Editora: UFRJ
ISBN: 978-85-7108-351-6
Tradução: José Paulo Netto
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 240
Sinopse: Ver Parte I
“Com o exposto, esperamos ter esclarecido suficientemente a importância
fundamental que o pensamento da totalidade possui para o método dialético. Se,
como indicamos, as categorias, sob a forma em que se oferecem ao pensamento
ordinário, não são o que parecem ser — ou seja, não são coisas, mas expressões
de relações sociais que tomam a aparência de relações entre coisas —, a
dissolução desta ilusão só se pode obter mediante o estudo da conexão dialética
total dos momentos. Já a noção geral, avançada por Marx na Miséria da filosofia, segundo a qual as
categorias são somente expressões das relações de produção, supõe uma
compreensão profunda do movimento dialético da totalidade social. Alcançar o
pensamento da totalidade em sua expressão mais adequada implica desenvolver
teoricamente todas as formas imanentes do movimento da realidade (e que se
unificam dialeticamente umas com as outras); e desenvolver tanto este movimento
mesmo como o processo, a contradição, a conversão da quantidade em qualidade
(salto), a unidade, o desenvolvimento do conteúdo a partir da forma (da
essência a partir da aparência) e, ao mesmo tempo, refazer todas essas
operações em sentido inverso.
Por isto, entre as várias definições, coincidentes entre si, que Lenin
oferece da dialética, aquela que inclui todas as outras e, portanto, é a mais
abrangente, é a que parte da relação dialética entre momento e todo, entre
relativo e absoluto, consistindo em que, “na dialética [objetiva], a diferença
entre o relativo e o absoluto é relativa”.25 Lenin nos propõe
algumas definições, como, por exemplo: a dialética é “a pesquisa das
contradições no interior da essência da coisa mesma”; “a dialética é a doutrina
que ensina como os contrários podem ser idênticos”; a dialética é “a doutrina
da unidade dos contrários”; “eis aqui [...] a essência da dialética: a
distinção do unitário e o conhecimento dos seus elementos contrários”.
Insistimos em que tais definições só são possíveis se supõem um profundo
conhecimento do caráter da realidade como a conexão das manifestações, isto é,
essencialmente como totalidade. O entusiasmo de Lenin por aquelas expressões de
Hegel em que o universal é concebido “não apenas” como “universal abstrato, mas
como o universal que compreende em si a riqueza do particular” (ou seja, como a
dependência dialética e recíproca de qualidade e totalidade), este entusiasmo
se explica por sua correta apreciação da importância fundamental que esta
concepção tem para a dialética. À margem desta passagem, Lenin anotou “p. ex.,
‘capital’” e exclamou: “fórmula magnífica: ‘Não apenas como universal abstrato,
mas como o universal que compreende em si a riqueza do particular, do singular’
(toda a riqueza do particular e do singular?)!!! Très bien!26 Percebe-se facilmente que, nesta passagem,
Lenin de fato identifica o universal com a totalidade. É o que podemos ver no
texto em que identifica as principais características da dialética: “As
relações de cada coisa (fenômeno etc.) não são somente múltiplas; são, em
geral, universais. Cada coisa (fenômeno, processo etc.) está ligada a todas as outras”.27 É
significativo que Lenin destaque “todas” com itálico. Estas ideias são
completamente diferentes daquela redução da dialética, ainda hoje muito
difundida, a “insípidas tricotomias” (Marx) e à “manipulação de artifícios
triviais” (Engels), na qual — da concepção de história de Hegel, que, do ponto
de vista do método, marcou época — não resta mais do que um esquematismo vazio,
caracterizado por Lenin como “inerte, pobre, ressequido”.”
25 V. I. Lenin, Aus dem philosophischen Nachlass, p. 286
26 Ibid., p. 17.
27 Ibid., p. 145.
“Já Vico observara que o entendimento tem a peculiaridade de fragmentar
a realidade unitária. A crítica — que deve ser considerada genial para a sua
época — ao princípio da fragmentação da realidade no racionalismo cartesiano
levou Vico a descobrir o significado metodológico da totalidade, o que o
converteu num dos mais importantes precursores da dialética. A profundidade do
seu pensamento revela-se sobretudo na medida em que ele formulou teoricamente a
natureza fragmentadora da função do entendimento (manifestada, do modo mais
claro, na ciência natural matemática), empenhando-se, ainda que com recursos
insuficientes, por encontrar uma via de acesso ao pensamento da totalidade. Seu
erro consistiu, principalmente, em considerar que aquela via era possível
somente para o mundo histórico e não também para a ciência natural. Depois de
Vico, apenas Hegel recolheu suas indicações e as elaborou; a teoria hegeliana
do entendimento é, por assim dizer, o reverso negativo da sua teoria da
totalidade, constituindo, junto com esta, a verdadeira base de todo o seu
sistema dialético.
Em face desta questão, o que tem a dizer a teoria da dialética? Cumpre
afirmar, em primeiro lugar, que todo o problema da dialética inexistiria como
problema não fosse a contradição entre a unidade essencial do processo real e a
unilateralidade da faculdade humana do entendimento, orientada para o fenômeno
parcial. Contudo, as coisas são muito mais complexas. De fato, nem a realidade
é mera unidade e totalidade indiferenciada quanto ao conteúdo, nem o pensamento
reage à realidade unicamente fragmentando-a. Ao contrário, a realidade tem como
momentos a parte, a qualidade, a manifestação singular; e o pensamento pode
reagir diante da conexão entre os fenômenos de modo particular,
representando-a: com efeito, ela se reflete como unidade já na ação espontânea,
pré-teórica e inconsciente do pensamento comum. Assim como a realidade objetiva
está atravessada pela contradição entre particularidade e unidade, também o
entendimento que a reflete é dialeticamente contraditório, uma vez que —
segundo sua própria natureza — comporta-se diante de tal realidade de modo
simultaneamente unificador e fragmentador.
De onde provém esta estrutura dialeticamente contraditória da nossa
consciência? Ela se explica pela sua função natural e prática, isto é, pelo
fato de que a inteligência humana, em sua origem e desenvolvimento
histórico-biológico e em sua necessidade de enfrentar a realidade, adequou-se à
natureza contraditória desta última e elaborou uma forma de reação conceitual
congruente com ela. O caráter contraditório da consciência se explica, pois, do
modo mais natural. Em primeiro lugar, ela deve propiciar ao indivíduo, na sua
atividade — especialmente na sua atividade prática, no trabalho dirigido à
satisfação das necessidades da vida —, a separação (ou, se se quiser, a
abstração) entre a singularidade (que, num instante dado, por alguma razão,
prende o seu interesse) e a multiplicidade e o confuso entrelaçamento das suas
conexões e nexos reais. Por outro lado, toda atividade humana está sempre
vinculada aos fenômenos que se encontram fora do seu interesse imediato; mesmo
para a consciência orientada unilateralmente para um objeto determinado da atividade,
este permanece sempre, ao mesmo tempo, em estreito contato com a grande massa
dos fenômenos, pelo menos daqueles que se movem em sua imediata proximidade. E
não poderia ser diferente, uma vez que só assim o trabalho pode alcançar a
mobilidade que lhe é própria e que se expressa sobretudo na tendência, inerente
a toda atividade, a comportar-se de modo “criador” e a descobrir
espontaneamente novas alternativas, para além das tarefas bem delimitadas que
lhe foram conscientemente fixadas. Mesmo se imaginarmos um ato de trabalho
fundado num propósito estritamente delimitado e detalhadamente projetado, seria
impossível executá-lo sem manter contato com a conexão geral dos fenômenos — o
que, ademais, ocorre espontaneamente (ou seja, sem que o indivíduo tenha
consciência disto). Por conseguinte, mesmo nos casos em que examinamos a
maneira reativa da consciência em sua forma mais simples e originária,
verificamos a contraditoriedade interna da sua apropriação do mundo
circundante, que responde cabalmente à estrutura contraditória da própria
realidade, consistente em ser tanto plenitude qualitativa (oposição) quanto
unidade. Na linguagem da dialética, podemos dizer que o entendimento opera,
simultaneamente, de modo imediato e mediador.”
“Na Dialética da natureza,2
contra o empirismo obtuso que aceita acriticamente a realidade em seu modo de
manifestação metafísico (e do qual o racionalismo, no fundo, é apenas uma
variedade), Engels sublinhava a peculiar capacidade do pensamento para
antecipar, de modo criador e certamente sob a forma de hipóteses, resultados
que depois se comprovariam com exatidão. Esta capacidade só se explica a partir
da mencionada propriedade da consciência de vivenciar a realidade como um todo,
como conexão dinâmica, em que todos os fenômenos se condicionam e se sustentam
mutuamente e se formam uns nos outros — vivência que é anterior à “experiência”
consciente, fragmentadora (e, como tal, metafísica), que se apodera da
realidade de modo imediato. Compreendendo muito bem a unilateralidade e a
insuficiência do conhecimento que procede unicamente por via indutiva e
“empírica”, Engels exige que a generalização indutiva seja completada pela
dedutiva — o que só é possível porque o pensamento possui a capacidade de se
inspirar na conexão da realidade, sempre presente nele de maneira inconsciente,
e de formular generalizações hipotéticas com auxílio do raciocínio e da
dedução, ou seja, de tomar plena consciência do que é dado inconscientemente,
relacionando-o com o já conhecido. Engels não quer dizer outra coisa quando
escreve, no Anti-Dühring, que “aqui fracassam os
métodos do empirismo e somente pode servir de ajuda o pensamento teórico3.”
2 [Há tradução ao português: F. Engels, Dialética da natureza, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 2000]
3 F. Engels, Anti-Dühring, 1948, p. 410.
“Não podemos representar o
movimento, não podemos expressá-lo, mensurá-lo, copiá-lo em nossa mente sem
romper o contínuo, sem desmontá-lo, simplificá-lo, fragmentá-lo [!], sem matar
o que é vivo. A cópia do movimento pelo pensamento é sempre uma simplificação, uma
destruição do que é vivo; e isto não vale somente para o pensamento, mas também
para a sensação e não apenas em relação ao movimento, mas para qualquer
concepção. Precisamente nisto reside a essência da dialética, expressa na
fórmula: unidade, identidade dos contrários.8
Todos os clássicos do marxismo têm um mesmo juízo sobre o modo
fragmentador e metafísico como opera o entendimento. Assim como Hegel já
identificara o modo de reação unilateral, e portanto metafísico, do
entendimento com o “senso comum” não científico,9 Engels se refere
em termos semelhantes ao “sadio entendimento do homem”, que permanece
prisioneiro dos “opostos não mediados.”10 Engels então observa que
este modo de pensar metafísico ainda predomina entre os pesquisadores. Também
no seu artigo sobre “Para a crítica da economia
política, de Marx”, Engels critica a metafísica do “entendimento burguês e
ordinário”;11 e Marx, no livro III de O capital, refere-se com ironia ao “racional abstrato da
representação burguesa”.12 E uma passagem interessante encontra-se
em A sagrada família, na qual Marx contrapõe o
materialismo ingênuo de Bacon ao materialismo posterior; diz Marx que, em Bacon, “a matéria sorri ao homem num brilho poético-sensual” e contém em si
“os germes de um desenvolvimento multilateral”, enquanto o materialismo
posterior se torna “unilateral” e se “apresenta como um intelectualismo”: “A
sensualidade perde seu colorido e se converte na sensualidade abstrata do
geômetra”.13
A descoberta do caráter da função “conforme o entendimento” — ou seja,
metafísica — da nossa consciência pôs sob uma luz completamente nova sobretudo
o conceito de fato, conceito que
engendra as suas fantasmagorias metafísicas sob a capa de um intelectualismo
armado com a exatidão e a nitidez cristalina. A força desta categoria de fato, divinizada pela ciência histórica,
reside em que lhe é inerente a ilusão de dar as costas a toda metafísica; e,
mais que isso, de representar um deus ex
machina na superação de qualquer modo de pensar metafísico. Mas se, no
pensamento burguês (e por razões históricas que não exporemos aqui), a
investigação teórica se concentrou cada vez mais, até chegar a um grotesco
fanatismo, no “faticamente dado”, isto é, no que pode ser apreendido como
isolado e descritível com “exatidão” (o que ocorreu primeiro na ciência natural
desde os séculos XVI e XVII, depois na filosofia desde os séculos XVII e XVIII
e, a partir do século XIX, em máximo grau, na ciência histórica), logo veio à
cena a correspondente reação. Surgiu a dúvida de se esses fatos singulares,
apresentados com exatidão, deveriam ser inseridos numa conexão provida de
sentido e a suspeita de que a ciência dos fatos, tão senhora de si no seu
pedantismo, poucas vezes conhece os fatos em seu conteúdo interno e, por isso,
frequentemente colide com a verdade objetiva. Essa crescente incerteza se
expressou no século XIX e se expressa atualmente em fenômenos indicadores de
uma crise, tal como se revela nos debates sobre o método da historiografia e
sobre a chamada “compreensão”. Neste sentido, destacam-se a polêmica dos economistas
acerca do que deve constituir o objeto principal da ciência econômica (a
investigação do singular ou a das leis) e a dos historiadores sobre a base
metodológica do seu estudo (a pesquisa do singular ou do todo).”
8 V. I. Lenin, Aus dem philosophischen Nachlass, 1949,
p. 195.
9 G. W. F. Hegel, Wissenschaft der Logik, v. l, 1948, p,
26.
10 F. Engels, Anti-Dühring, p. 24.
11 F. Engels, “Karl Marx, Zur
Kritik der politischen Oekonomie” [“Karl Marx, Para a crítica da economia
política”), reimpresso em K. Marx, Eine
Sammlung von Erinnerungen und Aufsätzen [Uma coletânea de evocações e
ensaios], 1947, p. 151. [Há tradução ao português deste texto em K. Marx e F.
Engels, Obras escolhidas em três volumes,
Rio de Janeiro, v. 1, 1961.]
12 K. Marx, Das Kapital, v. 3,
1949, p. 871.
13 Marx e F. Engels, Die heilige Familie, in Frühschriften, Kroner, 1932, v. 1, p. 389.
“A paulatina emancipação desta dependência direta da natureza e,
sobretudo, o interesse prático da burguesia, que desde o século XVI participou
do processo produtivo e manteve uma posição revolucionária antifeudal, deram
origem a um desenvolvimento sem precedentes do conhecimento objetivo, mesmo que
não se possa falar de uma superioridade radical da capacidade de conhecimento
burguesa em relação à pré-burguesa. É característico que a ciência burguesa
tenha alcançado seus maiores triunfos no campo da ciência natural e que a
filosofia burguesa tenha se inspirado principalmente nos conhecimentos
matemáticos e nos da ciência natural. Sabemos que o pensamento espontâneo da
totalidade — que, como tendência, mostrou-se vigoroso na época pré-burguesa e
nos primeiros tempos da burguesia — perdeu-se progressivamente com a
individualização e a atomização crescentes do processo social; e que, por todo
lado, impôs-se a especialização da ciência e seu fenômeno concomitante, ou
seja, a divinização do fato singular e isolado. Aquilo que a consciência
moderna costuma reconhecer como o triunfo gigantesco da ciência a partir dos
séculos XVI e XVII foi conquistado, na verdade, ao preço da renúncia ao
conhecimento da realidade como um todo unitário. A riqueza e a variedade das visões
parciais ocultaram a indigência do conhecimento da essência do todo. (...)
Aquilo que na época pré-capitalista, quando a consciência ainda não se
havia deformado em sentido unilateral e individualista, significava apenas a
forma dialética e contraditória mediante a qual o entendimento se apropria da
realidade, converte-se — sob as condições do desenvolvimento objetivo do
capitalismo — num limite insuperável: das duas capacidades espontâneas da
consciência, que já descrevemos (apropriar-se conceitualmente da realidade em
suas partes ou em sua totalidade), uma delas — claro que a capacidade
fragmentadora, desbordando os âmbitos de sua função natural e psicológica —
converteu-se na base de formações de natureza ideológica, isto é, metafísicas,
no sentido de que representavam uma apreensão inadequada
(racionalista-fragmentadora) da realidade.”
19 A. von Martin., Soziologie der
Renaissance [Sociologia do
Renascimento]. 1949, p. 21, 25, 26, 30, 33, 39, 47 e 48.
20 Ibid., p. 22.
21 Ibid., p. 25 e 30.
22 Ibid., p. 25.
23 Marx, Das Kapital, v, 1,
1947, p. 88.
24 Marx, Zur Kritik der politischen Oekonomie, 1909, p. xiv. [Há tradução ao português
desta obra: Para a crítica da economia
política, São Paulo: Abril Cultural, col. “Os economistas”, 1982.]
25 Lenin, Aus dem philosophischen
Nachlass, p. 248.
“Nos grandes utopistas, opera a mesma contradição e sob idêntica forma:
a contradição rígida entre a realidade e o ideal, que exigências práticas levam
a uma superação aparente, mediante a ingênua esperança de que a realidade
submeter-se-á ao ideal. Tem razão Ernst Bloch quando afirma: “Nos utopistas
abstratos, a luz dos sonhos ilumina um espaço vazio: o dado teria de adequar-se
à ideia”.6
6: E. Bloch, Freiheit und Ordnung
[Liberdade e ordem], 1947, p. 150.
“Devemos, então, nos remontar aos elementos últimos do ser do homem na
sua série genética. Assim como ao animal, também ao homem a natureza oferece os
recursos que lhe permitem manter a sua vida. Mas, enquanto o animal se apropria
desses meios de vida passivamente, por instinto (ou seja, obedecendo a
estímulos nervosos), o homem, para alcançar seus fins, necessita de uma reação
na qual a consciência intervenha — precisa da mediação do seu pensamento. Esta
mediação consiste em tomar previamente consciência do ato que deve praticar e,
como consequência necessária, em dirigir o pensamento para um fim. Em O capital, Marx escreve: “Mas o que
distingue o pior arquiteto da melhor abelha é que ele figura na mente sua
construção antes de transformá-la em realidade. No fim do processo de trabalho,
aparece um resultado que já existia antes, idealmente, na imaginação do
trabalhador. Ele não opera uma mera mudança de forma na matéria natural:
realiza na matéria natural, ao mesmo tempo, o seu fim”.7 Ora, a
realização ativa do fim prático antecipado é o trabalho.
O animal desconhece fins e, portanto, desconhece o trabalho. Mas, já que
os fins não se estabelecem de maneira arbitrária — uma vez que dependem dos
objetos naturais e são, por isto, determinados causalmente —, o mesmo ocorre
com o trabalho. Em primeiro lugar, o trabalho deve dirigir-se a seus objetos e,
em segundo, aos meios com os quais faz das coisas naturais, transformando-as,
objetos seus — os instrumentos. Já neste ponto da relação entre natureza e
homem torna-se manifesta a unidade da contradição entre causalidade e ação
segundo fins. Mas é tão certo que, com isto, se obteve um conhecimento
dialético decisivo quanto seria falso deter-se aqui. Tomar as condições
objetivas como o fator determinante último equivale a recair no materialismo
mecanicista, por mais que este ponto de vista seja sustentado atualmente com
muita frequência. As condições objetivas representam um fator mais ou menos
constante a partir do qual não se pode deduzir a dinâmica social. Aludimos, com
isto, às condições naturais externas. Os instrumentos são principalmente
produtos da atividade humana e elementos de um mundo de condições criado pelo
próprio homem.
Uma das descobertas mais importantes da teoria marxista da sociedade é
que a legalidade econômica nunca transcende os marcos das condições sociais.
Por este motivo, Marx trata como condições sociais as relações que, conforme
sua aparência, estariam determinadas por coisas — neste sentido, mostra-as como
fenômenos categoriais da reificação (dinheiro, máquina, capital, mercadoria,
valor). No entanto, ao mesmo tempo, a ligação com as coisas persiste, na medida
em que todas as relações econômicas apresentam esta forma especifica única, a
partir da qual são concebíveis: a atividade econômica do homem se orienta
necessariamente para objetos da natureza. Mas a sociologia vulgar esquece que o
trabalho — que, servindo-se de instrumentos, se apropria de objetos que
encontra na natureza — só domina as propriedades peculiares dos objetos na
medida em que isto é permitido pelo nível de desenvolvimento alcançado pela
sociedade, que, como é notório, não está determinado pelos objetos da natureza
e, sim, pelas relações que os homens estabelecem “na produção social da sua
vida”, relações que, por seu turno, correspondem a “um nível determinado das
forças produtivas materiais”.8 E, já que a série dos “níveis” das
forças produtivas, seu desenvolvimento, só se pode apreender como o
desenvolvimento dos modos de emprego das forças da natureza na produção (sob
relações de produção dadas, com as quais entram logo em contradição as forças
produtivas superiores desenvolvidas com base em tais relações), então também aqui
não transcendemos em nada os marcos da atividade social. Por desenvolvimento
das forças produtivas, há que se entender apenas, em termos gerais, o
desenvolvimento dos instrumentos de produção por parte do próprio homem — e
tais instrumentos, em sentido lato, incluem os fatores organicamente integrados
a ele, como o homem e a experiência do trabalho. Marx, que em lugar de
instrumentos de produção usa “meios de trabalho”, sublinha com isto o aspecto
ativo na relação entre homem e natureza: o trabalhador “utiliza as propriedades
mecânicas, físicas e químicas das coisas para que elas operem, de acordo com a
meta do trabalhador, como meio para dominar outras coisas”9.
Neste processo, a natureza, com toda a sua riqueza, é a premissa
universal e o objeto da atividade humana; esta atividade, ao contrário, não é o
objeto da natureza: a natureza é apenas objeto universal do trabalho humano”,
diz Marx, sublinhando assim esta caracterização.10 A passagem
seguinte mostra de forma cristalina a consequência com que Marx atribui às
coisas naturais o caráter de objetos da atividade: “O que diferencia as épocas
econômicas não é o que se produz, mas o modo e os meios de trabalho com que se
produz”.11 Portanto, caso se queira encontrar o fator último que
está na raiz das “relações econômicas”, devemos localizá-lo no trabalho, na
atividade dirigida à apropriação das coisas da natureza. “Consequentemente, no
processo de trabalho, a atividade do homem opera, com o meio de trabalho, uma
transformação dos objetos do trabalho previamente projetada”12 — é
isto e não o inverso! De seu lado, a terra oferece o objeto passivo, ou seja, a
premissa material, “o meio de trabalho universal”, “pois proporciona ao
trabalhador o locus standi e ao seu
processo [de trabalho] o espaço de ação (field of employment)”.13
Pensado porém, nestes termos gerais, o conceito de trabalho é ainda uma
abstração vazia. Efetivamente, todo trabalho é social. Se o “trabalho é, antes
de mais nada, um processo entre homem e natureza, um processo no qual o homem
impulsiona, regula e controla seu intercâmbio material com a natureza mediante
a sua própria ação”; e se o homem desperta pelo trabalho as “potencialidades
adormecidas na natureza e submete ao seu domínio o jogo das forças naturais”14
— esta “ação” só é possível como ação social, já que o homem é um ser
socializado, isto é, um ser “que somente pode individualizar-se na sociedade”.15
Mas qual é o princípio que produz a socialização pela qual o homem entra numa
relação necessária e indissolúvel com seus próximos? O trabalho. Uma vez que o
animal não trabalha, afirma corretamente A ideologia alemã, “para o animal, a relação
com outros não existe como relação”16.
Trabalho e sociedade mantêm, portanto, uma relação recíproca, dialética
e funcional. Esta conclusão lança uma nova luz sobre o problema da relação
entre atividade dirigida a fins e conexão causal. Se, com algum direito,
pudemos afirmar que o trabalho revela certa dependência causal em face dos
objetos naturais, esta determinação seria altamente unilateral — e, por isto
mesmo, falsa — se fosse considerada suficiente em si mesma. Com efeito, a forma
da conexão causal do processo de trabalho com as propriedades dos objetos da
natureza não está determinada apenas pela forma destes últimos; não é rígida,
mas extremamente variável: um mesmo objeto natural, provido de qualidades bem
definidas e constantes, pode converter-se em objeto de trabalho das mais diferentes
maneiras conforme o nível de desenvolvimento do modo de emprego social das
forças produtivas. Não se pode desconhecer o condicionamento causal do trabalho
pelo seu objeto, mas a forma concreta desta causalidade não está determinada
pelo objeto, como se este possuísse uma autonomia metafísica — está determinada
pelo movimento interior, legal-causal, da sociedade, que constitui a base
efetiva de todo o processo da ação recíproca entre natureza e homem.”
7 K. Marx, Das Kapital, ed.
cit., v. 1, p. 186.
8 Marx, Zur Kritik der politischen Oekonomie, 1909, p. lv e ss.
9 Marx, Das Kapital. ed. cit.,
v. 1, p. 187.
10 Ibid., p. 186
11 Ibid., p. 188
12 Ibid., p. 189.
13 Ibid., p. 188.
14 Ibid., p. 185.
15 K. Marx, Zur Kritik der
politischen Oekonomie, p. xiv.
16 K. Marx e F. Engels, Die deutsche Ideologie, in Frühschriften, Kröner, 1932, v. 2, p.
21.
“Como a experiência o demonstra, cada grupo de partidários de um ou
outro juízo empenha-se em trazer para suas teses todas as “provas” possíveis —
coisa fácil de se fazer com um pouco de esperteza, já que nada é mais dúctil do
que a história.”
“Uma prova suficiente de que os fenômenos espirituais dependem,
necessariamente, das condições sociais não é alcançável por uma via
unilateralmente descritiva. O único meio para obtê-la é investigar a gênese do
homem; mais precisamente, é investigar os fatores que “produzem” o homem, antes
de mais nada aqueles que essencialmente o distinguem dos animais, como o
trabalho e a consciência. A partir daí, a investigação pode proceder à
exposição concreta do ser histórico da consciência, de seus conteúdos e de suas
formas. Uma investigação como esta — que, como demonstramos antes, é a única
correta porque avança a partir da gênese — conduz necessariamente a compreender
como “práxis revolucionária” a atividade humana e a sua coincidência com a
transformação das circunstâncias segundo leis.29 Mas isto equivale,
clara e diretamente, a conceber o aspecto ideal do processo, o fator
espiritual, em seu caráter determinado e em sua dependência das condições
sociais nesta autoprodução prática da sociedade; ou, formulando de modo mais
concreto: dado que o trabalho orientado à apropriação e transformação (a
serviço da vida) dos objetos naturais inicia o processo de humanização (como o
demonstra a análise da gênese da espécie humana), o pensamento só pode ser
compreendido como um elemento dependente do trabalho e da práxis — só pode ser
compreendido como meio de ambos. E o fato de que as relações sociais se tornem
mais complexas como consequência do desenvolvimento da sociedade em nada pode
modificar este princípio. Precisamente a elaboração da relação concreta entre
ser e consciência que se manifesta no conceito de práxis funda este outro
conceito, o da totalidade social, que tanta importância tem no materialismo
histórico e que, sem dúvida, é verdadeiro, não vazio, uma vez que se adequa
efetivamente à realidade. Mas justamente porque o materialismo histórico revela
o modo em que é possível na prática a unidade do diverso — em nosso caso, de
ser e de consciência —, provando assim que a sociedade constitui um todo de
relações mediadas dialeticamente em seus momentos contraditórios, a insistência
unilateral no “fator econômico” é tão falsa quanto sua subestimação em favor da
totalidade. (...)
Marx e Engels, contudo, distinguem-se essencialmente de seus
predecessores no que diz respeito à descoberta do fator econômico. Se sua
conquista tivesse se constituído apenas em descobrir “também” um fator
econômico, há muito que eles estariam esquecidos. E o mérito da sua descoberta
tampouco consistiu em terem alcançado uma visão mais exata das bases do
processo social, que é certamente uma premissa necessária; consistiu,
sobretudo, em que demonstraram pela primeira vez o modo de conceber como
unidade a multiplicidade dos momentos contraditórios e de apreender os aspectos
e manifestações do ser social aparente e completamente desconectados entre si
como fatores que necessariamente se articulam no interior de um todo único.
Plekhanov compreendeu com profundidade a essência do materialismo histórico; em
Sobre a concepção materialista da
história, depois de submeter a uma crítica detalhada a teoria do fator
econômico sustentada pela sociologia vulgar, anotou:
O fator histórico-social é
uma abstração. Graças ao processo de abstração, os diferentes aspectos do todo
social tomam a forma de categorias separadas, e os diversos modos de expressão
e as exteriorizações da atividade social — moral, direito, formas econômicas
etc. — tornam-se em nosso cérebro forças particulares que, por assim dizer,
suscitam e condicionam tal atividade e aparecem como suas causas últimas. Uma
vez surgida a teoria dos fatores, necessariamente se instauram discussões para
saber qual deles deve ser considerado o dominante.
E Plekhanov conclui:
Por mais justa e útil que, em
sua época, tenha sido a teoria dos fatores, atualmente ela não resiste à
crítica. Ela desmembra [leia-se: “fragmenta”, “despedaça”] a atividade do homem
social e transforma seus diversos aspectos e exteriorizações em forças
particulares que pretensamente determinariam o desenvolvimento histórico da
sociedade. Esta teoria desempenhou, na pré-história da ciência da sociedade, o
mesmo papel que a teoria das forças físicas singulares cumpriu nas ciências da
natureza. Os progressos destas conduziram à teoria da unidade das forças
físicas: a moderna teoria da energia. De igual modo, os progressos da ciência
da sociedade teriam que conduzir, como resultado da análise social, à
substituição da teoria dos fatores por uma concepção sintética da vida social.
Esta, ademais, não é exclusiva do materialismo histórico; encontramo-la em
Hegel, que lhe atribuiu a tarefa de explicar cientificamente o processo
histórico-social em seu conjunto, inclusive aqueles aspectos e exteriorizações
da atividade do homem social que se apresentam ao pensamento abstrato como
fatores singulares.33
Para compreender corretamente esta passagem, é preciso colocar entre
aspas a palavra “fatores”. De fato, Plekhanov não nega que a vida social
apresente diferentes aspectos; apenas rechaça a ideia de que se possa atribuir
a eles uma autonomia especial, já que, com isto, seria suprimida a unidade do
processo. A crítica de Plekhanov conserva toda sua validade, uma vez que os
sociólogos vulgares voltaram a “esquecer” completamente o nível de compreensão
já alcançado pelo marxismo, que difere essencialmente das concepções
“similares” que o precederam.
Podemos sintetizar assim a relação entre o fator econômico e o todo
social: a “economia” — que, como o demonstra a investigação da gênese do homem,
é a práxis posta a serviço da produção e da reprodução da vida social —
representa aquela força determinante pela qual se constitui o processo
histórico como uma totalidade que configura todos os momentos em unidade
dialética. Daqui deriva uma conclusão, decisiva para o nosso tema: no interior
de uma teoria do todo unitário ou da totalidade do processo, não tem cabimento
uma compreensão unilateral “apenas da forma do objeto”, isto é, mecanicista,
que exclui ou desvaloriza o papel da atividade que se realiza por intermédio da
consciência, compreensão do tipo daquela que Marx censurou ao velho materialismo
na primeira das suas Teses sobre
Feuerbach; mas tampouco se admite uma compreensão baseada somente na forma
da atividade subjetiva, como se sustenta no idealismo. Sensibilidade e
atividade, legalidade causal e projeção consciente de fins constituem uma
unidade dialética e contraditória: a “atividade sensível, a práxis”. A
concepção do processo como realizado sem a intervenção da consciência isto é,
como se o homem não participasse dele, introduzindo-lhe o seu pensamento e a
sua consciência de si —, considerando-o a
posteriori e contemplativamente, é qualificada por Marx e Engels como
própria do ponto de vista da “contemplação” e a designam como “contemplativa”
(sobre isto, veja-se a diferença, já exposta, entre “intuitivo” e
“contemplativo”). Tanto nas Teses sobre Feuerbach quanto em A ideologia
alemã, Marx e Engels censuram ao materialismo, especialmente o de Feuerbach,
que sua “concepção do mundo sensível se limite [...] à sua mera contemplação
passiva”.34 O conceito marxista de “atividade sensível” ou de
“práxis” rechaça tanto a interpretação mecanicista do materialismo histórico,
que omite o verdadeiro papel da consciência no processo social, quanto a
interpretação idealista e subjetivista, que exclui a relação com o econômico em
todo aquele processo. (...)
Marx mostra que a relação dialética entre contingência e lei coincide
precisamente com a que existe entre o capricho dos indivíduos e o processo
objetivo, que transcende a consciência subjetiva e se impõe, portanto, de
maneira inconsciente. Estamos aqui, ao mesmo tempo, diante do princípio da
unidade dialética da contradição entre sujeito e objeto. A base última da
realização deste princípio é o trabalho. Trabalho é aquele comportamento ativo
dirigido ao mundo das coisas, a partir do qual se desenvolve uma relação
determinada com o próximo. Por esta via, o trabalho se torna “ponto nodal dos
esforços individuais” e dos “interesses sociais”; e, nele, “o subjetivo se
converte em objetivo”.35 Esta passagem do subjetivo ao objetivo,
porém, se realiza de maneira inteiramente inconsciente. A integração dialética
entre esta passagem da atividade subjetiva a um processo objetivo e a passagem
deste processo objetivo, que se torna condição, a atividade subjetiva constitui
a forma mais geral da legalidade social, que se impõe acima da consciência dos
indivíduos e que permanece inteiramente inconsciente para eles. A contradição
entre o que se realiza através da consciência e o que opera acima dela, entre
subjetividade e objetividade, atividade dirigida a um fim e dependência a leis
— esta contradição se suprime dialeticamente no interior do movimento universal
da totalidade social.”
32 G. Plekhanov, Über die
materialistische Geschichtsaufflassung, 1946, p. 10. [Há tradução ao português: A concepção materialista da história,
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1980]
33 Ibid., p. 12.
34 Marx e F. Engels, Die deutsche Ideologie, in Frühschriften, ed.
cite. v. 2, p. 15.
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