Editora: Cortez
ISBN: 978-85-249-1513-0
Tradução: Juarez Guimarães e Suzanne Felicie Léwy
Páginas: 272
Opinião: ★★★☆☆
Sinopse: Ver Parte I
“Realmente,
existe uma diferença qualitativa
quanto ao papel, a importância e a significação das visões de mundo nas
ciências humanas e nas ciências naturais. O positivismo insiste em negar esta
diferença, identificando as leis sociais e as leis da natureza, e dissolvendo
as ciências sociais e naturais no meio homogêneo de um só método científico e
de um só e único modelo de objetividade. O historicismo procurou fundamentar a
especificidade metodológica das Geisteswissenschaften
sobre seu caráter necessariamente compreensivo (Verstehend), em contraste com a démarchè
puramente explicativa das Naturwissenschaften; sem negar o
interesse desta discussão, parece-nos que esta especificidade obedece a duas
causas mais profundas:
1) O
caráter histórico dos fenômenos sociais e culturais, produzidos, reproduzidos e
transformados pela ação dos homens (contrariamente, é claro, às leis da
natureza). Esta ideia fundamental do historicismo já havia sido esboçada por
Vico, em uma fórmula que Marx citaria em O
capital: a principal diferença entre a natureza e a história é que fizemos
a segunda e não a primeira.
2) A
identidade parcial (a nuance é de Lucien Goldmann) entre o sujeito e o objeto
do conhecimento, enquanto “seres sociais”. O observador é, de uma maneira ou de
outra, parte da, ou implicado pela realidade social que ele estuda, e não tem,
portanto, esta distância, esta
separação que caracteriza a relação de objetividade do cientista natural com o
mundo “exterior”.
3) Os
problemas sociais são o palco de objetivos antagônicos das diferentes classes e
grupos sociais. Cada classe considera e interpreta o passado e o presente, as
relações de produção e as instituições políticas, os conflitos socioeconômicos
e as crises culturais em função de sua experiência, de sua vivência, de sua
situação social, de seus interesses, aspirações, temores e desejos.
4) O
conhecimento da verdade pode ter consequências profundas (diretas ou indiretas)
sobre o comportamento das classes sociais, sobre a sua relação de força, e,
portanto, sobre o resultado de seus confrontos. Revelar ou ocultar a realidade
objetiva é uma arma poderosa no campo da luta de classes.
5) Os
cientistas — como os intelectuais em geral — tendem inevitavelmente, qualquer
que seja sua autonomia relativa ou sua “flutuação”, a se vincular a uma das
visões sociais de mundo em que se reparte o universo cultural de uma época
determinada (ou a uma mistura eclética destas visões, seguindo a tendência
característica da pequena burguesia).
Estas
razões (estreitamente relacionadas entre si) fazem com que o método das
ciências sociais se distinga do método das ciências naturais, não somente ao
nível dos modelos teóricos (compreensão ou explicação), técnicas de pesquisa
(experimentação ou observação) ou procedimentos de análise, mas também e
sobretudo no domínio da relação com as
classes sociais. As visões sociais de mundo, as ideologias e as utopias das
classes sociais conformam de maneira decisiva — direta ou indiretamente,
consciente ou inconscientemente, explícita ou implicitamente — o processo de
conhecimento da sociedade, constituindo assim o problema de sua objetividade em
termos radicalmente distintos dos termos das ciências da natureza.
A
realidade social, como toda realidade, é infinita. Toda ciência implica opção.
Como o reconhecia Max Weber, esta opção é nas ciências sociais e históricas
ligada a certos valores, pontos de vista preliminares e pressuposições
axiológicas, que determinam, em ampla medida, as questões que se colocam em relação à realidade social, à problemática da pesquisa. Entretanto,
como procuramos demonstrar, as visões sociais de mundo e os valores (que fazem
parte dela) intervém também na análise empírica da causalidade, na determinação
científica dos fatos e de suas conexões, assim como na última etapa da
pesquisa: a interpretação geral e a construção das teorias. Em outras palavras:
é o conjunto do processo de
conhecimento científico-social desde a formulação das hipóteses até a conclusão
teórica, passando pela observação, seleção e estudo dos fatos, que é
atravessado, impregnado, “colorido” por valores, opções ideológicas (ou
utópicas) e visões sociais de mundo.
Querer, nestas condições, aplicar ao domínio
das ciências humanas o modelo de objetividade científico-natural advém de uma
ilusão ou de uma mistificação; esta consiste, de uma forma ou de outra, em
apelar ao cientista para que ele abandone seus valores, seus “preconceitos” ou
sua ideologia, isto é, que ele aja segundo o “princípio do Barão de
Münchhausen” (como vimos, a objetividade “institucional” exaltada por Popper
não é senão uma variante desta démarchè).
É, portanto, inteiramente em outra direção que é necessário se orientar para
explicar as condições de possibilidade de um conhecimento objetivo dos fatos
sociais, históricos e culturais.6
Esta direção é a de uma sociologia crítica do conhecimento, que possa explicar as relações
entre as classes ou categorias sociais e as ciências da sociedade.”
6. A ciência
seria como escreveu o pensador marxista Rigoberto Lanz, “a expressão suprema do
modo burguês de produção do conhecimento”. R. Lanz, Marxismo y Sociologia para una crítica
de la sociologia marxista, Ed. Fontamara, 1981,
p. 161.
“O momento relativista da sociologia do
conhecimento
O impasse
ao qual conduz o mito positivista de uma ciência da sociedade livre de
julgamentos de valor e ideologicamente neutra mostra a necessidade de procurar outra noção para a construção de um
modelo de objetividade científico-social. Em nossa opinião, isto não é
possível, senão partindo de certas ideias do historicismo e do marxismo
(historicista), e especialmente integrando nele o momento relativista (histórico e social) da sociologia do
conhecimento como etapa dialética necessária para uma nova concepção do
conhecimento objetivo.
O “momento
relativista” significa que todo conhecimento da sociedade, da economia, da
história, da cultura é relativo a uma certa perspectiva, orientada para uma
certa visão social de mundo, vinculada ao ponto de vista de uma classe social
em um momento histórico determinado (Standortgebundenheit).
Esta tese (negada tanto pelo positivismo como pelo “marxismo positivista”) leva
necessariamente ao abismo do relativismo absoluto? Conduz ela necessariamente
ao ceticismo, isto é, à negação radical de toda a possibilidade de conhecimento
social objetivo? Em seu livro Histoire et
Verité, Adam Schaff mostra de forma muito esclarecedora como cada classe ou
fração de classe interpreta, em função de sua visão social de mundo e sua
ideologia (ou utopia) política, a história da Revolução Francesa. Isso
significa que todas estas diferentes interpretações são igualmente válidas (ou
igualmente falsas)? As historiografias contrarrevolucionária, liberal, jacobina
e socialista são idênticas do ponto de vista de seu valor cognitivo? A de
Joseph de Maistre, explicando 1789 como um castigo divino aos franceses
culpados de pecados abomináveis, seria tão boa (ou tão ruim) como a de Jaurès,
interpretando os acontecimentos em termos de luta de classes?
Levado até
o fim, o relativismo absoluto se revela absurdo: é forçoso reconhecer que certos pontos de vista são relativamente
mais favoráveis à verdade objetiva que outros, que certas perspectivas de
classe permitem um grau relativamente superior de conhecimento que outras. Não
se trata de opor de forma mecânica e maniqueísta a verdade e o erro (ou “a
ciência” e “a ideologia”), mas estabelecer uma hierarquia entre os diferentes
pontos de vista, uma sociologia diferencial do conhecimento.”
“Em nossa
opinião — partindo de certas sugestões de Lukács, Gramsci, Lucien Goldmann e
Ernst Bloch — esta especificidade consiste nos seguintes elementos:
1. A
burguesia revolucionária tinha interesses particulares a defender, diferentes
dos interesses gerais das massas populares; ela lutava ao mesmo tempo contra o
feudalismo e para instaurar uma nova dominação de classe, o que implicava a
ocultação ideológica (consciente ou não) de seus verdadeiros objetivos e do
verdadeiro sentido do processo histórico.
O
proletariado, pelo contrário, classe universal cujo interesse coincide com o da
grande maioria da humanidade e cujo objetivo é a abolição de toda dominação de
classe, não é obrigado a ocultar o conteúdo histórico de sua luta. (Resta,
entretanto, um ponto de interrogação sobre a questão feminina: a abolição da
dominação de classe gera a abolição da opressão sexual? Como se articulam o
combate proletário e o combate feminista? Questões semelhantes para as quais
não temos ainda resposta satisfatória.) Ele é, por consequência, a primeira
classe revolucionária cuja visão social de mundo (utópica) tem a possibilidade objetiva de ser
transparente.12
Não é,
portanto, absolutamente por acaso se o proletariado — ao contrário da burguesia
revolucionária — propõe como objetivo à sua revolução, não a defesa dos
pretensos “Princípios Eternos da Liberdade e da Justiça” ou os “Interesses
Supremos da Pátria”, mas a realização de seus interesses de classe. Uma
comparação entre o Manifesto Comunista e
a Declaração de Independência dos Estados
Unidos é altamente instrutiva a este respeito... É o que Ernst Bloch chama,
em uma bela imagem, a parcialidade
vermelha do marxismo: “Contrariamente a todas as classes que o precederam,
o proletariado revolucionário não tem nenhum interesse em camuflar seus
interesses de classe — isto é, em produzir ideologias. Ele quer antes suprimir
todas as classes e, finalmente, suprimir a si próprio enquanto classe; assim
não tem ele necessidade, diferentemente das classes anteriores, de uma
ideologia que embeleze, mas, ao contrário, do olhar penetrante de um detetive.
(...) O marxismo, por sua vez, alcançou um ponto de vista livre de ilusões por
uma reflexão particularmente intensa da parcialidade que carrega o interesse à
emancipação e que apenas esta parcialidade vermelha lhe permite se liberar de
todo obscurecimento por causa de preconceitos”.13
2. A
burguesia pode chegar ao poder e instaurar seu reino sem uma compreensão clara
do processo histórico, sem uma consciência lúcida dos acontecimentos,
favorecida pela “astúcia da razão” do desenvolvimento econômico-social, pela
dinâmica própria ao capitalismo. O conhecimento científico do movimento social
não era absolutamente uma condição de seu triunfo, e a automistificação
ideológica frequentemente caracterizou seu comportamento enquanto classe
revolucionária.
O
proletariado, pelo contrário, não pode
tomar o poder, transformar a sociedade e construir o socialismo senão por uma
série de ações deliberadas e conscientes. O conhecimento objetivo da
realidade, da estrutura econômica e social, da relação de forças e da
conjuntura política é, portanto, uma condição
necessária de sua prática revolucionária; em outras palavras: a verdade é
uma arma de seu combate, que corresponde a seu interesse de classe e sem a qual
ele não pode prosseguir. Como escrevia Gramsci no lema de seu jornal Ordine Nuovo, “somente a verdade é
revolucionária”.14
Consequentemente,
a superioridade epistemológica da perspectiva proletária não é somente a das
classes revolucionárias em geral, mas tem um caráter particular,
qualitativamente diferente das classes do passado, específica ao proletariado
enquanto última classe revolucionária
e enquanto classe cuja revolução inaugura o “reino da liberdade”, isto é, a
dominação consciente e racional dos homens sobre sua vida social. Neste
sentido, a ciência ligada à visão proletária de mundo (por exemplo, o marxismo)
é uma forma de transição para a ciência da sociedade sem classes, que poderá
atingir um grau muito mais elevado de objetividade, porque o conhecimento da
sociedade deixará de ser o palco de uma luta política e social entre classes
antagônicas. As limitações que existem do ponto de vista do proletariado e no
marxismo não se tornarão visíveis senão neste momento; todas as tentativas para
“superá-lo” antes deste período, antes da emergência da sociedade mundial sem
classes, não podem conduzir senão a recaídas, recuos, para o ponto de vista de
outras classes mais limitadas que o proletariado. Neste sentido, parafraseando
Sartre, o ponto de vista do proletariado é o horizonte científico de nossa
época.”
14:
GUTIÉRREZ G. Dios o el oro en las indias
(Siglo XVI). Lima, Instituto Bartolomé de Las Casas, 1989.
“Que significa mais precisamente “ponto de vista do proletariado”? Não
se trata necessariamente do estado de espírito empiricamente verificável no
seio da massa dos trabalhadores em um momento determinado. Como, portanto,
identificá-lo? Entre as diferentes correntes políticas, teóricas e científicas
que o reivindicam, qual seria a expressão mais autêntica do ponto de vista da
classe? Evidentemente, a resposta a estas questões contém uma dimensão
inevitável de subjetividade. Em nossa opinião, as divergências entre pensadores
ou forças que reivindicam o proletariado e seu ponto de vista advêm de cinco
tipos diferentes de problemas:
1) A
influência das ideologias burguesas ou pequeno-burguesas no seio da classe e do
movimento operário, que se manifestam nas diferentes combinações ecléticas
entre a visão proletária de mundo e a visão das outras classes (marxismo
positivista, socialismo nacional, socialdemocracia etc.); 2) a existência, no
seio do movimento operário e dos Estados pós-capitalistas provenientes de seu
seio, de uma burocracia com interesses próprios e uma ideologia particular (o
estalinismo); 3) As divergências que resultam da diferença dos sexos; 4)
Aquelas que decorrem da diversidade de experiências históricas de cada país ou
região do mundo; 5) Os desacordos que resultam do debate inevitável na busca da
verdade e que fazem parte do processo normal de conhecimento objetivo da
realidade.
Em outras
palavras: o ponto de vista do proletariado não é o monopólio exclusivo de um
único grupo ou corrente, mas representa, em cada momento histórico, o horizonte
comum a um conjunto de forças políticas e intelectuais, sociais e culturais que
reivindicam a visão proletária — isto é, de sua utopia revolucionária. Seria
tanto mais “autêntico” na medida em que soubesse escapar à influência
mistificadora das ideologias conservadoras (burguesas, patriarcais ou
burocráticas) e unificar dialeticamente (sob o ponto de vista da totalidade),
em seu nível superior, a multiplicidade das experiências da classe.
Resta
definir o sentido e o valor do conceito de superioridade epistemológica do
ponto de vista proletário): é necessário deduzir daí que a verdade está ausente
da ciência situada em uma perspectiva burguesa ou que o erro seria impossível
para quem está vinculado à visão proletária de mundo? Inútil insistir sobre o
caráter redutor, falso e no limite absurdo
de uma tal conclusão. Vimos que para Marx o ponto de vista de classe e a visão
social de mundo correspondente determinam um horizonte intelectual, os limites estruturais intransponíveis do
campo de visibilidade cognitiva, o máximo de conhecimento possível a partir
desta perspectiva. Não se trata de uma distinção entre “verdade” e “erro” (ou
“ciência” e “ideologia”), mas entre horizontes científicos mais ou menos
vastos, entre limites mais estreitos ou mais amplos da paisagem cognitiva
percebida. No interior dos limites
impostos por sua ideologia de classe, Ricardo, A. Smith ou Sismondi são
perfeitamente capazes de produzir conhecimentos científicos do maior valor. De
outro lado, a proposição segundo a qual o ponto de vista do proletariado é o
que oferece a melhor possibilidade
objetiva de um conhecimento da verdade não significa absolutamente que é
suficiente se situar deste ponto de vista para obter resultados científicos
relativamente mais verdadeiros ou mais objetivos.”
“Comparamos
várias vezes o cientista social ao pintor de uma paisagem. Ora, esta pintura
depende em primeiro lugar do que o artista pode ver, isto é, do observatório
de onde ele se acha situado. A metáfora topológica (que se encontra em Rosa
Luxemburgo e em certas passagens de Mannheim) nos parece a mais apta para dar
conta do alcance da Standortgebundenheit
e seus limites. Mais um “mirante” ou “observatório” (isto é, um ponto de vista
de classe) é elevado, mais ele permite ampliar o horizonte e perceber a
paisagem em toda sua extensão; as cadeias de montanhas, os vales, os rios não
conhecidos dos observatórios inferiores não se tornam visíveis senão do cume.
Evidentemente, nos limites determinados por seu horizonte de visibilidade, os
mirantes mais baixos permitem também ver uma parte da paisagem. Em nossa
hipótese, o observatório mais alto é o ponto de vista do proletariado (pelas
razões expostas no capítulo precedente); os mirantes situados em níveis
inferiores correspondem aos pontos de vista das outras classes ou frações de
classe, que se distinguem não somente pelas diferenças de altura mas também às
vezes pelas diversidades de posições sobre uma mesma plataforma: a mesma
paisagem pode ser assim percebida sob ângulos distintos e complementares (é por
exemplo o caso de Ricardo e Sismondi que examinamos antes). Existe, enfim, uma
parte da paisagem que é visível de todas as alturas: é a “zona de consenso”
entre os diversos pontos de vista, geralmente limitado ao nível mais imediato,
mais “terra-a-terra” do conhecimento (a Bastilha caiu no dia 14 de julho de
1789) etc. Esta metáfora nos parece particularmente operatória, porque ela
permite também “mostrar” (de forma imaginária) que: a) não existe visão de
paisagem que não esteja situada em um observatório determinado; b) a síntese ou
a média exata entre os níveis superiores e inferiores não representa em nada um
ponto de vista privilegiado; c) os limites estruturais do horizonte não
dependem da boa ou má vontade do observador, mas da altura e da posição em que
ele se encontra; d) o pintor pode passar de um mirante a outro (“livre
flutuação”), mas seu horizonte de visibilidade dependerá sempre da posição em
que ele se encontra em tal ou qual momento; e) o observador situado no nível
superior pode dar conta tanto dos limites como das visões verdadeiras dos
níveis inferiores; f) o mirante não oferece senão a possibilidade objetiva de uma visão determinada da paisagem.
Esta
última precisão é capital. É evidente — para ficar no quadro de nossa “alegoria
do mirante” — que a paisagem como painel não depende somente do observatório
mas também do próprio pintor, de sua forma
de olhar e de sua arte de pintar.
A “forma
de olhar”: o pintor — isto é, o cientista social — é condicionado não somente
por sua posição de classe, mas também por outras
determinações, por outras pertinências sociais não-classistas relativamente autônomas com relação às classes
sociais: nacionalidade, geração, religião, cultura, sexo. Sua visão é desviada também por sua vinculação a certas
categorias sociais (burocracia, estudantes, intelectuais etc.) ou a certas
organizações (partidos, seitas, igrejas, círculos, confrarias, cenáculos).
Mannheim teve o mérito de atrair a atenção sobre este tipo de determinantes
sociais do conhecimento, apesar de não ter sabido articulá-los de forma precisa
e coerente com o ponto de vista de classe. Esta contribuição permite enriquecer
a sociologia crítica do conhecimento, fornecendo-lhe uma dimensão essencial e
irredutível às categorias classistas habituais. Estes fatores podem tanto
estimular como desviar as visões do pintor em relação a certos aspectos da
paisagem que se oferece a seus olhos. Assim, uma mulher situada em um ponto de
vista de classe determinado perceberá dimensões da realidade que a visão
masculina, situada na mesma classe, tende a evitar (isso vale inclusive para o
ponto de vista do proletariado).
O exemplo
“negativo” mais surpreendente do papel destes fatores não-classistas é o da
burocracia estalinista: o pintor formado neste contexto está no cume da
montanha, mas provido de viseiras e de um par de binóculos deformantes que às
vezes impedem toda visibilidade... Isso permite compreender o paradoxo (do
ponto de vista marxista “vulgar”) de uma ciência social de inspiração
“marxista-leninista” cujos resultados têm em certos casos um valor de
conhecimento bem inferior ao produzido por cientistas situados em uma
perspectiva burguesa. (...)
Sua “arte
de pintar”: a ciência (como a pintura, ou toda atividade cultural) tem sua
autonomia, no sentido etimológico grego da palavra (autônomos: sua própria lei), isto é, seus princípios próprios de atividade, sua disciplina constrangedora,
sua lógica interna, sua especificidade enquanto prática que visa descobrir a verdade. Alguns destes princípios —
estes sobre os quais insistem os positivistas — são comuns a todas as ciências,
especialmente: 1) a intenção-de-verdade, a busca do conhecimento como objetivo
em si, a recusa de substituir este objetivo por finalidades extracientíficas.
Um pintor que é contratado e pago para retratar uma paisagem em rosa não
poderá, se ele aceita estas condições, pintar as verdadeiras cores que ele
observa de seu mirante... Como enfatizamos antes, este princípio é em certa
medida tautológico, mas isso não significa que ele seja sempre respeitado. Sua
infração produziu uma figura muito especial do mundo científico (ou antes
pseudocientífico) que Marx designava pelo termo infamante de sicofanta. É
verdade que certas condições históricas e sociais favorecem a emergência de
sicofantas, cujo pensamento estipendiado manifesta a mais soberba indiferença
para com a busca da verdade objetiva. 2) A liberdade de discussão e de crítica,
a confrontação permanente e pública das teses e interpretações científicas. Como
já escrevemos, sem esta condição, a ciência está condenada ao obscurantismo ou
à unidimensionalidade (é suficiente pensar na ciência social soviética e
norte-americana dos anos da guerra fria).
Outros
princípios são próprios de cada ciência;
eles estabelecem, com relação a um objeto determinado, os procedimentos que
permitem a reunião, o controle, a análise e a interpretação dos dados
empíricos. Estes princípios são objetivos e devem ser respeitados por todos os
cientistas, qualquer que seja a sua visão social de mundo. Independentemente de
seu ponto de vista de classe, o historiador sabe que ele deve poder provar suas
afirmações por um certo tipo de documentos, que um testemunho isolado é
insuficiente e deve ser confrontado com outros, que deve respeitar a cronologia
no estudo da causalidade etc. (...)
A isso se
acrescenta um último determinante da autonomia relativa: as qualidades
individuais do “pintor”, sua criatividade, imaginação, rigor, inteligência ou
sensibilidade. Para um Max Weber, quantos espíritos medíocres, limitados, sem
envergadura e sem lucidez, na sociologia burguesa? E na perspectiva aberta pela
visão de mundo proletária não termos apenas Marx, mas também Jules Guesde,
Turati, Hundmann etc.
A
autonomia relativa da ciência social significa, portanto, isto: no interior dos
limites determinados pela Standort
social — isto é, a partir do ponto de vista de classe e a partir de uma das
visões sociais de mundo que lhe corresponde (muitas visões de mundo são
possíveis a partir de um mesmo ponto de vista de classe) — o valor científico
de uma pesquisa pode variar consideravelmente em função de variáveis múltiplas
que são independentes com relação às classes sociais. O mirante não faz senão
definir uma possibilidade objetiva de
visibilidade: a visão efetiva e a
pintura de uma paisagem não dependem mais dele. Mas trata-se de uma autonomia relativa e não de uma independência total (como o pretende o
positivismo) na medida em que o papel do horizonte de visibilidade é decisivo
para a própria constituição do campo cognitivo.”
“Do ponto de vista de uma sociologia crítica do conhecimento, a
formulação que nos parece mais interessante entre os sociólogos franceses
contemporâneos é (no domínio que nos ocupa) a de Pierre Bourdieu, segundo o
qual as chances de contribuir na produção da verdade dependem de dois fatores
principais: “o interesse que se tem em saber e em fazer saber a verdade (ou
inversamente, em ocultá-la ou ocultá-la de si) e a capacidade que se tem de
produzi-la”. Em outros termos: “o sociólogo está tanto mais armado para
descobrir o oculto quanto mais armado cientificamente, quando ele utiliza
melhor o capital de conceitos, de métodos, de técnicas acumulado por seus
predecessores, Marx, Durkheim, Weber, e como outros, é quando é mais ‘crítico’,
quando a intenção consciente ou inconsciente que o anima é mais subversiva, quando tem mais interesse em
desvendar o que é censurado, contido, no mundo social”.18
Quanto a nós, pensamos que o ponto de vista potencialmente mais crítico
e mais subversivo é o da última classe revolucionária, o proletariado. Mas não
há dúvida de que o ponto de vista proletário não é de forma alguma uma garantia
suficiente do conhecimento da verdade social: é somente o que oferece a maior
possibilidade objetiva de acesso à verdade. E isso porque a verdade é para o
proletariado uma arma indispensável à sua autoemancipação. As classes
dominantes, a burguesia (e também a burocracia, em um outro contexto) têm
necessidade de mentiras e ilusões para manter seu poder. Ele, o proletariado,
tem necessidade de verdade...”
18. P. Bourdieu, Questions
de sociologie, p. 22.
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