesmo ponto em que começamos: de onde provém
esse mais-valor? Essa é a questão que precisa ser resolvida, e isso tem de ser
feito pela via puramente econômica,
excluindo toda e qualquer trapaça, toda interferência de qualquer poder. A
pergunta é esta: como é possível vender continuamente mais caro do que se
comprou, mesmo pressupondo-se que continuamente são trocados valores iguais por
valores iguais?
A solução dessa questão constitui o feito
mais meritório e memorável da obra de Marx. Ela lança a luz do dia sobre áreas
econômicas em que, anteriormente, tanto os socialistas como os economistas
burgueses tateavam na mais profunda escuridão. Constitui a data de nascimento
do socialismo científico e em torno dela este se agrupa.
A solução é a seguinte. O aumento de valor do
dinheiro que se pretende transformar em capital não pode provir desse dinheiro nem originar-se da compra, visto que, nesses casos, esse
dinheiro apenas concretiza o preço da mercadoria, e esse preço, pressupondo que
valores iguais estão sendo trocados, não é diferente do seu valor. Porém, pela
mesma razão, o aumento do valor não pode proceder da venda da mercadoria. A mudança tem de ocorrer, portanto, com a mercadoria que é comprada, mas não com
seu valor, já que ela é comprada e
vendida pelo seu valor; ela tem de ocorrer com seu valor de uso como tal, isto é, a mudança de valor deve decorrer do
consumo da mercadoria.
Para poder extrair valor do consumo de uma
mercadoria, nosso possuidor de dinheiro teria de ter a sorte de descobrir no
mercado [...] uma mercadoria cujo próprio valor de uso possuísse a
característica peculiar de ser fonte de valor, cujo próprio consumo fosse,
portanto, objetivação de trabalho e, por conseguinte, criação de valor. E o possuidor de dinheiro encontra no mercado uma
tal mercadoria específica: a capacidade de trabalho ou força de trabalho.[107]
Como vimos, o trabalho como tal não pode
possuir valor, mas esse de modo algum é o caso da força de trabalho. Essa força adquire um valor no momento em que se
torna uma mercadoria, sendo que hoje
em dia ela é de fato uma mercadoria, e esse valor, “como o de todas as outras
mercadorias, é determinado pelo tempo de trabalho necessário para a produção –
e, consequentemente, também para a reprodução – desse artigo específico”[108], isto é, pelo tempo de trabalho exigido para a
produção dos meios de vida de que o trabalhador necessita para a manutenção da
condição em que é capaz de trabalhar e para a procriação da sua espécie.
Suponhamos que esses meios de vida representam, dia a dia, um tempo de trabalho
de seis horas. Nosso potencial capitalista, que para tocar seu negócio compra
força de trabalho, isto é, aluga um trabalhador, pagará a esse trabalhador,
portanto, o valor integral diário de sua força de trabalho se lhe pagar uma
soma de dinheiro que igualmente representa seis horas de trabalho. Então,
depois de ter trabalhado seis horas a serviço do potencial capitalista, o
trabalhador fez a prestação completa pelo seu gasto, pelo valor diário pago pela
sua força de trabalho. Desse modo, porém, o dinheiro não teria se transformado
em capital, não teria gerado nenhum mais-valor. O comprador da força de
trabalho, contudo, tem uma ideia bem diferente da natureza do negócio fechado
por ele – o fato de serem necessárias apenas 6 horas de trabalho para manter a
vida do trabalhador por 24 horas de modo algum o impede de trabalhar 12 horas
das 24. O valor da força de trabalho e sua valorização no processo do trabalho
são duas grandezas diferentes. O possuidor do dinheiro pagou o valor diário da
força de trabalho, pertencendo-lhe, por conseguinte, também o seu uso durante o
dia todo, o trabalho com duração de um dia. O fato de o valor que seu uso cria durante um dia ser o dobro do seu
próprio valor diário é um golpe de sorte para o comprador, mas, segundo as leis
da troca de mercadorias, de modo algum constitui uma injustiça para com o
vendedor. Portanto, pela nossa suposição, o trabalhador custa ao possuidor de dinheiro diariamente o valor produzido por
seis horas de trabalho, mas ele lhe fornece
diariamente o valor produzido por doze horas de trabalho. Diferença a favor
do possuidor do dinheiro: seis horas de mais-trabalho não remunerado, um
mais-produto não pago, no qual está corporificado o trabalho de seis horas. A
mágica foi feita. O mais-valor foi gerado, o dinheiro foi transformado em
capital.
Ao demonstrar dessa maneira como surge o
mais-valor e qual é a única forma como o mais-valor pode surgir sob o domínio
das leis que regem a troca de mercadorias, Marx desvelou o mecanismo do atual
modo de produção capitalista e do modo de apropriação baseado nele, revelando o
núcleo cristalino em torno do qual se sedimentou toda a atual ordem social.
Contudo, essa geração de capital tem um
pressuposto essencial:
Para transformar dinheiro em capital, o possuidor de dinheiro tem,
portanto, de encontrar no mercado de mercadorias o trabalhador livre, e livre em dois sentidos: de ser uma pessoa
livre, que dispõe de sua força de trabalho como sua mercadoria, e de, por outro
lado, ser alguém que não tem outra mercadoria para vender, livre e solto,
carecendo absolutamente de todas as coisas necessárias à realização de sua
força de trabalho.[109]
Porém, essa relação entre possuidores de
dinheiro ou mercadorias, de um lado, e possuidores de nada além da sua própria
força de trabalho, do outro, não é uma relação histórico-natural nem é uma
relação comum a todos os períodos históricos, “mas é claramente o resultado de
um desenvolvimento histórico anterior, o produto de muitas revoluções
econômicas, da destruição de toda uma série de formas anteriores de produção
social”[110]. Mais precisamente, deparamos com esse
trabalhador livre na história, pela primeira vez de modo maciço, entre o final
do século XV e o início do século XVI, em consequência da dissolução do modo de
produção feudal. Com isso, e com a criação do comércio mundial e do mercado
mundial que data da mesma época, estava posto o fundamento sobre o qual a massa
das riquezas móveis existentes se transformou progressivamente em capital e o
modo de produção capitalista, direcionado para a geração de mais-valor,
necessariamente passou a ser, cada vez mais, o modo de produção exclusivamente
dominante.”
105 Karl Marx, Das Kapital, cit., p. 128 (MEGA-2 II/6, cit., p. 165) [ed. bras.: O capital, Livro I, cit., p. 223] –
grifo de Engels. (N. E. A.)
107 Ibidem, p. 151-2 (MEGA-2 II/6, cit., p.
183) [ed. bras.: ibidem, p. 242] – grifos de Engels. (N. E. A.)
109 Ibidem, p. 154 (MEGA-2 II/6, cit., p.
185) [ed. bras.: ibidem, p. 244] – grifos de Engels. (N. E. A.)
110 Idem.
“Ora, em que se diferencia a concepção de
capital de Dühring da de Marx?
Marx diz:
O capital não inventou o mais-trabalho. Onde
quer que uma parte da sociedade detenha o monopólio dos meios de produção, o
trabalhador, livre ou não, tem de adicionar ao tempo de trabalho necessário a
sua autoconservação um tempo de trabalho excedente, a fim de produzir os meios
de subsistência para o possuidor dos meios de produção.[121]
Mais-trabalho, trabalho além do tempo
necessário para o autossustento do trabalhador e apropriação do produto desse
mais-trabalho por outros (ou seja, a exploração do trabalho) é comum a todas as
formas de sociedade até agora existentes, na medida em que se moveram em
antagonismos de classes. Porém, segundo Marx, o meio de produção assume o
caráter específico de capital só quando o produto desse mais-trabalho assume a
forma de mais-valor, quando o possuidor dos meios de produção se defronta com o
trabalhador livre – livre de amarras sociais e livre de posse própria –
enquanto objeto de espoliação e o explora visando à produção de mercadorias. E isso passou a acontecer
em grande escala só a partir do final do século XV e do início do século XVI.”
121 Karl Marx, Das Kapital, cit., p. 227 (MEGA-2 II/6, cit., p. 241-2) [ed. bras.:
O capital, Livro I, cit., p. 309].
(N. E. A.)
“A concepção de que capital é pura e
simplesmente “meio de produção produzido”, uma vez mais, tem validade geral só
na economia política vulgar. Fora dessa economia política vulgar, tão cara ao
sr. Dühring, o “meio de produção produzido” ou qualquer soma de valor só se
torna capital quando logra obter lucro ou juro, isto é, quando apropria o
mais-produto do trabalho não remunerado na forma de mais-valor, mais
precisamente nessas duas subformas bem determinadas do mais-valor. Durante esse
processo, é absolutamente irrelevante que a totalidade da economia burguesa
esteja presa à concepção de que a propriedade de obter lucro ou juro seja
automaticamente inerente a qualquer soma de valor empregada, sob condições
normais, na produção ou na troca. Em toda a economia clássica, capital e lucro
ou capital e juro são tão inseparáveis quanto causa e efeito, pai e filho,
ontem e hoje ou, necessariamente, se inter-relacionam com eles. Porém, a
palavra “capital”, no seu significado econômico moderno, só passa a ocorrer no
momento em que entra em cena a coisa que ela designa, em que a riqueza móvel
passa a adquirir cada vez mais função de capital, ao explorar o mais-trabalho
de trabalhadores livres visando produzir mercadorias, sendo introduzida, mais
exatamente, pela primeira nação de capitalistas da história: pelos italianos
dos séculos XV e XVI. E Marx foi o primeiro a analisar até seus fundamentos o
modo de apropriação peculiar do capital moderno, a harmonizar o conceito do
capital com os fatos históricos dos quais ele havia sido, em última instância,
abstraído e aos quais deve sua existência; desse modo, Marx libertou esse
conceito econômico das concepções obscuras e claudicantes que aderiam a ele,
inclusive na economia burguesa clássica e nos socialistas anteriores; sendo
assim, foi exatamente Marx que procedeu com aquela “definitiva e mais rigorosa
cientificidade” que o sr. Dühring constantemente proclama em alto e bom som e
da qual dolorosamente sentimos falta no seu procedimento.”
“Segundo o sr. Dühring, portanto, o
mais-valor marxiano nada seria além do que, na linguagem comum, é chamado de
ganho do capital ou lucro. Ouçamos o que diz o próprio Marx. Na página 195 de O capital, o mais-valor é explicado
pelos termos postos entre parênteses logo depois dele: “Juro, lucro, renda”[125]. Na página 210, Marx dá um exemplo em que uma
quantia de mais-valor de 71 xelins aparece em suas diferentes formas de
distribuição: dízimos, impostos locais e estatais = 21 xelins, renda fundiária
= 28 xelins, lucro e juro do fazendeiro = 22 xelins, totalizando 71 xelins de
mais-valor[126]. – Na página 542, Marx considera
que um dos principais problemas de Ricardo foi que ele “não investigou o
mais-valor como tal, isto é, independentemente de suas formas particulares,
como lucro, renda fundiária etc.” e, por conseguinte, jogou na mesma panela as
leis referentes à taxa de mais-valor e as leis da taxa de lucro; diante disso,
Marx anuncia: “Mais tarde, no Livro III desta obra, demonstrarei que a mesma
taxa de mais-valor pode se expressar nas mais diversas taxas de lucro, assim
como as mais diversas taxas de mais-valor, sob determinadas circunstâncias, na
mesma taxa de lucro” [127]. Na página 587, consta o
seguinte:
O capitalista que produz o mais-valor, isto é,
que suga trabalho não pago diretamente dos trabalhadores e o fixa em
mercadorias, é, decerto, o primeiro apropriador, porém de modo algum o último
proprietário desse mais-valor. Ele tem ainda de dividi-lo com capitalistas que
desempenham outras funções na totalidade da produção social, com o proprietário
fundiário etc. O mais-valor se divide, assim, em diversas partes. Seus
fragmentos cabem a diferentes categorias de pessoas e recebem formas distintas,
independentes entre si, como o lucro, o juro, o ganho comercial, a renda
fundiária etc. Tais formas modificadas do mais-valor só poderão ser tratadas no
Livro III.[128]
E do mesmo modo em muitas outras passagens.
Não há como expressar-se com mais clareza. Em
toda oportunidade, Marx chama a atenção para o fato de que seu mais-valor de
modo algum deve ser confundido com lucro ou ganho de capital, que este último
é, muito antes, uma subforma e, com bastante frequência, até apenas uma fração
do mais-valor.”
125 Karl Marx, Das Kapital, cit., p. 195, nota 22 (MEGA-2 II/6, cit. p. 217) [ed.
bras.: O capital, Livro I, cit., p.
283, nota 22]. (N. E. A.)
126
Ibidem, p. 210 (MEGA-2 II/6, cit., p. 228-9) [ed. bras.: ibidem, p. 296 – as
quantidades citadas por Engels não aparecem da mesma forma no texto atual de O capital]. (N. E. A.)
128 Ibidem, p. 587 (MEGA-2 II/6, cit., p.
522) [ed. bras.: ibidem, cit., p. 639]. (N. E. A.)
“Tudo fica bem quando termina bem.”
“Vimos na Introdução[1] como os filósofos
franceses do século XVIII, os precursores da revolução, apelaram para a razão
como juíza única de tudo o que existia. O que se pretendia era organizar um
Estado racional, uma sociedade racional, e tudo o que contradizia a razão
eterna deveria ser eliminado sem dó nem piedade. Vimos igualmente que essa
razão eterna, na realidade, nada mais era que o entendimento idealizado do
cidadão médio que, justamente, naquela época, estava evoluindo à condição de
burguês. Por conseguinte, depois que a Revolução Francesa[2] concretizou essa
sociedade e esse Estado racionais, as novas instituições, por mais racionais
que fossem em comparação com as condições anteriores, de modo algum se
evidenciaram como absolutamente racionais. O Estado racional ruiu
completamente. O contrato social rousseauniano concretizou-se no período do
Terror[3], diante do qual a burguesia, desenganada de sua própria capacitação
para a política, buscou refúgio primeiro na corrupção do Diretório[4] e, por
fim, sob a égide do despotismo napoleônico. A paz perpétua prometida havia se
revertido numa interminável guerra de conquista. A sociedade racional não se
saiu melhor. O antagonismo entre rico e pobre, em vez de dissolver-se no
bem-estar universal, aguçou-se com a eliminação da função intermediadora dos
privilégios corporativos e afins e da função mitigadora das instituições de
caridade da Igreja; o crescimento da indústria sobre bases capitalistas elevou
a pobreza e a miséria das massas trabalhadoras ao nível de condição de vida da
sociedade. O número de crimes aumentou de ano para ano. Embora não tenham sido
aniquilados os vícios feudais que antes corriam soltos, sem pudor, em plena luz
do dia, eles foram provisoriamente relegados ao segundo plano. Em compensação,
floresceram em profusão ainda maior os vícios burgueses, que até ali haviam
sido nutridos sem alarde. O comércio foi se tornando cada vez mais fraudulento.
A divisa revolucionária da “fraternidade” concretizou-se nas chicanas e na
inveja da competição. A opressão violenta foi substituída pela corrupção, ao
passo que a espada o foi pelo dinheiro, que se tornou o principal meio de
alavancar o poder social. O direito da primeira noite passou dos senhores
feudais para os fabricantes burgueses. A prostituição se disseminou em proporções
até ali inauditas. O casamento continuou sendo, como era até então, a forma
legalmente reconhecida e o manto oficial para encobrir a prostituição, e
ademais ganhou seu complemento nos abundantes casos de adultério. Em suma,
comparadas com as esplendorosas promessas dos iluministas, as instituições
sociais e políticas erigidas pelo “triunfo da razão” se revelaram caricaturas
amargamente decepcionantes. (...)
Nessa época, porém, o modo de produção
capitalista e, com ele, o antagonismo entre burguesia e proletariado ainda
estavam pouco desenvolvidos. A grande indústria, recém-surgida na Inglaterra,
era desconhecida na França. Só a grande indústria desenvolve, por um lado, os
conflitos que elevam à condição de necessidade forçosa uma revolução do modo de
produção – conflitos não só entre as classes por ele geradas, mas também entre
as forças produtivas e as formas de troca por ele criadas; e, por outro lado,
ela desenvolve, exatamente no interior dessas gigantescas forças produtivas,
também os meios para resolver esses conflitos. Portanto, se por volta de 1800
os conflitos oriundos dessa nova ordem social estavam apenas se formando, isso
vale em grau muito maior para os meios de resolvê-los. Embora as massas
despossuídas de Paris tenham podido conquistar o domínio por um momento durante
o período do Terror, elas só conseguiram provar com isso quanto esse domínio
era impossível sob as condições de então. O proletariado que apenas começava a
se distinguir dessas massas despossuídas como tronco de uma nova classe, ainda
totalmente incapaz de alguma ação política autônoma, apresentava-se como
estamento oprimido e padecente que, em sua incapacidade de ajudar a si próprio,
poderia, quando muito, obter ajuda de fora, vinda de cima.”
1 Ver “Filosofia” I. (Nota introduzida por
Herrmann Ramm: “Mandei imprimir a nota de rodapé da rubrica 14 da separata […]
porque o escrito está sendo vendido em duas seções separadas” – carta de
Herrmann Ramm a Engels, de 8 de maio de 1878.) (N. E. A)
2 Referência ao período de 1789 a 1795 da
Revolução Francesa. (N. E. A.)
3 Período da ditadura
democrático-revolucionária dos jacobinos (junho de 1793 a julho de 1794), no
qual, em resposta ao terror contrarrevolucionário dos girondistas e
monarquistas, eles se valeram do terror revolucionário. (N. E. A.)
4 Governo de transição entre a ditadura dos
jacobinos e o consulado, o Diretório (1795-1799) serviu para assegurar os
resultados da Revolução. Defendeu os interesses da grande burguesia, sendo
contrário tanto à contrarrevolução monarquista como aos anseios democráticos do
povo. (N. E. A.)
“Em todas as sociedades que passam por um
desenvolvimento natural da produção – e a atual figura entre elas –, não são os
produtores que dominam os meios de produção, mas os meios de produção que
dominam os produtores. Nesse tipo de sociedade, cada nova alavanca da produção
necessariamente se converte num novo meio de subjugação do produtor pelo meio
de produção. Isso vale sobretudo para a alavanca da produção que, até a
introdução da grande indústria, foi de longe a mais poderosa: a divisão do
trabalho. A primeira grande divisão do trabalho, a divisão entre cidade e
campo, já condenou a população do campo a uma estupidificação milenar e os
citadinos à servidão, cada um deles com seu trabalho manual individual. Ela
aniquilou o fundamento do desenvolvimento espiritual de uns e do
desenvolvimento físico de outros. Quando o agricultor se apropria do solo e o
citadino se apropria de seu trabalho manual, o solo se apropria do agricultor
na mesma medida e o trabalho manual se apropria do trabalhador manual na mesma medida.
À medida que o trabalho é dividido, o ser humano também o é. A formação plena
de uma única atividade exige o sacrifício de todas as demais capacidades
físicas e intelectuais. Esse atrofiamento do ser humano cresce na mesma
proporção em que aumenta a divisão do trabalho, que atinge seu desenvolvimento
máximo na manufatura. A manufatura decompõe o trabalho artesanal em suas
operações parciais individuais, atribuindo cada uma delas a um único
trabalhador como profissão vitalícia e acorrentando-o, assim, por toda vida, a
uma função parcial e a uma determinada ferramenta. “Ela aleija o trabalhador,
converte-o numa aberração, promovendo artificialmente sua habilidade detalhista
por meio da repressão de um mundo de impulsos e capacidades produtivas [...], o
próprio indivíduo é dividido e transformado no motor automático de um trabalho
parcial” (Marx)[116] – um motor que, em muitos casos, só atinge a perfeição
mediante o aleijamento literal, tanto físico como intelectual, do trabalhador.
A maquinaria da grande indústria degrada o trabalhador colocando-o abaixo da
máquina, convertendo-o em um mero acessório dela. “Da especialidade vitalícia
em manusear uma ferramenta parcial surge a especialidade vitalícia em servir a
uma máquina parcial. Abusa-se da maquinaria para transformar o trabalhador,
desde a tenra infância, em peça de uma máquina parcial” (Marx)[117]. E não são
só os trabalhadores: as classes que direta ou indiretamente espoliam os
trabalhadores também são escravizadas pela ferramenta de sua atividade: o
burguês cabeça-oca, por seu próprio capital e por sua sanha de lucro; o
jurista, por suas concepções jurídicas fossilizadas que o dominam como poder
autônomo; os “estamentos cultos” em geral, pelas mais variadas estreitezas e
unilateralidades provincianas, por sua miopia física e intelectual, por seu
aleijamento decorrente de uma educação moldada para uma só especialidade e pelo
acorrentamento vitalício a essa mesma especialidade inclusive quando essa
especialidade é a mais absoluta inatividade. (...)
Ao adonar-se de todos os meios de produção
visando utilizá-los socialmente de modo planejado, a sociedade aniquila a
anterior escravização dos seres humanos pelos seus próprios meios de produção.
A totalidade da sociedade obviamente não consegue se libertar sem que cada
indivíduo se liberte. O antigo modo de produção precisa, portanto, ser
revolucionado desde a base e, principalmente, a antiga divisão do trabalho tem
de desaparecer. Ela deve ser substituída por uma organização da produção em
que, por um lado, nenhum indivíduo possa transferir para outros a parcela que
lhe corresponde no trabalho produtivo, nessa condição natural da existência
humana, e, por outro lado, o trabalho produtivo, em vez de ser um meio de
escravização, torne-se um meio de libertação dos seres humanos, proporcionando
a cada indivíduo a oportunidade de formar plenamente e utilizar em todos os
sentidos todas as suas capacidades, tanto físicas como intelectuais, de modo
que o trabalho, no lugar de ser uma carga, se torne um prazer.
Hoje isso não é mais uma fantasia, não é mais
um desejo piedoso. Tendo em vista o atual desenvolvimento das forças
produtivas, o aumento da produção resultante de fatores como a socialização das
forças produtivas, a eliminação dos entraves e das perturbações gerados pelo
modo de produção capitalista e o desperdício de produtos e meios de produção já
é suficiente para reduzir o tempo de trabalho a um parâmetro baixo pelas
concepções atuais, presumindo a participação de todos no trabalho.”
116 Karl Marx, Das Kapital, cit., p. 373-4 (MEGA-2 II/6, cit., p. 354-5) [ed.
bras.: O capital, Livro I, cit., p.
434]. (N. E. A.)
117 Ibidem, p. 443 (MEGA-2 II/6, cit., p.
409) [ed. bras.: ibidem, p. 494]. (N. E. A.)
“O único valor que a economia conhece é o das
mercadorias. O que são mercadorias? São produtos gerados numa sociedade
constituída em maior ou menor grau de produtores privados isolados, ou seja,
são primeiramente produtos privados. Esses produtos privados se convertem em
mercadorias só a partir do momento em que não são mais produzidos para consumo
próprio, mas para o consumo de outros, ou seja, para o consumo social, e eles
ingressam no consumo social pela troca. Os produtores privados encontram-se,
portanto, numa interconexão social, constituem uma sociedade. Seus produtos,
embora sejam produtos privados de cada indivíduo, são, ao mesmo tempo,
involuntariamente e como que contra sua vontade, também produtos sociais. Ora,
em que consiste o caráter social desses produtos privados? Evidentemente, em
duas propriedades: em primeiro lugar, no fato de todos eles satisfazerem alguma
necessidade humana, tendo valor de uso não só para o produtor, mas também para
outros; em segundo lugar, no fato de, embora sendo produtos dos mais diferentes
trabalhadores privados, serem produtos do trabalho humano puro e simples, do
trabalho universalmente humano. De modo geral, eles podem ingressar na troca na
medida em que têm valor de uso também para outros; na medida em que o trabalho
humano está contido, no geral, em todos eles, na medida em que contêm o simples
dispêndio de força de trabalho humana, eles podem ser comparados, igualados ou
distinguidos na troca de acordo com a quantidade desse trabalho que está
contido em cada um deles. Em dois produtos privados iguais pode estar contida, sob
condições sociais constantes, uma quantidade desigual de trabalho privado, mas
sempre só a mesma quantidade de trabalho universalmente humano. Um ferreiro
inábil consegue fazer só cinco ferraduras no mesmo intervalo de tempo em que um
ferreiro hábil faz dez. Porém, a sociedade não atribui valor à inabilidade
casual de um deles; ela reconhece como trabalho universalmente humano somente
aquele que resulta, em cada caso, da habilidade média normal. Portanto, cada
unidade das cinco ferraduras do primeiro ferreiro não recebe na troca mais
valor do que cada unidade das dez do outro fabricadas no mesmo tempo de
trabalho. O trabalho privado contém trabalho universalmente humano somente na
medida em que é socialmente necessário.
Ao dizer, portanto, que uma mercadoria possui
tal valor bem determinado, estou dizendo: 1) que ela é um produto socialmente
útil; 2) que ela foi produzida por uma pessoa privada para cômputo privado; 3)
que ela, embora sendo produto de trabalho privado, é, como que sem o saber ou
querer, também produto de trabalho social, mais precisamente de uma quantidade
determinada dele, estipulada pela via social, ou seja, pela troca; 4) que não
expresso essa quantidade em trabalho, em tantas horas de trabalho, mas numa outra mercadoria. Ou seja, quando
digo que este relógio vale tanto quanto este retalho de tecido e que cada um
deles vale cinquenta marcos, estou dizendo o seguinte: no relógio, no tecido e
no dinheiro está contida a mesma quantidade de trabalho social. Constato,
assim, que o tempo de trabalho social representado por eles foi medido
socialmente e considerado igual. E isso não se deu de modo direto, absoluto,
como se costuma medir o tempo de trabalho (em horas ou dias de trabalho etc.),
mas por um desvio, mediante a troca, de modo relativo. Consequentemente, não
posso expressar essa quantidade estipulada de tempo de trabalho em horas de
trabalho, cujo número continuo desconhecendo, mas igualmente só mediante um
desvio, de modo relativo, em outra mercadoria que representa a mesma quantidade
de tempo de trabalho social. O relógio vale tanto quanto o retalho de tecido.
Porém, na mesma medida em que a produção de
mercadorias e a troca de mercadorias forçam a sociedade nelas baseada a tomar
esse desvio, elas também a forçam a encurtá-lo tanto quanto possível. Dentre a
turba ordinária das mercadorias, elas elegem uma mercadoria principesca, na
qual o valor de todas as demais pode ser expresso de uma vez por todas.
Trata-se de uma mercadoria que é tida como a encarnação imediata do trabalho
social e, em consequência, torna-se permutável de modo imediato e incondicional
por todas as mercadorias: o dinheiro. O dinheiro já está contido
embrionariamente no conceito de valor, sendo apenas o valor desdobrado. Porém,
na medida em que o valor das mercadorias se autonomiza no dinheiro em relação
às próprias mercadorias, um novo fator é introduzido na sociedade que produz e
troca as mercadorias, um fator com novas funções e efeitos sociais.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário