Editora:
Publicações Europa-América
ISBN: 978-97-2104-279-7
Opinião: ★★☆☆☆
Páginas: 208
Sinopse: Ver Parte
I
“A Idade Média, tal como se apresentava, corria o risco de nunca conhecer
senão o caos e a decomposição. Nascida de um império desmoronado e de vagas de
invasões sucessivas, formada por povos desarmônicos que tinham cada um os seus
usos, seus quadros e sua ordem social diferentes, quando não opostos, e quase
todos um sentido muito vivo das castas, da sua superioridade de vencedores, ela
deveria apresentar o mais inconcebível esboroamento, e de fato o apresentou no
início.
Contudo,
verificamos que nos séculos XII e XIII essa Europa tão dividida, tão perturbada
por ocasião do seu nascimento, atravessa uma era de harmonia e de união tal
como nunca conhecera, e talvez não conhecerá mais no decorrer dos séculos. Por
ocasião da primeira cruzada, vemos príncipes sacrificarem os seus bens e os
seus interesses, esquecer as suas querelas para tomarem juntamente a Cruz. Os
povos mais diferentes reuniram-se num único exército. A Europa inteira
estremeceu à palavra de um Urbano II, de um Pedro, o Eremita, mais tarde de um
São Bernardo ou de um Foulques de Neuilly. Vemos monarcas, preferindo a
arbitragem à guerra, submeter-se ao julgamento do Papa ou de um rei estrangeiro
para regularizar as suas dissensões. Fato ainda mais notável, encontramo-nos
perante uma Europa organizada. Ela não é um império, não é uma federação — é a
Cristandade.
É
preciso reconhecer aqui o papel representado pela Igreja e pelo papado na ordem
europeia. Foram, com efeito, fatores essenciais de unidade. A diocese, a
paróquia, confundindo-se frequentemente com o domínio, foram durante o período
de decomposição da Alta Idade Média as células vivas a partir das quais se
reconstituiu a nação. As grandes datas que para sempre marcariam a Europa são
as da conversão de Clóvis, assegurando no mundo ocidental a vitória da
hierarquia e da doutrina católicas sobre a heresia ariana; e a coroação de
Carlos Magno pelo Papa Estêvão II, que consagra o duplo poder espiritual e
temporal, cuja união formará a base da cristandade medieval.
É
preciso ter em conta, de uma maneira mais geral, a influência do dogma católico
que ensina que todos os filhos da Igreja são membros de um mesmo corpo, como o
lembram os versos de Rutebeuf:
Tous sont un corps en Jésus-Christ,
Dont
je vous montre par l’écrit
Que
li uns est membre de l’autre.
Todos
somos um só corpo em Jesus Cristo,
E
assim eu vos mostro, pelo que está afirmado,
Que
nós somos membros d’Ele.
A
unidade de doutrina, vivamente sentida na época, jogava a favor da união dos
povos. Carlos Magno compreendera-o tão bem que, para conquistar a Saxônia, enviava
missionários de preferência a exércitos, e o fazia por convicção, não por
simples ambição. A história repetiu-se no Império Germânico com a dinastia dos
Otões. A Cristandade pode definir-se praticamente como a “universidade” dos
príncipes e dos povos cristãos obedecendo a uma mesma doutrina, animados de uma
mesma fé, e reconhecendo desde logo o mesmo magistério espiritual. Esta
comunidade de fé traduziu-se numa ordem europeia assaz desconcertante para
cérebros modernos, bastante complexa nas suas ramificações, grandiosa contudo
quando a examinamos no seu conjunto. A paz na Idade Média foi muito
precisamente, segundo a bela definição de Santo Agostinho, “a tranquilidade da
ordem”.
Um
ponto central permanece fixo – o papado, centro da vida espiritual. Mas muito
diversas são as suas relações com os diferentes Estados. Alguns estão ligados à
Santa Sé por títulos especiais de dependência. É o caso do Império Romano-Germânico,
cujo chefe, sem se encontrar sob a suserania do Papa, ao contrário do que se
acreditou frequentemente, deve contudo ser escolhido ou pelo menos confirmado
por ele. Isto explica-se, reportando-nos às circunstâncias que presidiram à sua
fundação e à parte essencial que aí tinha tomado o papado, que não faz mais do
que conferir-lhe o seu título e julgar casos de deposição. Outros reinos são
vassalos da Santa Sé, pois num dado momento da sua história pediram aos papas a
sua proteção: como os reis da Hungria, entregando-lhe solenemente a sua coroa;
ou como os reis da Inglaterra, Polônia ou Aragão, pedindo-lhe que autenticasse
os seus direitos, de modo que o selo de São Pedro ratifica doravante e preserva
as suas liberdades. Outros enfim, e entre estes a França, não têm nenhum laço
de dependência temporal com a Santa Sé, mas aceitam naturalmente as suas
decisões em matéria de consciência, e também se submetem de boa vontade à sua
determinação arbitral.
Tal
é, nas suas grandes linhas, o edifício da Cristandade, como o precisou
Inocêncio III numa época em que ela já se encontrava realizada na prática havia
vários séculos. Assenta essencialmente numa harmonia de ordem mística entre os
povos. Quando examinamos os princípios do equilíbrio europeu, concebidos na
altura do tratado de Vestfália, não podemos impedir-nos de achar bastante pobre
esta dosagem das nacionalidades, esta agulha de balança fazendo as vezes das
sólidas bases sobre as quais se fundava a paz medieval.
Equivocamo-nos
frequentemente sobre o caráter destas relações entre a Igreja e os Estados.
Estamos habituados a ver na autoridade espiritual e na autoridade temporal dois
poderes claramente distintos, e por vezes esta “intrusão” do papado nos
assuntos dos príncipes foi julgada intolerável. Tudo se aclara se nos
integrarmos na mentalidade da época. Não é a Santa Sé que impõe o seu poder aos
príncipes e aos povos, mas os príncipes e os povos que, sendo crentes, recorrem
naturalmente ao poder espiritual, quer eles queiram fazer fortalecer a sua autoridade
ou respeitar os seus direitos, quer desejem fazer solucionar as suas questões
por um árbitro imparcial. Como o enuncia Gregório X: “Se é dever daqueles que
dirigem os Estados salvaguardar os direitos e a independência da Igreja, é
também dever daqueles que detêm o governo eclesiástico tudo fazer para que os
reis e os príncipes possuam a plenitude da sua autoridade”. Os dois poderes, em
vez de se ignorarem ou de se combaterem, reforçam-se mutuamente.
O que
pôde prestar-se a confusão é que na Idade Média é geral professar um maior
respeito pela autoridade religiosa do que pela autoridade laica e julgar uma
superior à outra, segundo o dito célebre de Inocêncio III: “Como a alma está
para o corpo, ou como o Sol está para a Lua”. Trata-se de hierarquia de
valores, que não arrasta necessariamente a uma subordinação de fato.
Além
disso, é preciso não esquecer que a Igreja, guardiã da fé, é também juiz no
foro íntimo e depositária dos juramentos, o que ninguém na Idade Média teria
ousado contestar. Quando é cometido um escândalo público, ela tem o direito e o
dever de pronunciar a sua sentença, de absolver o culpado ou de perdoar o
arrependido. Portanto, quando excomunga um Roberto, o Piedoso, ou um Raimundo
de Toulouse, ela apenas usa de um poder que lhe é universalmente reconhecido.
Do mesmo modo, quando ela desobriga do juramento de fidelidade os súditos do
rei Filipe Augusto ou do imperador Henrique IV, na sequência da sua conduta
repreensível ou das suas exações, ela exerce uma das suas funções soberanas,
porque na Idade Média todo juramento toma por testemunha Deus, e por consequência
a Igreja, que tem o poder de unir e de desunir.
Que
tenha havido abusos da parte da Santa Sé, como da parte do poder temporal, é
coisa incontestável, e a história das disputas entre o papado e o império está
aí para prová-lo. Mas podemos dizer que no conjunto esta tentativa audaciosa de
unir os dois poderes — o espiritual e o temporal — teve um saldo positivo para
o bem comum. Era uma garantia de paz e de justiça esse poder moral do qual não
se podiam infringir as decisões sem correr perigos precisos — entre outros o de
se ver despojado da sua própria autoridade e afastado da estima dos seus
súditos. Enquanto Henrique II está em luta com Thomas Beckett, não se sabe qual
prevalecerá, mas no dia em que o rei decide desembaraçar-se do prelado por um
assassínio, é ele o vencido. A reprovação moral e as sanções que ela provoca
têm então mais eficácia que a força material. Para um príncipe interdito, a
vida deixa de ser tolerável: os sinos silenciosos à sua passagem, os súditos
fugindo à sua aproximação, tudo isto compõe uma atmosfera à qual não resistem
até mesmo os caracteres mais fortemente temperados. Até Filipe Augusto acaba
finalmente por se submeter, quando nenhum constrangimento exterior o teria
podido impedir de deixar a infeliz Ingeburga gemer na prisão.
Durante
a maior parte da Idade Média, o direito de guerra privada permanece considerado
inviolável, tanto pelo poder civil como pela mentalidade geral. Manter a paz entre
os barões e os Estados apresenta, portanto, imensas dificuldades; e se não
fosse esta concepção da Cristandade, a Europa correria o risco de nunca passar
de um vasto campo de batalha. Mas o sistema em vigor permite opor toda uma
série de obstáculos ao exercício da vingança privada. Em primeiro lugar, a lei
feudal exige que um vassalo que jurou fidelidade ao seu senhor não possa
apresentar armas contra ele. Houve faltas, evidentemente, mas assim mesmo o
juramento de fidelidade está longe de ser uma simples teoria ou um simulacro.
Quando o rei da França Luís VII vai em socorro do conde Raimundo V, ameaçado em
Toulouse por Henrique II da Inglaterra, este retira-se, ainda que dispondo de
forças muito superiores e assegurado da vitória, e declara que não pode cercar
uma praça em que se encontra o seu suserano. Na ocasião, o laço feudal tinha
livrado a realeza francesa de uma situação particularmente perigosa.
Por
outro lado, o sistema feudal maneja toda uma sucessão de arbitragens naturais.
O vassalo pode sempre recorrer de um senhor ao suserano deste; o rei, à medida
que a sua autoridade se estende, exerce cada vez mais o seu papel de mediador;
o Papa, enfim, permanece o árbitro supremo. Frequentemente, basta a reputação
de justiça ou de santidade de um grande personagem para que se recorra a ele. A
história da França nos dá mais do que um exemplo: Luís VII é o protetor de
Thomas Beckett e o seu intermediário, quando dos seus conflitos com Henrique
II; São Luís impõe-se de igual modo à Cristandade quando pronuncia o célebre Dit
d’Amiens, que acalmava os diferendos entre Henrique III da Inglaterra e os
seus barões.
Temos
ainda que qualquer nobre, por vingança ou por ambição, pode invadir as terras
do seu vizinho, e que o poder central não é suficientemente poderoso para
substituir pela sua justiça a do indivíduo, sem falar das guerras sempre
possíveis entre os Estados. A Idade Média não contestou o problema da guerra em
geral, mas restringiu sucessivamente o domínio, as crueldades e as durações da
guerra por uma série de soluções práticas e de medidas aplicadas no conjunto da
Cristandade. É assim, com leis precisas, que se edificou a Cristandade
pacífica.
A
primeira dessas medidas foi a Paz de Deus, instaurada desde o fim do século X.*
É também a primeira distinção que foi feita, na história do mundo, entre o
fraco e o forte, entre os guerreiros e as populações civis. Desde 1023 o bispo
de Beauvais faz o rei Roberto, o Piedoso, assumir o juramento da paz. É feita
proibição de maltratar as mulheres, as crianças, os camponeses e os clérigos.
As casas dos agricultores são, como as igrejas, declaradas invioláveis. Reserva-se
a guerra para aqueles que estão equipados para combater. É esta a origem da
distinção moderna entre objetivos militares e construções civis – noção totalmente
ignorada pelo mundo pagão. A interdição não foi sempre respeitada, mas aquele
que a transgredia sabia que se expunha a sanções temporais e espirituais
temíveis.
A Trégua
de Deus foi inaugurada no início do século XI pelo imperador Henrique II, o
rei da França Roberto, o Piedoso, e o Papa Bento VIII. Os concílios de
Perpignan e de Elne, de 1041 e 1059, já a haviam renovado. Na sua passagem por
Clermont em 1095, Urbano II a define e a proclama solenemente, no decurso deste
mesmo concílio que esteve na origem das cruzadas. Ela reduz a guerra no tempo,
como a Paz de Deus a reduz no seu objeto: por ordem da Igreja, é proibido
qualquer ato de guerra desde o primeiro domingo do Advento até o oitavo da
Epifania; desde o primeiro dia da Quaresma até o oitavo da Ascensão; e durante
o resto do tempo, da quarta-feira à noite à segunda-feira de manhã. Conseguimos
imaginar o que eram essas guerras fragmentadas, aos bocadinhos, que não podiam
durar mais de três dias seguidos? Também aqui há infrações, sujeitando o
transgressor a todos os riscos e também à vergonha. Quando Oton de Brunswick é
derrotado em Bouvines — contra todas as expectativas, pelo exército muito
inferior em número de Filipe Augusto — não se deixa de ver aí o castigo daquele
que tinha ousado romper a trégua e travar o combate no domingo.
Os
príncipes cristãos tomam por vezes iniciativas que completam e secundam as da
Igreja. Filipe Augusto, por exemplo, institui a “quarentena-do-rei”, pela qual
um intervalo de quarenta dias deve obrigatoriamente decorrer entre a ofensa
feita, e devidamente anotada por aquele que a recebeu, e a abertura das hostilidades.
Sábia medida, que reserva tempo para a reflexão e as conciliações de comum
acordo. Este mesmo intervalo de quarenta dias encontra-se nos prazos concedidos
aos que pertencem a uma cidade inimiga, para voltar para a sua terra e pôr os
seus haveres em segurança quando rebentar uma guerra. Assim, não poderia na
Idade Média existir questão de sequestro ou de campo de concentração.
Mas a
grande glória da Idade Média é ter empreendido a educação do soldado, é ter
feito do soldado da velha guarda um cavaleiro. Aquele que se batia por amor dos
grandes golpes, da violência e da pilhagem tornou-se o defensor do fraco;
transformou a sua brutalidade em força útil, o seu gosto pelo risco em coragem
consciente, a sua turbulência em atividade fecunda; simultaneamente, o seu
ardor vivificou-se e disciplinou-se. O soldado tem doravante um papel a
desempenhar, e os inimigos que ele é convidado a combater são precisamente
aqueles em quem subsistem os desejos pagãos de massacre, devassidão e pilhagem.
A cavalaria é a instituição medieval da qual, com justiça e com maior gosto, se
guardou a recordação, pois jamais se teve concepção mais nobre do título de
guerreiro. Tal como a encontramos instituída desde o início do século XII, ela
é realmente uma ordem e quase um sacramento. Contrariamente à opinião
geralmente difundida, ela não se confunde com a nobreza. “Ninguém nasce
cavaleiro”, diz um provérbio. A plebeus, mesmo a servos, ela é conferida, e nem
todos os nobres a recebem. Mas ser armado cavaleiro é tornar-se nobre, e uma
máxima do tempo pretende que “o meio de ser enobrecido sem cartas é ser feito
cavaleiro”.
Do
futuro cavaleiro exigem-se qualidades precisas, o que se traduz no simbolismo
das cerimônias durante as quais se lhe concede o seu título. Deve ser piedoso,
dedicado à Igreja, respeitador das suas leis. A sua iniciação começa com uma
noite inteira passada em orações diante do altar sobre o qual está deposta a
espada que ele cingirá. É a vigília de armas, depois da qual ele toma um banho
em sinal de pureza, e depois ouve missa e comunga. Entregam-lhe então
solenemente a espada e as esporas, lembrando-lhe os deveres do seu cargo:
ajudar o pobre e o fraco, respeitar a mulher, mostrar-se corajoso e generoso; a
sua divisa deve ser valentia e generosidade. Vêm em seguida a armadura e
a rude colée, a pranchada dada sobre o ombro. Em nome de São Miguel e
São Jorge ele é investido cavaleiro.
Para
cumprir bem os seus deveres, precisa ser tão hábil como bravo: a cerimônia
prossegue então com uma série de provas físicas, que são outros tantos testes
destinados a experimentar o seu valor. Ele entra na liça para “correr em alvos”
— isto é, estando a cavalo, derrubar um manequim —, e para desmontar em torneio
os adversários que o venham desafiar. Os dias em que são armados novos cavaleiros
são dias de festa, em que cada um rivaliza em proezas sob os olhos dos
castelães, da corte senhorial e do povo miúdo concentrado nas circunvizinhanças
do campo de torneios. Destreza e vigor físico, benevolência e generosidade, o
cavaleiro representa um tipo de homem completo cuja beleza corporal é
acompanhada pelas mais sedutoras qualidades:
Tant est prud’homme si comme semble
Qui a
ces deux choses ensemble:
Valeur
du corps e bonté d’âme.
É
homem probo, como parece,
Quem
possui juntas estas duas coisas:
Valor
de corpo e bondade de alma.
Aquilo
que se espera dele não é apenas, como no ideal antigo, um equilíbrio, um meio
termo, mens sana in corpore sano, mas um máximo: ele é convidado a
ultrapassar-se a si próprio, a ser ao mesmo tempo o mais belo e o melhor,
colocando a sua pessoa a serviço de outrem. Aqueles romances em que quais os
heróis da Távola Redonda vão sem cessar em busca do mais maravilhoso feito heroico,
traduzem apenas o ideal exaltante oferecido então àquele que sente a vocação
das armas. Nada de mais dinâmico (para empregar uma expressão moderna)
do que o tipo do bom cavaleiro.
A
cavalaria pode ser perdida, do mesmo modo que merecida. Aquele que falta aos
seus deveres é destituído publicamente, cortam-lhe as suas esporas de ouro
rentes ao salto, em sinal de infâmia. Dizia-se Honni soit hardement où il
n’a gentillesse, o que equivalia a exprimir que o puro valor guerreiro não
era nada sem nobreza de alma.
De
fato, a cavalaria foi o grande entusiasmo da Idade Média. O sentido da palavra cavalheiresco,
que ela nos legou, traduz muito fielmente o conjunto de qualidades que
suscitavam a sua admiração. Basta percorrer a sua literatura, contemplar as
obras de arte que dela nos restam, para ver por todo lado — nos romances, nos
poemas, nos quadros, nas esculturas, nos manuscritos com iluminuras — surgir
esse cavaleiro do qual a bela estátua da catedral de Bamberg representa um
perfeito espécime. Por outro lado, é suficiente ler os nossos cronistas para
constatar que esse tipo de homem não existiu apenas nos romances, e que a
encarnação do perfeito cavaleiro, realizada no trono de França na pessoa de um
São Luís, teve nessa época uma multidão de êmulos.
Nestas
condições, compreende-se quais podiam ser as características da guerra
medieval. Estritamente localizada, reduz-se frequentemente a um simples passeio
militar, à tomada de uma cidade ou de um castelo. Os meios de defesa são então
muito superiores aos de ataque: as muralhas, os fossos de uma fortaleza
garantem a segurança dos sitiados; uma corrente estendida ao longo da entrada
de um porto constitui uma salvaguarda, pelo menos provisória. Para o ataque, a
quase nada se recorre, apenas às armas de mão: espada e lança. Se um belo
corpo-a-corpo arranca dos cronistas gritos de admiração, eles só têm desdém
pelas armas de covardes — o arco ou a besta — que diminuem os riscos, mas
também as grandes façanhas.
Para
cercar uma praça, utilizam-se máquinas: catapultas, manganelas, como a sapa e a
mina, mas confia-se sobretudo na fome e na duração das operações para submeter
os sitiados. Também as torres de menagem estão providas adequadamente: enormes
provisões de cereais amontoam-se em vastas caves, que a lenda romântica
transformou em “masmorras”,** e arranjam-se de modo a ter sempre um poço ou uma
cisterna no interior da praça-forte. Quando uma máquina de guerra é demasiado
mortífera, o papado proíbe o seu uso: o da pólvora de canhão, cujos efeitos e
composição se conhecem desde o século XIII, só começa a propagar-se no dia em
que a sua autoridade já não é suficientemente forte, e em que já se começam a
esboroar os princípios da Cristandade. Como escreve Orderic Vital, “por
temor de Deus, por cavalheirismo, procurava-se aprisionar de preferência a
matar. Guerreiros cristãos não têm sede de espalhar sangue”. É corrente, no
campo de batalha, ver o vencedor perdoar àquele que desmontou, e que lhe grita
“obrigado!”. Cita-se como exemplo a batalha de Andelys, conduzida por Luís VI
em 1119, na qual se assinalam somente três mortos entre novecentos combatentes.”
* – O
concílio de Charroux, em 989, lança o anátema contra todo aquele que entre pela
força numa igreja e dela leve qualquer coisa; contra todo aquele que roube os
bens dos camponeses ou dos pobres, as suas ovelhas, o seu boi, o seu burro.
** –
Essas vastas caves serviam de reserva. Continham apenas um orifício circular no
meio da abóbada, pelo qual se faziam passar os cestos para tirar o grão. Elas
existem ainda em certos países, como por exemplo a Argélia.
“A história da igreja está tão intimamente ligada à Idade Média em geral,
que é incômodo fazer um capítulo à parte. Seria preferível, sem dúvida, estudar
a propósito de cada característica da sociedade medieval, ou de cada etapa da
sua evolução, a influência que ela exerceu ou o papel que nela desempenhou.* É
impossível, aliás, ter uma visão justa da época se não se possui algum conhecimento
da Igreja, não só nas suas grandes linhas, mas também em pormenores como a
liturgia ou a hagiografia. E a primeira recomendação que se faz aos
aprendizes-medievalistas — isto é, aos alunos da École des Chartes — é
de se familiarizarem com eles.
Apreenderemos
de imediato a importância do seu papel, se nos reportarmos ao estado da
sociedade durante os séculos a que se convencionou chamar a Alta Idade Média —
período de esboroamento de forças, durante o qual a Igreja representa a única
hierarquia organizada. Face à desagregação de todo o poder civil, um ponto
permanece estável, o papado, resplandecendo no mundo ocidental na pessoa dos
bispos, e o conjunto da organização permanece sólido mesmo nos períodos de
eclipse que a Santa Sé sofreu.
Esse
movimento que leva a arraia-miúda a procurar a proteção dos grandes
proprietários, a confiar-se a eles por atos de recomendação (commendatio)
que vemos multiplicarem-se desde o fim do Baixo Império, só podia funcionar a
favor dos bens eclesiásticos, pois agrupava-se à volta dos mosteiros mais
facilmente do que à volta dos senhores laicos. “Vive-se bem sob o báculo”,
dizia um adágio popular, traduzindo o provérbio latino Jugum ecclesiæ, jugum
dilecte. Abadias como Saint-Germain-des-Prés, Marmoutiers, São Vítor de
Marselha, viram assim acrescentarem-se as suas possessões. Do mesmo modo, os
bispos tornaram-se frequentemente os senhores temporais de toda ou parte da
cidade da qual haviam feito a sua metrópole, e cooperam ativamente a defendê-la
das invasões. A atitude do bispo Gozlin por ocasião do ataque de Paris pelos
normandos está longe de constituir um fato isolado, e frequentemente a própria
arquitetura da igreja traz a marca dessa função militar que era então, para todos
aqueles que possuíam algum poder, um dever e uma necessidade. É o caso das
Santas Marias do Mar ou das igrejas fortificadas da Thiérache.
A
grande sabedoria de Carlos Magno foi compreender o interesse que apresentava
essa hierarquia solidamente organizada, e que a Igreja podia ser fator de
unidade para o império. De fato, a lei católica era a única a poder cristalizar
as possibilidades de união, que se revelavam graças ao advento da dinastia
carolíngia, a única a poder cimentar uns aos outros esses grupos de homens
dispersos, refugiados nos seus domínios. Exatamente como aceitava a
feudalidade, achando mais útil servir-se do poder dos barões do que combatê-lo,
ele conduziu a exaltação da Cristandade favorecendo a Igreja. A sua coroação em
Roma pelo Papa Estêvão II permanece uma das grandes datas da Idade Média,
associando para séculos o poder espiritual e o poder temporal. A doação de
Pepino acabava de fornecer ao papado o domínio territorial que devia constituir
a base do seu magistério doutrinal. Recebendo a sua coroa das mãos do Papa,
Carlos Magno afirmava simultaneamente o seu próprio poder e o caráter desse
poder, apoiando-se em bases espirituais para estabelecer a ordem europeia. O
papado adquirira um corpo, o império adquire uma alma.”
* -
Por exemplo, trabalhos recentes valorizaram a origem não apenas religiosa, mas
propriamente eucarística das associações medievais: a procissão do Santo
Sacramento foi a “causa direta” da fundação das confrarias operárias. Ver, a
este propósito, a bela obra de G. Espinas, Les origines du droit d’association
(Lille, 1943, t. I, p. 1034).
“Se os ataques param perante a personalidade do Papa, os cardeais são frequentemente
acusados dessa afeição ao dinheiro, que faz distribuir as prebendas e os
benefícios aos mais ricos, não aos mais dignos. E sabe-se também quantos
protestos vigorosos suscita esse nepotismo e o dos bispos:
A leurs neveux, qui rien ne valent
Qui en leurs lits encore étalent
Donnent provendes, et trigalent [s’amusent]
Pour les deniers que ils emmallent [encaissent].
Aos
sobrinhos que nada valem,
Que
nos seus leitos ainda se embalam,
Dão
prebendas, e divertem-se
Com
os dinheiros que recebem.
Étienne
de Fougères, a quem devemos estes versos, dá conselhos salutares sobre esta
questão àqueles que têm a missão de nomear os pastores dos fiéis:
Ordonner doit bon clerc et sage
De
bonne mœurs, de bom aage,
Et né
de loyal mariage;
Peu
ne me chaut de quel parage [origine]
Ne doit nul prouvère ordonner,
Se il moustier lui veut donner,
Que il ne sache sermonner,
E la gent bien arraisonner.
Deve-se
ordenar um bom e sábio clérigo
De
bons costumes, de boa idade,
E
nascido de honesto casamento,
Pouco
importa qual a origem.
Nenhum
prior deve ordenar,
Se o
mosteiro lhe quiser dar,
Quem
não saiba pregar um sermão
E as
gentes persuadir.
Esta
riqueza devia inevitavelmente arrastar uma decadência e um relaxamento nos
costumes, dos quais a Igreja se defendeu através de reformas sucessivas. É
Rutebeuf ainda que se ergue, entre outros, contra esta apatia de clérigos
preocupados antes de tudo em se aproveitarem dos seus bens materiais:
Ah!
prélats de Saint Église
Qui,
pour garder les corps de bise
Ne
voulez aller aux matines,
Messire
Geoffroy de Sargines
Vous
demande delà la mer.
Mais
je dis cil fait à blâmer
Qui
rien nulle plus vous demande
Fors
bons vins et bonnes viandes
Et
que le poivre soit bien fort.
Ah!
prelados da Santa Igreja
Que,
para pouparem o corpo ao frio
Não
querem ir às matinas,
O
distinto Geoffroy de Sargines
Precisa
de vós além-mar.
Mas
digo-vos que, se aquele vos condena,
Que
ninguém mais vos solicite
Excelentes
vinhos e excelentes carnes,
E que
se carregue bem na pimenta.
Estas
fraquezas estão na origem das crises que a Igreja medieval atravessa por
diversas vezes, e também dos grandes movimentos que a agitam. A evolução do
clero regular dá muito exatamente conta da evolução geral da Igreja. Nos
primeiros séculos os monges beneditinos realizam um trabalho prático: são
cultivadores de baldios, abrindo o caminho ao Evangelho com a relha do seu
arado; abatem florestas, secam pântanos, aclimatam a vinha e semeiam o trigo; o
seu papel é eminentemente social e civilizador; são eles também que guardam
para a Europa os manuscritos da Antiguidade e fundam os primeiros centros de
erudição. Respondendo às necessidades da sociedade que evangelizam, foram
pioneiros e educadores, ajudando poderosamente o progresso material e moral
desta sociedade.
As
ordens que se fundam depois têm um caráter completamente diferente:
franciscanos, dominicanos, têm um fim em primeiro lugar doutrinal, representam
uma reação precisamente contra esse abuso das riquezas que se censura à Igreja
do seu tempo, e contra as heresias que a ameaçam. Ao mesmo tempo acentuam o
movimento de reforma, já desenhado por duas vezes com os monges negros de Cluny
e os monges brancos de Clairvaux e de Citeaux. Assim, a própria Igreja sentira
os perigos a que a expunha o seu lugar no mundo medieval e remediava-os,
continuando a fazer face às necessidades novas que se apresentavam. Aos perigos
que ameaçavam os Lugares Santos, e às dificuldades sentidas pelos peregrinos
que os visitam, opõe o auxílio guerreiro dos templários e o auxílio caritativo
dos hospitalários. Cada situação nova suscita da sua parte novas iniciativas,
através das quais se pode seguir toda a marcha de uma época. Cada estado de
fato suscita da sua parte novas iniciativas, através das quais se pode seguir
toda a marcha de uma época.
É
mais difícil deslindar a influência moral exercida pela Igreja nas instituições
privadas, porque a maior parte das noções que lhe são devidas entraram de tal
modo nos costumes, que temos dificuldade em nos darmos conta da novidade que
elas representavam. A igualdade moral do homem e da mulher, por exemplo,
representa um conceito inteiramente estranho à Antiguidade, em que a questão
nem sequer se tinha posto. De igual modo, na legislação familiar era uma
profunda originalidade substituir o direito do mais forte pela proteção devida
aos fracos. O papel do pai de família e do proprietário fundiário encontrava-se
completamente modificado. Face ao seu poder, proclamava-se a dignidade da
mulher e da criança e fazia-se da propriedade uma função social.
O
modo de encarar o casamento, segundo as ideias cristãs, era também radicalmente
novo. Até então só se vira a sua utilidade social, e por consequência se
admitira tudo o que não provocava desordens deste ponto de vista. Pela primeira
vez na história do mundo, a Igreja via o casamento em relação ao indivíduo, e
considerava nele não a instituição social, mas a união de dois seres para desabrochamento
pessoal, para a realização do seu fim terrestre e sobrenatural. Isto provocava,
entre outras consequências, a necessidade de livre adesão em cada um dos
cônjuges, que ela tornava ministros de um sacramento, tendo o padre como
testemunha e a igualdade de deveres para ambos. Até ao concílio de Trento as
formalidades da Igreja são muito reduzidas, visto que basta a troca de
juramentos perante um padre — “Tomo-te por esposo. Tomo-te por esposa” — para
que o casamento seja válido. É em casa que se passam as cerimônias simbólicas:
beber pela mesma taça, comer do mesmo pão:
Boire, manger, coucher ensemble
Font mariage, ce me semble.
Beber,
comer, dormir juntos
Fazem
o casamento, parece-me.
Este
é o adágio de direito consuetudinário, ao qual se acrescenta no século XVI:
“Mas é preciso que a Igreja passe por lá”.
Seria
ainda necessário assinalar a influência exercida pela doutrina eclesiástica no
regime de trabalho. O direito romano apenas conhecia, nos contratos de
arrendamento ou de venda, a lei da oferta e da procura, enquanto o direito canônico,
e depois dele o direito consuetudinário, submetem a vontade dos contraentes às
exigências da moral e à consideração da dignidade humana. Isto devia ter uma
profunda influência nos regulamentos dos mestres, que proibiam à mulher os
trabalhos demasiado fatigantes para ela — a tapeçaria de tear alto, por
exemplo. O resultado foram também todas aquelas precauções de que se rodeavam
os contratos de aprendizagem e o direito de visita concedido aos jurados, tendo
por finalidade controlar as condições de trabalho do artesão e a aplicação dos
estatutos. Sobretudo, é preciso apontar como muito revelador o fato de ter
estendido à tarde de sábado o repouso de domingo, no momento em que a atividade
econômica se amplifica com o renascimento do grande comércio e o
desenvolvimento da indústria.
Uma
revolução mais profunda tinha de ser introduzida pelas mesmas doutrinas no
concernente à escravatura. Notemos que a Igreja não se ergueu contra a
instituição propriamente dita de escravatura, que era uma necessidade econômica
das civilizações antigas. Mas lutou para que o escravo, tratado até então como
uma coisa, fosse daí em diante considerado como um homem e possuísse os
direitos próprios da dignidade humana. Uma vez obtido este resultado, a
escravatura encontrava-se praticamente abolida, sendo a evolução facilitada
pelos costumes germânicos, que conheciam um modo de servidão muito suavizado. O
conjunto deu lugar à servidão medieval, que respeitava os direitos do ser
humano, e como restrição à suas liberdades apenas introduzia a ligação à gleba.
É curioso constatar que o fato paradoxal da reaparição da escravatura no século
XVI, em plena civilização cristã, coincide com o retorno geral ao direito
romano nos costumes.
Numerosas
concepções próprias das leis canônicas passaram assim para o direito
consuetudinário. Deste ponto de vista, é muito revelador o modo como a Idade
Média encara a justiça, porque a noção de igualdade espiritual dos seres
humanos, estranha às leis antigas, aí se manifesta geralmente. É neste sentido
que ao longo do tempo foram introduzidas diversas reformas. Por exemplo, no que
respeita à legislação dos bastardos, tratados mais favoravelmente pelo direito
eclesiástico do que pelo direito civil, pois eles não são considerados
responsáveis pela culpa à qual devem a vida. Em direito canônico, uma pena
infligida não tem como fim a vingança da injúria ou a reparação para com a
sociedade, mas a emenda do culpado. Também este conceito, inteiramente novo,
não deixou de modificar o direito consuetudinário.
A
sociedade medieval conhece assim o direito de asilo, consagrado pela Igreja. É
bastante desconcertante, para a mentalidade moderna, ver oficiais de justiça
sofrerem uma condenação por terem ousado penetrar nas terras de um mosteiro a
fim de aí procurar um criminoso, o que aconteceu ao jurista Beaumanoir, entre
outros. Acrescentemos que os tribunais eclesiásticos rejeitavam o duelo
judiciário bem antes da sua proscrição por Luís IX, e até surgir a ordem de
1324 eles foram os únicos a prever perdas e danos para a parte lesada. Sob a
mesma influência, a Idade Média conhecia a gratuidade da justiça para os
pobres, que se necessário recebiam mesmo um advogado oficial. A declaração de
culpa só era feita após a apresentação da prova, o que significa que se
ignorava a prisão preventiva.
Como
toda a sociedade medieval, a Igreja goza de privilégios, o principal dos quais
consiste precisamente em possuir os seus próprios tribunais. É o privilegium
fori, reconhecido a todos os clérigos e àqueles que, pela sua profissão,
estão ligados à vida clerical — por exemplo, os estudantes e os médicos. O
papel dos “provisorados” ou tribunais eclesiásticos, na Idade Média, foi tanto
mais amplo pelo fato de ser imenso o número de pessoas dependendo direta ou
indiretamente do clero. E o título de clérigo se aplicava de modo muitíssimo
menos restrito que nos nossos dias, gerando frequentemente confusão e
contestações entre a justiça real ou senhorial e a justiça eclesiástica. Os
clérigos eram todos aqueles que tinham um modo de vida clerical. Era uma
definição bastante vaga, que tinha o defeito de convir tanto aos mestres quanto
aos alunos que frequentavam a universidade, aos monges e aos padres.
Caracterizava-se por vezes com base em sinais exteriores, como a tonsura ou o
vestuário, mas estes atributos podiam ser usurpados pelos que preferiam a
justiça do direito canônico à do direito consuetudinário, e daí o provérbio “o
hábito não faz o monge”. De um modo geral, consideraram-se clérigos aqueles que
se submetiam às obrigações da vida clerical, em particular no que respeita à
interdição do casamento, que aliás só se estendia então aos clérigos que
recebiam as ordens maiores, quer dizer, aos diáconos e aos padres. No século
XII esta interdição é aplicada aos subdiáconos, mas não às ordens menores, que
não eram então consideradas como tendo de levar forçosamente ao sacerdócio. Os
outros clérigos podiam tornar a casar em justas bodas, desde que cum unica
et virgine (uma só vez, e com uma jovem). Casar com uma viúva, ou voltar a
casar, era para um clérigo expor-se a ser taxado de bigamia, termo que várias
vezes gerou confusão.”