Editora: Loyola
ISBN: 978-85-15-03536-6
Tradução: Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 256
Sinopse: Os
futuros historiadores poderão considerar os anos 1978-1980 um ponto de ruptura
revolucionário na história social e econômica do mundo: Deng Xiaoping deu os
primeiros passos que iriam transformar a China de um remoto país fechado num
centro aberto de dinamismo capitalista Paul Volcker assumiu o FED e mudou
dramaticamente a política monetária Margaret Thatcher foi eleita com a tarefa
de restringir o poder dos sindicatos e de levar ao fim uma destruidora
estagnação inflacionária Ronald Reagan impeliu os EUA a revitalizarem sua
economia.
Volcker e Thatcher arrancaram das sombras de uma relativa
obscuridade uma doutrina particular que respondia pelo nome de neoliberalismo e
a transformaram na diretriz central do pensamento e da administração
econômicos. O neoliberalismo se tornou hegemônico como modalidade de discurso e
passou a afetar tão amplamente os modos de pensamento que se incorporou às
maneiras cotidianas de muitas pessoas interpretarem, viverem e compreenderem o
mundo.
Este livro relata a história político-econômica da origem
da neoliberalização e de como ela proliferou de modo tão abrangente no cenário
mundial, revelando sua origem, descrevendo sua disseminação pelo globo e
explicitando seus efeitos devastadores. Além disso, o engajamento crítico com
essa história sugere uma estrutura passível de permitir identificar e construir
propostas políticas e econômicas alternativas.
“O processo de neoliberalização, no entanto,
envolveu muita “destruição criativa”, não somente dos antigos poderes e
estruturas institucionais (chegando mesmo a abalar as formas tradicionais de
soberania do Estado), mas também das divisões do trabalho, das relações sociais,
da promoção do bem-estar social, das combinações de tecnologias, dos modos de
vida e de pensamento, das atividades reprodutivas, das formas de ligação à
terra e dos hábitos do coração. Na medida em que julga a troca de mercado “uma
ética em si capaz de servir de guia a toda ação humana, e que substitui todas
as crenças éticas antes sustentadas”2, o neoliberalismo enfatiza a
significação das relações contratuais no mercado. Ele sustenta que o bem social
é maximizado se se maximizam o alcance e a frequência das transações de
mercado, procurando enquadrar todas as ações humanas no domínio do mercado.”
2. TREANOR, P. Neoliberalism: Origins, Theory, Definition. Disponível em:.
“Quando todas as outras razões para lançar-se
em uma guerra preventiva contra o Iraque se mostraram insustentáveis, o
presidente apelou à ideia de que a liberdade conferida ao Iraque era em si e
por si uma justificativa adequada para a guerra. Os iraquianos estavam livres,
e isso era tudo o que realmente importava. Resta contudo perguntar que tipo de
liberdade é concebido aqui, uma vez que, como o crítico cultural Matthew Arnold
há muito observou argutamente, “a liberdade é um cavalo muito bom de cavalgar,
mas de cavalgar para ir a algum lugar”2. Para que lugar se espera
então que o povo do Iraque cavalgue com o cavalo da liberdade que lhe foi doado
pela força das armas?
A resposta americana foi enunciada em
setembro de 2003, quando Paul Bremer, chefe da Coalition Provisional Authority [Autoridade Provisória da
Coalizão], promulgou decretos que incluíam “a total privatização da economia,
plenos direitos de propriedade às empresas estrangeiras com negócios
iraquianos, o direito de as empresas estrangeiras expatriarem os lucros e a
retirada de quase todas as barreiras comerciais”3, incluindo
serviços públicos, bancos e finanças, meios de comunicação, indústrias
manufatureiras, serviços, transportes e construção. Apenas o petróleo foi
isentado da taxação (presumivelmente por causa de sua condição especial de
gerador de receita para pagar a guerra e devido a sua importância geopolítica).
O mercado de trabalho, por outro lado, viu-se submetido a uma estrita regulação;
o direito de greve foi considerado ilegal e a sindicalização proibida nos
setores-chave. Além disso, também se institui um “imposto único” altamente
regressivo (um plano de reforma fiscal cuja implementação vem sendo há muito
tempo defendida pelos conservadores nos Estados Unidos).
Essas medidas foram para alguns uma violação
das Convenções de Genebra e de Praga, visto que se exige de uma potência
ocupante a proteção dos ativos do país ocupado em vez de sua liquidação4.
Alguns iraquianos resistiram à imposição ao Iraque daquilo que a Economist de Londres denominou regime de
“sonho capitalista”. Um membro da Autoridade Provisória da Coalizão nomeada
pelos Estados Unidos fez críticas veementes à imposição do “fundamentalismo do
livre mercado”, considerando-o uma “lógica falha que ignora a história”5.
Embora possam ter sido ilegais quando impostas por uma potência ocupante, as regras
de Bremmer seriam legais se confirmadas por um governo “soberano”. O governo
provisório nomeado pelos Estados Unidos, que tomou posse no final de junho de
2004, foi decifrado “soberano”, mas só tinha o poder de confirmar leis
existentes. Antes da passagem do poder, Bremmer multiplicou o número de leis
para especificar nos mínimos detalhes regras de livre mercado e livre comércio
(em questões bem específicas como leis de direitos autorais e de direitos de
propriedade intelectual), exprimindo a esperança de que esses arranjos
institucionais “adquirissem vida e impulso próprios”, de modo a dificultar sua
reversão6.
Segundo a teoria neoliberal, os tipos de
medidas esboçados por Bremmer eram tanto necessários como suficientes para
criar riqueza e, por conseguinte, melhorar o bem-estar da população em geral. O
pressuposto de que as liberdades individuais são garantidas pela liberdade de mercado
e de comércio é um elemento vital do pensamento neoliberal e há muito determina
a atitude norte-americana para com o resto do mundo7. O que os
Estados Unidos evidentemente buscaram impor com mão pesada ao Iraque foi um
tipo particular de aparelho de Estado cuja missão fundamental foi criar
condições favoráveis à acumulação lucrativa de capital pelos capitalistas
domésticos e estrangeiros. Dou a esse tipo de aparelho de Estado o nome de Estado neoliberal. As liberdades que ele
encarna refletem os interesses dos detentores de propriedade privada, dos
negócios, das corporações multinacionais e do capital financeiro. Em suma,
Bremmer convidou os iraquianos a cavalgar com seu cavalo da liberdade
diretamente para dentro do curral neoliberal.”
2. Matthew Arnold é citado em R. Williams, Culture and Society, 1780-1850. London, Chatto & Windus, 1958,
118.
3. A. Juhasz, Ambitions of Empire:
The Bush Administration Economic Plan for lraq (and Beyond), Left Turn Magazine 12 (fev.-mar. 2004)
27-32.
4. N. Klein, Of Course the White House Fears Free Elections in Iraq. Guardian. 24 jan. 2004, 18.
5. T CRAMPTON, lraqi Official Urges Caution on Imposing Free Market, New York Times, 14 out. 2003, C5.
6. A. Juhasz, Ambitions of Empire,
p. 29.
7. G. W. BUSH, Securing Freedom 's Triumph, New York Times, 11 set. 2002, A33. O The National Security Strategy of the United State of America pode
ser acessado em: .
“As perspectivas
da liberdade
Essa história da neoliberalização e da
formação de classe e a aceitação proliferante das ideias da Mont Pelerin Society como diretrizes da
época são uma interessante leitura quando colocadas contra o pano de fundo dos
contra-argumentos propostos por Karl Polanyi em 1944 (pouco antes de a Mont Pelerin Society ter sido fundada).
Numa sociedade complexa, assinalou ele, o significado da liberdade se torna tão
contraditório e tão frágil quanto são estimulantes suas injunções a agir. Há,
observou ele, dois tipos de liberdade, um bom e o outro ruim. Entre estes
últimos, ele inclui “a liberdade de explorar o semelhante ou a liberdade de
obter ganhos extraordinários sem prestar um serviço comensurável à comunidade,
a liberdade de impedir que as invenções tecnológicas sejam usadas para o
benefício público ou a liberdade de obter lucros de calamidades públicas
secretamente planejadas para vantagens privadas”. Mas, prosseguindo, Polanyi
afirma que “a economia de mercado em que essas liberdades floresceram também
produziram liberdades que valorizamos muito. Liberdade de consciência,
liberdade de expressão, liberdade de reunião, liberdade de associação,
liberdade de escolher o próprio emprego”. Embora possamos “prezar essas
liberdades em si mesmas” – e sem dúvida muitos ainda o fazem –, elas foram em
larga medida “subprodutos da mesma economia que também é responsável pelas más
liberdades”34. A resposta de Polanyi a essa dualidade nos parece
estranha, dada a atual hegemonia do pensamento neoliberal:
A passagem da economia de mercado pode
tornar-se o começo de uma era de liberdade sem precedentes. Mais do que em
qualquer outra época, podem-se ampliar e tornar mais gerais a liberdade
jurídica e a liberdade real; a regulação e o controle podem obter liberdade não
só para uns poucos, mas para todos. A liberdade não como a concessão de
privilégios, maculada na fonte, mas como direito prescritivo que ultrapassa as
limitações da esfera política e alcança a organização do próprio tecido social.
Assim, antigas liberdades e antigos direitos cívicos se somarão ao fundo de
novas liberdades geradas pelo tempo livre e pela segurança que a sociedade
industrial oferece a todos. Uma tal sociedade tem condições de ser ao mesmo
tempo justa e livre35.
Infelizmente, observou Polanyi, a passagem
para esse futuro está bloqueada pelo “obstáculo moral” do utopismo liberal.
(...)
A ideia de liberdade “degenera assim em mera
defesa do livre empreendimento”, que significa “a plenitude da liberdade para
aqueles que não precisam de melhoria em sua renda, seu tempo livre e sua
segurança, e um mero verniz de liberdade para o povo, que pode tentar em vão
usar seus direitos democráticos para proteger-se do poder dos que detêm a
propriedade”. Mas se, como é sempre o caso, “não é possível uma sociedade sem
poder e compulsão, nem um mundo em que a força não tenha função”, a única
maneira de manter essa visão utópica liberal está na força; na violência e no
autoritarismo. Para Polanyi, o utopismo liberal ou neoliberal está fadado à
frustração pelo autoritarismo ou mesmo pelo fascismo declarado37.
Perdem-se as boas liberdades e as más liberdades assumem o controle.
O diagnóstico de Polanyi se mostra
peculiarmente apropriado à nossa condição contemporânea. Oferece uma potente
perspectiva a partir da qual entender o que pretende o presidente Bush ao dizer
que “na qualidade de maior potência da terra temos a obrigação de ajudar a
propagar a liberdade”. Ajuda a explicar por que o neoliberalismo se tornou tão
autoritário, violento e antidemocrático no próprio momento em que “tem em suas
mãos a oportunidade de oferecer o triunfo da liberdade a todos os seus inimigos
imemoriais”38. Faz-nos ter como foco a maneira como tantas
corporações têm obtido lucros com a privação da esfera pública dos benefícios
de suas tecnologias (como drogas contra a aids), bem como com as calamidades da
guerra (como no caso da Halliburton), com a inanição e com o desastre ambiental.
Evoca a preocupação de saber se muitas dessas calamidades ou quase calamidades
(a corrida armamentista e a necessidade de combater inimigos reais ou
imaginados) não terão sido secretamente criadas em benefício de corporações. E
deixa muitíssimo claro por que os abastados e poderosos apoiam com tanta avidez
certas concepções particulares de direitos e liberdades enquanto tentam nos
persuadir de sua universalidade e sua bondade. Afinal, trinta anos de
liberdades neoliberais não apenas restauraram o poder de uma classe capitalista
estreitamente definida, como também produziram imensas concentrações de poder
corporativo no setor energético, nos meios de comunicação, na indústria
farmacêutica, nos transportes e mesmo no varejo (a Wal-Mart, por exemplo). A liberdade do mercado que Bush proclama
como ponto alto da aspiração humana mostra não ser nada mais do que meios
convenientes de disseminar o poder monopolista corporativo – e a Coca-Cola – pelos quatro cantos do
globo, sem restrições. Com uma influência desproporcionada sobre os meios de
comunicação e o processo político, essa classe (com Rupert Murdoch e a Fox News na liderança) tem tanto o
estímulo como o poder para nos persuadir de que estamos todos melhores sob um
regime neoliberal de liberdades. Para a elite, vivendo com conforto em seus
guetos dourados, o mundo tem de fato de parecer um lugar melhor. Como poderia
ter dito Polanyi, o neoliberalismo proporciona direitos e liberdades àqueles “que
não precisam de melhoria em sua renda, seu tempo livre e sua segurança”,
deixando um verniz para o resto de nós.”
34. K. POLANYI, The Great
Transformation, Boston, Beacon Press, 1954.
35. lbid., 256-258.
37. Ibid.
“Como se instaurou a neoliberalização e quem
o fez? A resposta em países como o Chile e a Argentina nos anos 1970 foi tão
simples quanto rápida, brutal e segura: um golpe militar apoiado pelas classes
altas tradicionais (assim como pelo governo norte-americano) seguido pela cruel
repressão de todas as solidariedades criadas no âmbito dos movimentos trabalhistas
e sociais urbanos que tanto ameaçaram seu poder. Mas a revolução neoliberal que
se costuma atribuir a Thatcher e Reagan a partir de 1979 tinha de ser
instaurada por meios democráticos. A ocorrência de uma mudança de tamanha
magnitude exigia que se construísse antes o consentimento político num espectro
suficientemente amplo da população para que se ganhassem eleições. Aquilo que
Gramsci denomina “senso comum” (definido como “o sentido sustentado em comum”)
tipicamente fundamenta o consentimento. O senso comum é construído com base em
práticas de longa data de socialização cultural que costumam fincar profundas
raízes em tradições nacionais ou regionais. Não é o mesmo que bom senso, que
pode ser construído a partir do engajamento crítico com as questões do momento.
Assim sendo, o senso comum pode ser profundamente enganoso, escamoteando ou
obscurecendo problemas reais sob preconceitos culturais1. Valores
culturais e tradicionais (como a crença em Deus e no país ou concepções da
posição das mulheres na sociedade) e temores (de comunistas, imigrantes,
estrangeiros ou “outros” em geral) podem ser mobilizados para mascarar outras
realidades. Podem-se invocar slogans
políticos que mascarem estratégias específicas por trás de vagos artificias
retóricos. A palavra “liberdade” ressoa tão amplamente na compreensão de senso
comum que têm os norte-americanos que se tornou “um botão que as elites podem
pressionar para abrir a porta às massas” a fim de justificar quase qualquer
coisa2. Foi assim que Bush pôde justificar retrospectivamente a
guerra do Iraque. Gramsci concluiu, portanto, que as questões políticas, quando
“disfarçadas como culturais”, se tornam “insolúveis”3. Buscando
compreender a construção do consentimento político, temos de aprender a extrair
significados políticos de seu impenetrável revestimento cultural.
Como então se gerou suficiente consentimento
popular para legitimar a virada neoliberal? Os canais por meio dos quais se fez
isso foram diversificados. Fortes influências ideológicas circularam nas
corporações, nos meios de comunicação e nas numerosas instituições que
constituem a sociedade civil – universidades, escolas, Igrejas e associações
profissionais. A “longa marcha” das ideias neoliberais nessas instituições, que
Hayek concebera já em 1947, a organização de bancos de ideias (apoiados e
financiados por corporações), a cooptação de certos setores dos meios de
comunicação e a conversão de muitos intelectuais a maneiras neoliberais de
pensar – tudo isso criou um clima de opinião favorável ao neoliberalismo como o
garante exclusivo da liberdade. Esses movimentos mais tarde se consolidaram com
o domínio dos partidos políticos e, em última análise, o poder do Estado.
Em tudo isso, foi hegemônico o recurso a
tradições e valores culturais. O projeto declarado de restauração do poder
econômico a uma pequena elite provavelmente não teria muito apoio popular. Mas
um esforço programático de defesa da causa das liberdades individuais poderia
constituir um apelo a uma base popular, disfarçando assim o trabalho de restauração
do poder de classe. Além disso, uma vez que fez a virada neoliberal, o aparato
do Estado pode usar seus poderes de persuasão, cooptação, chantagem e ameaça
para manter o clima de consentimento necessário à perpetuação de seu poder. (...)
Mas os valores “liberdade individual” e “justiça
social” não são necessariamente compatíveis. A busca da justiça social
pressupõe solidariedades sociais e a propensão a submeter vontades,
necessidades e desejos à causa de alguma luta mais geral em favor de, por
exemplo, igualdade social ou justiça ambiental. (...)
No começo dos anos 1970, quem buscava
liberdades individuais e justiça social podia fazer causa comum diante do que
muitos viam como um inimigo comum. Considerava-se que poderosas corporações
aliadas a um Estado intervencionista dirigiam o mundo de maneiras
individualmente opressivas e socialmente injustas. A Guerra do Vietnã foi o
mais óbvio catalisador do descontentamento, mas também havia um amplo
ressentimento com respeito às destrutivas atividades das corporações e do
Estado diante do ambiente, o impulso para o consumismo inconsciente, a
incapacidade de resolver os problemas sociais e de responder adequadamente à
diversidade, ao lado de intensas restrições a possibilidades individuais e
comportamentos pessoais vindos tanto de controles “tradicionais” como dos
implantados pelo Estado. Os direitos civis eram um problema, e as questões da
sexualidade e dos direitos reprodutivos estavam na ordem do dia. Para quase
todos os envolvidos no movimento de 1968, o Estado intrusivo era o inimigo e
tinha de ser reformado. Quanto a isso: os neoliberais concordavam facilmente.
Mas as corporações capitalistas, os negócios e o sistema de mercado também eram
considerados inimigos vitais que precisavam de alterações, se não de uma
transformação revolucionária, o que representava uma ameaça para o poder da
classe capitalista. Tomando ideais de liberdade individual e virando-os contra
as práticas intervencionistas e regulatórias do Estado, os interesses da classe
capitalista podiam alimentar a esperança de proteger e mesmo restaurar sua
posição. O neoliberalismo era bem adequado a essa tarefa ideológica, precisando
porém da sustentação de uma estratégia prática que enfatizasse a liberdade de
escolha do consumidor, não só quanto a produtos particulares, mas também quanto
a estilos de vida, formas de expressão e uma ampla gama de práticas culturais.
A neoliberalização precisava, política e economicamente, da construção de uma
cultura populista neoliberal fundada no mercado que promovesse o consumismo
diferenciado e o libertarianismo individual. No tocante a isso, ela se mostrou
mais que compatível com o impulso cultural chamado “pós-modernismo”, que havia
muito espreitava no ninho, mas agora podia surgir, emplumado, como dominante
tanto cultural quanto intelectual. Foi esse o desafio que as corporações e as
elites de classe se puseram a aprimorar nos anos 1980.”
1. A. GRAMSCI, Selections from the
Prison Notebooks, London, Lawrence & Wishart, 1971, 321 -343.
2. J. RAPLEY, Globalization and
lnequality: Neoliberalism's Downward Spiral. Boulder, Colorado, Lynne
Reiner, 2004, 55.
3. GRAMSCI, Selections from the
Prison Notebooks, 149.
“Uma linha de resposta à dupla crise da
acumulação do capital e do poder de classe surgiu quando das batalhas urbanas
dos anos 1970. A crise fiscal da cidade de Nova York foi um caso paradigmático.
A reestruturação capitalista e a desindustrialização vinham havia anos
corroendo a base econômica da cidade, e a rápida suburbanização deixara boa
parte do centro da cidade empobrecida. O resultado foi uma insatisfação social
explosiva da parte de populações marginalizadas na década de 1960, definindo o
que viria a ser conhecido como “a crise urbana” (problemas semelhantes surgiram
em muitas outras cidades norte-americanas). A expansão do emprego público e dos
serviços públicos – facilitada em parte por generosos recursos federais – foi
considerada a solução. Contudo, diante de dificuldades fiscais, o presidente
Nixon simplesmente declarou no começo da década de 1970 que a crise urbana
acabara. Embora fosse uma novidade para muitos habitantes da cidade, isso
assinalava a redução da ajuda federal. Com a aceleração da recessão, aumentou a
distância entre receitas e despesas no orçamento da cidade de Nova York (já
grande por causa de descontrolados empréstimos tomados durante muitos anos). No
começo, as instituições financeiras tiveram condições de suprir essa carência,
mas em 1975 um forte grupo de banqueiros de investimento (liderados por Walter
Wriston, do Citibank) se recusou a
rolar a dívida e levou a cidade à bancarrota técnica. O resgate que se seguiu
envolveu a construção de novas instituições que assumiram a administração do
orçamento da cidade. Elas tinham total liberdade de gestão das receitas de
impostos a fim de pagar em primeiro lugar os acionistas, ficando o que restasse
para ser empregado em serviços essenciais. O efeito disso foi jogar por terra
as aspirações dos fortes sindicatos municipais da cidade, implementar
congelamentos de salário e cortes no emprego público e na manutenção de
serviços sociais (educação, saúde pública, serviços de transporte) e impor
cobranças de taxas aos usuários (o sistema universitário da CUNY – City
University of New York – passou a cobrar a partir de então). A indignidade
final foi a exigência de que os sindicatos municipais investissem os recursos
de seus fundos de pensão em títulos do município. Os sindicatos tinham como opção
moderar suas exigências ou enfrentar a perspectiva de perder seus fundos de
pensão em caso de falência da cidade7. Isso foi equivalente a um
golpe das instituições financeiras contra o governo democraticamente eleito da
cidade de Nova York, e tão eficaz quanto o golpe militar que ocorrera antes no
Chile. (...)
Embora disseminada, a resistência à
austeridade só podia, de acordo com Freeman, “retardar, mas não interromper, a
revolução a partir de cima. Em poucos anos, muitas das conquistas históricas da
classe trabalhadora de Nova York se tornariam letra morta”. Boa parte da
infraestrutura social da cidade sofreu prejuízo e a infraestrutura física (por
exemplo, o sistema de transporte subterrâneo) se deteriorou acentuadamente por
falta de investimento e até de manutenção. A vida cotidiana em Nova York
“tornou-se tenebrosa e a atmosfera cívica opressiva”. O governo da cidade, o
movimento trabalhista municipal e a classe trabalhadora do município foram
concretamente privados “de boa parte do poder que tinham acumulado nas três
décadas precedentes”10. Desmoralizada, a classe trabalhadora de Nova
York aceitou com relutância a nova realidade.
Mas os banqueiros de investimento da cidade
não se afastaram dela; eles aproveitaram a oportunidade para reestruturá-la de
maneiras adequadas ao seu próprio programa. A criação de um “clima de negócios
favorável” era uma prioridade e se traduziu em usar recursos públicos para
criar infraestruturas adequadas aos negócios (particularmente no setor de
telecomunicações), a que se associaram subsídios e incentivos fiscais para
empreendimentos capitalistas. O bem-estar corporativo tomou o lugar do
bem-estar social. As instituições de elite da cidade se mobilizaram para vender
a imagem de Nova York como centro cultural e turístico (inventando o famoso
logotipo com a inscrição “I Love New York”). As elites dirigentes se
empenharam, muitas vezes divididas, em apoiar a abertura do campo cultural a
toda modalidade de diferentes correntes cosmopolitas. A exploração narcisista
do ego, da sexualidade e da identidade se tornou o leitmotiv da cultura burguesa urbana. A liberdade e a licença
artísticas, promovidas pelas poderosas instituições culturais da cidade,
levaram na verdade à neoliberalização da cultura. A “Nova York delirante” (para
usar a frase memorável de Rem Koolhaas) apagou a memória coletiva da Nova York
democrática11. As elites da cidade aceitaram, não sem relutância
ativa, a exigência de diversificação de estilos de vida (incluindo os relativos
às preferências sexuais e ao gênero) e de aumento constante das opções de
nichos de consumidores (em áreas como a produção cultural). Nova York se tornou
o epicentro da experimentação cultural e intelectual pós-moderna. Entrementes,
os banqueiros de investimento reconstruíram a economia municipal em torno de
atividades financeiras, serviços auxiliares como assistência jurídica e meios
de comunicação (os quais experimentaram uma revivescência graças à submissão da
economia ao capital financeiro [financialização] que então ocorria) e a um consumismo
diversificado no qual a expulsão dos moradores pobres por empreendimentos
imobiliários destinados à classe média (“gentrificação”) e a “restauração” de
bairros decadentes desempenharam um papel proeminente e lucrativo. A
administração da cidade passou a ser concebida cada vez mais como entidade
empreendedora, em vez de social democrática ou mesmo administrativa. A
competição entre centros urbanos por capitais de investimento transformou o
governo em governança urbana mediante parcerias público-privadas. Os negócios
da cidade passaram a ser crescentemente realizados por trás de portas fechadas
e houve uma redução do conteúdo democrático e representacional da governança
local12.
A Nova York de classe trabalhadora e
étnico-imigrante foi lançada de volta as sombras e fortemente afetada pelo
racismo e por uma epidemia de consumo de crack de proporções épicas nos anos
1980. Ela deixou muitos jovens mortos, encarcerados ou sem teto, e os
sobreviventes mais tarde foram assolados pela epidemia de aids surgida na
década de 1990. A redistribuição de renda através da violência criminosa se
tornou uma das poucas opções reais para os pobres, e as autoridades reagiram
criminalizando comunidades inteiras de pessoas empobrecidas e marginalizadas.
As vítimas foram consideradas culpadas, e [Rudolf] Giuliani, o então prefeito,
ficou famoso pela vingança que promoveu em favor de uma burguesia cada vez mais
abastada de Manhattan, cansada de ter de enfrentar na porta de casa os efeitos
dessa devastação.
A administração da crise fiscal de Nova York
abriu pioneiramente o caminho para práticas neoliberais, tanto domesticamente,
sob Reagan, como internacionalmente por meio do FMI na década de 1980.
Estabeleceu o princípio de que, no caso de um conflito entre a integridade das
instituições financeiras e os rendimentos dos detentores de títulos de um lado,
e o bem-estar dos cidadãos de outro, os primeiros devem prevalecer. Acentuou
que o papel do governo é criar um clima de negócios favorável e não cuidar das
necessidades e do bem-estar da população em geral. A política do governo Reagan
nos anos 1980, conclui Tabb, foi “apenas o cenário de Nova York” dos anos 1970
“bastante ampliado”13.”
7. W. T ABB. The Long Default:
New York City and the Urban Fiscal Crisis, New York, Monthly Review Press,
1982; J. FREEMAN, Working Class New York,
Life and Labor Since World War II, New York, New Press. 2001.
10. FREEMAN, Working Class New
York.
11. R. KOOLHAAS, Delirious New
York, New York, Monacelli Press, 1994; M GREENBERG, The Limits of Branding:
The World Trade Center, Fiscal Crisis and the Marketing of Recovery, International Journal of Urban and Regional
Research 27 (2003) 386-416.
12. TABB. The
Long Default. Sobre a subsequente “venda” de Nova York, ver GREENBERG, The Limit of Branding; sobre o
empreendedorismo urbano de maneira mais geral, ver D. HARVEY, From
Managerialism to Entrepreneurialism. The Transformation of Urban Governance, in Id., Spaces of Capital, Edinburgh, Edinburgh University Press, 2001,
cap. 16.
13. TABB. The
Long Default, 15.
“Mas o Partido Republicano precisava de uma
sólida base eleitoral para colonizar de fato o poder. Foi mais ou menos nessa
época que os republicanos buscaram uma aliança com a direita cristã. Seus
integrantes não tinham sido politicamente ativos no passado, mas a fundação da
“maioria moral” de Jerry Falwell como partido político em 1978 mudou o quadro
por completo. O Partido Republicano tinha agora sua base cristã. Ele também
apelara ao nacionalismo cultural da classe trabalhadora branca e ao seu
ressentido senso de virtude moral (ressentido porque essa classe vivia sob
condições de insegurança econômica crônica e se sentia excluída de muitos dos
benefícios distribuídos pela ação afirmativa e outros programas do governo).
Essa base política podia ser mobilizada, em termos positivos, pela religião e
pelo nacionalismo cultural, e, negativamente, mediante o racismo, a homofobia e
o antifeminismo disfarçados, quando não ostensivos. O problema não era o
capitalismo e a neoliberalização da cultura, mas os “liberais”, que haviam
usado excessivo poder do Estado para favorecer grupos específicos (negros,
mulheres, ambientalistas). Um bem financiado movimento de intelectuais
neoconservadores (congregados em torno de Irving Kristol e Norman Podhoretz e
da revista Commentary), que esposava
a moralidade e os valores tradicionais, conferia credibilidade a essas teses.
Apoiando a virada neoliberal economicamente, mas não culturalmente, eles
condenavam os excessos intervencionistas da chamada “elite liberal” (tornando
bastante obscuro o possível sentido de “liberal”). O efeito disso foi desviar a
atenção do capitalismo e do poder corporativo como possuidores de qualquer
relação que fosse com os problemas econômicos ou culturais que o comercialismo
e o individualismo descontrolados estavam criando.
A partir de então, a aliança nada santa entre
os grandes negócios e os cristãos conservadores, apoiada pelos
neoconservadores, consolidou-se vigorosamente e acabou por erradicar todos os
elementos liberais (que nos anos 1960 eram importantes e influentes) do Partido
Republicano, em especial a partir de 1990, transformando-o na força eleitoral
direitista relativamente homogênea da atualidade18. Não foi a primeira
nem, devemos temer, a última vez na história que um grupo social foi persuadido
a votar contra seus interesses materiais, econômicos e de classe por razões
culturais, nacionalistas e religiosas. Em alguns casos, contudo, provavelmente
é mais apropriado substituir “persuadido” por “eleito”, pois há muitas provas
de que os cristãos evangélicos (que não ultrapassam 20% da população), que
constituem o núcleo da “maioria moral”, aceitaram sofregamente a aliança com os
grandes negócios e o Partido Republicano como forma de promover seu programa
evangélico e moral.”
18. T. FRANK, What’s the Matter
with Kansas: How Conservatives Won the Hearts of America, New York,
Metropolitan Books, 2004.
“O pressuposto neoliberal de perfeito acesso
a informações e de igualdade de condições na competição parece ser ou
inocentemente utópico ou um escamoteamento deliberado de processos que vão
levar à concentração de riqueza e, portanto, à restauração do poder de classe.
A teoria neoliberal da mudança tecnológica se
sustenta nos poderes coercivos da competição para levar à busca de novos
produtos, de novos métodos de produção e de novas formas organizacionais. Mas
esse impulso se incorpora a tal ponto ao senso comum dos empreendedores que se
torna um fetiche: a crença de que para todo e qualquer problema há um remédio
tecnológico. (...) Além disso, atravessadores talentosos podem mobilizar
inovações tecnológicas para solapar relações sociais e instituições dominantes
e, por meio de suas atividades, até mesmo reformular o senso comum para sua
própria vantagem pecuniária. Há, portanto, um vínculo constitutivo entre
dinamismo tecnológico, instabilidade, dissolução de solidariedades sociais,
degradação ambiental, desindustrialização, aceleradas mudanças das relações
espaço-tempo, bolhas especulativas e a tendência geral de formação de crises no
capitalismo3.
Há por fim alguns problemas políticos
fundamentais no âmbito do neoliberalismo que precisam ser abordados. Surge uma
contradição entre um individualismo possessivo sedutor mas alienante e o desejo
de uma vida coletiva dotada de sentido. Embora se suponha que os indivíduos
sejam livres para escolher, não se supõe que eles escolham construir
instituições coletivas fortes (como sindicatos) em vez de associações
voluntárias fracas (como instituições de caridade). Os indivíduos com toda
certeza não deveriam escolher associar-se para criar partidos políticos
voltados para forçar o Estado a intervir no mercado ou eliminá-lo. Para
defender-se de seus maiores temores – o fascismo, o comunismo, o socialismo, o
populismo autoritário e mesmo o regime da maioria – os neoliberais têm de impor
fortes limites à governança democrática, apoiando-se em vez disso em
instituições não-democráticas e que não prestam contas a ninguém (como o Banco
Central norte-americano e o FMI) para tomar as decisões essenciais. Isso cria o
paradoxo das intensas intervenções estatais e do governo em mãos das elites e
de “especialistas” num mundo em que se supõe que o Estado não é
intervencionista. Isso remete à narrativa utópica de Francis Bacon A Nova Atlântida (publicada pela
primeira vez em 1926), na qual um Conselho de Anciões Sábios se encarrega de
todas as decisões fundamentais. Diante de movimentos sociais que buscam
intervenções coletivas, o Estado neoliberal é forçado, por conseguinte, a
intervir, por vezes repressivamente, negando assim as próprias liberdades de
que se supõe ser o garante. Nessa situação, todavia, ele pode recorrer a uma
arma secreta: a competição internacional e a globalização podem ser usadas para
disciplinar movimentos opostos ao programa neoliberal em Estados individuais.
Se não der certo, o Estado em questão terá de recorrer à persuasão, à
propaganda ou, se necessário, à força bruta e ao poder de polícia para suprimir
a oposição ao neoliberalismo. Foi esse precisamente o medo de Polanyi: que o
projeto utópico liberal (e por extensão neoliberal) só pudesse em última
análise se sustentar pelo recurso ao autoritarismo. A liberdade das massas
teria de ser restringida em benefício das liberdades dos poucos.”
3. Ver D. HARVEY, Condition of
Postmodernity; ld., The Limits to Capital,
Oxford, Basil Blackwell, 1982.
“No plano internacional, os Estados
neoliberais centrais deram ao FMI e ao Banco Mundial, em 1982, plena autoridade
para negociar o alívio da dívida, o que significou na verdade proteger da
ameaça de falência as principais instituições financeiras internacionais. Com
efeito, o FMI cobre, com o máximo de sua capacidade, exposições a riscos e
incertezas nos mercados financeiros internacionais. É difícil justificar essa
prática seguindo a teoria neoliberal, já que os investidores deveriam em
princípio ser responsáveis por seus próprios erros. Em consequência,
neoliberais mais fundamentalistas acreditam que o FMI deveria ser abolido, uma
alternativa seriamente considerada nos primeiros anos do governo Reagan e que
foi aventada de novo em 1988 pelos republicanos no Congresso. James Baker,
secretário do Tesouro de Reagan, deu novo fôlego à instituição quando se viu
diante da potencial falência do México e de grandes perdas para os principais
bancos de investimento da cidade de Nova York que detinham a dívida mexicana em
1982. Ele usou o FMI para impor ao México o ajuste estrutural e assim proteger
da falência os banqueiros de Nova York. Essa prática de priorizar as
necessidades dos bancos e instituições financeiras e ao mesmo tempo diminuir o
padrão de vida do país devedor teve como evento pioneiro a crise da dívida da
cidade de Nova York. No contexto internacional, isso se traduziu em extrair
mais-valia de populações empobrecidas do Terceiro Mundo para pagar aos
banqueiros internacionais. Como observa sarcasticamente Stiglitz, “que mundo
peculiar este em que os países pobres estão na verdade subsidiando os mais
ricos”6.”
6. STIGLITZ, The Roaring Nineties,
New York, Norton, 2003, p. 227.
Um comentário:
- Todas as análises que Harvey faz sobre os efeitos do neoliberalismo em vários países são muito interessantes: México (pp. 107-114), Argentina (pp. 114-116), Coreia do Sul (pp. 116-122), Suécia (pp. 122-125) e todo o capítulo sobre a China (pp. 136-163, especialmente pp. 146-163).
Ademais, os trechos das páginas 172-178, onde se destacam os efeitos do neoliberalismo, também são muito significativos.
Estas passagens não puderam ser inseridas por questões de tamanho, mas fica aqui o destaque.
- A editora deixou muito a desejar no trabalho de revisão.
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