Editora: UFRJ
ISBN: 978-85-7108-351-6
Tradução: José Paulo Netto
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 240
Sinopse: Ver Parte I
“Dois fatores tornam mais complexa a situação
no capitalismo: em primeiro lugar, o “interesse comum” capitalista costuma apresentar-se
como encarnado no Estado; e, em segundo, o Estado não somente se faz passar por
instrumento do “interesse comum”, mas aparece necessariamente como tal para a
consciência reificada. O problema não reside apenas na mentira, no engano
consciente das classes dominantes; reside também, e não em último termo, no
fato de que elas se enganam a si mesmas. Se a ideologia dos setores dominantes
fosse somente uma mentira consciente, não se explicaria o fenômeno assinalado
por Marx e Engels de que a ideologia da classe dominante é, quase sempre, a
ideologia dominante. Os ideólogos burgueses não constroem nem ensinam as suas
teorias sobre a harmonia do Estado como se montassem um ardil de guerra — eles
mesmos estão convencidos da justeza das suas ideias. (...)
A comparação entre o Estado burguês e o
Estado cristão-feudal nos permitirá dissolver teoricamente essa ilusão a que
sucumbe necessariamente a sociedade burguesa. Na sociedade estamental do
feudalismo, as relações de dependência e exploração manifestam-se à luz do dia.
Por isto, sua estabilização só foi possível enquanto o instrumento de dominação
das classes feudais, o Estado, se pôs abertamente a serviço do regime feudal e
proclamou sem disfarces a necessidade de recorrer à força a fim de defender a propriedade
privada e possibilitar a exploração a ela correspondente. É certo que o fez
invocando o pecado original e a vontade divina: o Estado buscou sanção
religiosa para cumprir seu papel de instrumento da classe dominante porque
certamente, em virtude da simplicidade e da transparência das relações sociais,
não lhe restava outro meio para identificar o interesse daquela classe com o
interesse geral. O interesse egoísta, cuja dominação se expunha cruamente
diante de todos, revestiu-se, cheio de vergonha religiosa, com o véu
transparente do interesse geral.
Algo muito diferente ocorre com o Estado
burguês. Enquanto o Estado cristão-feudal se põe abertamente a serviço do
interesse de classe, sem negar seu caráter egoísta, embora recorrendo ao pretexto
do mandato divino, o Estado burguês, desde os seus primórdios, apresenta-se
como o instrumento de harmonização dos interesses egoístas contrapostos, como o
instrumento do interesse comum da sociedade. Justifica este seu papel, ao mesmo
tempo, afirmando o egoísmo como natural e pretendendo elevar-se acima dele. Não
condena explicitamente o egoísmo de classe; mas, à diferença do Estado feudal,
que expressamente se coloca a serviço do interesse de classe, engendra a ilusão
de que não promove nenhum interesse singular. Por conseguinte, se o Estado
feudal se apresenta claramente como aparato de coação a serviço da propriedade
privada, o Estado burguês, ao contrário, embora não recuse a coerção como meio
exterior da “ordem”, quer ser reconhecido como instrumento da igualdade de
todos os indivíduos enquanto cidadãos. E pode fazê-lo porque as condições
sociais do capitalismo, mais complexas e impenetráveis para os indivíduos,
comportam essa aparência. Assim, a identificação do interesse de classe burguês
com o interesse geral não se efetiva por meio da simples “argumentação”
(religiosa ou de qualquer outra espécie), mas se dá de modo enigmático e sem
que a sociedade o perceba. A sociedade capitalista, que vive segundo princípios
individualistas e egoístas, sucumbe de fato à ilusão de possuir no Estado o
instrumento da justiça equalizadora. Por isto, Marx e Engels acertam quando
caracterizam o Estado — embora referindo-se somente ao Estado burguês — como
“comunidade ilusória de interesses”.36 Mas o que agora importa para
nosso tema é que o Estado burguês se apresenta, diante da consciência da
sociedade capitalista, na forma de uma ilusão segundo a qual a coerção estatal
não intervém na regulação das condições sociais de maneira direta, como na
época do feudalismo, mas mantendo-se numa atitude vigilante e só entrando em
ação quando algo anormal perturba o equilíbrio gerado sempre automaticamente
com base no contrato privado.
A consciência burguesa, obscurecida pelo véu
da atomização e da reificação capitalistas e necessariamente ignara da relação
dialética entre subjetividade e objetividade, entre acaso e lei, tampouco pode
penetrar na dialética inerente à relação entre o “normal” e o “anormal”, que é
apenas um caso especial da relação entre lei e acaso. Na sociedade capitalista,
o normal é a multiplicidade dos interesses que se comportam como opostos na
passagem da atividade subjetiva ao processo objetivo, que se impõe por cima dos
fins individuais; daí resulta esse caráter contraditório, cujos efeitos
aparecem como simples perturbações à consciência não dialética. A consciência
burguesa não compreende que a forma da intervenção aparentemente
“extraordinária” da coerção estatal é só um momento necessário no processo de
manutenção e de reprodução do “equilíbrio social” do capitalismo, continuamente
perturbado pelas contradições que lhe são inerentes.37 A ilusão de
que o emprego da força e suas vítimas não constituem mais do que um
comportamento subjetivo e contingente, e de que o castigo é mera consequência
de um delito também contingente, continua sendo o limite ineliminável de
qualquer teoria do Estado que contraponha liberdade e coerção de maneira não
dialética. Nesta teoria, a “necessidade” da coerção se deduz extrinsecamente,
julgando inevitável, por exemplo, que a sociedade se defenda dos criminosos,
que sempre existiram e existirão porque os homens possuem disposições “por
natureza” diversas. A coerção aparece aqui como um recurso defensivo da
sociedade em seu conjunto contra aqueles que dela se excluem; essa coerção e
seu instrumento, o Estado, aparecem então como instituições que servem
igualmente a “todos” os membros da sociedade, como ferramenta do interesse
comum.
Mas este engano só pode originar-se porque,
dada a reificação do processo social que já descrevemos, a consciência burguesa
não pode compreender, em sua relação com o conteúdo econômico, essa forma de
convivência social que se manifesta na relação contratual “livre” entre os
indivíduos, na qual o Estado não intervém. Mas um simples olhar sobre a regularidade
estatística — por exemplo, sobre os ataques à propriedade — revela que a
natureza e a quantidade dos delitos (que, por sua vez, suscitam contundentes
medidas punitivas) são o resultado da contradição capitalista entre liberdade e
dependência, e que todo o complexo dos delitos e das medidas punitivas
representa um momento essencial no movimento de conjunto do capitalismo.
É evidente que não é possível estudar a
contradição entre liberdade e dependência sem examinar com a máxima atenção a
totalidade das relações capitalistas de classe. A burguesia tem o hábito —
compreensível a partir do seu ponto de vista reificado — de projetar para o
conjunto da sociedade suas próprias condições de existência, que julga
determinadas pela concorrência e pelo contrato (e isto inclusive na época dos
monopólios, que ela considera o resultado da superioridade na concorrência e na
livre contratação). Em semelhante concepção, as diferenças condicionadas pela
classe social passam a plano secundário; e a liberdade de contratação
individual dos possuidores de mercadorias, providos de direitos iguais, parece
assegurada tanto para o operário quanto para o capitalista.
Isto é tão verdadeiro no plano formal — e a
ideologia capitalista confunde este aspecto formal com o todo (por exemplo,
Schumpeter declara que as relações de propriedade carecem de importância para a
análise econômica) — quanto é falso no plano dos fatos. Também neste caso tem
um preço o desconhecimento da articulação dialética de ambos os aspectos. É
certo que, como forma, a liberdade individualista não é contingente, mas o
resultado da estrutura mercantil do capitalismo, que só pode se impor por meio
dessa forma de pulverização individualista do processo econômico. (Não nos cabe
aqui esclarecer este fato da história econômica.) Mas também é verdade que a
forma de vida individualista da sociedade burguesa constitui um resultado da
produção de mercadorias realizada com base na propriedade privada dos meios de
produção. Ora, isto significa que, no capitalismo, a liberdade individual
(liberdade de contrato) adquire um caráter extremamente contraditório para
grande parte da sociedade. Eis como Engels o descreve:
Toda a diferença com relação à escravatura declarada da Antiguidade
consiste em que o operário moderno parece ser livre, uma vez que não é
vendido de maneira definitiva, mas pouco a pouco, diariamente, semanalmente,
anualmente — e não é vendido por um proprietário a outro, mas vende-se ele
mesmo, porque não é escravo de um indivíduo, é escravo de toda a classe proprietária.
No fundo, para o operário, as coisas não mudaram; se essa aparência de
liberdade, por um lado, oferece-lhe certa liberdade real, por outro lhe
traz a desvantagem de ninguém lhe garantir a sobrevivência, de poder ser
despedido pelo patrão a qualquer momento e ser condenado à morte pela fome a
partir do instante em que à burguesia não interesse mantê-lo vivo.38
Marx se expressa em termos semelhantes no que
toca à liberdade de contratação do operário: ele “não pertence a este ou àquele
burguês, pertence à classe burguesa; por isto, é problema seu encontrar um
dono, ou seja, encontrar um comprador no interior da classe burguesa”.39
Dado o cativeiro ideológico no interior da
separação não mediada, reificada, que em princípio vale tanto para a burguesia quanto
para todas as classes da sociedade capitalista, o interesse burguês pode
declarar piamente que ele é idêntico ao do operário e que este também
compartilha da liberdade individual de movimentos. Uma vez que esta ideia se
desenvolveu e se converteu em hábito, ela permite à burguesia — que, nos
primórdios da sua dominação, negou-se decididamente a conceder as liberdades
cívicas (inseparáveis da forma de vida individualista) — outorgar pouco a pouco
direitos democráticos às classes dominadas. E isto, por seu turno, logo
reforçou, nos indivíduos prisioneiros da ilusão reificada das liberdades
cívicas, a crença de que compartilhavam com a burguesia o interesse pela
liberdade civil. Diante dessa consciência, o Estado aparece naturalmente como a
encarnação do interesse comum, da segurança para todos. Diz Marx:
A segurança é o conceito social supremo da sociedade burguesa, o
conceito de polícia, segundo o qual toda a sociedade existe fomente para
garantir a cada um de seus membros a preservação das suas pessoas, dos seus
direitos e da sua propriedade.40
Mas este conceito de segurança é tão somente
a outra face do conceito de liberdade, Estes dois elementos da ideologia
democrático-burguesa reificada são os pilares sobre os quais se edifica a
equiparação ilusória dos interesses egoístas da burguesia com o
interesse comum da sociedade e que possibilitam a autonomização do interesse
burguês de classe em relação à sociedade em seu conjunto. Em outras palavras, a
apresentação deste interesse como interesse sagrado.
Não existe nenhum fenômeno da ideologia
burguesia que não possa se vincular à reificação, nem problema algum da teoria
burguesa cuja “solução” não possa referir-se a ela. Isto é particularmente
válido para a economia política, que estuda cientificamente os fenômenos
primários da economia. Este é também o objeto da ciência econômica marxista.
Há, porém, uma diferença fundamental: a teoria burguesa não penetra as formas
de manifestação reificadas dos processos econômicos como tais, enquanto a
teoria marxista não “se intimida diante de nada” e inicia a sua investigação
com a crítica da aparência. Não é casual que a famosa seção sobre o caráter
fetichista da mercadoria compareça no primeiro capítulo de O capital.
Dentre os diversos sistemas da economia política burguesa, durante muito tempo
encontrou a maior aceitação aquele mais conforme à consciência ordinária
reificada: a teoria da utilidade marginal. Por isto, não podemos deixar de
examinar rapidamente os supostos metodológicos em que ela se baseia.
A teoria da utilidade marginal, que
caracteriza a si mesma como a orientação “subjetiva” da economia política,
parte do indivíduo e, portanto, de uma abstração. Mas esta não é uma abstração
“razoável”, segundo a expressão certa feita utilizada por Marx.41
Não é uma abstração praticada conscientemente a fim de considerar um problema
parcial determinado e não é, portanto, uma abstração no sentido da
generalização científica; é uma abstração absoluta, na qual se reflete a
aparência reificada da sociedade burguesa, cujo traço principal é a atomização
do processo social em incontáveis atos individuais. Conforme esta concepção
individualista — no essencial, pouco diferente da do velho direito natural
individualista —, a sociedade se renova continuamente porque os indivíduos são
impulsionados a reunir-se para satisfazer determinadas necessidades, ideia
muito similar ao conceito de causa impulsiva do velho direito natural. É
flagrante a diferença com o conceito marxista de sociedade: para o marxismo, o
todo não se “compõe” de indivíduos, assim como estes não são “produzidos” de
algum modo misterioso pela totalidade (como se sustenta em algumas doutrinas
metafísicas da totalidade, de Adam Müller até Othmar Spann). Ao contrário, o
marxismo concebe o processo social como unidade dialética do individual e do
todo, no qual, enquanto o individual é o espaço em que a subjetividade se
converte em objetividade, o todo é o espaço em que a objetividade determina a
subjetividade. Para a concepção marxista, o homem não é apenas um “animal sociável”,
como equivocadamente se traduziu o zoon politikon de Aristóteles, “mas
também um animal que somente na sociedade pode converter-se em indivíduo”.42
Ou seja: um ser socializado.
Esta distinção conceitual entre homem
“sociável” e homem “socializado” expressa toda a diferença entre a teoria
social metafísica e subjetivista e a teoria social marxista. Mas tal diferença
só pode ser compreendida cabalmente se for apreendido o princípio através do
qual a socialização humana se constituiu e tornou-se possível a partir de sua
gênese. Trata-se do princípio do salto da subjetividade à objetividade e das
bases gnosiológicas da relação sujeito-objeto. Para a concepção subjetivista,
este problema não existe. À maneira do velho racionalismo burguês dos séculos
XVII e XVIII, ela entende que a sociedade surge simplesmente porque os
indivíduos são impulsionados a reunir-se para satisfazer determinadas
necessidades, o que não é concebido como necessidade irretorquível, como
princípio inderrogável do ser social, mas como algo que, em princípio, poderia
ter se produzido de outro modo. Como diz Marx, nesta concepção domina a ideia
de que “a origem de uma relação económica cuja gênese histórica [ela]
desconhece [...] [haveria de buscar-se] em Adão e Prometeu”.43 A
estreiteza de visão desta teoria deriva da sua sujeição à aparência reificada;
de acordo com ela, o que é dado primariamente é o indivíduo. Por certo, como
qualquer ser vivo, o indivíduo humano estabelece uma relação com a natureza a
fim de apropriar-se de objetos por ela fornecidos; trata-se, portanto, de um
ser que trabalha, mas que só se apresenta como ser social quando oferece seus
produtos para trocá-los com os de outros indivíduos. Aqui, o trabalho aparece
como um suposto natural e universal de qualquer relação econômica, similar à
circunstância de que o homem possui um estômago e dois olhos ou seja, enquanto
tal, o trabalho não se integra nessa relação. Por conseguinte, apenas “no
mercado” passa o homem a ser objeto de um processo interindividual, o que ocorre
não necessariamente, mas só a partir daquele momento do desenvolvimento
histórico em que o aumento das necessidades impõe a troca. Apenas então nasce
aquele processo que pode converter-se em objeto da consideração econômica, pois
são as necessidades e o grau da sua satisfação que conferem valor aos objetos
úteis para satisfazer tais necessidades; a economia deve iniciar-se, assim, com
o estudo de um processo que não transcende a existência individual.
A teoria da utilidade marginal, portanto,
desconhece o princípio da passagem necessária da subjetividade à objetividade,
que está na base de todo o ser social; a sociedade se “constitui” como um clube
esportivo e, pode-se dizer, de maneira artificial, com a única diferença de
que, no caso do clube, a força impulsionadora é uma necessidade de consumo e,
no caso da sociedade, a manutenção da vida. Nesta teoria, os homens não são
seres socializados, mas apenas sociáveis. O princípio do qual
surge a sociedade não é inerente ao ser humano como tal e, por conseguinte,
necessário; é, no fundo, um princípio contingente e extrínseco. A experiência
ensina que a dificuldade para uma crítica da teoria da utilidade marginal reside
no fato de que quase sempre, em vez de se começar investigando suas bases
metodológicas, são questionadas suas proposições positivas, aceitando-se
inadvertidamente os seus pressupostos. Uma investigação com base na metodologia
mostraria que essa teoria, permanecendo prisioneira da ilusão (extremamente
reificada) segundo a qual o indivíduo consumidor é o dado primário (a célula)
das relações econômicas, não se limita a construir um falso conceito de
sociedade: na verdade, ela não dispõe de nenhum conceito de sociedade. Abstrai
simploriamente a sociedade; e é por isto que suas concepções partem de
premissas substantivamente equívocas. Com efeito, um conceito de sociedade que
não se apoie num princípio produtor da sociedade como tal é uma
abstração vazia e está exposto ao perigo de que, nele e com ele, se abstraia
precisamente o essencial. É isto o que se passa no caso da teoria da utilidade
marginal.
A pergunta cuja resposta é a condição
metodológica para um trabalho correto em qualquer ciência referente à vida
social (economia política, teoria social, história), ou seja, a pergunta pelo
princípio produtor da socialização (relação sujeito-objeto), tem uma resposta:
como já mostramos, esta resposta é dada pelo papel que ocupa o trabalho na
gênese da vida social. O equívoco em que incorre não apenas a teoria da
utilidade marginal, mas toda ciência metafísica que de um modo ou de outro faça
da sociedade seu objeto, consiste em começar — digamos assim — pela metade. Em
lugar do todo e da sua dialética, temos a parte, que depois é interpretada
arbitrariamente. Daí resultam as diferentes “opiniões” da ciência burguesa. Por
isto, tais teorias veem no trabalho um “fator” ao lado de outros e não
apreendem seu papel essencial; ou seja, o lugar que lhe é atribuído em cada sistema
depende do “ponto de vista” particular do cientista respectivo. Se partirmos,
porém, da consideração da totalidade social e, portanto, da gênese da sociedade
humana, ganha relevo a função central do trabalho, que é a condição
ineliminável de toda relação humana. Em termos metodológicos, isso significa
que o trabalho é o princípio que em geral torna possível o ser social. Mas, se
o trabalho possui realmente esta função central, não podem existir processos ou
fenômenos na história da sociedade, referidos aos indivíduos socializados
através do trabalho, que não possam ser vinculados, em última análise, à
relação sujeito-objeto e ao princípio que a fundamenta, ou seja, o próprio
trabalho. E é evidente que tudo isto se manifesta particularmente no caso da economia
política. Aqui se revela a raiz metodológica da teoria do valor-trabalho: ela
não constitui simplesmente uma teoria entre outras, mas possui uma base segura
e epistemologicamente comprovada. Não se pode atacar seriamente a teoria do
valor-trabalho sem atacar todo o seu conceito de sociedade; e é impossível
refutar este último sem remover toda a teoria da dialética. É evidente que o
ponto de vista da reificação, no qual a teoria burguesa se situa, é o que
apresenta maior debilidade no desencadeamento de tal ataque.”
36 Marx e F. Engels, Die deutsche Ideologie, in Frühschriften, ed. cite. v. 2, p. 24.
37 K. Marx, Das Kapital, ed. cit., v.
3, p. 936.
38 Engels, Die Lage der arbeitenden Klasse in England. [A referência fornecida por Kofler é incompleta e pode ser precisada:
cf. F. Engels, A situação da classe trabalhadora na Inglaterra, São
Paulo, Boitempo, 2008, P. 121.]
39 K. Marx, Lohnarbeit und Kapital
[Trabalho assalariado e capital]. Marx expõe detalhadamente a “liberdade” do
operário em Das Kapital, v. 1, p. 175 e ss. [Há tradução ao português de
Trabalho assalariado e capital em K. Marx e F. Engels, Obras
escolhidas em três volumes, Rio de Janeiro, Vitória, v. 1., 1961.]
40 K. Marx, Zur Judenfrage, 1919, p.
33. [Há tradução ao português: Para a questão judaica. São Paulo,
Expressão Popular, 2009.]
41 [Marx se refere à “abstração razoável” na Introdução de 1857, já mencionada.]
42 K. Marx, Zur Kritik der
polistischen Oekonomie, ed. cit., p. xiv.
43 Ibid, p. xv.
“Se, como já expusemos, a realidade é um
processo cuja essencialidade se encarna na relação dialética do relativo e do
absoluto e na relatividade destas determinações,16 isto adquire, no
que diz respeito à história, um duplo significado. Por uma parte, os sujeitos
históricos, cujo pensamento é naturalmente o do entendimento ordinário que
procede por oposições polares, como diz Engels, podem conceber a realidade
apenas de maneira deformada, uma vez que permanecem prisioneiros do relativo
não mediado. Com base neste modo de representação não dialético se desenvolve o
conteúdo concreto de ideias conforme as leis objetivas da sociedade e os
interesses — por estas engendrados — das diferentes classes.
Por outra parte, isto significa que também o
pensamento retrospectivo, que faz da história o objeto do seu conhecimento,
sucumbe à mesma aparência quando não supera metodologicamente os limites da
sujeição ao relativo. Por conseguinte, aquilo que nos é legado como fato
“puro”, logo que transcende a fronteira do mais simples informe sobre dados,
traz consigo, necessariamente, a aparência do relativo não mediado. E uma
historiografia restrita à compilação de simples dados não é história: é
crônica. De certo modo, a história se relaciona à crônica como a aritmética à
álgebra. Mas, quando a historiografia metafísica se empenha em proporcionar um
conhecimento efetivo sobre a história, pretendendo-se mais do que crônica, de
nenhum modo consegue romper, pelas razões apontadas, a aparência metafísica com
que necessariamente se apresentam os fatos. Recai, então, no plano metodológico
e epistemológico, no dilema entre a exposição da história seguindo uma
cautelosa superficialidade ou, mediante construções, na busca do “profundo” — e
este dilema se impõe independentemente do credo político, progressista ou
reacionário, do historiador.”
16 V. I. Lenin, Aus dem philosophischen Nachlass, 1949, p. 286 e
ss.
“Muitas vezes a ideologia se configura
contraditoriamente ao genuíno interesse de classe, precisamente porque as
condições objetivas não correspondem ainda ou já deixaram de corresponder a um
determinado interesse de classe plenamente desenvolvido. Por exemplo, sob a
pressão das condições objetivas, maduras para a revolução burguesa, a ideologia
do proletariado, representada pelos “niveladores”, desenvolveu-se durante a
Revolução Francesa no sentido do anarquismo, o que de nenhum modo correspondia
ao seu interesse de classe. Mas, quando se afirma que este desenvolvimento
ideológico corresponderia justamente ao interesse de classe do proletariado da
época, explica-se de modo idealista o interesse de classe a partir da ideologia
e não esta a partir daquele: o proletariado foi anarquista, então isto
correspondeu ao seu interesse de classe.
O reflexo do ser social na consciência, a
produção de uma ideologia em que se refletem as condições em permanente
movimento, contraditórias e regidas por interesses opostos, é um processo
complicado, cuja essência — e, com esta, a essência dos seus momentos — só se
revela perseguindo e descobrindo a sua dialética total. Não é suficiente
apresentar uma relação externa entre ser e consciência pela via de sua
equalização formal, afirmando, por exemplo, que — posto que o direito natural
de tal ou qual século revela um conteúdo burguês e revolucionário e posto que a
burguesia desta época foi de fato revolucionária — o direito natural
revolucionário é a ideologia da burguesia revolucionária. Em primeiro lugar, o
direito natural não é somente revolucionário; ademais, o próprio fato de ser um
direito natural exige uma explicação, e esta escapa completamente ao
entendimento mecanicista; e, por fim, é preciso compreender onde está o genuinamente
burguês deste direito natural, pelo qual ele se diferencia da forma feudal,
externamente muito semelhante — e isto, que também não é nada fácil, não será
alcançado nunca mediante os métodos mecanicistas. Aquilo que essencialmente
interessa descobrir e expor é a via concreta pela qual as condições objetivas
se transladam à consciência: esta é a única maneira de conceber a
essencialidade interna de um fenômeno ideológico. Contudo, em lugar de expor de
maneira concreta o processo dialético de desenvolvimento de uma ideologia; em
lugar de investigar a vida, que se move por contradições e cujo resultado
configura uma ideologia determinada, o pensamento mecanicista deduz, mediante
uma comparação mecânica dos “fatores” ideológico e econômico, o “resultado”, que
apreende de forma rígida e inerte; a única consequência deste procedimento é
que tal “resultado” jamais constitui um conceito efetivo da relação entre ser e
consciência. Mas, como “resultados” assim vazios são facilmente corroborados
pelas fontes que, enquanto produtos do pensamento ingênuo e metafísico do
passado, refletem a realidade do mesmo modo fenomênico que o pensamento do
historiador metafísico de nossos dias, a este nem sequer lhe ocorre que algo
vai mal nas suas deduções.
Vejamos outro exemplo. Muitas vezes se
perguntou por que pensadores e movimentos revolucionários, desde Milton e os levellers
até Kant e a Revolução Francesa, negaram aos despossuídos o direito eleitoral,
que concebiam como democrático (ou democrático-burguês, como é natural). A
resposta “verossímil” dada à pergunta (por exemplo, por Max Adler, Vorlander,
Bernstein, Meusel) é que a dependência pessoal direta em que se encontravam os
despossuídos e os assalariados frente aos senhores (ainda predominantemente
feudais) fazia temer que eles, em razão da sua falta de autonomia material e
espiritual, engrossassem os votos daqueles contra os quais lutavam a burguesia
e a pequena burguesia revolucionárias. E as fontes confirmam
tranquilizadoramente esta interpretação, como o demonstra o caso do “prudente
John Baxter”17, citado como exemplo da Grande Revolução Inglesa: em
sua Autobiografia, ele se pronuncia contra o direito eleitoral dos
despossuídos argumentando que estes seriam partidários da nobreza e da
monarquia.
Esta resposta parece muito “verossímil” — no
entanto, ela inverte a verdadeira situação. Prescindindo de ser muito
verossímil a conjectura de que se temia uma transformação da propriedade como
consequência da extensão do direito eleitoral aos pobres (o próprio Cromwell se
manifestou a este respeito em sua discussão com os conselhos de soldados e,
decerto, o “contrato social” dos levellers era tão alheio a qualquer
“reforma” da propriedade que a negativa de Cromwell em conceder o direito
eleitoral aos despossuídos é facilmente explicável), é preciso colocar,
admitida tal verossimilhança, uma pergunta muito natural: então, por que nunca
se pensou, seja na Revolução Inglesa ou na Revolução Francesa, em retirar o
direito eleitoral à nobreza, a quem se temia que os despossuídos apoiassem,
contra a qual se conduziam batalhas frontais e que era levada ao cadafalso? É
muito característico que os historiadores não coloquem esta pergunta — de fato,
ela não figura nas fontes. O próprio Milton, que não vacila em identificar os
católicos feudais com os livres-pensadores e os exclui da tolerância de que se
pretende porta-voz quando menciona os direitos políticos, só se refere à
exclusão da “plebe” despossuída (segundo a sua expressão), sem dizer
absolutamente nada da nobreza feudal. Há, aqui, algo muito estranho.
A verdade é que se caluniou o trabalhador
“não autônomo”, declarando-o incapaz de usar os direitos civis, porque se
necessitava de um pretexto credível para excluí-lo — e os historiadores
modernos repetem cegamente esta calúnia porque ela está registrada nas fontes.
Uma investigação mais profunda, que valorize as fontes com critérios dialéticos
e com um método dialético mais seguro, descobriria algo mais do que tais
“explicações” vazias e incorretas no contexto total da época da ascensão da
burguesia. Mostraria algo que Marx e Engels já assinalaram no Manifesto do partido
comunista: que, para a consciência burguesa (e, na
mesma medida, pequeno-burguesa), pessoa é unicamente o proprietário e que o
despossuído — a quem, ademais, se teme — é considerado como “não pertencente à
sociedade” (e, isto, as fontes comprovam suficientemente). Uma investigação
assim, que se sirva seriamente da dialética, comprovaria o fato da
identificação ideológica entre pessoa e propriedade. Mas não se deteria aí:
mostraria, sobretudo, a sua função real e a sua essência, revelando as vias
(ocultas à abordagem metafísica) pelas quais as condições sociais, com toda a
sua complexidade, prescrevem a formação daquela ideologia.”
17 Meusel, Über die englische Revolution
(Sobre a revolução inglesa), volume comemorativo do 70º aniversário de
nascimento de Vierkandt, 1949, p. 36 e ss.
“Na medida em que o homem ativo, que no
trabalho entra numa relação necessária com o seu próximo, determinada pelas
forças produtivas, “faz” ele mesmo a sua história sobre o fundamento de
circunstâncias independentes dele e “já dadas”; e, posto que toda a sua atuação
passa pela sua consciência, ele reflete sobre as condições objetivas de um modo
necessário e determinado por estas mesmas condições. Aqui, a objetividade —
depois de a subjetividade ter previamente se convertido, mediante o trabalho,
em objetividade — se converte em subjetividade. Mas esta subjetividade não é
algo meramente pensado: já que desempenha uma função prática no processo
social, constitui um momento da atividade do homem e representa uma forma de
subjetividade concreta. A ideologia supõe um momento igualmente necessário no
processo de autorrealização da história, e em pé de igualdade com os outros
momentos; portanto, o trabalho conceitual que se exterioriza em produtos
ideológicos pertence à “objetividade” da história como qualquer outra forma de
atividade.18 Neste sentido, diz Marx, “também a violência é [...]
uma potência econômica”.19
Por isto, não se pode apreender
conceitualmente uma época — e, portanto, a sua história social — se não se
levam em consideração os momentos ideológicos, “nos quais os partidos procuram
esclarecer-se acerca de sua posição”,20 e que configuram não as
causas objetivas, mas o marco subjetivo da ação prática. O todo só é realmente
todo se media dialeticamente todos os seus momentos.”
18 Cf. K. Marx, Thesen über Feuerbach,
primeira tese, em F, Engels, Ludwig Feuerbach, 1946, p. 54.
19 K. Marx, Das Kapital, v. 1, p. 791.
20 F. Engels, Der Deutsche Bauernkrieg,
p. 5.
“Qualquer tentativa de reconhecer o processo
histórico sem atentar cuidadosamente em tudo, inclusive nos momentos
ideológicos, necessariamente apoia-se em suportes frágeis, tanto quanto o
procedimento inverso, consistente em discernir cientificamente os momentos sem
prestar a máxima atenção à totalidade do processo em sua dependência recíproca.
Em última análise, este é o único método revolucionário, pois só ele permite
compreender a história humana como um processo que avança de modo necessário
para formas sempre mais elevadas da existência social. Somente a dialética
supera o dilema entre o objetivismo burguês vazio e o subjetivismo que
transforma “revolucionariamente” a história com meras frases e ao qual cabem as
palavras de Marx: “Nada é mais tedioso e árido do que o locus communis*
disfarçado”.”
*: Lugar-comum.
Um comentário:
O primeiro trecho desta postagem deveria ficar, na verdade, na postagem III. Entretanto, como ele é muito extenso, perturbaria o tamanho delas (deixando uma muito extensa e a outra muito curta), por isso, foi trazido para cá, de modo a balancear o tamanho delas.
Outrossim, infelizmente esta já foi uma postagem excessivamente extensa, por isto, o intervalo entre as páginas 175 e 182 não poderá ser compartilhado, mas fica aqui seu destaque.
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