Editora: Vozes
ISBN:
978-85-3262-291-4
Tradução: Vera
Lúcia Mello Josceline e Jaime Clasen (posfácio)
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 272
Sinopse: A
teologia da Libertação é a expressão de um vasto movimento social que se
enraíza na cultura dos excluídos latino-americanos. Em A guerra dos deuses,
Michael Löwy analisa as íntimas relações entre religião, política e sociedade
na América Latina durante as últimas três décadas. O autor, mediante uma
sociologia da cultura inspirada em Marx e Weber, propõe uma interpretação
renovada desse movimento teológico, por ele designado como “cristianismo da
libertação,” levando em consideração os conflitos de classe e as tensões entre
a ética católica e o espírito do capitalismo. A guerra dos deuses
realiza uma importante contribuição teórica para a compreensão das dramáticas tensões
que atravessam o campo religioso entre cristãos conservados e progressistas na
América Latina.
“A conhecida frase “a religião é o ópio do
povo” é considerada a quinta-essência da concepção marxista do fenômeno
religioso, não só pela maioria daqueles que apoiam Marx como também por seus
adversários. Até que ponto essa visão é apropriada? Em primeiro lugar, devemos
enfatizar que essa afirmação não é, de
modo algum, especificamente marxista. A mesma frase pode ser encontrada, em
vários contextos, nos escritos de Kant, de Herder, de Feuerbach, de Bruno
Bauer, de Moses Hess e de Heinrich Heine. Em seu ensaio sobre Ludwing Borne,
por exemplo, Heine já usa a frase, de uma maneira positiva (embora irônica).
“Bem-vinda seja a religião que verta, no cálice amargo do sofrimento humano,
algumas gotas doces e soporíficas de ópio espiritual, algumas gotas de amor, de
esperança e de fé”. Moses Hess, em ensaios publicados na Suíça, em 1843, adota
uma posição mais crítica (mas mesmo assim ambígua): “A religião pode tornar
suportável... a triste consciência da escravidão... da mesma forma que o ópio é
útil no caso de doenças penosas”1.
A expressão apareceu pouco tempo depois no artigo de Marx sobre Philosophy of Right, de Hegel
(1844). Uma leitura cuidadosa do parágrafo de Marx onde aparece essa frase
revela que ela é mais qualificada e menos unilateral do que se crê normalmente.
Embora obviamente contrário à religião, Marx leva em consideração o caráter
duplo do fenômeno: “A angústia religiosa é, ao mesmo tempo, a expressão da verdadeira angústia e um protesto contra a verdadeira angústia. A
religião é o suspiro da criatura oprimida, o coração de um mundo sem coração,
assim como é o espírito de um mundo sem espírito. É o opiato do povo”2.
Se lermos todo o ensaio, nos daremos conta de
que o ponto de vista de Marx deve mais ao neo-hegelianismo de esquerda, que via
a religião como alienação da essência humana, do que à filosofia do Iluminismo,
que simplesmente a denunciava como sendo uma conspiração do clero. Na verdade,
quando Marx escreveu o texto acima, ainda era discípulo de Feuerbach e um neo-hegelianista.
Sua análise da religião é, portanto, pré-marxista, sem qualquer referência às
classes sociais e bastante a-histórica. Mas tinha, sim, uma qualidade
dialética, captando a natureza contraditória da “angústia” religiosa: tanto a
legitimação das condições existentes como um protesto contra elas.
Foi só mais tarde, sobretudo em A Ideologia Alemã (1846), que teve início o verdadeiro estudo marxista da religião como
uma realidade social e histórica. O elemento principal desse novo método para a
análise da religião é abordá-la como uma das muitas formas de ideologia – ou
seja, das produções espirituais de um povo, da produção de ideias, de representações
e consciência, necessariamente condicionada pela produção material e pelas
relações sociais correspondentes. Embora de vez em quando Marx use o conceito
de “reflexo” – que levou várias gerações de marxistas para um desvio estéril –
a ideia principal do livro é a necessidade de explicar a gênese e o
desenvolvimento de várias formas de consciência (religião, ética, filosofia
etc.) em termos das relações sociais, “através das quais, é claro, é possível
considerar o conjunto total em sua totalidade (e, portanto, também a ação
recíproca desses vários aspectos uns sobre os outros)”3. Toda uma
escola “dissidente” da sociologia da cultura marxista (Lukács, Goldmann) prefere o conceito dialético de totalidade
em vez da teoria do reflexo.”
1 Citado em Helmut Gollwitzer, “marxistische
religionskritik und christlicher Glaube”, Marxismusstudien, quarta
edição,Tubingen: J.C.B. Mohr, 1962, p. 15-16. Outras referências a essa
expressão podem ser encontradas nesse artigo.
2 Karl Marx, “Towards the Critique of Hegel’s Philosophy os Right”
(1844), in: Louis S. Feuer (org.), Marx and Engels, Basic Writings on Politics
and Philosopy. Londres: Fontana, 1969, p. 304.
3 Karl Marx e Friedrich Engels, The German Ideology, in: ibid., p. 50.
“Por outro lado, Marx muitas vezes se referia
ao capitalismo como “religião do cotidiano” baseada no fetichismo da
mercadoria. Descreveu o capital como “um Moloch que exige o mundo inteiro como
sacrifício a ele devido” e o progresso capitalista como “um monstruoso deus
pagão que só quer beber néctar nos crânios dos mortos”. Sua crítica à economia
política é recheada de referências à idolatria: Baal, Moloch, Mammon, o Bezerro
Dourado e, é claro, o próprio conceito de “fetiche”. No entanto, sua linguagem
tem um significado um pouco mais metafórico do que substantivo (em termos de
sociologia da religião)6.”
6 Karl Marx, Werke, Berlin: Dietz Verlag, 1960, vol 9, p. 226 e
vol. 26, p. 488. Alguns teólogos da libertação (Enrique
Dussel, Hugo Assmann) faze uso extensivo dessas referências em sua definição de
capitalismo como idolatria.
“Embora materialista, ateísta e inimigo
irreconciliável da religião, Engels conseguiu, apesar disso, captar, como o fez
o jovem Marx, o caráter duplo do fenômeno: seu papel como legitimadora da ordem
estabelecida mas também, dependendo das circunstâncias sociais, seu papel crítico,
de protesto e até revolucionário. Além disso, a maioria dos estudos concretos
que ele escreveu referem-se às formas rebeldes
de religião.
Primeiramente, seu interesse era o
cristianismo primitivo, que é definido como a religião dos pobres, dos
exilados, dos amaldiçoados, dos perseguidos e oprimidos. Os primeiros cristãos
vieram dos níveis mais baixos da sociedade: escravos, homens livres que tinham
seus direitos abolidos e pequenos camponeses, incapacitados devido as dívidas.9
Engels chegou mesmo a elaborar um paralelo surpreendente entre esse
cristianismo primitivo e o socialismo moderno: a) os dois grandes movimentos
que não são criação de líderes e profetas – embora não faltem profetas em
nenhum dos dois; b) ambos são movimentos dos oprimidos, dos que sofrem
perseguição e cujos membros são proscritos e caçados pelas autoridades do
governo; e c) ambos pregam uma libertação iminente da escravidão e da miséria.
Para embelezar sua comparação, Engels, de uma maneira um tanto provocativa,
citou uma frase do historiador francês Renan: “Se você quiser ter uma ideia de
como eram as primeiras comunidades cristãs, dê uma olhada na filial mais
próxima da Associação Internacional de Trabalhadores”.”
“O próprio Lênin, denunciou a religião como
“um nevoeiro místico”, insistiu em seu artigo “Socialismo e religião” (1905)
que o ateísmo não devia ser parte do programa do Partido porque “a unidade na
luta verdadeiramente revolucionária das classes oprimidas para a criação do
paraíso na terra é mais importante para nós do que a unidade da opinião
proletária sobre o paraíso no céu”16.”
16. V. I. Lênin,“Socialism and Religion”(1905), in: Collected Works, Moscou: Progress, 1972, vol. 10, p. 86.
“A parte mais surpreendente e original da
obra de Goldmann é, no entanto, a tentativa de comparar – sem assimilar um ao
outro – a fé religiosa e a fé marxista: ambas têm em comum a recusa do
individualismo puro (racionalista ou empirista) e a crença nos valores
transindividuais – Deus pela religião, a comunidade humana pelo socialismo. Em
ambos os casos, a fé tem como base uma aposta – a aposta pascalina da
existência de Deus e a aposta marxista da libertação da humanidade – que
pressupõe riscos, o perigo de erro e a esperança de sucesso. Ambos envolvem uma
crença básica que não é demonstrável no nível exclusivo de juízos factuais. O
que os separa, então, é, logicamente, o caráter supra-histórico da
transcendência religiosa: “A fé marxista é a fé no futuro histórico que os
próprios seres humanos construirão, ou que devemos fazer com nossa atividade,
uma ‘aposta’ no sucesso de nossas ações; a transcendência que é o objeto dessa
fé não é nem supernatural nem trans-histórica, e sim, supra individual, nada
mais e nada menos”28. Sem, de jeito algum, querer “cristianizar o
marxismo”, Lucien Goldmann introduziu, graças ao conceito de fé, uma nova
maneira de olhar o relacionamento conflitivo entre crença religiosa e ateísmo
marxista.
A ideia de que existe um terreno comum entre
os revolucionários e os de mente religiosa foi sugerido, de uma forma menos
sistemática, pelo mais original e criativo dos marxistas latino-americanos, o
peruano José Carlos Mariátegui. Em um ensaio de 1925, “o homem e o mito”,
Mariatégui propõe uma visão um tanto heterodoxa dos valores revolucionários.
Os intelectuais burgueses se ocupam com a crítica racionalista, a teoria
e a técnica do método revolucionário. Que falta de compreensão! A força dos
revolucionários não reside em sua ciência; ela reside em sua fé, sua paixão,
sua força de vontade. É uma força religiosa, mística, espiritual. É a força do
Mito... A emoção revolucionária... é uma emoção religiosa. As motivações
religiosas se mudaram do céu para a terra. Não são mais divinas; são humanas,
são sociais. (...)
Esta formulação – a expressão de uma rebelião
romântica/marxista contra a interpretação predominante (semipositivista) do
materialismo histórico – pode parecer demasiado radical. De qualquer forma,
devemos deixar claro que Mariátegui não queria fazer do socialismo uma Igreja
ou uma seita religiosa, e sim tinha a intenção de trazer à tona a dimensão
espiritual e ética da luta revolucionária: a fé (mística), a solidariedade, a
indignação moral, o compromisso com risco da própria vida (ao que ele chamava
de “heroico”). O socialismo, para Mariátegui, era inseparável de uma tentativa
de re-encantar o mundo através da ação revolucionária. Não é muito
surpreendente, portanto, que ele tenha se tornado uma das referências marxistas
mais importantes para o fundador da Teologia da Libertação, o peruano Gustavo
Gutiérrez.”
28 Lucien Goldmann, Le Dieu cachê, Paris, Gallimard, 1955,
p. 99.
“Weber
insinua a existência de uma aversão, ou rejeição, básica e irreconciliável, ao
espírito do capitalismo, por parte da Igreja Católica (e provavelmente também
por parte de algumas denominações protestantes). Poderíamos falar de uma
espécie de antipatia cultural – no
sentido antigo, alquímico da palavra, “de falta de afinidade entre duas
substâncias”. Em outras palavras, temo aqui uma exata inversão da afinidade eletiva [Wahlverwandtschaft] com a ética protestante (algumas formas dela) e
o espírito do capitalismo: haveria assim, entre a ética católica e o
capitalismo, uma espécie de afinidade negativa – usando este termo como Weber o
faz quando fala dos “privilégios negativos” das comunidades párias. Como o
próprio Weber sugere, isso não impede uma acomodação e adaptação “realista” das
instituições católicas ao sistema capitalista, particularmente na medida em que
esse se torna cada vez mais poderoso; a crítica da Igreja é normalmente
dirigida contra os excessos do liberalismo e não contra as bases do capitalismo.
Além disso, diante de um perigo muito maior – o movimento trabalhista
socialista – a Igreja não hesitou em unir-se às forças burguesas e capitalistas
contra seu inimigo comum. Em geral, podemos dizer que a Igreja nunca achou que
seria possível ou desejável abolir o capitalismo: seu objetivo sempre foi
corrigir seus aspectos mais negativos através das ações caritativas e “sociais”
do cristianismo. No entanto, profundamente enraizada na cultura católica, ainda
persiste – algumas vezes escondida, outras manifesta – a aversão ética ao
capitalismo, ou uma “afinidade negativa” com ele.”
“A pesquisa de Groethusysen e o trabalho de
vários outros historiadores chamam a atenção para uma fonte de anticapitalismo
católico que Weber parece haver negligenciado: a identificação ética e
religiosa de Cristo com os pobres (inspirados por Mateus 25, 31). Durante
séculos, a teologia e a tradição popular católicas viram os pobres como a
imagem terrestre dos sofrimentos de Cristo. Como escreveu o teólogo A.
Bonnefous em seu livro Le Chrestien
charitable (1637), “o homem pobre a quem ajudamos talvez seja o próprio
Jesus Cristo”.38 É claro que essa atitude levou principalmente a que
se desse uma atenção caritativa aos pobres sem necessariamente rejeitar o
sistema econômico vigente. No entanto, durante toda a história da Igreja, ela
também alimentou movimentos e doutrinas rebeldes que desafiavam a injustiça
social em nome dos pobres e, em tempos modernos, denunciavam o capitalismo como
raiz do mal e a causa do empobrecimento. Como veremos, isso é particularmente
verdadeiro na Teologia da Libertação na América Latina.”
38 Veja
Jean-Pierre Gutton, La Societé et les pauvres. L’exemple de la généralité de Lyon 1534-1789. Paris: Le Belles
Lettres, 1971.
“A Teologia da Libertação é o produto
espiritual (como sabemos, o termo vem de A Ideologia Alemã, de Marx) desse
movimento social, mas, ao legitimá-lo, ao lhe fornecer uma doutrina religiosa
coerente, ela contribui enormemente para sua expansão e financiamento. No
entanto, a fim de evitar desentendimentos e reducionismos (sociológicos ou de
outro tipo) é preciso lembrar-nos, em primeiro lugar, de que a Teologia da Libertação
não é um discurso social e político e sim, antes de qualquer coisa, uma
reflexão religiosa e espiritual. Como enfatizou Gustavo Gutiérrez, em seu livro
pioneiro Teologia da Libertação –
Perspectivas:
A primeira tarefa da Igreja é celebrar, com alegria, a dádiva da ação
redentora de Deus na humanidade, que se realizou através da morte e da
ressureição de Cristo. É a Eucaristia, memorial e ação de graças. Memorial para
Cristo que supõe uma aceitação sempre renovada do significado da vida: a dádiva
total para os demais.3
O que muda – e muito profundamente – com
respeito à tradição da Igreja é o significado concreto dessa “dádiva total para
os demais” que ela adota. Se tivéssemos de resumir em uma única fórmula a ideia
central da Teologia da Libertação, poderíamos nos referir à expressão
consagrada pela Conferência dos Bispos Latino-Americanos de Puebla (1979): “a
opção preferencial pelos pobres”. Mas é preciso acrescentar imediatamente que,
para a nova teologia, esses pobres são os agentes de sua própria libertação e o
sujeito de sua própria história – e não simplesmente, como na doutrina
tradicional da Igreja, objeto da atenção caridosa.
O pleno reconhecimento da dignidade humana
dos pobres e a missão histórica e religiosa especial que lhes foi atribuída
pelo Cristianismo da Libertação é certamente uma das razões para o seu relativo
sucesso – pelo menos em alguns países – em arregimentar o apoio das mais pobres
da sociedade. Os motivos para isso podem ser entendidos mais facilmente se nos
referirmos à extraordinária análise ideal-típica proposta por Max Weber em seu
estudo da ética econômica das religiões mundiais:
O sentido da dignidade das camadas socialmente reprimidas ou das camadas
cuja situação é negativamente (ou pelo menos positivamente) avaliada, é mais
facilmente alimentada com a crença de que uma “missão” especial lhes foi
confiada; seu mérito é garantido ou constituído por um imperativo ético... Seu valor é assim transportado para algo que
vai mais além deles mesmos, transformado em uma “tarefa” que é colocada diante
deles por Deus. Uma das fontes do poder ideal de profecias éticas entre as
camadas socialmente em desvantagem reside nesse fato. O ressentimento não foi
exigido como compensação; o interesse racional nas compensações materiais e ideais
por si mesmas já foi perfeitamente suficiente.
Sejam quais forem as diferenças entre os
teólogos da libertação, é possível descobrir uma série de princípios básicos na
maior parte dos seus escritos, que constituem inovações radicais. Alguns dos
mais importantes são:
1. A luta contra a idolatria (não o ateísmo)
como inimigo principal da religião, isto é, contra os novos ídolos da morte
adorados pelos novos Faraós, pelos novos Césares e pelos novos Herodes: Bens
Materiais, Riqueza, o Mercado, a Segurança Nacional, o Estado, a Força Militar,
a “Civilização Ocidental Cristã”.
2 Libertação humana histórica como a
antecipação da salvação final em Cristo, o Reino de Deus.
3 Uma crítica da teologia dualista
tradicional, como produto da filosofia grega de Platão, e não da tradição
bíblica na qual a história humana e a história divina são diferentes, mais
inseparáveis.
4 Uma nova leitura da Bíblia, que dá uma
atenção significativa a passagens tais como a do Êxodo, que é vista como
paradigma de luta de um povo escravizado por sua libertação.
5 Uma forte crítica moral e social do
capitalismo dependente como sistema injusto e iníquo, como uma forma de pecado estrututral.
6 O uso do marxismo como instrumento socioanalítico a fim de entender as
causas da pobreza, as contradições do capitalismo e as formas da luta de
classe.
7 A opção preferencial pelos pobres e a
solidariedade com sua luta pela autolibertação.
8 O desenvolvimento de comunidades de base
cristãs entre os pobres como uma nova forma de Igreja e como alternativa para o
modo de vida individualista imposto pelo sistema capitalista.”
3
Gustavo Gutiérrez, Théplogie de la
liberátion – perspectives. Bruxelas: Lumem Vitae, 1974,
p. 261.
“(...) Defrontamo-nos aqui com o tipo de
fenômeno descrito pelo sociólogo francês Henri Desroche como “reativações
mútuas do espírito messiânico e revolucionário”5. Mas em vez de
“amálgama” ou “cumplicidade” (termos utilizados por Desroche) parece-me que
seria mais útil usar aqui com o conceito de afinidade eletiva [Wahlverwandtschaft] de Weber, para
entender como essas duas dimensões se relacionam na cultura do Cristianismo da
Libertação. Voltarei a essa questão mais adiante. Por enquanto, permitam apenas
que eu levante a hipótese de que essa afinidade eletiva se baseia em uma matriz comum de crenças políticas e
religiosas, ambas enquanto um “corpo de convicções individuais e coletivas
que estão fora do domínio da verificação e experimentação empíricas... mas que
dão sentido e coerência à experiência subjetiva daqueles que as possuem”6.
Algumas sugestões feitas por Lucien Goldmann
em seu livro O Deus escondido podem
nos ajudar a compreender essa matriz comum, que ele chamou de “fé”. Goldmann
usou o conceito de fé – sob a condição de excluir “as contingências
individuais, históricas e sociais que o associam a alguma região específica, ou
até mesmo às religiões positivas de um modo geral” – para definir uma certa
atitude total, comum às religiões e às utopias sociais, que se referem aos
valores transindividuais e baseiam-se
em um desafio7.
Goldmann comparou o valor religioso
transcendente (Deus) ao valor utópico imanente (a comunidade humana) mas, no
cristianismo de libertação latino-americano, a comunidade é, ela própria, um
dos valores transindividuais mais centrais, possuindo um significado tanto
transcendente quanto imanente, tanto ético/religioso como sociopolítico.
Essa matriz comum é uma condição importante
para o desenvolvimento de um processo de afinidade eletiva na América Latina
entre ética religiosa e utopias sociais. O sociólogo brasileiro Pedro Ribeiro
argumenta, no entanto que, na “Igreja da libertação” o relacionamento entre
prática religiosa e prática política é mais profundo que na afinidade eletiva:
“ele tem que ser entendido como uma unidade dialética, que vê a religião e a
política como dois momentos de uma única realidade: as práticas da
transformação social implementadas pelas classes populares”.8 Eu
acrescentaria apenas que o conceito de afinidade eletiva pode ser ampliado para
incluir a possibilidade de obter-se uma espécie de fusão dialética.
Venho dando ênfase à fusão e à unidade, mas é
importante referir-nos também à diferença e à distância entre os dois: não
sendo um movimento político, a Teologia da Libertação não tem um programa, nem
formula objetivos econômicos e políticos precisos. Admitindo a autonomia da
esfera política, ela deixa essas questões para os partidos políticos da
Esquerda, limitando-se a fazer uma crítica social e moral à injustiça, a
aumentar a consciência da população, a espalhar esperanças utópicas e a
promover inciativas “de baixo para cima”. Por outro lado, mesmo quando dão
apoio a um movimento político (por exemplo, a Frente Sandinista), os teólogos
da libertação normalmente mantêm uma distância crítica, comparando a prática
real do movimento com as esperanças de emancipação dos pobres.”
5 Daniel Levine (org.), Churches
and Politics in Latin America, Beverly Hills, CA: Sage, 1980, p. 17-19, 30;
e Daniel Levine (org.), Religion and
Political Conflict in Latin America. Chapel Hill: The University of North
Carolina Press, 1986, p. 17.
6 Henri Desroche, Sociologie de
l’espérance. Paris: Calmann-Lévy, 1973, p. 158.
7 Definição de crer [croire] por Daniéle Hervieu-Léger, La religion pour memóire. Paris: Cerf, 1993, p. 105. A ideia de uma
matriz comum para a religião e para a política que regula“as passagens de uma para
a outra segundo mecanismos extremamente complexos de reinterpretação e
redefinição”aparece no livro recente de Patrick Michel, Politique e religion. La grande mutation. Paris: Albin Michel,
1994, p. 27. Michel de Certeau já havia escrito acerca do “complexo movimento
para a frente e para trás entre religião e política” (e especificamente
cristianismo e socialismo) através do qual ocorre uma transferência de crenças
no mesmo contorno estrutural. Veja seu livro L’Invention du quotidien. 1. Arts de Faire, (1980). Paris;
Galimmard-Folio, 1990, p. 265-268, e também p.261-264, onde ele escreve sobre
as mudanças, transições e investimentos da energia crente [énergie croyante].
8 Lucien
Goldmann, Le Dieu caché. Paris: Gallimard, 1955, p. 99. Veja também a edição inglesa The
Hidden God, Londres: Routledge & Kegan Paul, 1964, p. 90.
“A Teologia da Libertação adota plenamente os
valores modernos da Revolução Francesa: liberdade, igualdade, fraternidade,
democracia e a separação entre Igreja e o Estado. Como enfatiza Leonardo Boff,
a nova teologia latino-americana não sente nenhuma afinidade com uma certa
tradição da Igreja institucional que, “desde o século XVI, de definiu como
‘contra’: contra a Reforma (1521), contra as Revoluções (1789), contra os
valores que hoje são normalmente aceitos, mas que ainda eram condenados em 1856
por Gregório XVI como deliramentum, tais
como a liberdade de consciência, a liberdade de opinião – excomungada e
considerada ‘um erro pestilento’ pelo mesmo Papa – contra a democracia etc.”.
Em um estilo semelhante, Gustavo Gutiérrez categoricamente rejeita a posição
retrógrada dos Papas do século XIX, que permitiram que os setores mais
conservadores da Igreja (os que alimentavam a esperança de uma restauração da
antiga ordem social) eliminassem ou silenciassem, através de forte censura, “os
grupos que estavam mais abertos para os movimentos a favor das liberdades da
modernidade e ao pensamento crítico”. Por essa razão ele comemora o Vaticano II
como sendo um despertar saudável para as grandes reivindicações da modernidade
(direitos humanos, liberdades, igualdade social) por parte da Igreja moderna,
em suma, “como uma rajada de vento fresco em um quarto abafado”27.
27 Boff, Igreja,
carisma e poder, p. 94; e Gustavo Gutiérrez, La Force historique des pauvres. Paris: Cerf, 1986, p. 178-184.
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