quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no islamismo (Parte I) – Karen Armstrong

Editora: Companhia das letras
ISBN: 978-85-359-1581-5
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 584
Sinopse: Karen Armstrong, “uma das principais autoridades em história das religiões na atualidade” (revista Veja), analisa os movimentos fundamentalistas que se desenvolveram nas três religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islamismo. Seu ponto de partida é o ano de 1492, data em que ocorreram episódios históricos decisivos para cristãos, muçulmanos e judeus.
Armstrong inicia o livro com a seguinte constatação: “Um dos fatos mais alarmantes do século XX foi o surgimento de uma devoção militante, popularmente conhecida como 'fundamentalismo', dentro das grandes tradições religiosas. Suas manifestações são às vezes assustadoras. Os fundamentalistas não hesitam em fuzilar devotos no interior de uma mesquita, matar médicos e enfermeiras que trabalham em clínicas de aborto, assassinar seus presidentes e até derrubar um governo forte. [...] Democracia, pluralismo, tolerância religiosa, paz internacional, liberdade de expressão, separação entre Igreja e Estado – nada disso lhes interessa”.
Discorrendo em estilo claro e ágil, apoiando-se numa documentação excepcional e em ampla bibliografia, Armstrong constrói uma obra indispensável aos que desejam compreender o impacto do fundamentalismo sobre a economia, a política e a sociedade em geral.

“Um dos fatos mais alarmantes do século XX foi o surgimento de uma devoção militante, popularmente conhecida como “fundamentalismo”, dentro das grandes traduções religiosas. Suas manifestações são às vezes assustadoras. Os fundamentalistas não hesitam em fuzilar devotos no interior de uma mesquita, matar médicos e enfermeiras que trabalham em clínicas de aborto, assassinar seus presidentes e até derrubar um governo forte. Os que cometem tais horrores constituem uma pequena minoria, porém até os fundamentalistas mais pacatos e ordeiros são desconcertantes, pois parecem avessos a muitos dos valores mais positivos da sociedade moderna. Democracia, pluralismo, tolerância religiosa, paz internacional, liberdade de expressão, separação entre Igreja e Estado – nada disso lhe interessa. (...)
Antes de prosseguir, porém, cabe-nos fazer uma breve-pausa para examinar o termo “fundamentalismo”. Os primeiros a utilizá-lo foram os protestantes americanos que, no início do século XX, passaram a denominar-se “fundamentalistas” para distinguir-se de protestantes mais “liberais”, que, a seu ver, distorciam inteiramente a fé cristã. Eles queriam voltar às raízes e ressaltar o “fundamental” da tradição cristã, que identificavam como a interpretação literal das Escrituras e a aceitação de certas doutrinas básicas. Desde então aplica-se a palavra “fundamentalismo” a movimentos reformadores de outras religiões. (...)
 No início de seu monumental Projeto Fundamentalista, em seis volumes, Martin E. Marty e R. Scott Appleby afirmam que todos os “fundamentalismos” obedecem a determinado padrão. São formas de espiritualidade combativas, que surgiram como reação a alguma crise. Enfrentam inimigos cujas políticas e crenças secularistas parecem contrarias à religião. Os fundamentalistas não veem essa luta como uma batalha política convencional, e sim como uma guerra cósmica entre as forças do bem e do mal. Temem a aniquilação e procuram fortificar sua identidade sitiada através do resgate de certas doutrinas e práticas do passado. Para evitar contaminação, geralmente se afastam da sociedade e criam uma contracultura; não são, porém, sonhadores utopistas. Absorveram o Racionalismo pragmático da modernidade e, sob a orientação de seus líderes carismáticos, refinam o “fundamental” a fim de elaborar uma ideologia que fornece aos fiéis um plano de ação. Acabam lutando e tentando ressacralizar um mundo cada vez mais cético.”


“Em todos os tempos e em todas as tradições sempre houve gente que combateu a modernidade de sua época. Entretanto o fundamentalismo é um movimento do século XX por excelência. É uma reação contra a cultura científica e secular que nasceu no Ocidente e depois se arraigou em outras partes do mundo. O Ocidente criou um tipo distinto de civilização, totalmente inédito, que desencadeou uma reação religiosa sem precedentes. Os movimentos fundamentalistas contemporâneos têm uma relação simbiótica com a modernidade. Podem rejeitar o racionalismo científico do Ocidente, mas não têm como fugir dele. A civilização ocidental mudou o mundo. Nada – nem a religião – serão como antes. Em todo o planeta há pessoas lutando contra essas novas condições e vendo-se obrigadas a reafirmar suas tradições religiosas, que foram concebidas para um tipo de sociedade inteiramente diverso.”


“O exílio é um deslocamento físico e espiritual. Seu mundo é inteiramente desconhecido e, portanto, não tem significado. Uma extirpação violenta, que nos priva de todos os nossos esteios normais, despedaça nosso mundo, arranca-nos de lugares repletos de lembranças cruciais para nossa identidade e nos joga para sempre num ambiente estranho”.


“Apesar de seu extraordinário sucesso na esfera prática, o pensamento racional não consegue aliviar a dor.”


Deus era a Causa Primeira de todo ser, cuja existência Aristóteles demonstrara logicamente. Deus sempre se comportava de forma totalmente racional. Não interferia aleatoriamente na história humana; não subvertia as leis da natureza com milagres bizarros; não ditava leis obscuras no cume das montanhas. Não precisava revelar um código legal específico, pois as leis da natureza estão ao alcance de todos. Esse era o tipo de divindade que a razão humana tende naturalmente a imaginar, e no passado filósofos judeus e muçulmanos conceberam algo muito semelhante. Mas essa divindade nunca agradou os devotos em geral. Não tinha utilidade religiosa, pois duvidava-se que a Causa Primeira sequer soubesse da existência dos seres humanos, já que só podia contemplar a perfeição. Não servia para mitigar o sofrimento. Isso requeria uma espiritualidade mítica e cultual que os marranos desconheciam.”


“O pensamento mitológico olha para trás, não para a frente. Volta sua atenção para as origens sagradas, para um acontecimento primordial ou para as bases da vida humana. Em vez de buscar algo novo, o mito se concentra no que é constante. Não nos transmite “novidades”, mas nos fala do que sempre foi; tudo que importa já foi realizado e pensado. Vivemos do que disseram nossos ancestrais, principalmente nos textos sagrados que contêm tudo o que precisamos saber. Essa era a espiritualidade do período conservador. O culto, as práticas rituais e as narrativas míticas não só davam aos indivíduos a sensação de que tudo faz sentido – sensação que repercutia em seu inconsciente mais profundo –, como reforçavam a atitude essencial à sobrevivência da economia agrária e de suas inerentes limitações. Como o fiasco de Shabbetai Zevi mostrou tão claramente, o mito não tem de desencadear mudanças concretas. Ele cria uma disposição mental que se adapta e conforma com as coisas como são. Isso era essencial numa sociedade que não podia comportar inovações desenfreadas.
Assim como é difícil – até mesmo impossível – para a sociedade ocidental, que institucionalizou as mudanças, compreender inteiramente o papel da mitologia, assim também é muito difícil – talvez impossível para a espiritualidade conservadora aceitar a dinâmica progressista da cultura moderna. Também é extremamente difícil para os modernistas entenderem pessoas que ainda se orientam por valores míticos tradicionais. No mundo islâmico de hoje alguns muçulmanos se preocupam muito com duas coisas. Primeiro, abominam o secularismo da sociedade ocidental, que separa a religião da política, a Igreja do Estado. Segundo gostariam de ver suas sociedades governadas de acordo com a Shariah, a lei sagrada do Islã. Isso é terrivelmente desconcertante para quem se criou no espírito moderno e teme, com razão, que o poder clerical freie os progressos constantes, fundamentais para uma sociedade saudável. Para esse indivíduo a separação entre Igreja e Estado representou uma libertação, e a ideia de uma instituição inquisitorial, fechando as portas do ijtihad (raciocínio independente), provoca-lhe calafrios. Da mesma forma a ideia de uma lei revelada pela divindade é incompatível com o etos moderno. Os secularistas modernos repudiam a noção de uma lei inalterável, imposta à humanidade por um ser sobre-humano. Consideram a lei um produto do logos, e não do mythos; a lei é racional e pragmática e deve ser modificada de quando em quando para adequar-se às circunstâncias. No que diz respeito a essas questões cruciais um abismo separa, portanto, o modernista do fundamentalista muçulmano.”


“Não houve separação entre a religião e o Estado. Maomé foi, ao mesmo tempo, profeta e chefe político da comunidade. Reza o Alcorão, as escrituras reveladas que ele transmitiu aos árabes no começo do século VII, que o primeiro dever de um muçulmano consiste em construir uma sociedade justa e igualitária, onde os pobres e os fracos sejam tratados com respeito. Isso demanda uma jihad (palavra que se deve traduzir por “luta” ou “esforço”, não por “guerra santa”, como pensam geralmente os ocidentais) em todas as frentes: espiritual, política, social, pessoal, militar e econômica. Organizando a vida inteira de modo que Deus tenha prioridade e seus planos para a humanidade se concretizem plenamente, os fiéis chegarão a uma integração pessoal e social que lhes permitirá vislumbrar a unidade que é Deus. Isolar um setor da vida e declará-lo fechado para esse “esforço” religioso equivaleria a uma chocante violação do princípio de unificação (tawhid), que vem a ser a virtude cardeal do islamismo. Equivaleria a uma negação do próprio Deus. Portanto, para um muçulmano devoto a política é o que os cristãos chamariam de sacramento. Uma atividade que deve ser sacralizada para se tornar um canal do divino.”


“A mesma coisa aconteceu no Irã, cuja história, nesse período, é mais bem documentada que a do Egito. Quando conquistaram o Irã, no começo do século XVI, os Safávidas fizeram do xiismo a religião oficial do Estado. Até então o xiismo era um movimento esotérico intelectual e místico, e seus adeptos tinham por princípio manter-se à margem da política. Sempre houve importantes (e poucos) centros xiitas no Irã, porém a maioria de seus membros eram árabes, não persas. O experimento dos Safávidas constituiu, portanto, uma extraordinária inovação. Sunitas e xiitas se diferenciavam no tocante à postura, não à doutrina. A visão da história muçulmana era basicamente otimista entre os sunitas e mais trágica entre os xiitas, para os quais o destino dos descendentes de Maomé se convertera num símbolo da luta cósmica entre o bem e o mal, a justiça e a tirania, com os maus prevalecendo. Enquanto os sunitas transformaram a vida do Profeta em mito, os xiitas mitificaram a vida de seus descendentes.
Quando Maomé morreu, em 632, a questão de sua sucessão estava em aberto, e a maioria da ummah elegeu para o califado seu amigo Abu Bakr. Alguns acreditavam, porém, que o Profeta preferiria ter como sucessor Ali ibn Abi Talib, que era seu parente mais próximo (primo e genro), além de seu pupilo. Preterido em várias eleições, Ali finalmente se tornou o quarto califa, em 656. Os xiitas, contudo, não reconhecem os três primeiros califas e o chamam de Primeiro Imame (“líder”). Indubitavelmente piedoso, Ali escreveu a seus dignitários cartas inspiradoras, enfatizando a importância do governo justo. Em 661 foi assassinado por um extremista muçulmano, e tanto sunitas quanto xiitas lamentaram o trágico acontecimento. Seu rival, Muawiyyah, assumiu o califado e fundou a dinastia dos Omíadas, com sede em Damasco. Hasan, o primogênito de Ali, a quem os xiitas chamam de Segundo imame, abandonou a política e em 669 morreu em Medina. Quando o califa Muawiyyah faleceu, em 680, ocorreram em Kufa, no Iraque, grandes manifestações favoráveis a Husain, o segundo filho de Ali. A fim de evitar represálias por parte dos Omíadas, Husain se refugiou em Meca, mas o novo califa Omíada, Yazid, enviou emissários para assassiná-lo, profanando, assim, a cidade santa. Considerando a necessidade de posicionar-se contra esse governante injusto e ímpio, Husain, o Terceiro Imame dos xiitas, partiu para Kufa, com um pequeno grupo de cinquenta seguidores, que levaram suas esposas e filhos. Acreditava que o pungente espetáculo da família do Profeta marchando em oposição à tirania reconduziria a ummaha uma prática mais autêntica do islamismo. Mas durante o jejum sagrado do Ashura, o décimo dia do mês de Muharram, tropas dos Omíadas cercaram e massacraram o pequeno exército de Husain na planície de Kerbala, arredores de Kufa. Husain foi o último a morrer, segurando nos braços seu filho, ainda bebê.
A tragédia de Kerbala teria seu próprio culto e se tornaria um mito, um fato intemporal na vida de todo xiita. Yazid se converteu num emblema da tirania e da injustiça; no século X os xiitas comemoravam anualmente o martírio de Husain no jejum do Ashura, quando choravam, espancavam-se e declaravam sua eterna oposição à corrupção da política muçulmana. Poetas escreveram elegias em homenagem aos mártires, Ali e Husain. Assim os xiitas criaram uma devoção de protesto, centrada no mythos de Kerbala. O culto mantinha vivo um apaixonado anseio de justiça social que está no âmago da visão xiita. Quando marcham em procissão solene durante os rituais do Ashura, os xiitas proclamam sua determinação de seguir Husain e até mesmo morrer na luta contra a tirania.”


“Calvino não via contradição entre a ciência e as Escrituras. Em sua opinião a Bíblia não fornece informações literais sobre geografia ou cosmologia, mas tenta exprimir uma verdade inefável em termos que os limitados seres humanos possam entender. A linguagem bíblica é infantil – uma simplificação deliberada de uma verdade complexa demais para ser articulada de outro modo.”


“Blaise Pascal (1623-62), matemático francês fervorosamente religioso, apavorava-se com o vazio e o “eterno silêncio” do universo infinito criados pela ciência moderna:
Quando vejo a cegueira e a miséria humana, quando esquadrinho todo o universo em sua inércia e o homem abandonado à própria sorte, sem luz, como se estivesse perdido nesse canto do universo, sem saber quem o pôs ali, o que tem de fazer, o que será dele quando morrer, incapaz de saber qualquer coisa, fico aterrorizado, como alguém que, dormindo, foi transportado para uma apavorante ilha deserta e, ao despertar, se vê perdido, sem ter como escapar. Então me admiro que tamanha miséria não leve as pessoas ao desespero.


“Pois enquanto esses teólogos, filósofos e historiadores proclamavam a supremacia da razão, o racionalista alemão Immanuel Kant (1724-1804) desestabilizava todo o projeto do Iluminismo. Por um lado, pronunciou mais uma das declarações de independência dos primórdios da modernidade. Devíamos ter a coragem de procurar a verdade por nós mesmos, sem depender mais de mestres, igrejas e autoridades. “O esclarecimento é o êxodo da tutela a que o homem se sujeita”, escreveu. “A tutela é a incapacidade de usar o próprio entendimento sem a orientação de ninguém”. Por outro lado, contudo, na Crítica da razão pura (1781), Kant nos diz que não podemos ter certeza de que existe alguma relação entre a ordem que julgamos discernir na natureza e a realidade exterior. Essa “ordem” é mera criação de nossa mente; até as chamadas leis científicas de Newton provavelmente nos falam mais da psicologia humana que do cosmo. Quando, através dos sentidos, recebe informações sobre o mundo físico exterior, a mente precisa reorganizá-las de acordo com suas estruturas internas a fim de compreendê-las. Kant confiava na capacidade da mente de criar para si mesma uma visão racional viável, mas, ao mostrar a impossibilidade de escaparmos de nossa própria psicologia, também deixou claro que não há verdade absoluta. Todas as nossas ideias são essencialmente subjetivas e interpretativas. Enquanto Descartes via a mente humana como o único e solitário habitante de um universo morto, Kant cortou o laço entre nós e o mundo e nos encerrou dentro de nossas próprias cabeças. Ao mesmo tempo em que libertou a humanidade da tutela, trancafiou-a numa nova prisão. Como sói acontecer, a modernidade tirava com uma das mãos o que dava com a outra. A razão esclarecia e emancipava, mas também podia afastar os homens do mundo que eles estavam aprendendo a controlar tão efetivamente.”


“Para Karl Marx (1818-83) a religião constitui um sintoma de uma sociedade enferma, um ópio que torna suportável o sistema social doente e elimina a vontade de encontrar a cura, afastando a atenção desde mundo para o outro.”


“Tanto os reformadores quanto os estudiosos da Ciência do judaísmo estavam preocupados com a sobrevivência de sua religião num mundo que parecia disposto a destruí-la. Ao ver outros judeus dirigirem-se para a pia batismal, temiam pelo futuro de sua crença e tentavam desesperadamente encontrar modos de mantê-la viva. As mesmas apreensões estão presentes hoje em dia. Nas três religiões monoteístas há um medo recorrente de que a fé tradicional esteja correndo perigo mortal. Um dos terrores humanos mais viscerais é o da aniquilação, e dele derivam muitos dos movimentos religiosos que surgiram na modernidade. À medida que o espírito secular se impõe e o racionalismo se torna mais hostil à fé, os fiéis assumem uma postura cada vez mais defensiva e sua espiritualidade adquire um caráter mais combativo.”


“O fundamentalismo – judaico, cristão ou muçulmano – raramente surge como uma luta contra um inimigo externo; em geral começa como uma luta interna travada pelos tradicionalistas contra os próprios correligionários que, a seu ver, estão fazendo demasiadas concessões ao mundo secular. Com frequência os fundamentalistas reagem instintivamente à invasão da modernidade criando um enclave de fé pura, como uma yeshiva*. Dessa maneira assinalam sua retirada do mundo profano para uma comunidade autocontida, onde tentam redefinir a existência a despeito das mudanças ocorridas a sua volta. Trata-se de uma postura essencialmente defensiva, que, contudo, traz em si potencial suficiente para urna futura contra-ofensiva.”
* Yeshiva: Palavra derivada do verbo “sentar”; academia judaica religiosa cujos alunos estudam o Talmude e outras obras da literatura rabínica.


“Parece que para conduzir um povo ao mundo moderno seu líder deve estar disposto a chafurdar em sangue. Na falta de instituições estáveis e democráticas, a violência pode ser o único meio de implantar um governo forte.”


“Infelizmente a busca de uma identidade distinta muitas vezes coexiste com o terror de um “outro” estereotipado, visto como antagonista. O medo paranoico de conspiração continuaria caracterizando a reação aos transtornos da modernização e se evidenciaria de modo especial nos movimentos fundamentalistas de judeus, cristãos e muçulmanos, que cultivariam uma imagem distorcida e em geral perniciosa de seus inimigos, por vezes retratados como satanicamente maus.”


“O uso do véu não é original nem fundamental no Islã. O Alcorão não ordena que todas as mulheres cubram a cabeça, e o hábito de velá-las e isolá-las nos haréns só se difundiu no mundo islâmico cerca de três gerações após a morte do Profeta, quando os muçulmanos começaram a imitar os cristãos de Bizâncio e os zoroastristas da Pérsia, que desde longa data tratavam suas mulheres dessa forma. Nem todas, porém, usavam o véu, que, sendo indicador de status, estava restrito às camadas superiores. (...)
Os observadores ocidentais se alarmaram com a retomada do véu, que desde a época de Lord Cromer consideravam um símbolo do atraso e do patriarcado árabes. Não pensavam assim as mulheres muçulmanas que voluntariamente assumiam o traje islâmico por motivos de ordem prática e também como um modo de rejeitar uma identidade ocidental. O véu, a echarpe e a túnica longa podiam simbolizar aquela “volta para si mesmos” que os islamistas tentavam realizar com tanta dificuldade no período pós-colonial. Afinal, o traje ocidental nada tem de sagrado. O desejo de ver todas as mulheres usando-o devera-se à tendência de considerar “o Ocidente” como a norma que “o resto do mundo” tem de seguir. Ao longo dos anos a mulher velada passara a representar a autoafirmação do Islã e sua rejeição da hegemonia cultural do Ocidente. Ao optar por esconder-se, ela desafia os costumes sexuais do Ocidente, com sua estranha compulsão para “mostrar tudo”. Enquanto os ocidentais tentam submeter o corpo ao controle da vontade, dedicando-se à ginástica e aos exercícios físicos, e, apegados a esta vida, procuram torná-lo imune ao processo do tempo e do envelhecimento, o corpo encoberto do muçulmano tacitamente declara sua obediência a ordens divinas e sua orientação para a transcendência, não para este mundo. Enquanto os ocidentais com frequência expõem e até exibem como um privilégio o corpo dispendiosamente bronzeado e finamente esculpido, o corpo do muçulmano, envolto em roupas muito semelhantes, enfatiza a igualdade da visão islâmica e afirma o ideal de comunidade, presente no Alcorão, em oposição ao individualismo da modernidade ocidental. Mais ou menos como as comunas de Shukri Mustafa, a muçulmana velada constitui uma crítica tácita ao lado mais sombrio do espírito moderno.”


“Mas os imperativos morais e espirituais da religião são importantes para a humanidade, e não se deve relegá-los impensadamente à lata de lixo da história para atender aos interesses de um racionalismo desenfreado. A relação entre ciência e ética continua sendo um tema crucial.”


“Em nossa história veremos com frequência que o comportamento religioso de pessoas que não se beneficiaram particularmente com a modernidade traduz uma necessidade ardente do espiritual, tantas vezes excluído ou marginalizado numa sociedade secularista.”


“Abraham Yitzak Kook morreu em 1935, treze anos antes da criação do Estado de Israel. Não soube dos terríveis expedientes que os judeus utilizaram para fundar seu Estado na Palestina árabe. Não testemunhou a expulsão de 750 mil palestinos de suas casas, em 1948, nem o derramamento de sangue árabe e judeu nas guerras entre os dois povos. Tampouco teve de encarar o fato de que, cinquenta anos após a criação do Estado de Israel, a maioria dos judeus da Terra Santa ainda seria secularista.”


“Depois da 1ª Guerra Mundial, o Império Otomano, que lutara ao lado da Alemanha, foi derrotado pelos aliados europeus, que o desmembraram e estabeleceram mandatos e protetorados em suas antigas províncias. Os gregos invadiram a Anatólia e o velho núcleo otomano. De 1919 a 1922, Mustafa Kemal Atatürk (1881-1938) comandou as forças nacionalistas turcas numa guerra de independência e conseguiu manter os europeus fora da Turquia e criar um Estado soberano, governado em conformidade com os modernos padrões europeus. Foi um fato inédito no mundo islâmico. Em 1947 a Turquia possuía uma burocracia eficiente e uma economia capitalista e era a primeira democracia secular pluripartidária do Oriente Médio. Mas esse processo se iniciou com uma limpeza étnica. Entre 1894 e 1927 sucessivos governos otomanos e turcos sistematicamente expulsaram, deportaram ou massacraram os gregos e armênios que viviam na Anatólia; queriam livrar-se desses estrangeiros, que correspondiam à cerca de noventa por cento da burguesia. Além de conferir ao novo Estado uma identidade nacional distintivamente turca, o expurgo proporcionou a Atatürk a oportunidade de criar uma classe comercial inteiramente turca, que cooperaria com seu governo na implantação de uma economia industrializada moderna. O extermínio de 1 milhão de armênios, no mínimo, foi o primeiro genocídio do século XX e mostrou que, como temia o rabino Kook, o nacionalismo secular podia ser letal e certamente tão perigoso quanto as cruzadas e os expurgos conduzidos em nome da religião. (...)
O Holocausto (também) mostrou, no mínimo, que uma ideologia secularista podia ser tão mortífera quanto uma cruzada religiosa.”


“(...) e o ódio geralmente acompanha um amor não admitido.”


“Mas todo movimento que começa matando em nome de Deus toma um rumo niilista que nega os valores religiosos mais fundamentais.”


“O programa do xá Reza Shah era inevitavelmente superficial. Simplesmente sobrepunha instituições modernas a velhas estruturas agrárias – uma estratégia que falhara no Egito e falharia aqui também. Os noventa por cento da população que viviam da agricultura foram ignorados e continuavam utilizando métodos tradicionais e improdutivos. A sociedade não passou por nenhuma reforma fundamental. Reza não tinha o menor interesse pelos sofrimentos dos pobres, e, enquanto o Exército abocanhava cinquenta por cento do orçamento, a educação, que continuava sendo privilégio dos ricos, ficava com apenas quatro por cento. Como no Egito, duas nações estavam surgindo no Irã e entendendo-se cada vez menos. Uma “nação” compreendia a pequena elite ocidentalizada das classes alta e média, que se beneficiara com o programa de modernização; a outra consistia na vasta massa dos pobres, que, confusos com o novo nacionalismo secular do regime, dependiam como nunca da orientação dos ulemás. (...)
No início da década de 1970 o Irã parecia florescer. Investidores americanos e a elite iraniana ganharam fortunas com os novos negócios criados pela Revolução Branca. Longe de ser um centro de espionagem (como diriam os revolucionários), a embaixada dos Estados Unidos em Teerã era um centro de corretagem que colocava americanos ricos em contato com iranianos ricos. No entanto – mais uma vez – só a elite se beneficiava. O Estado prosperava, a população empobrecia. Havia um consumismo desenfreado nas camadas mais altas da sociedade e corrupção e privação entre os pequeno-burgueses e os pobres dos centros urbanos. À alta do preço do petróleo, em 1973-74, seguiu-se uma terrível inflação, devida à falta de oportunidade de investimentos para todos, exceto para os muito ricos. Um milhão de trabalhadores estavam desempregados, muitos comerciantes se arruinaram com o influxo de produtos estrangeiros, e em 1977 a inflação começou a afetar os ricos. Nesse clima de descontentamento e desespero, as duas principais organizações guerrilheiras entraram em ação, assassinando militares e consultores americanos. Havia muito ressentimento contra os americanos sediados no Irã, que pareciam lucrar com o caos. Nessa época o regime do xá se tornou mais tirânico e autocrático que nunca. (...)
Os americanos se escandalizaram ao ver sua nação qualificada de satânica durante e após a Revolução iraniana. Mesmo os que sabiam da aversão que muitos iranianos sentiam pelos Estados Unidos desde o golpe da CIA, em 1953, repudiaram essa imagem demoníaca. Por mais equivocada que fosse, a política americana não merecia ser condenada dessa maneira. Tal condenação apenas confirmava o que geralmente se pensava dos revolucionários iranianos: que eram todos fanáticos, histéricos e desequilibrados. Entretanto a maioria dos ocidentais não entendeu a imagem do Grande Satã. No cristianismo Satã representa o mal esmagador, porém no islamismo é uma figura muito mais controlável. O Alcorão até sugere que ele acabará sendo esquecido no fim dos tempos, tamanha é sua confiança na infinita bondade divina. Os iranianos que chamavam os Estados Unidos de “Grande Satã” não estavam classificando-os de diabolicamente malvados, e sim dizendo algo mais preciso. No xiismo popular Shaitan, o Tentador, é uma criatura ridícula, cronicamente incapaz de apreciar os valores espirituais do mundo invisível. Uma história o mostra reclamando dos privilégios que Deus conferiu aos humanos e dos dons inferiores que lhe couberam. Shaitan não tem profetas, contenta-se com adivinhos, faz do bazar sua mesquita, sente-se mais à vontade nos banhos públicos e, em vez de buscar Deus, procura vinho e mulheres. É irremediavelmente trivial, está preso para sempre no mundo exterior (zahir*) e não compreende que a existência possui uma dimensão mais profunda e mais importante. Para muitos iranianos os Estados Unidos, o Grande Shaitan, eram “o Grande Trivializador”. Os bares, os cassinos e o etos secularista da ocidentoxicada zona norte de Teerã representavam o etos americano, que parecia ignorar deliberadamente as realidades ocultas (batin**) que dão sentido à vida. Ademais, o Grande Shaitan tentara o xá até afastá-lo dos verdadeiros valores islâmicos e levá-lo a um superficial secularismo.
Embora soubessem que muitos americanos eram religiosos, não viam sentido em sua fé. O “interior” e o “exterior” de Jimmy Carter não eram “idênticos”. Os iranianos não compreendiam como o presidente podia continuar apoiando um governante que em 1978 começara a matar seu próprio povo. “Não esperávamos que Carter defendesse o xá, pois ele é um homem religioso, que empunha a bandeira dos direitos humanos”, declarou o aiatolá Husain Montazeri a um entrevistador depois da Revolução. “Como Carter, o cristão devoto, pode defender o xá?”.”
Zahir*: (árabe). “Manifesto”; as manifestações exteriores de Deus e o mundo exterior; também o significado literal das escrituras, em oposição a batin.
Batin**: (árabe) A dimensão “oculta” da existência e da religião, percebida pelas disciplinas místicas e intuitivas, não pelos sentidos e pelo pensamento racional.


“Em janeiro de 1982 cristãos de St. David's, no Arizona, conseguiram banir de suas escolas obras de William Golding, John Steinbeck, Joseph Conrad e Mark Twain. Em 1981 Mel e Norma Gabler (também membros da direita cristã) deram início a uma campanha semelhante para “reintroduzir Deus nas escolas” do Texas. Reprovavam a “postura liberal” evidente em
questões abertas que levam os alunos a tirar conclusões próprias; declarações sobre outras religiões, que não o cristianismo; declarações concebidas para desabonar o sistema de livre empresa; declarações concebidas para refletir aspectos positivos dos países socialistas ou comunistas (por exemplo, que a União Soviética é o maior produtor mundial de determinados cereais); qualquer aspecto da educação sexual que não o incentivo à abstinência; declarações que enfatizam contribuições feitas por negros, índios, americanos-mexicanos ou feministas; declarações favoráveis aos escravos americanos e desfavoráveis a seus senhores; e declarações favoráveis à teoria da evolução, a menos que se conceda o mesmo espaço à teoria da criação.”


“O movimento Reconstrução, fundado pelo economista texano Cary North e por seu genro, Rousas John Rushdoony, também trava uma guerra contra o humanismo secular, porém é mais radical que a Maioria Moral. Os reconstrucionistas trocaram o velho pessimismo pré-milenarista por uma ideologia mais empolgante. Como os muçulmanos fundamentalistas, North e Rushdoony se preocupam basicamente com a soberania divina. É preciso implantar uma civilização cristã que derrote o diabo e inaugure o Reino de mil anos. O conceito-chave do movimento é domínio. Deus confiou a Adão e depois a Noé a missão de dominar o mundo. Os cristãos herdaram essa missão e cabe-lhes a responsabilidade de instituir o reinado de Jesus antes de sua Segunda Vinda. No entanto não terão de fazer nada nesse sentido, pois o próprio Deus destruirá o Estado moderno numa terrível catástrofe. Os cristãos apenas colherão os louros da vitória divina.
Entrementes, os reconstrucionistas se preparam para assumir o poder, quando o Estado secular humanista deixar de existir. Seu abandono do etos da compaixão constitui uma distorção total do cristianismo. Quando o Reino vier, não haverá mais separação entre Igreja e Estado; a moderna heresia da democracia desaparecerá, e a sociedade será reorganizada em termos estritamente bíblicos. Em outras palavras, todas as leis da Bíblia passarão a vigorar literalmente. Ocorrerão o restabelecimento da escravidão, o fim do controle da natalidade (pois os crentes devem “crescer e multiplicar-se”), a execução de adúlteros, homossexuais, blasfemos, astrólogos e bruxos. Os filhos desobedientes serão apedrejados, como ordena a Bíblia. Implantar-se-á uma economia rigorosamente capitalista; os socialistas e os esquerdistas em geral são pecadores. Deus não está do lado dos pobres. Na verdade, diz North, existe uma “estreita relação entre maldade e pobreza”. Não se empregarão verbas de impostos em programas de bem-estar social, pois “sustentar vagabundos é sustentar o mal”. O mesmo princípio vale para o Terceiro Mundo, que provocou os próprios problemas econômicos com seu gosto pela perversidade moral, pelo paganismo e pela demonologia. A Bíblia proíbe a ajuda estrangeira. Enquanto aguardam a vitória – que talvez demore, admite North –, os cristãos devem preparar-se para reconstruir a sociedade em conformidade com o plano divino e apoiar as políticas governamentais que se aproximem dessas normas bíblicas.
O domínio imaginado por North e Rushdoony é totalitário. Não deixa margem a outras opiniões ou políticas, à tolerância democrática, à liberdade individual. Naturalmente a possibilidade de essa teologia se popularizar nos Estados Unidos é remota; mas já se aventou a hipótese de, no caso de uma catástrofe ambiental ou econômica, um Estado eclesiástico autoritário substituir o regime liberal do Iluminismo. Afinal, o cristianismo conseguiu adaptar-se ao capitalismo, que contraria muitos dos ensinamentos de Cristo. Também poderia ser usado para sustentar uma ideologia fascista, que, em circunstâncias drasticamente modificadas, talvez se tornasse necessária à manutenção da ordem pública.”


“A religião não desapareceu, afinal, e em alguns círculos se tornou mais militante que nunca. Os fundamentalistas judeus, cristãos e muçulmanos têm reagido furiosamente às tentativas de privatizar ou suprimir a religião e acreditam que a resgataram do esquecimento. No decorrer de sua árdua luta muitas vezes distorceram a fé – o que representa uma derrota para a religião. Mas hoje o fundamentalismo faz parte do mundo moderno. Representa uma decepção, uma alienação, uma ansiedade, uma raiva generalizada, que nenhum governo pode ignorar sem correr risco. Até agora os esforços para lidar com o fundamentalismo não tiveram muito sucesso; que lições podemos tirar do passado que nos ajudem a enfrentar mais criativamente, no futuro, os medos que o fundamentalismo encerra?”


“É importante reconhecer que as teologias e ideologias fundamentalistas se baseiam no medo. O desejo de definir doutrinas, erguer barreiras, fixar limites e segregar os fiéis num enclave sagrado, onde haja rigorosa observância da lei, deve-se ao pavor da extinção que, neste ou naquele momento, levou todos os fundamentalistas a crer que os secularistas estavam prestes a exterminá-los. Um liberal acha o mundo moderno empolgante; um fundamentalista acha-o ímpio, sem sentido e até satânico. O terapeuta sem dúvida qualificaria de perturbado o paciente que lhe apresentasse essas fantasias paranoicas de conspiração e vingança. A visão pré-milenarista, que considera diabólicas algumas das instituições modernas mais positivas, acalenta sonhos genocidas e acredita que a humanidade caminha rapidamente para um fim horrendo, demonstra nitidamente o terror e a frustração que a modernidade provoca em muitos fundamentalistas protestantes. Vimos o niilismo que pode inspirar o programa fundamentalista. É impossível dissipar esse medo através da razão ou de medidas coercivas. Uma solução mais criativa consistiria em procurar avaliar a profundidade de tal neurose, ainda que o liberal ou secularista não consiga partilhar a mesma perspectiva determinada pelo pavor.”


“Por ser tão combativa, essa campanha pela ressacralização da sociedade se tornou agressiva e distorcida. Não tinha a compaixão que, para todas as crenças, é essencial à vida religiosa e à experiência do divino. Ao contrário, pregava uma ideologia de exclusão, de ódio e até de violência. Mas os fundamentalistas não detinham o monopólio da fúria. Seus movimentos com frequência se desenvolveram numa relação dialética com um secularismo agressivo que demonstrava pouco respeito pela religião e pelos devotos. Às vezes parece que os secularistas e fundamentalistas estão presos numa espiral de hostilidade e recriminações. Se os fundamentalistas precisam avaliar seus inimigos mais compassivamente, para manterem-se fiéis as suas tradições religiosas, os secularistas também precisam cultivar mais a benevolência, a tolerância e o respeito pela humanidade que caracteriza a cultura moderna no que tem de melhor, e analisar com maior empatia os medos, ansiedades e necessidades que muitos de seus semelhantes fundamentalistas sentem, mas que nenhuma sociedade pode ignorar sem correr riscos.”

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