Editora: UFRJ
ISBN: 978-85-7108-351-6
Tradução: José Paulo Netto
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 240
Sinopse: Ver Parte I
A complexidade e a diversidade dos fenômenos ideológicos concretos podem
ocultar esta função das ideologias; e os próprios ideólogos podem imaginar que
estão exclusivamente a serviço do conhecimento “puro” da realidade, perseguindo
um fim desinteressado. Mas, apesar disto, suas ideias sobre o objeto são, na
verdade, as ideias do objeto, são momentos necessários — e, por isto,
dependentes no processo da autocriação da história. O aspecto ativo deste
processo, mediador dialético de atividade e passividade, sujeito e objeto,
pensamento e ser, é inconcebível sem a intervenção da atividade pensante. E,
quando se concebe a atividade social de maneira puramente mecanicista, como
expressão passiva da “lei” e consequentemente de modo objetivista (isto é, sem
considerar o fato de que a atividade só pode ser subjetiva e operar com a ajuda
do pensamento projetando fins conscientes), quando isso ocorre a admissão do
papel essencial da atividade no processo social se converte numa afirmação
vazia e numa retórica. Nesta concepção, o homem só atua aparentemente: ele se
cristaliza em passividade, uma vez que seu pensamento não é mais do que uma
série de ideias acerca do que já ocorreu e não pode, absolutamente,
converter-se em atividade.
Nem mesmo Hegel, o fundador da teoria da unidade dialética entre sujeito
e objeto, conseguiu resolver este problema, impedido que foi pelos limites
idealistas da sua concepção. É muito instrutiva a crítica que Marx e Engels lhe
dirigiram. Engels, em Ludwig Feuerbach e
o fim da filosofia clássica alemã, observa que Hegel concebe a realização
da Ideia absoluta como a de uma finalidade pré-estabelecida. E, sem dúvida,
essa suposição de um telos
estabelecido de antemão — e que, portanto, direciona a história, por assim
dizer, a partir de fora — está em flagrante contradição com a própria concepção
fundamental de Hegel, segundo a qual a história se realizaria na forma da
identidade entre o sujeito e o objeto no processo histórico. Também Marx
censura Hegel por não ter superado a cisão entre pensamento e ser, sujeito e
objeto; censura-o porque seu sujeito não participa verdadeiramente do “fazer”
histórico, já que somente a posteriori
(apenas na filosofia) se resgata a si mesmo; porque, ao invés de participar
diretamente na história como portador subjetivo do autoconhecimento histórico
do processo objetivo, não pode fazer mais do que reconhecer, a posteriori, o acontecido. Marx critica
em Hegel o fato de que seu Espírito absoluto “só aparentemente faz a história”:
Já em Hegel o Espírito
absoluto tem o seu material nas massas e sua expressão correspondente na
filosofia. O filósofo aparece, então, apenas como o órgão com o qual o Espírito
absoluto, que faz a história, alcança a consciência com posterioridade, depois
de concluído o movimento. A esta consciência posterior do filósofo se reduz a
sua participação na história, pois o movimento efetivo atualiza o Espírito
absoluto por vias inconscientes. O filósofo entra em cena post festum. Hegel incorreu num duplo equívoco: primeiro, quando
declarou que a filosofia é o ser-aí do Espírito absoluto e, ao mesmo tempo,
recusou-se, em troca, a proclamar o indivíduo filosófico real como o Espírito
absoluto; e, depois, quando só em aparência admitiu o Espírito absoluto
enquanto tal como produtor da história. De fato, posto que o Espírito absoluto
apenas post festum, como Espírito
criador do mundo, alcança a consciência, a sua produção da história existe
somente na consciência, na imaginação especulativa.40
Relativamente ao tema deste capítulo, é de extrema importância observar
que esta dualidade apontada por Marx consiste na mesma segmentação metafísica e
na mesma contraposição mecânica entre princípio movente e princípio movido e,
também, entre pensamento e ser, características da sociologia vulgar
materialista e burguesa. E, do ponto de vista da dialética, não há nenhuma
diferença radical de que em Hegel seja o Espírito absoluto (isto é, um
princípio mitológico e não materialista) que cumpra a função que o meio natural
desempenhava no velho materialismo ou que o “fator econômico” exerce na
deformação atual do marxismo pela sociologia vulgar. Quanto ao método, tais
concepções chegam ao mesmo resultado: na incapacidade da história para se
apropriar da dimensão pensante e ativa, isto é, a incapacidade — tanto dos
filósofos idealistas quanto dos materialistas vulgares — de conceber o processo
histórico como unidade dialética de atividade e lei, de pensamento e ser. Se,
na teoria mecanicista da história, esta é movida desde o exterior por uma lei
mecanicamente concebida, na filosofia hegeliana o Espírito absoluto faz o mesmo
— e, em ambos os casos, permanece intocado o caráter contemplativo. Por isto,
Marx pôde censurar Hegel (o qual, apesar do seu esforço muitas vezes fecundo
para esclarecer a essência da relação sujeito-objeto, não se ateve
consequentemente às suas próprias conclusões) por ter feito que seu Espírito
absoluto realize o movimento efetivo por vias “inconscientes” e que,
permanecendo de certo modo fora da história, só aparentemente a crie — por
isto, o movimento da história, em Hegel, é tão cego quanto na teoria
mecanicista da história. Na realidade, e não meramente na ilusão, o Espírito
absoluto produziria a história se, por meio do papel que Hegel lhe atribui (ser
o conhecimento de si da história), adquirisse uma dimensão prática, ou seja:
se, em cada instante do processo histórico, se tornasse momento necessário da
autocriação dialético-legal deste processo, ou, mais precisamente, da relação
dialética entre sujeito e objeto.”
40 Marx e F. Engels, Die heilige Familie, in Frühschriften, ed. cit., v. 1, p. 381 e ss.
“Cabe afirmar, em primeiro lugar, que é da própria essência do interesse
de classe o fazer-se passar por interesse “sagrado” supraindividual e o
identificar-se com o interesse geral. Se ele, porém, acaba por entrar em cena
como um poder por assim dizer suprahumano, como a aparência do eterno, a razão
disto não reside nele mesmo, mas nas circunstâncias objetivas de que o homem
depende e que não controla. Na sociedade pré-capitalista, este nexo de
dependência é relativamente simples: a natureza que domina o homem e lhe
aparece como um ser místico lhe proporciona o motivo para mistificar seu
próprio ser e adequar a sua filosofia a esta tendência à mistificação. Esta,
ademais, é apenas a forma da ideologia, cujo conteúdo é determinado em cada
caso pelo interesse concreto de classe, por mais que as formações conceituais
abstratas contribuam para a sua expressão.
Na sociedade capitalista, aquele nexo é infinitamente mais complexo.
Aqui, a mistificação não é introduzida na sociedade a partir de fora: a
mistificação constitui a sua essência. Por uma parte, na esfera do ser da
sociedade burguesa e urbana nascente, a dependência direta da natureza externa
cede cada vez mais o passo a uma aplicação “mais livre” das forças produtivas;
o trabalho subordina crescentemente às suas exigências a atividade intelectual
e, em função da difusão do intercâmbio de mercadorias, a relação entre os
indivíduos se reduz cada vez mais ao contrato livre, que passa a substituir as
relações de dependência tradicionais e irracionais da sociedade feudal e
agrária. Esta relação livre baseada no contrato, sem dúvida, é apenas a forma
sob a qual a se oculta a necessidade econômica no modo de comportamento dos
indivíduos. No entanto, a diferença em relação à Idade Média feudal é
fundamental. As forças naturais que antes se apresentavam como algo exterior e
como coisas, são socializadas; no pensamento burguês, a natureza perde
gradualmente o aspecto de algo misterioso e indomável e as forças naturais são
despojadas cada vez mais do seu caráter reificado e irracional, à medida que
são incorporadas conscientemente (ou seja, pela via do conhecimento e do
cálculo próprios à ratio) à atividade. O misticismo da natureza é
dissolvido pela ratio que, em seguida, converte-se no fator dominante da
consciência social.
Mas, por outra parte, esta racionalização do processo e da consciência é
apenas ideológica e formal. De fato, por trás da forma da racionalização do
ser, avança com ímpeto crescente o obscurecimento e a irracionalização do
processo, à medida que se tornam mais complexas as relações da economia
mercantil, com base no desenvolvimento das forças produtivas potenciado pela
divisão do trabalho. Inverte-se a situação: se, na época pré-capitalista, a
impenetrabilidade das relações se revestia de uma crosta mística tomada de
empréstimo à natureza, nas condições da sociedade individualista produtora de
mercadorias se sobrepõe ao processo (que, como tal, tornou-se impenetrável e
indomável) uma capa tomada da ratio, que se adensa velozmente, municiada
por seus precisos instrumentos de mensuração e seus critérios de evidência. A
ilusão se origina do fato de que, a partir do âmbito específico da atividade
individual (isto é, de um âmbito parcial da sociedade, estritamente
delimitado), estende-se ilimitadamente o poder do entendimento. Esta
racionalização de um âmbito parcial é justamente a premissa para a mistificação
do todo.
Se é verdade que o indivíduo burguês controla por completo o âmbito
parcial no interior do qual se move — apenas na medida, naturalmente, em que a
“razão” controla a consideração das condições exteriores —, também é verdade
que os supostos sob os quais isto ocorre permanecem ignorados. E devem
continuar ignorados, uma vez que a autonomia desse âmbito parcial é só
aparente; na verdade, no seu interior operam determinações que surgem do
movimento do processo total. E precisamente os principais supostos são os que
parecem pertencer com exclusividade a esse âmbito parcial: o trabalho e seu
produto. Quanto a seu valor, este se estabelece seguindo leis que existem fora
desse âmbito parcial e que, portanto, se subtraem à apreensão da ratio
individual. Assim, é incorreto explicar, como frequentemente se tenta fazê-lo,
a mistificação do processo total capitalista tomando por base única a sua
pulverização em atos parciais independentes entre si, ou seja, com base na
anarquia capitalista. Esta é apenas a condição geral da irracionalidade do
todo, da instauração de leis supraindividuais e indomáveis. Tal como a
concorrência não pode ser utilizada como explicação dos fenômenos econômicos,
também a reificação não pode ser explicada pela anarquia. Ao conceito de
anarquia aplica-se o que Marx afirma acerca da concorrência:
A análise científica da
concorrência só se torna possível quando se conceitualiza a natureza íntima do
capital, assim como o movimento aparente dos astros só se torna compreensível
para quem conhece o seu movimento real, que não é perceptível pelos sentidos.24
Uma reflexão simples nos convencerá de que a anarquia capitalista, por
si só, nada explica; ao contrário, ela é que necessita de explicação. Se aquele
âmbito parcial fosse inteiramente cognoscível e transparente para os indivíduos
que nele se movem — cognoscível na realidade e não somente de acordo com as
representações que dele se fazem —, o processo em seu conjunto não se
apresentaria como um enigma, apesar da anarquia social, e seriam supérfluas as
tentativas para conhecê-lo cientificamente. No melhor dos casos, o conceito de
anarquia não é mais do que sinônimo do processo total, enquanto opaco e
fragmentado — e, para que seja possível obter alguma explicação, primeiro é
preciso analisar o próprio processo.
É por isto que Engels não inicia a sua famosa exposição do caráter
contraditório da economia capitalista, no Anti-Dühring, tratando da anarquia: ele parte da
transformação dos “produtos, de produtos individuais em produtos sociais” e do
que resulta desta transformação — isto é, do fato de que nenhum operário pode
dizer: “eu fiz este produto e, portanto, este é meu produto”.25 A
causa disto é a divisão do trabalho. Só se pode estudar e compreender o
processo total da reificação a partir deste ponto: a conversão da relação entre
operário e produto em algo irracional.
Esta conversão permite que as mercadorias possam ser trocadas umas pelas
outras no mercado sem que a evocação, mesmo a mais remota, do quantum de
valor aderido a elas precise desempenhar qualquer papel. Para saber que era
vítima de uma “fraude”, o companheiro das corporações medievais necessitava
somente comparar o seu salário semanal — que ele recebia, por exemplo, em troca
da entrega de quatro pares de botas por semana — com o rendimento do mestre. (Evidentemente,
ele não podia saber, como Marx haveria de demonstrar, que mais-valia e lucro
não constituem uma fraude vulgar, mas resultam da diferença entre força de
trabalho e trabalho.) Mas, na época do apogeu das corporações, o companheiro
aceitava essa “fraude” por considerá-la o preço devido pela aprendizagem e pela
sua expectativa de chegar à condição de mestre.
Os operários modernos, em troca, não podem apreender espontaneamente
este nexo, mesmo que se esforcem para tanto (exceto se a ciência os auxiliar).
A relação entre quantum de trabalho e produto já estava oculta no
interior da unidade produtiva em consequência da divisão do trabalho imperante
no processo produtivo; e, com maior razão, a mercadoria se autonomiza do homem
no mercado, onde o seu valor parece determinar-se segundo meras relações entre
coisas, com base, precisamente, em sua prévia autonomização no interior da
unidade produtiva. A mercadoria aparece assim como ente natural, não humano, ou
coisa “fatal” (no dizer de Marx): em seu movimento imprevisível, ela domina o
homem, ao invés de ser dominada por ele. Começa aqui o processo da reificação
que, todavia, vai ainda mais além. Com efeito, também o valor do trabalho (que
a consciência ingênua não distingue da força de trabalho), mensurado pela
quantidade de mercadorias necessárias à sua produção, aparece aqui como um
fator que seria determinado por premissas que têm o caráter de coisas — e assim
pode engendrar-se a ilusão de que o operário recebe um valor integral em troca
do trabalho que ofereceu. (Nos casos em que a miséria leva o operário a supor o
contrário, o salário parco lhe aparece como uma fraude vulgar e a sua elevação
como eliminação dessa fraude.) “O trabalho aparece — diz Marx — como trabalho
pago”. “O valor do trabalho [não é mais do que] uma expressão irracional do
valor da força de trabalho”,26 que parece determinar-se segundo
relações de valor inteiramente alienadas e reificadas.”
24 K. Marx, Das Kapital, v, 1, p. 331.
25 F. Engels, Die Entwicklung des Sozialismus, ed. cit., p. 46.
26 K. Marx, Das Kapital, ed. cit., v. 1, p. 565 e 564.
“Decerto, a ingenuidade com que o indivíduo da sociedade capitalista
toma por verdadeira a aparência mais reificada dos fenômenos do âmbito parcial
lhe deixa, formalmente, a possibilidade de racionalizar cada vez mais a sua
atividade e, com isto, reforça o seu sentimento de “liberdade”; mas o impede de
compreender a relação entre a parte e o todo, para a qual, ademais, a
atomização do processo social em uma infinidade de atos individuais já o
tornara cego. Em suma, torna-se irreconhecível para ele o que constitui a
condição verdadeira e real da sua ação: o fato de que o processo total que rege
o âmbito parcial cancela a sua “liberdade” e orienta (sem que ele o saiba) a
atividade individual numa determinada direção, com o auxílio de momentos que em
aparência são simples coisas, como o valor (preço) do trabalho, o valor do
produto etc. Ao mesmo tempo, isto significa — na medida em que a reificação de
determinados momentos do âmbito parcial não é contingente nem arbitrária, mas
toma a sua forma concreta às leis do todo — tais momentos (e sem que isto
reduza a ilusão da liberdade) se convertem, sem que o indivíduo tenha
consciência disto, em elos mediadores entre o âmbito parcial e o todo, ou, o
que é o mesmo, na condição para a transformação da atividade subjetiva em
legalidade objetiva.
Tomemos como exemplo a relação entre trabalho e produto. Sabemos já que,
na produção regida pela divisão do trabalho, o trabalho se autonomiza do seu
produto, com o que o seu valor se torna incompreensível. Para a consciência
burguesa, o valor que efetivamente se impõe é regido pelos “preços” que se
alcançam no mercado, ou seja, segundo regras inescrutáveis que governam o ato
da troca na esfera das relações totais — regras que aparecem como próprias da
relação, não humana, entre coisas. Por isto, o empresário não gasta seus
neurônios com elas: simplesmente pressupõe os valores ditados pelo mercado como
condições naturais para o funcionamento do seu âmbito parcial. A relação entre
este âmbito parcial e o todo aparece-lhe como engendrada exclusivamente pelo
“cálculo” subjetivo e, portanto, não pela sua necessidade imanente sujeita a
leis. Ele reconhece esta necessidade somente nos nexos objetivos e supostamente
submetidos a “leis naturais”, ou seja, nexos que existem fora da sua atividade
e são dela independentes. No interior do seu âmbito direto de atividade, ele considera
fatos como o valor ou o preço do trabalho e do produto unicamente como a
premissa geral da sua atividade, premissa que é própria ao mundo das coisas
tanto quanto às coisas naturais de que necessita.
Esta incapacidade (resultante do processo descrito) para perceber a
conexão legal entre a atividade subjetiva e o movimento objetivo do todo
acentua o sentimento de “liberdade”, mas, ao mesmo tempo, também o sentimento
de estar submetido a poderes indomáveis. Esta contradição — que, na realidade,
não é mais do que uma contradição dialética que se apresenta no interior da
unidade de subjetividade e objetividade — se reflete na consciência reificada
do indivíduo burguês como antinomia insuprimível. Por isto, o indivíduo não tem
consciência de que a natureza e o sentido da sua atividade aparentemente
“livres” estão, na verdade, submetidos, a cada instante, à necessidade
objetiva. Eis como isto ocorre: o indivíduo — precisamente na medida em que sua
atividade dirigida à racionalização do âmbito parcial parte de fenômenos que,
aparentemente, fazem parte do mundo da natureza e das coisas — coloca
“livremente” como base desta atividade apenas aquelas metas que lhe são ditadas
pelo movimento econômico (sujeito a leis) do todo, precisamente através da
mediação destes fenômenos que, em essência, permanecem desconhecidos para ele.
E é o “cálculo” que cria aquele espaço para o jogo do pensamento, espaço em
cujos limites, e de um modo não consciente para o indivíduo, se opera a
adequação entre “liberdade” individual e necessidade objetiva.”
“Entre outras coisas, o que interdita ao pensamento burguês o caminho
para a compreensão da totalidade é o fato de o todo lhe aparecer como um
sistema de relações entre efetividades sujeitas a leis no sentido da lei
natural, frente às quais o pensamento se comporta extrinsecamente, de modo
contemplativo. Tão logo o pensamento — que, como sabemos, é apenas um elemento
necessário da atividade subjetiva que opera no objetivo — exclui a si mesmo da
totalidade por via da contraposição entre ser e pensamento, o todo se converte
previamente em parte, que a teoria burguesa acaba, porém, por confundir com o
todo. Nisto reside o segredo, por exemplo, dos limites com que colidem os
inúmeros sistemas da sociologia burguesa empenhada na busca de “leis”. A
proclamação da liberdade e da função onímoda do pensamento (história,
filosofia, ciência jurídica, ética), independentemente e à parte das ciências
voltadas para o esclarecimento das leis (sociologia, economia política,
psicologia social), apenas exprime a impotência para a apropriação teórica da
realidade. Esta cisão das ciências, ainda que só em sua aparência externa, é
uma prova a mais da incapacidade do pensamento burguês para conceber como
unidade a subjetividade e a objetividade, a atividade e a lei, o pensamento e o
processo objetivo. Assim como a atitude contemplativa resulta da fixação na
ilusão categorial, a aceitação desta é, ao mesmo tempo, resultado daquela
fixação: são equivalentes. Para semelhante modo de pensar, o pensamento aparece
tão alheio à lei como esta àquele. A realidade se divide na esfera da
necessidade e na esfera da liberdade. E, no interior desta última, a
dilaceração continua, pois não apenas se distingue o homem praticamente ativo
do “pensador” puro, mas ambos são concebidos como opostos não mediados. No
entanto, apesar dessa identidade entre atitude contemplativa e reificação, que
acabamos de assinalar, é mais correto afirmar que o aprisionamento do
pensamento burguês àquela atitude não é a causa da sua incapacidade para
superar a reificação; esta causa reside no fato de que este pensamento é
prisioneiro da reificação, que constitui a causa da incapacidade para superar a
contemplatividade. De qualquer forma, não há dúvida de que, no interior desta
relação, o modo de pensar contemplativo constitui o limite metodológico que
impede que se verifique a estrutura reificada da consciência burguesa.”
“Com efeito, a dialética requer que se tenha continuamente em conta a
totalidade do concreto e a riqueza qualitativa do processo, que ela concebe
como unidade dialético-contraditória do múltiplo — e esta exigência, em suma, é
a de que se tenha em conta a plenitude dos “fatos”.”
“O materialismo histórico, como toda dialética e precisamente porque
constitui um sistema dialético, é necessariamente “individualizante” e
generalizante” ao mesmo tempo. Com efeito, os momentos e suas propriedades
qualitativas singulares aparecem nele como inelimináveis em sua
individualidade, como momentos que, no interior do todo e através dele, se põem
e se cancelam dialeticamente. Em todo caso, o problema que se coloca é o
seguinte: de que modo o materialismo histórico consegue apreender, ao mesmo
tempo, os momentos na sua particularidade qualitativa e na sua generalidade no
interior de uma lei, isto é, submetidos a uma abstração legal?
A concepção materialista da história o consegue mediante a sua
apreciação — radicalmente diversa de qualquer outra corrente histórica ou
sociológica — do papel da transformação das circunstâncias no processo
histórico e da sua consequente importância para o conhecimento da sociedade.
Se, no conceito não dialético de lei, como o sabe qualquer lógico, há que
abstrair continuamente a transformação para que se possa formular o próprio
conceito de lei, na dialética ocorre exatamente o contrário. O traço que
diferencia o conceito de lei do materialismo histórico de qualquer sociologia
consiste na inclusão do momento da transformação das condições econômicas (ou
seja, a sua dinâmica) na lei, com o que ele se liberta de qualquer rigidez
metafísica e se qualifica para apreender dinamicamente o processo. Esta
abertura para considerar a transformação, o processo e as condições
econômico-dinâmicas que o produzem permite conceitualizar cada manifestação em
sua singularidade, que se determina pelo lugar que lhe cabe no movimento, como
também em sua dependência e universalidade, explicável igualmente pelo mesmo
determinismo do processo.
Nesta concepção dinâmica da realidade, própria de toda dialética, o
singular é concebido ao mesmo tempo em sua determinação pelo todo, em sua
universalidade; o singular, portanto, não apenas é conservado; precisamente
porque é concebido como momento de um todo que se move a si mesmo, que põe os
momentos contraditórios e os supera, é reconhecido também em sua essência
oculta ao pensamento não dialético. E somente aqui revela a sua verdadeira
função histórica, dissimulada sob a aparência dos “fatos”, função na qual
reside justamente a sua essência. Quando o pensamento burguês se esforça por
descobrir também a essência das manifestações singulares (isto é, quando não se
resigna a colecionar fatos “puros ou a passar à generalização sociológica
desprezando a manifestação singular), evade-se para a interpretação subjetiva
ou para a construção metafísica, o que é equivalente. O materialismo histórico
resolve este problema na medida em que, por um lado, procura as premissas
concretas para uma abordagem dinâmica da história mediante a sua teoria
(extraída da realidade) da contradição, continuamente renovada, entre as forças
produtivas e as relações sociais e da subversão de toda a sociedade, resultante
da solução desta contradição; e, por outro lado, concebe o caráter dinâmico da
sociedade, assim compreendido, como ao mesmo tempo constituído de tal modo que,
através dele, os momentos aparecem necessária e essencialmente referidos uns
aos outros. Com isto, o materialismo histórico descobriu o princípio com cuja
ajuda tais momentos podem ser conceitualizados, tanto em sua singularidade
quanto em sua superação no todo. Assim, o princípio dialético da articulação
entre singularidade e universalidade, que permite desvelar a essência dos
fenômenos, eleva-se à condição de princípio teórico da abordagem dialética da
história. É, portanto, infundada a censura de Rickert, para quem o materialismo
histórico não reconheceria nos fenômenos o singular, sacrificado no altar da
sua sujeição a uma lei; ao contrário, o materialismo histórico reforça a sua
cognoscibilidade remetendo os “fatos” (apreensíveis pelo entendimento
metafísico apenas no seu isolamento) ao processo contraditório da totalidade,
do qual eles emergem — e esta remissão foi preparada, no plano do método, pela
teoria da dialética.”
“Como ser dotado de vontade e que, portanto, só age pela mediação desta,
o homem possui a faculdade de dirigir a sua ação para fins que escolhe. Esta
faculdade, própria da consciência e que distingue radicalmente o homem do
animal (que só possui instinto), proporciona-lhe o sentimento da autonomia, da
liberdade. Este sentimento — que poderíamos chamar de “vivência” — é uma
condição psicológica posta pelo fato de que o homem, em sua ação, sempre se
propõe determinados fins, condição sem a qual este comportamento seria
impossível. Sem esta vivência da liberdade não haveria interesse em iniciar
discussões, tomar decisões e propor-se fins: o homem não se distinguiria do
animal, cujo comportamento é meramente instintivo. Se consideramos, então, o
indivíduo isolado, necessariamente surge a ilusão da liberdade incondicionada
da vontade. Mas o resultado é muito diferente se o estudamos em sua conexão,
não isoladamente, mas no interior da sua vinculação social. A vivência da
liberdade da vontade, própria da consciência, revela seu outro aspecto, que
resulta da relação social com o próximo e com a sociedade em seu conjunto e
entra em contradição dialética com a liberdade: o homem se adequa às
possibilidades objetivas que colocam determinados limites às suas decisões e à
ação nela baseada — e o faz através da sua própria vontade e, ao mesmo tempo,
determinado pelas condições gerais da existência, que transcendem a sua vontade
subjetiva. Isto é: no circuito do social, o homem submete-se à causalidade. Mas
a causalidade social de nenhum modo elimina a faculdade de escolher entre
diversos fins: não elimina a consciência da liberdade. No entanto, a vinculação
do homem às condições de vida vigentes para ele e que existem independentemente
da sua vontade (ou seja, a cadeia causal a que o homem está submetido) serve-se
precisamente daquela faculdade para se impor: com efeito, a relação entre
liberdade e causalidade representa apenas a relação entre subjetividade e
objetividade, constitutiva de todo o social, mas agora considerada do ângulo
psicológico e não do ponto de vista da sociedade.
Portanto, embora a consciência, que distingue o homem do animal enquanto
este é impulsionado meramente pelos instintos, se singularize pela propriedade
da vontade, o homem não é apenas um volitivo: é também um ser dependente de
condições que existem fora da sua vontade. E, assim como as condições sociais
objetivas constituem o permanente estímulo para que a vontade se decida
“livremente” num sentido determinado, esta decisão é, por sua vez, a condição
para que se engendrem as relações sociais objetivas. O ininterrupto processo de
conversão dialética da subjetividade em objetividade — e o seu inverso —
representa a forma de existência mais geral da sociedade; e qualquer tentativa
de explicar um fenômeno da vida humana prescindindo dele tem por resultado
aquelas determinações rígidas, unilaterais e deformadoras que se contradizem
permanentemente entre si e constituem o motivo dessas intermináveis polêmicas
que não chegam a nada porque, a partir da premissa falsa do pensamento
metafísico, todas as opiniões em confronto adquirem uma aparência de
justificação.”
“A grande conquista da dialética consistiu em superar a oposição
metafísica entre o singular e o universal, concebendo a realidade como processo
e incorporando assim a lei da transformação das circunstâncias.”
“Cada época engendra necessariamente a sua forma particular de ilusão,
explicável por sua estrutura econômica e pelas leis que a regem, e esta ilusão
se impõe igualmente à consideração retrospectiva, o que dá origem a uma nova
dificuldade para o conhecimento da verdadeira essencialidade do passado.”
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