Editora: Paz e Terra
Tradução: Luiz Fernando Cardoso, Carlos Nelson Coutinho e Giseh Vianna Konder
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 198
“O que nos interessa, para compreender o
fenômeno da reificação, é o mecanismo psíquico através do qual se desenvolve
todo o processo.
Comecemos esse trabalho por uma constatação
tanto mais importante por constituir uma das chaves-mestras da economia liberal
clássica. Numa sociedade capitalista ideal, na qual nada entravaria o livre
jogo da concorrência, as coisas iriam da melhor maneira possível — segundo os
grandes economistas liberais — pois cada empreendedor, tentando obter um lucro
tão grande quanto possível, seria obrigado a baixar os preços para enfrentar
eficazmente os concorrentes. Ele agiria assim ainda mais e sem desejá-lo
conscientemente, no interesse dos consumidores, que obteriam as mercadorias
aos mais baixos preços.
Se bem que essa opinião seja inexata, como
explicação da formação dos preços, nós nos prenderemos aqui somente à análise
rigorosa dos mecanismos psicológicos pelos quais se manifestam equilíbrios
e também valores humanos de solidariedade — quando se manifestam — no
mundo capitalista. Os próprios teóricos do capitalismo liberal nos dizem que
isso acontece implicitamente, sem que os homens o desejem, apesar
e contra a vontade dos indivíduos. No mundo fictício dos economistas
clássicos, mundo que não passa de uma extrapolação esquemática e idealista do
mundo capitalista real, os homens seriam perfeitos egoístas, indiferentes e
insensíveis aos sofrimentos, aspirações e necessidades de seus semelhantes, mas
que passariam (é nisso que consiste a idealização) seu tempo a ajudar os
semelhantes, sem querer.”
“Um par de sapatos custa cinco mil francos”. É a expressão de uma
relação social e implicitamente humana entre o criador de gado, o curtidor de
couro, seus operários, seus empregados, o revendedor, o negociante de sapatos
e, finalmente, o último, consumidor. Mas nada disso é visível; a maioria desses
personagens não se conhece e até ignoram sua existência mutuamente. Ficariam
todos espantados de saber da existência de um laço que os une. Tudo isso
se exprime por um só fato: “um par de sapatos custa cinco mil francos”.
Ora, isto não é um fato isolado; é, pelo contrário, o fenômeno social
fundamental da sociedade capitalista: a transformação das relações humanas
qualitativas em atributo quantitativo das coisas inertes, a manifestação
do trabalho social necessário empregado para produzir certos bens como valor,
como qualidade objetiva desses bens; a reificação que consequentemente
se estende progressivamente ao conjunto da vida psíquica dos homens, onde ela
faz predominar o abstrato e o quantitativo sobre o concreto e o qualitativo.”
Além disso, separa o produto do produtor e fortalece, por isso mesmo, a
autonomia da coisa em relação à ação dos homens e à mutação.
Faz, enfim, da força de trabalho uma mercadoria que tem um valor
— e isso significa que também aí transforma uma realidade humana em coisa — e
aumenta durante um período histórico muito longo o peso do trabalho não
qualificado ou pouco qualificado, em relação ao trabalho qualificado,
substituindo mesmo, no plano da realidade imediata, as diferenças qualitativas
por simples diferenças de quantidade.”
“Através da reificação, naturalmente, as
relações fundamentais continuam a existir e a desempenhar sua função: o padeiro
assa o pão que o sapateiro comerá e este faz sapatos que serão usados, entre
outros, pelo padeiro; o juiz, por suas sentenças, assegura a manutenção e o
funcionamento da ordem existente. Mas essas funções só são desempenhadas implicitamente;
elas se enfraquecem e muitas vezes desaparecem totalmente da consciência dos
homens, e mesmo os poucos vestígios que ainda permanecem não mais têm contato imediato
com a vida e a ação cotidianas. De modo imediato, o juiz aplica a lei, o
padeiro faz pão para vendê-lo e obter dinheiro. Para o juiz, o inculpado não
passa de um ser abstrato; para o padeiro, o comprador não passa de uma espécie
de autômato que entra na padaria, pega a mercadoria e põe o dinheiro sobre o
balcão. Aliás, o próprio padeiro, na maior parte de sua vida, também não
passa de um autômato que pratica a ação inversa. É verdade que esses dois
autômatos são homens que devem entrar em contato, falar-se mutuamente, às
vezes, na grande burguesia intelectual e financeira, manter relações sociais,
encontrar-se nos mesmos lugares, etc. Mas isso não é essencial, não
passa de um cenário inevitável para o fato fundamental: uma coisa inerte — a
mercadoria — é trocada por outra coisa inerte, o dinheiro. De um lado e de
outro, a vida psíquica do homem nada mais é que um prolongamento, um acessório
da única realidade ativa e agente: as coisas inertes. Para os rentistas, o
dinheiro aumenta e se reproduz dele próprio, como um ser vivo. A linguagem
reflete essa situação. Diz-se “o dinheiro trabalha”, “o capital produz”, “a
renda da terra”, etc.
É por isso que tudo que as pessoas ainda se
dizem quando não se trata de seus interesses imediatos se torna falso,
convencional e artificial. É a psicologia do vendedor que louva
profissionalmente sua mercadoria — ainda que saiba tratar-se da pior das
quinquilharias —, que é sempre amável com o freguês — ainda que no fundo
desejasse mandá-lo ao diabo. A frase, o palavrório, a mentira convencional, a
demagogia política e social tornam-se o fenômeno geral que invade quase toda a
existência da maioria dos homens e penetra às vezes até às raízes mais defesas
de sua vida pessoal ou mesmo de suas relações eróticas, pois o amor se
transforma, também ele, muitas vezes, em cenário exterior e convencional do
casamento de interesse — ou seja, de negócios — assim como as relações entre
pais e filhos, irmãos e irmãs se tornam muitas vezes, elas também, problemas de
ordem social ou de herança.
Assim o homem se transforma cada vez mais em
autômato, sofrendo passivamente a ação de leis sociais que lhe são totalmente
exteriores.
Implicitamente sua vida psíquica, sua
“pessoa”, seu “espírito” perdem todo contato essencial com uma matéria
que lhe aparece seja como estranha, seja, em última instância, como irreal. (As
duas posições correspondem ao dualismo cartesiano e ao idealismo fichteano).
Na esfera “privada” das relações familiares e
da amizade — esfera mais distante de toda atividade econômica e mesmo de toda
atividade pública —os valores humanos de solidariedade permanecem no entanto
menos alterados e a empresa da reificação, ainda que real, é menos acentuada.
Isso engendra um dualismo psíquico que se torna uma das estruturas
fundamentais do homem no mundo capitalista. A rigor, o homem pode continuar
humano nas suas relações com sua mulher, seus filhos, seus amigos. No resto de
sua atividade social ele deve conformar-se com a ordem existente, com suas leis
escritas ou não escritas, a ordem do mercado estabelecida sobre o jogo dos
egoísmos racionais, se ele é industrial ou comerciante, as ordens do patrão, se
é operário ou empregado, as ordens dos superiores e os regulamentos gerais se é
funcionário. E isso sob pena de ruína e morte social ou econômica.
O homem se torna, assim, escravo de leis
abstratas e de coisas inertes e isso até nos mais altos escalões. “o rei é o
primeiro servidor de seu Estado”, dizia o grande Frederico e o pequeno
empreendedor se torna servidor de sua empresa. Esse dualismo que se exprime
inclusive na contabilidade, onde todas as despesas pessoais do industrial são
inscritas no débito como “despesas” que se opõem aos “lucros” positivos da
empresa, contém em si consideráveis perigos de barbárie, perigos que o
capitalismo liberal e reificado atenuara pela anarquia e pelo individualismo
que implicava, mas que não eram menos reais e ameaçadores. (...)
Infelizmente, é preciso não criar ilusões,
enquanto a sociedade burguesa e capitalista continuar a existir, semelhantes
estados de espírito continuarão sendo a expressão de uma situação excepcional
que não sobrevive muito tempo. Basta que o equilíbrio se restabeleça para que o
mecanismo (a palavra não está aí por acaso) da vida social cotidiana
restabeleça a reificação e que se recaia no antigo estado de coisas.”
“A reificação — que consiste essencialmente
na substituição do qualitativo pelo quantitativo, do concreto pelo abstrato e
que está estreitamente ligada à produção para o mercado, principalmente à produção
capitalista — tende, paralelamente ao desenvolvimento dessa produção, a
apoderar-se progressivamente de todos os domínios da vida social e a substituir
as outras diferentes formas de consciência.”
“O operário, na realidade, só tem coisa a
vender: sua força de trabalho e — salvo algumas raras exceções sempre
possíveis — ele não poderia aceitar inteiramente e sem uma resistência real ou
virtual sua própria transformação em mercadoria assimilada às demais
mercadorias. É por isso que, ao contrário das outras classes sociais onde vemos
a reificação invadir progressivamente até mesmo o setor privado da vida dos
indivíduos, o operário alienado na fábrica onde trabalha para outro e
onde toda ligação consciente com seu produto o faz ver de maneira mediata que o
produto de seu trabalho não lhe pertence e que, de maneira imediata, ele
trabalha não para produzi-lo mas para receber seu salário, é por isso, dizemos,
que ele só se reencontra quando deixa a vida econômica, o trabalho, para voltar
ao setor privado de sua vida cotidiana.
A isso se acrescenta o fato de que mesmo em
sua atividade econômica, em seu trabalho, a relação reificada e antagonista
com o patrão ao qual ele vende sua força de trabalho é em grande parte
contrabalançada pela relação humana e não reificada que ele mantém com
seus colegas.
Não há dúvida de que o pensamento reificado,
que é uma realidade social, age através de mil canais diferentes também
sobre o pensamento dos operários e essa influência é considerável. Trata-se,
porém, de um fenômeno sociológico e não econômico, uma influência
exterior e não uma reificação espontânea, pois o operário
não poderia tirar nenhuma vantagem da “reificação”. Ele não tem uma fortuna a
fazer frutificar, situação social privilegiada a defender; para ele os objetos
não são “mercadorias”, pois ele os vê unicamente pelo prisma do consumidor,
pelo qual eles mantêm toda sua riqueza e sua verdade concretas; os homens não
perdem, para ele, suas qualidades vivas na abstração geral de “compradores”,
pois ele nada tem a vender-lhes e, o que é mais importante, ele pertence à
única categoria social na qual os homens, mesmo para defender seus interesses
mais imediatos, devem unir-se em vez de opor-se uns aos outros. A solidariedade
tem, para a vida social e para o pensamento dos operários, importância tão
grande quanto o egoísmo e a concorrência para os burgueses e para
as camas médias.
Do mesmo modo, os interesses do operário não
são reificados, ou, em todo caso, o são muito menos. Ele não tem capital do
qual seja necessário zelar pelo rendimento, loja ou empresa a administrar; para
ele se trata sempre e imediatamente de realidades puramente humanas
pois, em seu nível de vida, as reduções de tempo de trabalho ou os aumentos
salariais afetam de imediato não só seu “poder” virtual como também toda sua
existência cotidiana e concreta.
São coisas inteiramente diferentes se um
lucro suplementar aumenta a conta bancária de um industrial ou um comerciante e
figura em sua contabilidade, ou se um aumento de salário permite a um operário
comer melhor, comprar uma lambreta, fazer uma viagem há muito desejada ou
ensinar um ofício a seu filho. Por outro lado, mesmo a relação do operário com
o setor econômico e reificado de sua vida é muito diferente da que existe entre
os burgueses e camadas médias. Isso porque, exercendo sua profissão, o artesão,
o negociante, o comerciante, o industrial ou o banqueiro defendem todos
qualquer coisa que lhes pertence e implicitamente se identificam cada vez mais
com essa atividade e com essa coisa. O operário, pelo contrário, durante todo o
tempo em que exerce sua atividade econômica trabalha “para outro”, para seu
patrão, ao qual não o liga nenhuma relação de solidariedade concreta. Durante o
tempo de trabalho, o operário não mais se pertence; não é mais ele mesmo,
transformado não só em objeto, mas em objeto pertencente a outro, ele é, ao
mesmo tempo, “reificado” e “alienado”.
Por isso Marx escreveu que, na sociedade
capitalista, há uma esfera que é a da “perda completa da característica
humana, que ela só pode recuperar através de uma restauração completa do
homem. Essa decomposição da sociedade representada por uma categoria
social particular é o proletariado”. “Se o proletariado anuncia a dissolução
da ordem atual do mundo, nada mais faz do que exprimir o segredo de
sua própria existência; pois ele constitui a dissolução efetiva
dessa ordem do mundo”1.
Assim é que por sua posição social, ainda que
muito menos culto e dispondo de muito menos conhecimentos do que os
intelectuais burgueses, o proletariado, na sociedade capitalista clássica, é o
único que pode, numa situação de conjunto, rejeitar a reificação e devolver a
todos os problemas espirituais sua verdadeira característica humana: e foi
dentro da classe operária, numa época em que sua situação econômica era
particularmente má, que nasceu a forma mais elevada do humanismo moderno: o
materialismo dialético.
Isso não quer dizer, evidentemente, que
alguns indivíduos ou mesmo grupos de indivíduos não pertencentes a essa classe
não poderiam compreender o pensamento dialético. Pelo contrário, no mundo
capitalista, onde os conhecimentos são monopólio de uma camada limitada, os
próprios teóricos do materialismo dialético foram — à época do capitalismo
liberal — intelectuais de origem burguesa; mas eles encontraram o ponto de
vista da classe operária e aí se integraram e tiveram público, um público
talvez carente da cultura necessária para segui-los em todos os detalhes do
pensamento, mas dotado de uma qualidade extremamente importante, a atitude
geral, a situação social e psíquica que lhe permite compreender esse pensamento
e personificá-lo na realidade prática2. Pois “como a filosofia
encontra no proletariado suas armas materiais, o proletariado encontra na
filosofia suas armas espirituais”3 e, se “a filosofia não se pode
realizar sem suprimir o proletariado, o proletariado não se pode suprimir (aufheben)
sem realizar a filosofia”4.
Compreende-se, depois de todas essas
considerações, por que, enquanto fica na superfície e se contenta em registrar
o aspecto imediato das coisas, mesmo o pensamento dos intelectuais mais
sinceros na sociedade burguesa tende ou para o subjetivismo idealista, ou para
o objetivismo mecânico.
A reificação rompe a unidade entre sujeito e
objeto, produtor e produto, espírito e matéria e o pensador apenas constata
essa ruptura, tomando-a por um fenômeno fundamental e natural da vida humana.
Por isso é que é necessário um grande esforço para resistir a todas essas
tentações e conseguir não só ir além das aparências e compreender o pensamento
dos grandes dialéticos do passado, mas ainda aplicar esse pensamento aos
problemas novos como um guia vivo e seguro diante dos acontecimentos sempre
inesperados que constituem a vida histórica.”
1 Introdução à Crítica da
Filosofia Hegeliana do Direito.
2 Falamos aqui, consciente e voluntariamente,
no passado, pois, desde a era stalinista, as relações entre os intelectuais
socialistas e o movimento operário se tornaram extremamente complexas e
problemáticas. Quer o deploremos, quer o louvemos, este é um ato que nos parece
incontestável e do qual se deveria fazer um estudo sociológico profundo.
O fenômeno comum e natural até 1925-1928 do
pensador importante que desempenha um papel de primeiro plano no movimento
operário (Marx, Engels, Lassalle, Bakounin, Kautsky, Bernstein, Plekhanov, Jaurés,
Lênin, Rosa de Luxemburgo, Trotski, Boukarin, Gramsci, etc.) desapareceu
totalmente para dar lugar ao fenômeno contrário, do teórico socialista isolado
do movimento operário, ou que, se ele é membro de um partido, desempenha aí um
papel secundário e periférico.
O caso típico é Georg Lukács, que desempenhou
um papel político de primeiro plano no movimento húngaro de 1917 a 1925, para
tornar-se em seguida, até 1956, um pensador isolado cujo raio de ação se
limitava ao mundo intelectual e que não tinha mais nenhuma ação política no
estrito sentido do termo.
3 Crítica da Filosofia
Hegeliana do Direito.
4 L. c.
“Acabamos de dizer que numa sociedade capitalista
anárquica o proletariado e os teóricos que julgam o mundo de seu ponto de vista
— o ponto de vista humano contra o mecanicista — estão virtualmente mais
do que os outros, e talvez com exclusividade, em condições de rejeitar a
reificação, devolver a todos os problemas filosóficos, religiosos, morais etc.,
seu caráter humano e continuar assim o esforço dos grandes pensadores
clássicos, a herança espiritual que a burguesia deixou cair de suas mãos.
Ora, isso significa apenas que no mundo
capitalista os assalariados poderiam ter um nível espiritual mais
elevado do que a burguesia e as classes médias, mas não que o tenham realmente.
É o problema da consciência de classe e de
seu papel na história, magistralmente apresentado por Georg Lukács.
Mesmo numa sociedade capitalista próxima da
sociedade esquemática analisada por Marx (à qual se acrescentaria apenas a
existência das camadas médias), é necessário lembrar que se, por sua situação
econômica e social, a classe operária é virtualmente um protesto vivo contra a
mentira e a reificação da sociedade capitalista, nem por isso ela deixa de ser também
um elemento constitutivo dessa sociedade. Não há compartimentos estanques
separando os operários das demais classes sociais, sobretudo entre os operários
e a pequena burguesia; ao contrário, a simbiose, as relações cotidianas, o
intercâmbio de pensamento são permanentes e acarretam, por eles próprios, uma
distorção da “consciência máxima de classe” ou da “consciência possível do
proletariado”.
Deve-se acrescentar a isso toda a pressão das
classes dirigentes, com os enormes meios de influência ideológica de que
dispõem e que empregam, para impedir o desenvolvimento da consciência da classe
operária.
É por isso que, na medida em que o objeto
real do pensamento e da ação, o mundo tal como ele é, constitui um dos fatores
determinantes de todo pensamento e de toda consciência, deveria
haver, mesmo em semelhante sociedade, uma forte tendência de a reificação
apoderar-se também do espírito dos operários, como o faz com o dos membros das
demais classes sociais .
Junta-se a isso, nos casos históricos
concretos dos países capitalistas desenvolvidos de hoje, o fato de que essa
penetração foi consideravelmente favorecida pelas profundas modificações que
acarretaram na consciência operária:
a) o aumento quase contínuo do padrão de vida
adquirido a partir do fim do século XIX, graças à luta sindical, mas tornado
possível em primeiro lugar pela existência do imperialismo e da penetração
colonial, e em decorrência das modificações de estrutura do capitalismo
contemporâneo (principalmente a intervenção estatal e o armamento maciço),
e
b) o desenvolvimento e a influência do
stalinismo devidos à existência e ao prestígio de um estado de caráter
proletário.
De modo que são as condições concretas,
econômicas, sociais e políticas de um país e de uma época, e também os fatores
internacionais, que decidem qual dessas duas forças antagônicas — a
solidariedade espontânea e a consciência de classe “possível”, ou a reificação
que penetra sobretudo através da influência ideológica das outras classes
sociais — agirá mais fortemente e predominará na consciência real da classe
operária. E somente análises concretas, focalizando tanto o passado e o
presente como as tendências do futuro, poderão explicar o grau concreto de desenvolvimento
da consciência operária num determinado instante e num determinado lugar.
É também por isso que toda sociologia séria
que pretende compreender a sociedade atual deve trabalhar com duas categorias
fundamentais:
a) A consciência possível. O máximo de
realidade que poderia conhecer uma classe social sem chocar-se contra os
interesses econômicos e sociais ligados à sua existência como classe;
b) A consciência real. O que ela
conhece, de fato, dessa realidade durante certo período num determinado país.
Sem essa distinção, que corresponde à oposição entre “a classe para si” e “a
classe em si” em terminologia hegeliana e marxista, a sociologia corre o risco
de ficar na superfície e compreender muito pouco a realidade social concreta e
viva.
Finalmente, todas essas considerações
explicam também por que as duas concepções filosóficas unilaterais que são o
subjetivismo e o objetivismo se encontram sempre em suas consequências
práticas, não só entre os pensadores burgueses, mas também entre os teóricos e
os militantes do proletariado, onde elas se exprimem sobretudo através de dois
grandes grupos de correntes políticas:
a) o blanquismo, o anarquismo e o trotskismo
que são a forma operária do subjetivismo idealista da superestimação do homem e
da subestimação das condições objetivas;
b) o stalinismo, o reformismo, o economicismo
e os teóricos da espontaneidade que são a expressão operária do materialismo
objetivista da superestimação das condições objetivas e da subestimação do
homem.
E poder-se-ia acrescentar que são os
intelectuais e certas camadas operárias radicalizadas que favorecem o primeiro
grupo, enquanto as burocracias dos grandes organismos operários, partidos,
sindicatos, organismos de Estado na URSS, ou a participação operária nos Estados
capitalistas que, ao contrário, favorecem o segundo.
Por isso, na vida e na obra de todos os
grandes teóricos e chefes políticos do proletariado, desde Marx até Lênin e o
jovem Lukács, encontramos essa luta em duas frentes: contra as ilusões de
esquerda e os oportunismos de direita, luta pela qual eles se esforçam para
estabelecer, cada vez, novamente o pensamento dialético, condição necessária e
indispensável para uma transformação do mundo e para a realização dessa verdade
e grande fraternidade humana que será um dia, se se realizar, o socialismo.”
“As análises de Marx, de Lukács e,
implicitamente, mesmo não se referindo à reificação, as dos demais pensadores
marxistas, supunham que nas sociedades socialistas o desaparecimento da
reificação devia acarretar um retorno ao concreto e ao significativo que
permitiria — uma vez desaparecida a exploração de classe — a construção de um
mundo humano cristalino. Supunham, com efeito, que a nova sociedade conservaria
de um lado as aquisições humanamente positivas da sociedade reificada — a
universalidade dos valores e o respeito às liberdades individuais — e
substituiria, por outro lado, os setores institucionais e burocratizados da
vida social por uma comunidade humana mais autêntica, estendendo-se a todos os
domínios da vida e abarcando realmente todos os indivíduos.
Além disso, se é verdade que nem Marx nem
nenhum outro pensador marxista consideraram, que saibamos, a perspectiva que se
está realizando de uma diminuição da reificação dentro de uma sociedade que continua
a basear-se na exploração de classe e que mantém, ao menos em grande parte, a
propriedade privada dos meios de produção, tem-se que, prolongando simplesmente
em letra e espírito as análises marxistas da reificação, chegar à conclusão de
que semelhante evolução devia implicar no perigo de um retorno a uma barbárie
medieval reforçada pelos meios da técnica moderna; pois, uma vez enfraquecidas
ou desaparecidas as garantias à liberdade individual numa sociedade que
conservasse a exploração capitalista da classe operária e na qual o enorme
desenvolvimento industrial moderno criasse necessariamente um imenso e poderoso
aparelho burocrático, os riscos de uma evolução que mantivesse os elementos
negativos da reificação levando-os às últimas consequências e, ao contrário,
eliminasse seus elementos positivos se tornariam extremamente grandes.
A experiência dos últimos anos — e dentro
dela em primeiríssimo lugar a experiência hitlerista que representou nesse
plano uma mutação qualitativa — prova que a análise de Marx era justa.1
Levado ao extremo, o dualismo da reificação capitalista clássica tornou-se — no
hitlerismo — o do chefe de campo de concentração ou do torturador que em casa é
incapaz de matar uma mosca, gosta da música de Bach e é o melhor dos chefes de família.
A assimilação dos homens a unidades intercambiáveis que são tratadas como
objetos estendeu-se da fábrica ao campo de concentração, a mentira cotidiana
tornou-se instituição oficial no ministério da propaganda.
Pois bem, em 1917 na Rússia, e em seguida nas
Democracias Populares, nasceu uma sociedade que se diz proletária, que
nacionalizou os meios de produção, realizando assim, no plano econômico, o que
todos os teóricos socialistas sempre consideraram como a primeira condição
indispensável a uma sociedade verdadeiramente humana.
Ora, a experiência dos últimos vinte e cinco
anos mostrou que a supressão da reificação e a nacionalização dos meios de
produção não são suficientes, elas apenas, para atingir esse objetivo.
A universalidade dos valores e sobretudo o
respeito à liberdade individual não se conservam, numa sociedade socialista, de
modo mais automático do que numa sociedade capitalista.
Associada à esterilização das estruturas
sociais intermediárias e ao desenvolvimento de uma racionalidade e de uma
burocracia inevitáveis em toda sociedade industrial moderna, a supressão da
reificação acarreta em toda parte perigos análogos.
Não há dúvida de que nenhum pensador sério
poderia, nem por um instante, identificar o hitlerismo ao stalinismo, fenômeno
cujo conteúdo — apesar de certas aparências comuns — é rigorosamente diferente
e mesmo oposto.
Não há dúvida de que qualquer pensador
socialista sincero sente uma real admiração pela rapidez do desenvolvimento das
forças produtivas na URSS e no mundo socialista.
Não há dúvida de que o fenômeno do stalinismo
tem causas históricas concretas, que precisam ser analisadas de modo preciso, e
não constitui um aspecto necessário de toda organização socialista, nem uma
etapa necessária desta.
(É preciso, no entanto, não esquecer que o
fascismo também não se identifica com o capitalismo moderno, do qual ele
constitui apenas uma das formas possíveis e sempre ameaçadoras.)
Deve-se também dizer que desde os campos de
internamento até à execução dos adversários e ao conformismo generalizado do
pensamento, a maioria das sociedades socialistas contemporâneas apresenta
inúmeras características altamente inquietantes que nenhum socialista poderia
ignorar e que a existência de uma indústria moderna nacionalizada que fortalece
consideravelmente a potência do Estado, numa sociedade onde se acaba exatamente
de realizar as condições de um primado do fator político, faz surgir toda uma
série de graves problemas sociais. Em particular o das garantias da dignidade
dos indivíduos frente ao poder do aparelho burocrático, que nem Marx nem nenhum
dos grandes teóricos marxistas posteriores havia previsto, problemas cujo
estudo e resolução constituem a tarefa mais importante dos pensadores
socialistas de nossa geração e que não poderíamos nem mesmo abordar nessa
conferência; problemas, porém, para cujo estudo é evidente que o aparelho
conceitual do pensamento marxista tradicional está longe de ser suficiente e
que poderiam e deveriam, por isso mesmo, ser o principal ponto de partida para
um progresso e uma renovação do pensamento dialético.”
1 Antes de 1933 poucas pessoas teriam
admitido a possibilidade de tal retorno à barbárie nas sociedades evoluídas
contemporâneas que, na verdade, implicavam no imperialismo e, com ele, na
iniquidade e na barbárie cotidianas nas colônias. Hoje sabemos que tais
fenômenos constituem um perigo permanente das sociedades industriais modernas,
enquanto que nessas mesmas sociedades entre 1880 e 1914 eles eram estruturalmente
impossíveis.
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