Editora: Boitempo
ISBN:
978-85-7559-458-2
Tradução: Nélio
Schneider
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 384
“Enquanto encararmos as coisas como inertes e
inanimadas, cada uma para si, uma ao lado da outra e uma depois da outra, de
fato não depararemos com contradições entre elas. Encontramos nelas certas
propriedades – em parte comuns, em parte diferentes e até contraditórias entre
si –, mas, nesse caso, distribuídas em coisas diferentes e, portanto, não
contendo nenhuma contradição em si. Na mesma medida em que esse campo de
análise é suficiente, também chegamos a bom termo com o pensamento metafísico
habitual. Porém, tudo muda completamente de figura assim que examinamos as
coisas em seu movimento, em sua mudança, em sua vida, na incidência recíproca
umas sobre as outras. Nesse caso, envolvemo-nos imediatamente em contradições.
O próprio movimento é uma contradição; o simples movimento mecânico de um lugar
para outro só pode se efetuar de tal modo que, no mesmo momento, um corpo está
num lugar e simultaneamente está em outro, um corpo está no mesmo lugar e não
está nele. E o contínuo pôr e a simultânea resolução dessa contradição são
precisamente o movimento. (...)
Se o simples movimento mecânico de um lugar
para outro já contém em si uma contradição, isso é ainda mais verdadeiro em
relação às formas mais elevadas de movimento da matéria e, de modo bem
especial, a vida orgânica e sua evolução. A vida consiste sobretudo no fato de
que, a cada instante, um ser é ele mesmo e, ainda assim, outro. Portanto, a
vida também é uma contradição presente nas próprias coisas e processos que
continuamente se põem e se resolvem; e, assim que cessa a contradição, cessa a
vida e instaura-se a morte. No campo do pensamento, tampouco podemos escapar às
contradições e que, por exemplo, a contradição entre a capacidade interiormente
ilimitada do conhecimento humano e sua existência real se resolve apenas na
forma de seres humanos exteriormente limitados e limitadamente cognoscentes no
progresso infinito da sucessão das gerações, que, ao menos para nós, é
praticamente sem fim.”
“A dialética nada mais é que a ciência das
leis universais do movimento e da evolução da natureza, da sociedade humana e
do pensamento.”
“A economia política, no seu sentido mais
amplo, é a ciência das leis que governam a produção e a troca do sustento
material da vida na sociedade humana. Produção e troca são duas funções
distintas. A produção pode acontecer sem a troca, a troca – justamente por ser
de antemão apenas troca de produtos – não pode acontecer sem a produção. Cada
uma dessas duas funções sociais sofre a influência de efeitos exteriores em
grande parte específicos e, em consequência, possui também em grande parte suas
próprias leis, suas leis específicas. Em contrapartida, porém, uma condiciona a
outra em todos os momentos e uma incide na outra com tal intensidade que seria
possível caracterizá-las com a abscissa e a ordenada da curva econômica.
As condições sob as quais os seres humanos
produzem e trocam mudam de país para país e, em cada país, de geração para
geração. A economia política não pode, portanto, ser a mesma para todos os
países nem a mesma para todas as épocas históricas. Há uma distância enorme
entre o arco e a flecha, entre a faca de pedra e o comércio de troca de ocorrência
excepcional do selvagem e a máquina a vapor de mil cavalos, o tear mecânico, as
ferrovias e o Banco da Inglaterra. Os habitantes da Terra do Fogo não conseguem
chegar à produção em massa nem ao comércio mundial, à especulação cambial ou à
quebra da Bolsa. Quem quisesse submeter a economia política da Terra do Fogo às
mesmas leis a que está sujeita a Inglaterra de hoje evidentemente nada traria à
tona a não ser o mais banal dos lugares-comuns. Assim, a economia política,
essencialmente, não é nada além de uma ciência histórica. Ela trata de uma
matéria histórica, isto é, uma matéria em constante mudança; ela examina
primeiramente as leis específicas de cada fase do desenvolvimento da produção e
da troca e, só no final desse exame, pode estabelecer as poucas leis bem
universais válidas de modo geral para a produção e a troca. Nesse tocante, é
óbvio que as leis válidas para determinados modos de produção e determinadas
formas de troca também mantêm a validade para todos os períodos históricos que
têm em comum ditos modos de produção e formas de troca. Assim, por exemplo, com
a introdução do dinheiro de metal, passa a vigorar uma série de leis que
permanecerão válidas para todos os países e períodos históricos em que o
dinheiro de metal medeia a troca.
Com o modo de produção e de troca de uma
determinada sociedade histórica e com as precondições históricas dessa
sociedade também está dado, simultaneamente, o modo de distribuição dos
produtos. Na sociedade tribal e aldeã com propriedade fundiária comum, com a
qual ou com cujos resquícios claramente identificáveis todos os povos
civilizados ingressam na história, é óbvio que há uma distribuição bastante
uniforme dos produtos; onde começa a surgir uma desigualdade maior da
distribuição entre os membros, ela já constitui um indício da desagregação
incipiente da sociedade. – A agricultura em grande escala e aquela em pequena
escala, dependendo das precondições históricas a partir das quais se
desenvolveram, permitem formas de distribuição muito variadas. Porém, é
evidente que a agricultura em grande escala sempre condiciona uma distribuição
bem diferente daquela da agricultura em pequena escala; que a agricultura em
grande escala pressupõe ou gera um antagonismo de classes – escravistas e
escravos, senhores de terra e agricultores sujeitos a trabalhos forçados,
capitalistas e trabalhadores assalariados –, ao passo que a agricultura em
pequena escala de modo algum tem como condicionante uma diferença de classes
entre os indivíduos ativos na produção agrícola; ao contrário, a simples
presença dessa diferença indica a incipiente decadência da economia parceleira.
– A introdução e a disseminação do dinheiro de metal num país onde até então
vigorava exclusiva ou preponderantemente a economia natural estão sempre associadas
a uma revolução mais lenta ou mais rápida da distribuição até então praticada,
e isso ocorre de modo tal que se intensifica cada vez mais a desigualdade da
distribuição entre os indivíduos, ou seja, o antagonismo entre rico e pobre. –
A atividade artesanal local e corporativa da Idade Média impossibilitava a
existência de grandes capitalistas e trabalhadores assalariados vitalícios, do
mesmo modo que a grande indústria moderna, a atual formação do crédito e a
forma de troca que corresponde ao desenvolvimento de ambas (a livre
concorrência) necessariamente os geram.
Porém, com as diferenças na distribuição
afloram as diferenças de classes. A
sociedade as subdivide em classes privilegiadas e desfavorecidas, exploradoras
e exploradas, dominantes e dominadas, e o Estado – para cuja formação haviam
progredido os grupos nativos de sociedades da mesma comunidade tribal,
primeiramente, apenas em função da consecução de interesses comuns (por
exemplo, a irrigação no Oriente) e da defesa contra ataques de fora – passa a
ter, na mesma medida, a finalidade de assegurar, mediante a força, as condições
de vida e o domínio da classe dominante contra a classe dominada. (...)
A conexão entre cada caso singular de
distribuição e as respectivas condições materiais de existência de uma
sociedade reside de tal modo na natureza da coisa que ela se reflete,
regularmente, no instinto popular. Enquanto um modo de produção se encontrar na
linha ascendente do seu desenvolvimento, ele será saudado até por aqueles que
são menos favorecidos pelo modo de distribuição que lhe corresponde. Foi o caso
dos trabalhadores ingleses no despontar da grande indústria. Até mesmo enquanto
esse modo de produção permanecer o socialmente normal, reinará, em termos
gerais, satisfação com a distribuição; e, se for levantada alguma objeção, esta
advirá do seio da própria classe dominante (Saint-Simon, Fourier, Owen) e, por
isso mesmo, não terá repercussão nenhuma entre a massa espoliada. Somente
quando o modo de produção em questão já tiver percorrido um bom trecho na sua
linha descendente, somente quando ele já tiver passado da idade, somente quando
as condições da sua existência tiverem em grande parte desaparecido e seu
sucessor já estiver batendo à porta – somente então a distribuição cada vez
mais desigual parecerá ser injusta, somente então se apelará à assim chamada
justiça eterna diante dos fatos com o prazo vencido. Do ponto de vista
científico, esse apelo à moral e ao direito não permite avançar nem uma
polegada; a ciência econômica não tem como encarar a indignação moral, por mais
justificada que seja, como uma prova, podendo ver nela tão somente um sintoma.
Sua tarefa é, muito antes, demonstrar que as anomalias sociais novas que
começam a aparecer são consequências necessárias do modo de produção vigente e
são, ao mesmo tempo, indicativos de sua iminente dissolução, bem como revelar,
no interior da forma do movimento econômico em dissolução, os elementos da
futura nova organização da produção e da troca que eliminará ditas anomalias. A
ira que faz o poeta[1] tem seu lugar bem próprio na
descrição dessas anomalias ou no ataque contra os harmonizadores que negam
essas anomalias ou querem dourá-las a serviço da classe dominante; mas o pouco
que ela serve de prova para cada caso
já ressalta do fato de que, em toda e
qualquer época de toda a história até aqui, encontra-se material suficiente
para provocá-la.”
[1] Decimus Iunius Iuvenalis, Satirae
1,79 [ed. bras.: Décimo Júnio Juvenal, Sátiras, Rio de Janeiro, Ediouro,
1990]. (N. E. A.)
“Se, em vista da revolução iminente do
presente modo de distribuição dos produtos do trabalho, junto com seus
contrastes gritantes de miséria e opulência, fome e excesso, não tivéssemos
certeza melhor do que a consciência de que esse modo de distribuição é injusto
e a justiça necessariamente acabará triunfando, estaríamos enrascados e
poderíamos ter de esperar bastante. Os místicos medievais que sonhavam com o
advento do reino milenar já tinham consciência da injustiça dos antagonismos de
classes. No limiar da nova história, há 350 anos, Thomas Münzer gritou isso em
alta voz para o mundo ouvir. Na Revolução Inglesa, na burguesa Revolução
Francesa, o mesmo grito ressoa – e desvanece. E a que se deve o fato de agora o
grito pela abolição dos antagonismos de classes e das diferenças de classes,
que até 1830 deixou as classes trabalhadoras e sofredoras indiferentes, de
agora ele ser ecoado milhões de vezes, tomando conta de um país após o outro, e
isso na mesma sequência e com a mesma intensidade com que a grande indústria se
desenvolve em cada um desses países? A que se deve o fato de, no período de uma
geração, esse grito ter conquistado um poder capaz de resistir a todos os
poderes unidos contra ele e, num futuro próximo, conseguir estar certo da
vitória? Isso se deve ao fato de a grande indústria moderna, por um lado, ao
criar o proletariado, ter gerado uma classe que, pela primeira vez na história,
pode fazer a exigência da abolição não dessa ou daquela organização de classe
específica nem desse ou daquele privilégio de classe específico, mas das
classes em geral, e ela foi colocada na situação de ter de fazer essa exigência
sob pena de descer ao nível do cule chinês. E, por outro lado, isso se deve ao
fato de a mesma grande indústria, ao criar a burguesia, ter gerado uma classe
que detém o monopólio de todas as ferramentas de produção e de todos os meios
de vida, mas que, em cada período de trapaça e consequente quebradeira,
demonstra que se tornou incapaz de continuar no controle das forças produtivas,
que crescem além das suas forças; é uma classe sob cuja condução a sociedade
corre direto para a ruína, como uma locomotiva que tem a válvula de escape
emperrada e o maquinista não consegue abrir por falta de forças. Em outras
palavras: isso se deve ao fato de tanto as forças produtivas geradas pelo
moderno modo de produção capitalista como o sistema de distribuição de bens por
ele criado terem entrado em candente contradição com esse mesmo modo de
produção, e isso em tal grau que precisa ocorrer uma revolução do modo de
produção e distribuição que elimine todas as diferenças de classes, caso não se
queira a derrocada de toda a sociedade moderna. É nesse fato material palpável
que a certeza da vitória do socialismo moderno se impõe na mente dos
proletários espoliados de maneira irresistível e de forma mais ou menos clara –
é nele que ela se fundamenta, e não nas concepções desse ou daquele sujeito que
reflete sobre justiça e injustiça sentado no conforto do seu lar.”
“Mas retornemos aos nossos dois homens.
Robinson, “com a espada na mão”[30], faz de
Sexta-Feira seu escravo. Porém, para conseguir isso, Robinson precisa mais do
que a espada. Não é qualquer um que tira proveito de um escravo. Para poder
usá-lo, é preciso dispor de dois tipos de coisas: em primeiro lugar, de
ferramentas e objetos para o trabalho do escravo e, em segundo lugar, de meios
para seu sustento precário. Portanto, antes que a escravidão seja possível, é
preciso que já se tenha alcançado uma certa fase da produção e instaurado um
certo grau de desigualdade na distribuição. E, para que o trabalho escravo se
torne o modo de produção dominante de uma sociedade inteira, é preciso que haja
um incremento muito maior da produção, do comércio e da acumulação de riquezas.
Nas antigas sociedades naturais com sua propriedade coletiva do solo, a
escravidão não ocorre ou desempenha um papel bastante secundário. O mesmo
aconteceu na Roma primitiva, quando era uma cidade de camponeses; em
contrapartida, quando Roma se tornou “cosmópole” e a posse fundiária foi passando
cada vez mais às mãos de uma classe menos numerosa de proprietários enormemente
ricos, a população camponesa foi substituída por uma população de escravos.
Para que, na época das guerras persas, o número de escravos subisse para 460
mil em Corinto e 470 mil em Égina, chegando à proporção de dez escravos para
cada habitante livre[31], foi preciso algo mais que
“poder”, a saber: uma indústria artística e artesanal altamente desenvolvida e
um comércio disseminado. A escravidão nos Estados Unidos norte-americanos
estava baseada menos no poder e mais na indústria algodoeira inglesa; nas
regiões em que não crescia algodão ou nas quais não se praticava a criação de
escravos para os estados algodoeiros, como acontecia com os estados limítrofes,
a escravidão se extinguiu por si mesma, sem o uso da força, simplesmente por
não ser rentável.
Portanto, quando o sr. Dühring denomina a
atual propriedade de propriedade obtida pela força, caracterizando-a como
“aquela forma de dominação que não tem em
sua base meramente a exclusão do semelhante do uso dos meios naturais para
a existência, mas também, o que é ainda mais relevante, a subjugação do ser
humano visando ao trabalho servil”[32], ele põe
toda a relação de cabeça para baixo. A subjugação do ser humano visando ao
trabalho servil pressupõe, em todas as suas formas, que o subjugador disponha
dos meios de trabalho, sem os quais ele não poderá usar o escravizado, e
ademais, no caso da escravidão, disponha dos meios de vida, sem os quais ele
não poderá manter o escravo com vida. Em todas as situações, portanto, ele deve
dispor de um certo patrimônio superior ao da média das pessoas. Mas como surgiu
esse patrimônio? É claro que ele pode ter
sido roubado, ou seja, pode ter como base o uso da força, mas também isso de
modo algum é forçoso. Ele pode ter sido conseguido por meio de trabalho, roubo,
negociação, trapaça. Ele precisa, inclusive, ser resultante do trabalho antes
de poder ser roubado.
A propriedade privada de maneira nenhuma
assoma na história como resultado do roubo ou do uso da força. Pelo contrário.
Ela já existe, ainda que restrita a certos objetos, na antiquíssima comunidade
natural-espontânea de todos os povos civilizados. No interior dessas
comunidades, primeiramente na troca com estrangeiros, ela já assume a forma de mercadoria. Quanto mais os produtos da
comunidade tomam a forma de mercadorias, isto é, quanto menor é o número dos
que são produzidos para uso próprio do produtor e quanto mais eles são
produzidos para fins de troca, quanto mais a troca toma o lugar da divisão
natural original do trabalho no interior da comunidade, mais desigual se torna
o estado patrimonial de cada um dos membros da comunidade, mais profundamente é
minada a antiga posse comum do solo, mais rapidamente o sistema comunitário é arrastado
ao encontro de sua dissolução num povoado de agricultores parceleiros. O
despotismo oriental e a dominação alternada dos povos nômades conquistadores
durante milênios não conseguiram desestabilizar esse antigo sistema
comunitário; a destruição gradativa de sua indústria caseira natural pela
concorrência dos produtos da grande indústria leva-o, cada vez mais, à beira da
dissolução. Não se pode falar de uso da força nem em relação a esse caso nem em
relação à repartição da posse comum de terras das “cooperativas hereditárias”
junto ao rio Mosela e na região do Hochwald; os agricultores acham que é do seu
interesse que a propriedade privada da terra de cultivo substitua a propriedade
comum[33]. Nem mesmo a formação de uma aristocracia
natural, como ocorreu entre os celtas, germanos e na região indiana dos cinco
rios, sobre a base da propriedade fundiária comum, foi, num primeiro momento,
fundamentada no uso da força, mas na voluntariedade e no hábito. Em toda parte
em que a propriedade privada toma forma, isso acontece em consequência de
condições alteradas de produção e troca, do interesse no aumento da produção e
da promoção do intercâmbio – portanto, em virtude de causas econômicas. O uso
da força não tem nenhum papel nesse processo. Pois está claro que a instituição
da propriedade privada precisa existir antes que o ladrão possa se apropriar de
bens alheios e que, portanto, o uso da força até pode modificar o estado
patrimonial, mas não pode originar a propriedade privada como tal.
Para explicar “a subjugação do ser humano
visando ao trabalho servil” em sua forma mais moderna, no trabalho assalariado,
tampouco podemos nos valer do uso da força ou da propriedade obtida pela força.
Já mencionamos o papel que desempenhou na dissolução do antigo sistema comunitário
(ou seja, na generalização direta ou indireta da propriedade privada) a
metamorfose dos produtos do trabalho em mercadorias, a sua confecção não para
consumo próprio, mas para a troca. Ocorre, porém, que Marx demonstrou de modo
cristalino em O capital – e o sr.
Dühring tem o cuidado de não mencionar isso nem com uma sílaba – que, num certo
grau de desenvolvimento, a produção de mercadorias se transforma em produção
capitalista e que, nessa fase, a lei da apropriação ou lei da propriedade
privada, fundada na produção e na circulação de mercadorias, transforma-se,
obedecendo a sua dialética própria, interna e inevitável, em seu direto oposto.
A troca de equivalentes, que aparecia como a operação original, torceu-se ao
ponto de, agora, a troca se efetivar apenas na aparência, pois, em primeiro
lugar, a própria parte do capital trocada por força de trabalho não é mais do
que uma parte do produto do trabalho alheio, apropriado sem equivalente; em
segundo lugar, seu produtor, o trabalhador, não só tem de repô-la, como tem de
fazê-lo com um novo excedente. [...] Originalmente, o direito de propriedade
apareceu diante de nós como fundado no próprio trabalho. [...] Agora [no final
da explicitação marxiana] a propriedade aparece do lado do capitalista, como direito
a apropriar-se de trabalho alheio não pago ou de seu produto; do lado do
trabalhador, como impossibilidade de apropriar-se de seu próprio produto. A
cisão entre propriedade e trabalho torna-se consequência necessária de uma lei
que, aparentemente, tinha origem na identidade de ambos.
[34]
Em outras palavras: mesmo que excluamos a
possibilidade de qualquer rapina, ato de violência e trapaça, mesmo supondo que
toda propriedade privada se baseia originalmente no trabalho próprio do
possuidor e que, em todo o longo transcurso ulterior, foram trocados sempre
valores equivalentes, ainda assim, no desenvolvimento progressivo da produção e
da troca, chegamos necessariamente ao presente modo de produção capitalista, ao
monopólio dos meios de produção e de vida nas mãos de uma classe pouco
numerosa, à degradação da outra classe, que compõe a esmagadora maioria, à
condição de proletários despossuídos, à alternância periódica de produção
fraudulenta e crise comercial e à atual anarquia na produção. Todo esse
processo se explica a partir de causas puramente econômicas, sem que uma única
vez tenha sido necessário o roubo, o uso da força, o Estado ou a interferência
política de qualquer natureza. A “propriedade obtida pela força” (como afirma
Dühring) evidencia-se, também nesse ponto, como uma fraseologia pernóstica que
visa encobrir a falta de compreensão do decurso real das coisas.
Esse decurso, expresso em termos históricos,
é a história do desenvolvimento da burguesia. Se “as condições políticas são as
causas determinantes da situação da economia”, então a burguesia moderna não
deve ter se desenvolvido em meio à luta contra o feudalismo, mas deve ser sua
criança de colo voluntariamente gerada. Qualquer pessoa sabe que ocorreu o
contrário. Originalmente um estamento oprimido, recrutado dentre escravos e servos
de todo tipo, obrigado a pagar tributo à nobreza feudal dominante, a burguesia
conquistou em luta contínua contra a nobreza uma posição de poder após a outra
e, por fim, nos países mais desenvolvidos, substituiu a nobreza no poder; na
França, derrubando diretamente a nobreza e, na Inglaterra, aburguesando-a mais
e mais e incorporando-a como sua liderança ornamental. E como foi que ela
logrou isso? Simplesmente pela mudança da “situação econômica”, à qual se
seguiu, mais cedo ou mais tarde, voluntariamente ou pela conquista, uma mudança
das condições políticas. A luta da burguesia contra a nobreza feudal é a luta
da cidade contra o campo, da indústria contra a posse fundiária, da economia do
dinheiro contra a economia natural, e as armas decisivas dos burgueses nessa
luta foram meios econômicos de poder que cresceram continuamente mediante o
desenvolvimento da indústria, começando do artesanato e mais tarde avançando
até a manufatura, e mediante a expansão do comércio. Durante toda essa luta, o
poder político sempre esteve do lado da nobreza, com exceção de um período em
que o poder imperial utilizou a burguesia contra a nobreza para colocar um
estamento em xeque com o auxílio do outro; porém, no momento em que a
burguesia, que ainda era politicamente impotente, começou a se tornar perigosa
em virtude de seu crescente poder econômico, a realeza voltou a aliar-se à
nobreza e, desse modo, provocou, primeiro na Inglaterra e depois na França, a
revolução da burguesia. As “condições políticas” haviam permanecido inalteradas
na França, ao passo que a “situação da economia” já as extrapolara. De acordo
com a condição política, a nobreza era tudo, e o burguês, nada; de acordo com a
situação social, o burguês agora era a classe mais importante no Estado, ao
passo que a nobreza havia perdido todas as suas funções sociais e se limitava a
embolsar seus rendimentos como pagamento dessas funções desaparecidas. Mas isso
não é tudo: em toda a sua produção, a burguesia ficara espremida nas formas
políticas feudais da Idade Média, as quais essa produção – não só a manufatura,
mas até o artesanato – há muito já havia extrapolado, bem como nos milhares de
privilégios corporativos e nas barreiras alfandegárias locais e provinciais que
se converteram em meras chicanas e entraves à produção. A revolução da
burguesia pôs fim a isso. Porém, não segundo o princípio do sr. Dühring,
adequando a situação econômica às condições políticas – foi isso justamente que
a nobreza e a realeza tentaram em vão fazer durante anos –, mas, ao contrário, descartando
a velha tralha política mofada e criando condições políticas nas quais a nova
“situação econômica” pôde subsistir e se desenvolver. E, nessa atmosfera
política e jurídica adequada a ela, essa situação se desenvolveu de modo
brilhante, tão brilhante que a burguesia já não se encontra muito distante da
posição ocupada pela nobreza em 1789: ela se torna cada vez mais não só
socialmente supérflua, como também se converte em obstáculo social; ela se
dissocia mais e mais da atividade produtiva e se torna mais e mais, como no seu
tempo a nobreza, uma classe que vive de embolsar rendimentos; e ela conseguiu
realizar essa revolução de sua própria posição e gestar uma nova classe, a do
proletariado, sem recorrer a nenhum abracadabra de uso da força, mas por vias
puramente econômicas. E mais. Ela de modo algum desejou esse resultado de sua
ação e atividade – pelo contrário, ele se impôs com poder irresistível contra a
sua vontade e contra a sua intenção; suas próprias forças produtivas
extrapolaram a sua condução e arrastam, como que por necessidade natural, toda
a sociedade burguesa para o declínio ou a revolução. E, ao apelarem agora para
o uso da força a fim de preservar da derrocada a “situação da economia” que
está ruindo, só o que os burgueses demonstram é que estão enredados na mesma
ilusão que o sr. Dühring – ou seja, a de que “as condições políticas são a
causa determinante da situação da economia” – e que, a exemplo do sr. Dühring,
imaginam que, com o auxílio do “elemento primitivo”, do “poder imediatamente
político”, podem reverter aquele “fato de segunda ordem”, a situação econômica
e seu desenvolvimento inexorável, e eliminar do mundo a tiros de canhões Krupp
e rifles Mauser os efeitos econômicos da máquina a vapor e da maquinaria
moderna propelida por ela, do comércio mundial e do desenvolvimento atual dos
bancos e do crédito.”
33 Georg Hanssen, Die
Gehöferschaften (Erbgenossenschaften)
im Regierungsbezirk Trier (Berlim,
1863). (N. E. A.)
34 Karl Marx, Das Kapital, cit., p. 607-8 (MEGA-2 II/6, cit., p. 538) [ed. bras.:
O capital, Livro I, cit., p. 659].
(N. E. A.)
“No início do século XIV, a pólvora chegou à
Europa ocidental por intermédio dos árabes e, como qualquer criança de escola
já sabe, isso revolucionou toda a condução da guerra[41]. Porém, a introdução
da pólvora e das armas de fogo de modo algum constituiu um ato de força, mas um
ato industrial, ou seja, um progresso econômico. Indústria é indústria, quer
ela esteja direcionada para a produção ou para a destruição de objetos. E a
introdução das armas de fogo atuou revolucionariamente não só sobre a própria
condução da guerra, mas também sobre as relações políticas de dominação e
servidão. A aquisição de pólvora e armas de fogo requeria indústria e dinheiro,
e os burgueses citadinos possuíam ambos. Por conseguinte, as armas de fogo
foram, desde o começo, armas das cidades e da monarquia em ascensão, que tinha
nas cidades seu ponto de apoio contra a nobreza feudal. Os muros de pedra dos
castelos da nobreza anteriormente inexpugnáveis sucumbiram aos canhões dos
burgueses, as balas dos mosquetes burgueses furaram as armaduras
cavalheirescas. Junto com a cavalaria encouraçada da nobreza desabou também o
domínio da nobreza; com o desenvolvimento da burguesia, a infantaria e a
artilharia foram se tornando os tipos de armamento cada vez mais decisivos;
forçado pela artilharia, o ofício da guerra teve de ser incrementado por uma
nova subseção totalmente industrial: a engenharia.
O aperfeiçoamento das armas de fogo se deu
muito lentamente. A arma continuava difícil de manejar, os canos permaneciam
toscos, apesar de muitas invenções isoladas. Demorou mais de trezentos anos até
se obter uma espingarda apropriada para armar uma infantaria inteira. Foi só no
início do século XVIII que o fuzil de pederneira com baioneta substituiu
definitivamente o pique como armamento da infantaria. A infantaria daquele
tempo era composta de soldados recrutados pelos príncipes dentre os elementos
mais degenerados da sociedade, muitas vezes dentre prisioneiros de guerra
inimigos forçados a lutar que, rigorosamente treinados, mas totalmente
inconfiáveis, só se mantinham em ordem unida na base do porrete; a única forma
de luta na qual esses soldados conseguiam fazer uso do novo fuzil era a
formação tática linear, que atingiu seu maior aperfeiçoamento sob Frederico II.
Toda a infantaria de um exército era disposta num quadrilátero oco muito largo,
formado por três conjuntos, e só podia se mover em formação de batalha como um
todo; no máximo, era permitido que uma das duas alas avançasse ou recuasse um
pouco. Era possível mover essa massa desengonçada em ordem unida só num terreno
totalmente plano e, também neste, só com muita lentidão (75 passos por minuto);
mudar a formação de batalha durante o combate era impossível e, assim que a
infantaria abria fogo, a vitória ou a derrota eram decididas de um só golpe em
pouco tempo.”
41 Segundo pesquisas mais recentes, os árabes
não conheciam nenhuma mescla de pólvora que pudesse ser utilizada como munição
para armas de fogo no sentido moderno. Contudo, suas experiências devem ter
estimulado muitos experimentos na Europa ocidental e na meridional. As
primeiras notícias claras sobre o uso de armas de fogo permitem supor que o
aperfeiçoamento da pólvora para uso como “pólvora de atirar” aconteceu nos
centros econômicos desenvolvidos da Baixa Renânia e na Alta Itália. (N. E. A.)
“Todo o desenvolvimento da sociedade humana
para além do estágio da selvageria animal começou no dia em que o trabalho da
família gerou mais produtos do que eram necessários para seu sustento, no dia
em que uma parte do trabalho pôde ser empregada na produção não mais de simples
meios de vida, mas de meios de produção. Um excedente do produto do trabalho
além dos custos de manutenção desse trabalho, bem como a composição e a
multiplicação de um fundo social de produção e de reserva a partir desse
excedente, foi e é o fundamento de todo progresso social, político e
intelectual. Na história até agora, esse fundo era possessão de uma classe
privilegiada, à qual cabia, junto com essa possessão, o domínio político e a
condução intelectual. A revolução social iminente só transformará esse fundo
social de produção e reserva – isto é, a massa total das matérias-primas, dos
instrumentos de produção e dos meios de vida – num fundo realmente social
quando o subtrair da disposição da dita classe privilegiada e o transferir para
toda a sociedade como bem comum.”
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