Editora: Cortez
ISBN: 978-85-2490-498-1
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 96
Sinopse:
Socialismo e neoliberalismo são, sem dúvida, duas das maiores questões da nossa
época. Neste volume os temas são tratados sob uma perspectiva fortemente
crítica. A crise do socialismo é abordada não como signo do "fim da
história", mas como esgotamento de um padrão da transição social que se
revelou incapaz de realizar a dupla socialização que compete ao período
pós-revolucionário: a socialização do poder político e a socialização da
economia. Já a ofensiva neoliberal é enfocada como expressão da
incompatibilidade entre o capitalismo contemporâneo e as instituições
democráticas.
“É sabido que no período da transição
socialista há que se realizar uma dupla
socialização: a socialização do poder político e a socialização da
economia; a partir de um certo patamar de desenvolvimento das forças produtivas
(aferível empiricamente, cujos indicadores são dados pela existência de uma
base urbano-industrial a socialização do poder político decide da socialização da economia (sua gestão pelos coletivos de
trabalhadores, erradicada a apropriação privada do excedente) e do seu evolver.
A crise do “campo socialista” tem suas raízes neste nó problemático: uma
limitadíssima socialização do poder político passou a travar (e, nesta medida,
logo em seguida a colidir com) o aprofundamento da socialização da economia —
estabeleceu-se, de fato, um feixe de
contradições entre as exigências dinâmicas do desenvolvimento das forças
produtivas no marco de uma economia centralmente planejada e os mecanismos
políticos que a modelavam. Mais precisamente: os sistemas políticos das
sociedades pós-revolucionárias mostravam-se ineptos para propiciar a passagem,
no âmbito das forças produtivas, de um padrão de crescimento extensivo a outro, intensivo7.
O padrão de crescimento extensivo é
compatível com estruturas sócio-políticas rígidas e excludentes; estas, aliás,
revelaram-se historicamente capazes de oferecer, ainda que a um alto custo
social (do ponto de vista dos trabalhadores), vantagens comparativas adicionais
— se cotejadas com estruturas mais flexíveis e inclusivas ao estágio inicial da
arrancada industrializante. E tanto mais quanto se combinam com a alocação
central de recursos — quando, de modo inequívoco, garantem taxas de acumulação
e crescimento extremamente significativas Prova-o exatamente o caso das
sociedades pós-revolucionárias: parece estabelecido que até a década de setenta
o feixe de contradições atrás referido não comprometeu substantivamente a
superioridade da economia centralmente planejada em relação àquela erguida
sobre os mecanismos de mercado e da “livre iniciativa”; realmente, inclusive na
conjuntura recessiva mundial de 1974-1975, enquanto todos nos países
capitalistas industrializados, sem exceção alguma, foram envolvidos no
turbilhão da recessão, não houve em nenhum Estado operário burocratizado nem
recuo absoluto da produção, nem reaparição de demissões ou de desemprega
massivo. Ao contrário, estes prosseguiram seu crescimento em 1974-1975, até
mesmo, em certas ocasiões, com uma “taxa de crescimento superior dos anos
precedentes” (Mandel, A crise do capital,
1990:119).
Enquanto o padrão de crescimento extensivo
manteve suas potencialidades, a rigidez e a exclusão características do sistema
político das sociedades pós-revolucionárias, bem como a natureza das suas
incidências econômico-sociais, puderam ser reproduzidas — mais exatamente, pôde
reproduzir-se tanto a limitadíssima socialização do poder político (nucleado
pela existência efetiva do unipartidarismo e pela identificação/fusão do
aparato partidário com as instâncias estatais) quanto a também restrita
socialização da economia (salvo na frustrada experiência iugoslava, a
socialização sumariamente reduzida à estatização).
Evidentemente, esta capacidade de reprodução
não sinalizava uma inerente estabilidade dos sistemas políticos das sociedades
pós-revolucionárias; antes, sintomatizava quer a sua funcionalidade aos objetivos
de construir rápida e aceleradamente uma base urbano-industrial, quer a sua
aptidão (na medida em que estes objetivos eram colimados) para integrar nos
seus limites as demandas imediatas fundamentais da massa da população e
neutralizar os segmentos que os contestavam — pelos métodos mais variados, da
intimidação psicossocial à repressão policial aberta. Em poucas palavras: a sua
eficácia no tocante à criação de estruturas urbano-industriais sancionava a sua
modalidade de coerção político-ideológica.
Na escala em que se exaure o padrão de
crescimento extensivo concretamente — quando as bases urbano-industriais estão
consolidadas —, tanto se fragiliza aquela eficácia quanto aquela sanção. Tudo
indica que o exaurimento referido ocorre entre o final da década de setenta e a
primeira metade dos anos oitenta, variando neste arco temporal para a maioria
dos países do “campo socialista” — mas com precisas notas de estancamento na produção de bens e
serviços. E um estancamento de tal magnitude que, mantendo-se a médio prazo,
levaria ao risco de ruptura das estruturas sociais dos países do “campo” —
inclusive porque as constrições postas pela coexistência com o sistema
capitalista, ainda que no quadro de uma progressiva redução da possibilidade de
conflitos bélicos globais, continuavam operando. Donde a objetiva necessidade
política de remover os obstáculos ao trânsito a um padrão de crescimento
intensivo —para o que se impunha o redimensionamento dos sistemas político e
econômico: o padrão intensivo é incompatível seja com um ordenamento econômico
estatizado burocraticamente, seja com o seu imbricado e correspondente
ordenamento político, de baixíssima participação autônoma.
Este redimensionamento é originalmente
implementado por Gorbatchov e seu grupo. Pela gravitação da antiga URSS no
interior do “campo socialista”, logo rebate para além de suas fronteiras
estatais e resulta na catalisação dos vetores que erodiam as sociedades
consteladas em sua órbita. Eis quando vem à tona o feixe de contradições a que
aludi, potenciado pelas particularidades nacionais, configurando a crise global
do “campo socialista”. A centralidade política da crise assenta no fato de que somente uma profunda reestruturacão do
sistema político poderia abrir a via ao novo padrão de crescimento. Era
absolutamente inviável a compatibilização da otimização da economia com a
persistência de formas sócio-políticas que enquadram e bloqueiam a participação
(sócio-política) autônoma da principal força produtiva — os trabalhadores.
Neste patamar, são as opções políticas
que decidem do padrão de reprodução social (e, pois, também do tipo de
crescimento): é a esfera política que subsume inclusive as requisições técnicas
macroscópicas11.
A crise do “campo socialista” é, nesta ótica,
uma crise estruturalmente determinada
pela exaustão de um padrão de crescimento econômico e do sistema político a ele
funcional. E é uma crise global,
que não investe apenas sobre os ordenamentos econômico e político, mas ainda,
com intensidade variável, sobre os complexos de representações e valores a
ambos vinculados. A manutenção daqueles ordenamentos e destes complexos não é
mais possível; e a crise envolve o “campo” como um todo e suas expressões
nacionais particulares, matizando, agudizando e/ou peculiarizando o processo
que as concretiza, não cancelam, em nenhum espaço nacional, as suas
determinações econômico-sociais estruturais.
O primeiro problema posto por esta crise é o
da sua natureza: trata-se de uma crise
específica do tipo de organização socioeconômica das sociedades
pós-revolucionárias ou de uma crise que infirma a possibilidade de um padrão societário embasado na ausência
do mercado (e suas decorrências necessárias, como a propriedade privada dos
meios fundamentais de produção, a divisão da sociedade em classes, a distinção
entre os que governam e os que são governados etc.) e na instituição do
planejamento central?
Entendo que a resposta a esta questão é
precisa (supondo uma ampla problematização que, por razões de espaço, não posso
desenvolver aqui): a crise global do “campo socialista” é a crise terminal de um tipo de organização econômico-social
e política pós-revolucionária — aquele em que coube ao novo Estado promover a
instauração e a consolidação dos suportes urbano-industriais que, na projeção
original de Marx, eram os pressupostos
da revolução proletária. O que entrou em crise é uma forma determinada de transição socialista — aquela em que o
Estado engendrado na revolução aparece fundido com o aparelho partidário, no
exercício de um monopólio político que substitui o protagonismo dos
trabalhadores e da inteira sociedade, no marco da qual o seu desempenho
econômico-social centra-se na realização de tarefas que historicamente
configuraram, uma vez cumpridas, as condições
para a supressão da ordem burguesa — não é por acaso que, numa angulação
diversa da minha, Wiatr (Europa do Leste,
1990:69) caracteriza esta crise como crise
estrutural de formação.
O processo revolucionário de que se originou
o “campo socialista”, tomado em si mesmo, estava completamente deslocado das
projeções teóricas de Marx — como, aliás, Gramsci o percebeu claramente, ao
caracterizar a empreitada bolchevique como “a revolução contra O Capital” (Gramsci, Scritti giovanili, 1958:149). Com
efeito, a Rússia czarista não apresentava as condições que Marx supunha
necessárias para a consecução da revolução proletária: um alto grau de
desenvolvimento das forças produtivas e uma classe operária estatisticamente
ponderável e dotada de organização e vontade políticas autônomas — vale dizer:
industrialização e urbanização capitalistas, relativos desenvolvimento e
democratização da sociedade civil. É conhecido o fato de Marx prospectar a
revolução proletária no espaço do capitalismo desenvolvido de seu tempo — pela
óbvia razão de pensar os pressupostos da ruptura com a ordem burguesa como
precisamente colocados pela sua maturação. Igualmente conhecido, por outro
lado, é o raciocínio lenineano de que a sorte da revolução de Outubro era uma
variável da revolução no Ocidente; melhor: em sua concepção estratégica, “a
revolução russa é o prólogo e o nexo da revolução socialista no Ocidente e da
revolução democrático-burguesa no Oriente” (Claudín, Marx, Engels y la revolución de 1848, 1985:55).
Nem em Marx, nem em Lênin há — penso —
fundamento para supor a realização da passagem ao comunismo seja a partir de
formas capitalistas emergentes, periféricas e/ou pouco desenvolvidas, seja num
espaço diverso do mundial. O drama que se desenrola depois de Outubro consiste
nesta dupla determinação: a revolução é abortada no Ocidente e a velha Rússia
passa a ser o topus da experiência da
transição. Os experimentos que se lhe seguem, culminando especialmente com a
vitória dos comunistas chineses, não revertem aquela dupla determinação: nem
incorporam sociedades onde estão presentes os pressupostos visualizados por
Marx (salvo o caso da Tchecoslováquia), nem realizam o espraiamento da
revolução pelo mundo — antes, configuram o seu insulamento no “campo
socialista”, ademais de, em boa parte das situações, terem contado com uma
dominante externa, o Exército Vermelho como agente de libertação do
nazi-fascismo. Este insulamento e esta dominante, mas principalmente as
condições econômico-sociais de que arrancam os experimentos revolucionários,
respondem pelo tipo de transição que se estabeleceu nas sociedades
pós-revolucionárias: a constituição de um sistema político que de alguma forma
se converteu, ao cabo de algum tempo, na ditadura
do proletariado contra si mesmo — para retomar as proféticas palavras,
pronunciadas na primavera de 1919, de Lukács (Political writings, 1968); ou seja: um Estado hipertrofiado que,
sob o controle de um segmento burocrático, arroga-se a inteira demiurgia
social. A forma política característica deste tipo de transição, a autocracia
stalinista, assume, neste desenvolvimento, o traço “modelar” da transição
socialista.
Entendamo-nos: o que se constituiu como a
experiência pós-revolucionária, entre 1917 e 1949 e em seus desdobramentos,
está longe de obedecer a um qualquer determinismo; nos limites em que se
realizou, reservava margem para opções e alternativas, e estas foram tentadas
e/ou implementadas, frequentemente expressando as particularidades nacionais
que envolviam13. Os limites estruturais que as balizavam,
entretanto, colocavam na ordem-do-dia a construção,
precisamente, dos pressupostos da transição socialista (sinteticamente, as
estruturas urbano-industriais). Aqui, à partida, estavam comprometidos os
termos da projeção marxiana: não se iniciava a transição sobre os seus
pressupostos necessários, mas sim cabia ao Estado articulado com a revolução
criar tais pressupostos. Esta foi a moldura e a tarefa própria do que veio a
ser chamado de socialismo real (que,
certa feita, Paul Baran categorizou como “socialismo subdesenvolvido”): a constituição,
num marco pós-capitalista, das condições societárias que justamente fundavam,
em Marx, a possibilidade da superação do capitalismo.
Criadas — pela própria eficácia, neste
domínio, dos regimes pós-revolucionários — estas condições, o seu padrão transicional
se esgota e a crise amadurece: as formas sócio-políticas existentes e operantes
revelam-se ineptas para otimizar a reprodução social. Repõe-se, de fato e
noutro patamar — este mais favorável, objetivamente, à supressão dos traços da
ordem burguesa —, a questão básica da transição para o comunismo: as radicais
socialização do poder político e socialização da economia. Em face daquelas
condições, tal como foram logradas, anacronizam-se as formas parciais e mutiladas das socializações alcançadas; se se quiser, abre-se o
espaço para uma revolução política stricto
sensu, porque é da socialização do poder político que depende a inteira
socialização da economia.
A crise global do “campo socialista” é a
crise das instituições econômico-sociais e políticas construídas durante a
criação, no marco pós-revolucionário, das estruturas urbano-industriais. Não é,
portanto, a crise do projeto socialista revolucionário nem a infirmação da
possibilidade da transição socialista: é a crise de uma forma histórica precisa
de transição, a crise de um padrão determinado de ruptura com a ordem burguesa
— justamente aquele que se erigiu nas áreas em que esta não se constituíra
plenamente. A crise deste padrão, contraditoriamente, é produto do seu êxito
parcial: criando as bases urbano-industriais num molde pós-burguês (donde um
real componente de justiça social e de equidade), ele exibe as suas gritantes
insuficiências em face da projeção socialista. Nesta ótica, pois, o que a crise
global do “campo socialista” põe em questão é o conjunto de limitações ao desenvolvimento socialista no tipo de
transição logrado nas sociedades, pós-revolucionárias, ao mesmo tempo em
que sinaliza que estas limitações só podem ser mantidas ao preço de modalidades
de controle social crescentemente repressivas. Não é por acaso, assim, que em
todo o “campo” o alvo elementar sobre que incidem os vetores erosivos seja o
terreno das liberdades políticas — o cerceamento delas, com a tutela do
conjunto da sociedade pelo Estado-partido, constitui o nó górdio (de
causalidades e implicações) consequente à consolidação das estruturas
urbano-industriais.”
7. Aliás, nos primeiros momentos da afirmação
de Gorbatchov e seu grupo, a necessidade da glasnost
e da perestroika foi defendida
exatamente em função da passagem ao crescimento intensivo; tratava-se de operar
a substituição de “um padrão de desenvolvimento econômico extensivo (assentado
no crescimento quantitativo da força de trabalho, na ampliação do equipamento
produtivo e na alocação de recursos para novos equipamentos) por outro, de
natureza intensiva (fundado numa alta produtividade do trabalho, na otimização
da racionalidade gerencial e na utilização maximizada da ciência e das novas
tecnologias” (Netto, Democracia e
transição socialista, 1990:132).
11. Por isto mesmo, a incorporação dos
efeitos da chamada revolução científica e técnica aos padrões da reprodução
social demanda precisas condições e
opções políticas. Sem esta consideração, o que se faz é substantivar
socialmente a própria revolução científica e técnica.
13. Pense-se, por exemplo, nas lutas
políticas, especialmente no interior dos partidos comunistas, referenciadas
justamente às opções possíveis; pense-se, também, nos esforços iugoslavos para
encontrar o rumo da autogestão.
“O
desenvolvimento positivo (quer dizer: favorável às massas trabalhadoras, aos
seus históricos interesses de superação da exploração e da alienação) da crise
supõe o avanço, nas sociedades pós-revolucionárias, da democracia socialista,
capaz de efetivamente socializar o poder político e rebater imediatamente, na
economia, com reais processos
autogestionários, aptos para otimizar (pela liquidação de traços e
excrescências burocráticos) o planejamento econômico central.
De fato, reduzidas esquematicamente — mas não
arbitrariamente — as alternativas à crise global do “campo socialista” são
duas: ou (re)instauração capitalista ou avanço no processo de socialização do
poder político e da economia, rompendo-se com as limitações que até então as
cercaram.”
“No entanto, para além da sua problemática
evolução nas fronteiras do ex-”campo socialista”, a crise global de que nos
ocupamos possui outras incidências. Ao expor à luz as limitações de uma forma
historicamente determinada de transição socialista (a operada na ausência dos
seus pressupostos necessários), ela não só reduz drasticamente a imantação dos
“modelos” oferecidos pelo socialismo real:
condena à lata do lixo da história as construções ideológicas elaboradas para
legitimá-los e põe condições objetivas que reclamam a ruptura com a mistificada
identificação entre o socialismo real
e o projeto social do pensamento socialista revolucionário — identificação em
que se empenharam com igual esmero, os seus apologistas, de um lado, e, doutro,
os inimigos da projeção comunista. Efetivamente, a imantação daqueles
“modelos”, se se mantiver, só será pensável para sociedades em que a passagem
ao estágio urbano-industrial ainda se constituir em desafio contemporâneo (ou
seja: em algumas áreas do mal chamado Terceiro Mundo). Quanto ao entulho
ideológico acumulado no quadro da sua legitimação, arquitetado em geral como o marxismo-leninismo, este parece
irremissivelmente condenado.”
“Em
termos de futuro imediato, para a resolução dos desafios atuais, parece-me que
as respostas produtivas da tradição marxista implicam a recuperação do estilo de trabalho de Marx: de uma
parte, uma constante e crítica interlocução com as tradições e vertentes
não-marxistas e anti-marxistas; de outra, uma viva interação com os movimentos
e forças sociais que operam factualmente contra a ordem burguesa. Creio, mesmo,
que o “renascimento do marxismo”, reclamado por Lukács em seus últimos anos de
vida, está grandemente hipotecado a esta dupla e simultânea démarche. Não é preciso, no estado atual
da reconstrução do itinerário marxiano, nenhum esforço para comprovar que Marx
elaborou suas concepções num contínuo diálogo com seus predecessores (especial,
mas não exclusivamente, imediatos) e seus contemporâneos; mais: que sua obra
seria impensável sem este diálogo — realmente, a obra marxiana só é
compreensível em toda a sua pluridimensionalidade se se considerar a atenção
que Marx conferia à produção teórica e ídeo-política que lhe era próxima ou
coetânea; a especificidade de Marx não se deve a uma impermeabilidade em face
desta produção mas, inversamente, a uma abertura, crítica e seletiva, a ela.
Igualmente, já é pacífica a notação do papel representado, na elaboração
marxiana pela vinculação de Marx ao movimento operário vinculação sem a qual a
sua obra seria impossível. (...)
Evidentemente, a recuperação a que me refiro
supõe — em todas as latitudes, mas com especial ênfase no Ocidente desenvolvido
— uma nova relação orgânica das
vertentes marxistas com o movimento social. Na medida em que a tradição
marxista reivindicou sempre uma íntima conexão com práticas sócio-políticas e
na medida em que historicamente esta conexão (em maior ou menor grau) se
concretizou — nestas medidas, a tradição marxista não se reduz apenas a um
complexo teórico-ideal, nem suas crises a realidades somente intelectuais,
conformando problemáticas só pertinentes ao “mundo das ideias” (ou à “história
das ideias”). As crises teóricas verificadas no evolver da tradição marxista
frequentemente enlaçaram-se a crises de implementação prático-política e se
elas devem ser, no plano analítico, claramente distinguidas, não são
inteiramente divorciáveis na realidade30. Ora, a recuperação aludida
implica hoje uma relação orgânica diversa da que historicamente foi viabilizada
entre vertentes marxistas e movimento social — aquela mediada pelos partidos
comunistas ou por grupamentos de corte leninista (ou seja, de acordo com o
Lênin de O que fazer?); a relação
construída por estas instâncias dá inegáveis mostras de esgotamento e no
Ocidente parece sinalizar o ápice de uma sequência de crises de implementação
prático-política que vem de longe31.
Em qualquer caso, a recuperação em tela põe
em questão a relação da teoria com a realidade social (da qual são elementos
efetivos quer as representações que dela fazem os homens, quer os movimentos
nos quais se envolvem). Trata-se, essencialmente, de resgatar o estilo de
trabalho de Marx para desvelar e decifrar
o movimento histórico-social contemporâneo da ordem burguesa — sua
estrutura, sua dinâmica, suas tendências; o que importa é empenhar a razão
teórica como iluminadora dos processos constituintes desta socialidade
determinada ou, para retomar célebre indicação lenineana, fazer análise
concreta de situações concretas.”
30. É óbvio que há estreitas relações e conexões
entre crises teóricas e crises de implementação prático-política; porém, dada a
complexidade destas conexões (se
paralisias teóricas podem contribuir para problematizar estratégias
prático-políticas, os impasses nestas podem deflagrar tanto congelamentos
quanto avanços significativos na reflexão) e a sua assimetria (a resolução de crises teóricas não implicar
necessariamente, a solução de crises de implementação, e vice-versa), a sua
distinção me parece imperativa.
31. Como o notou Anderson (A crise da crise do marxismo, 1985:32):
“A reunificação da teoria marxista com a prática popular num movimento
revolucionário de massas falhou consideravelmente em se materializar. A
consequência intelectual deste
fracasso... foi a carência geral de um pensamento estratégico real na esquerda dos países avançados, isto é, uma
elaboração qualquer de uma perspectiva concreta ou plausível para uma transição
da democracia capitalista para uma democracia socialista”.
“Não
se trata de procedimento novo, este de ora dissolver Marx entre os “fundadores”
das chamadas ciências sociais, ora de diluí-lo entre os “clássicos” da
filosofia35, sempre concluindo com a prudente (e científica!)
notação de que ele, como tantos outros pensadores superiormente dotados, foi
mais um dos que contribuíram para a construção do acervo de conhecimentos de
que hoje nos beneficiamos. Esta perspectivação — cuja “prudência” mal oculta o
seu substrato eclético — é perfeitamente compatível com o desenvolvimento
teórico-ideal mais recente de setores intelectuais de ponta, onde vicejam
traços de novos agnosticismo e irracionalismo. E é supérfluo assinalar que este
procedimento não pode situar com consequência e radicalidade a questão da
validez da obra de Marx.
Esta questão só pode ser efetivamente posta
quando se ultrapassam os lugares-comuns acerca da suficiência ou não de Marx em
face do capitalismo e da ordem burguesa deste final de século. Já não pode ser
objeto de debate sério o fato de que
— a maturação da ordem burguesa colocou problemas não
contemplados (ou sequer vislumbrados) na obra de Marx;
— muitos juízos e apreciações determinados de Marx já não
são sustentáveis e/ou não tenham mais razão de ser;
— há estratos e elementos superados na obra marxiana.
Nada disto pode ser objeto de polêmica séria,
simplesmente porque só uma visão talmúdica ou fundamentalista da teoria de Marx
negaria que, mais de um século depois de construída, ela não dá plena conta do
seu mutante e cambiável objeto36. Em poucas, e óbvias, palavras: há
o “vivo” e o “morto” na obra marxiana e ela é insuficiente para esclarecer a
realidade da ordem burguesa no limiar do século XXI.
Mas a questão da validez da teoria marxiana
não pode se reduzir a um levantamento, a um balanço do que resistiu e/ou
envelheceu das colocações de Marx no confronto com o capitalismo tardio e a
ordem burguesa contemporânea. A questão, do meu ponto de vista, deve ser
situada diversamente: é possível esclarecer os problemas novos da ordem burguesa contemporânea a partir da teoria marxiana?
Em que medida esta pode reivindicar hoje um espaço teórico-metodológico
específico? É Marx o instaurador de um "paradigma" ainda pertinente?
Enfim: a teoria social de Marx é capaz de manter-se como fundante de uma matriz
teórico-metodológica a ser desenvolvida como tal nas condições do mundo
contemporâneo?
Entendo que as respostas a estas indagações,
que remetem ao essencial da teoria marxiana como nucleado na sua articulação
teórico-metodológica (tal como Lukács a pensou nos parágrafos iniciais do
célebre História
e consciência de classe), devem ser afirmativas.
E devem sê-lo à base não de posturas fundamentalistas e/ou de convicções
pessoais: devem sê-lo à base da análise do evolver da ordem burguesa e da
análise dos tratamentos teóricos que lhe foram oferecidos a partir de
perspectiva elaboradas com o objetivo de contestar a teoria de Marx.
O evolver da ordem burguesa, ao longo de todo
o século XX, não infirmou nenhuma das
tendências estruturais de desenvolvimento que Marx nela descobriu — ao
contrário, comprovou-as largamente, pois aí estão:
— a concentração e a centralização do capital,
— o caráter anárquico da produção capitalista,
— a reiteração das crises periódicas,
— as dificuldades crescentes para a valorização,
— os problemas referentes à manutenção dos patamares das
taxas de lucros,
— a contínua reprodução da pobreza relativa e crescentes
emersões de pobreza absoluta,
— os processos alienantes e reificantes.
O desenvolvimento da ordem burguesa, até este
limiar do século XXI, vem repondo as
determinações estruturais que a teoria marxiana apreendeu nela. A correção e a
justeza desta apreensão, transcendendo de um século a sua explicitação,
devem-se exclusivamente ao fato de Marx ter elaborado (à base de uma ingente
pesquisa, que o absorveu por quase quatro décadas) o método adequado para a
explicação e a compreensão (mais precisamente: para a re-produção ideal) do
movimento do ser social na ordem societária articulada sobre a lógica (o
movimento) do capital. A perspectiva teórico-metodológica instaurada pela obra
marxiana — com seu cariz ontológico, sua radicalidade histórico-crítica e seus
procedimentos categorial-articuladores37 — é aquela que permite,
arrancando dos “fatos” objetivados na empiria da vida social na ordem burguesa,
determinar os processos que os engendram e as totalidades concretas que
constituem e em que se movem. Esta perspectiva é a que propicia, na dissolução
da pseudo-objetividade necessária da superfície da vida capitalista, apreender
e desvelar os modos de ser e de reproduzir-se do ser social na ordem burguesa.
Produto do próprio desenvolvimento do ser social na ordem burguesa, esta perspectiva
teórico-metodológica é a que viabiliza o (auto)conhecimento teórico do ser
social nos marcos da socialidade burguesa.
Entretanto, o desenvolvimento da ordem
burguesa não vem apenas repondo as determinações estruturais descobertas por
Marx. Ela não as repõe simplesmente: ora as modifica, porque suas condições
dinâmicas se alteraram; ora as subverte, conferindo-lhes articulações outras,
porque sua estrutura se complexificou sensivelmente; mais: tal desenvolvimento põe novas determinações, ignoradas/desconhecidas
por Marx. Em quaisquer destes casos, o que há que operar é precisamente a
análise da dinâmica do desenvolvimento contemporâneo da ordem burguesa a partir
das descobertas de Marx, uma vez que nelas está a condição indispensável (mas não suficiente)
para apanhar os novos processos. A teoria social de Marx re-produziu idealmente
o movimento histórico-social num tempo dado: esta re-produção mostra-se
necessariamente incompleta quando o seu objeto real se modifica noutro tempo
(histórico-social) dado; o que importa na investigação marxiana não são apenas
os seus resultados, mas o seu método:
os primeiros podem anacronizar-se em função do movimento do objeto, o segundo
permanece eficiente (porque compele o sujeito, na re-produção ideal do objeto,
à máxima fidelidade a este, graças à sua aptidão para promover uma adequada
recepção, ativa e criadora, do objeto pelo sujeito) na escala em que o objeto
se mantém estruturalmente38.
O legado marxiano é a teoria do ser social na
ordem burguesa e o método para prosseguir a investigação desta ordem enquanto
ela se mantiver como tal; a consequente implementação deste método, como
instrumento de conhecimento, é a condição tanto para desvelar o desenvolvimento
da ordem burguesa quanto para atualizar os resultados alcançados por Marx. Em
síntese: a validez da teoria marxiana está exatamente no método que permitiu a
Marx descobrir as determinações nucleares do movimento do capital, da ordem
burguesa e é este método que permite, hoje, superar
as próprias colocações marxianas que o evolver da ordem burguesa anacronizou.”
34. Uma dessas típicas dissoluções —
realizada, aliás, com grande competência —, devemo-la, recentemente, a Giddens
(Capitalismo e moderna teoria social,
1984).
35. Eis uma plástica descrição desta
diluição, tal como ocorreu na Alemanha de Oeste no segundo pós-guerra: “Marx
surge... sob o rótulo ‘grandes filósofos’; converte-se em tema preferido de
teses doutorais. Juntamente com Platão e Spinoza, torna-se um clássico nas
exposições sumárias que aparecem nas coleções de livros de bolso. Converte-se
num clássico com todas as consequências, tão venerável quanto inofensivo. E o
marxismo se desenvolve nos centros superiores [acadêmicos] como patrimônio da
filosofia: um problema a mais na história do pensamento” (Habermas, Teoría y práxis, 1987:361).
36. É óbvio que, comportamentos
fundamentalistas não encontram qualquer suporte na postura sempre radicalmente
crítica de Marx — veja-se um exemplo, dentre muitos: ao prefaciar, em 1872, uma
nova edição alemã do Manifesto, ele
(com Engels) indica a necessidade de redigir “uma introdução que percorra a
distância entre 1847 e nossos dias”, porque, “se os princípio gerais
desenvolvidos neste Manifesto
conservam ainda hoje, no seu todo, a sua plena correção”, o fato é que o
programa político exposto no capítulo II, “em face do imenso desenvolvimento da
grande indústria nos últimos vinte e cinco anos e, com ele, do progresso da
organização do partido da classe operária”, está “antiquado” em algumas passagens
(cf. Marx e Engels, Manifesto do partido comunista, 1986: 51-52). Se esta foi a posição de Marx em face de mudanças
ocorridas entre 1847 e 1872, é possível supor, sem especulações, quão
significativa seria a sua apreciação das mudanças entre 1872 e este nosso fim
de século — e as implicações delas para as suas concepções.
37. A estrutura da perspectiva
teórico-metodológica de Marx é analisada brilhantemente por Rosdolski (Génesis y estrutura de El Capital de Marx,
1986) e por Lukács, em especial no capítulo pertinente da sua derradeira grande
obra (Ontologia do ser social, 1979).
38. Esta adequação da articulação
teórico-metodológica da perspectiva marxiana ao seu objeto (a ordem burguesa)
esteve sempre na base da determinação da sua validez. Parece-me que é neste
sentido que se devem entender duas conhecidas e diversas formulações acerca da
obra marxiana: “Marx inicia intelectualmente uma idade histórica que
provavelmente durará séculos, isto é, até o desaparecimento da sociedade
política e o advento da sociedade regulada. Somente quando isto ocorrer, a sua
concepção de mundo será superada” (Gramsci, Concepção
dialética da história, 1966:94); o marxismo “permanece... a filosofia de
nosso tempo: é insuperável porque as circunstâncias que o engendraram não foram
ainda superadas. [...] Logo que existir para
todos uma margem de liberdade real
para além da produção da vida, o marxismo deixará de viver; uma filosofia da
liberdade tomará o seu lugar” (Sartre, Questão
de método, 1967: 29-33). Ou, nas concretas determinações de Florestan
Fernandes: “Se se considera que Marx investigou não só
o capitalismo de sua época, mas as condições objetivas da produção e da
reprodução da acumulação capitalista acelerada, só seria possível negar ‘suas
ideias’ se o capitalismo se tivesse tornado o avesso de si próprio, ou seja, se
a mais-valia relativa, a manipulação econômica, social e política do exército
industrial de reserva, a concentração e a centralização do capital, as classes
e a dominação de classe, etc., tivessem desaparecido.” (apud Menezes, Em busca da teoria, 1993:7).
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