Editora: Boitempo
ISBN: 978-85-7559-191-8
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 368
“Vimos que nas confrontações que
se estabeleceram nos períodos de caos sistêmico, os Estados que viram
frustrados seus projetos de dominação desenvolveram características fortemente
imperiais de intervenção. Esse foi o caso da França napoleônica, cujo expansionismo
no continente europeu violou os princípios do Tratado de Westfália. Esse
intervencionismo teve uma dimensão progressista ao combater forças políticas
com forte caráter feudal na Europa. Entretanto, ele também estabelecia um forte
controle político interno, consolidando o sepultamento do sufrágio universal
estabelecido nas etapas mais radicais da Revolução Francesa. Posteriormente, a
expansão do capitalismo histórico e a liquidação das forças feudais no sistema
mundial eliminaram o caráter progressista desse intervencionismo e deram aos
novos projetos imperiais um forte conteúdo reacionário. Esse foi o caso do
fascismo impulsionado pela Alemanha nazista.
No novo período que se avizinha,
os projetos de manutenção do capitalismo histórico buscarão articular, desde o hegemón, um conjunto de forças
oligárquicas sob formas cada vez mais fascistas. Isso fica nítido nas reações
do governo Bush Filho ao atentado de 11 de setembro e em sua política externa,
que detalharemos no próximo capítulo. Ela desenha uma ofensiva ideológica que
não se esgota com o fim desse governo e sinaliza políticas fascistas e
estabelecimento desses regimes na periferia, como o que se impôs no Iraque e na
Palestina. Mencionamos que o projeto fascista dificilmente terá sucesso em
impor uma nova ordem que substitua o moderno sistema mundial. Entretanto, há o
risco de ele se tornar um obstáculo para que o projeto da civilização
planetária se imponha. Nesse caso, o caos tenderia a se aprofundar, e a
humanidade sucumbiria num processo de choques brutais entre forças
anti-imperialistas incapazes de reconduzir o sistema mundial a um nível
superior, das quais os nacionalismos chauvinistas e fundamentalismos religiosos
e étnicos são formas de expressão, e as forças fascistas oriundas dos países
hegemônicos, incapazes de restabelecer qualquer ordem.
Frente a essa possibilidade, há
que se impor o projeto de uma civilização planetária. Theotonio dos Santos tem
formulado e desenvolvido esse conceito. Ela expressa a convergência de culturas
e civilizações em torno de um convívio plural num sistema planetário único. A
civilização planetária baseia-se numa radical democratização das organizações
políticas internacionais para articular o global às pluralidades históricas,
econômicas, sociais e culturais. Não há nenhuma razão para se supor inviável
sua existência, em razão da presença de diversas culturas e civilizações na
história da humanidade que supostamente poderia dividi-la136. A
civilização planetária não suprime as especificidades culturais e
civilizatórias. Mas as integra sem negar suas identidades. Seus fundamentos são
integração e diversidade. Ela não é um projeto de integração hierárquico, onde
uma fração da humanidade busca dominar as demais, mas o contrário. Seu objetivo
é impulsionar a diversidade, proporcionando plenas condições para o seu
desenvolvimento ao garantir como direito o acesso de todos os povos e
indivíduos à acumulação científica, tecnológica e cultural gerada pela
humanidade. Realiza-se o indivíduo social, imaginado por Marx, que baseia o
desenvolvimento da sua individualidade na liberdade permanente de apropriar-se
das forças produtivas criadas pelos homens. Liberdade, igualdade, solidariedade
e paz são os princípios éticos e organizativos da nova civilização. Esses
princípios são a base de uma civilização ecologicamente sustentável.
A civilização planetária
significa a passagem para o terceiro padrão de relação entre homem e a
natureza, que mencionamos no primeiro capítulo, onde a economia e a luta contra
a escassez deixam de ser prioritárias. Ela deverá construir um padrão de vida
que priorize a qualidade e os valores de uso e não o trabalho abstrato, as
quantidades e a racionalização. O homem passa a ser entendido em seu ambiente
ecológico. Não apenas a riqueza cultural fundamenta o indivíduo social, mas
também a riqueza de seu meio-ambiente. A constituição de políticas
neguentrópicas que mantenham a vitalidade dos sistemas ecológicos exige o
desenvolvimento da equidade e a ampla democratização das relações políticas,
sociais, culturais e econômicas. A democratização das sensibilidades,
preferências e significados multiplica as formas de uso do ecosistema,
expandindo a diversidade dos componentes (recursos bióticos e abióticos) que
fundamenta sua estrutura básica e a sua produtividade (Leff, 2001, e Meszáros,
1995).
Como assinala Theotonio dos
Santos, a paz é um valor central para a construção da civilização planetária.
Ela não poderá ser estabelecida a partir de uma guerra de destruição em massa
com as forças imperialistas. Uma tal alternativa significaria a vitória do caos
e do genocídio. A paz deverá ser uma força ativa de integração e cooperação
entre os grupos humanos, possibilitando combinar guerras de posição e de
movimento na introdução de inflexões políticas substantivas. Essa cooperação
deverá impedir o funcionamento da máquina estatal imperialista e superar a
alternativa das guerras (Dos Santos e Senechal, 1985; Dos Santos, 1994 e 1996a;
e Segrera, 1998b). Para isso, será de fundamental importância criar laços de
solidariedade transnacionais entre as populações nacionais, impedindo sua
integração às lideranças imperialistas e chauvinistas que pretendem transformar
as lutas do sistema mundial em confrontações entre Estados-nações. Essa
perspectiva é possível e, como mencionamos, encontra um precedente vitorioso no
Vietnã e mostra sua força nas lutas anti-imperialistas contra a guerra no
Iraque e nos movimentos sociais e políticos internacionalmente solidários137.
Para impulsioná-la, há que se articular as lutas sociais em vários níveis:
local, nacional, regional e mundial. Essa articulação não suprime a autonomia
relativa de cada instância em que se desenvolvem essas lutas, mas ocorre num
contexto de crescente interpenetração e sinergia. As lutas locais, nacionais e
regionais assumem cada vez mais uma forma mundial e vice-versa138.
A superação do moderno sistema
mundial não se fará de uma só vez. Ela poderá dar lugar a uma fase de transição
que durará os próximos dez a quarenta anos, durante os quais essas articulações
se reforçarão até constituírem outras bases sistêmicas.”
136 Essa perspectiva é desenvolvida por Samuel
Huntington em O choque das civilizações e
a recomposição da ordem mundial (Rio de Janeiro, Objetiva, 1997). Immanuel
Wallerstein, em The Politics of the
World-Economy, cit., p. 147-85, desenvolve um conceito de civilização que
permite evitar os equívocos de Huntington, que apresenta dele uma precária
definição, aduzindo sucintamente uma série de teorizações em forma de mosaico.
Wallerstein demonstra que a civilização não existe como uma referência
estática, mas sim como processo e movimento. Ela é a interpretação que um grupo
determinado faz de sua identidade, incluindo, hierarquizando e excluindo
múltiplos componentes de um largo e complexo período histórico. No perfil dessa
construção pesa fortemente o tipo de liderança política que é exercida sobre
esse determinado grupo. Civilização não representa o peso do passado que limita
o desenvolvimento de determinados povos. Mas, sobretudo, um processo de criação
que interpreta o passado e o modifica, criando uma nova história, ao
articulá-lo de uma forma original ao presente.
137 A vitória da candidatura Obama sobre os
republicanos é uma expressão da vitória simbólica dessa perspectiva
transnacional, independentemente do que esse governo represente efetivamente em
conquista para os movimentos sociais.
138 Em resposta ao neoliberalismo projeta-se um
socialismo que, como menciona Octávio Ianni, “se enraíza nas diversidades e
desigualdades sociais, não só locais, nacionais e regionais, mas principalmente
mundiais, enraizando-se também na avaliação crítica das experiências
socialistas já realizadas em diferentes nações, ou em curso na China e em Cuba,
enraizando-se inclusive nas contribuições filosóficas, científicas e artísticas
que se multiplicam no Ocidente e no Oriente, na África e na América Latina, no
Caribe e na Oceania, na América do Norte e nas diversas Europas”. Octávio
Ianni, Capitalismo, violência e
terrorismo (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2004), p. 35.
“Postulamos que os Estados
Unidos, desde 1967-1973, ingressaram em um período de deterioração de sua
hegemonia. Eles ainda conservam sua hegemonia financeira, ideológica e militar,
mas ela está sendo crescentemente vulnerabilizada pelas pressões que os déficits
em conta corrente e públicos vêm exercendo sobre o dólar, pela crise de
legitimidade do neoliberalismo, pelo desgaste do imperialismo estadunidense,
relançado em 11 de setembro de 2001139 e as reações
político-militares a ele, que ameaçam impulsionar para dimensões imprevistas os
custos de proteção do sistema-mundo.”
139 Diferenciamos os conceitos de hegemonia e
imperialismo. Pelo primeiro nos referimos à dominação econômica mundial dos
centros capitalistas exercida pelo consentimento e persuasão ideológica,
cabendo à coerção militar um papel de dissuasão ou de atuação em última
instância. No imperialismo, inversamente, esta dominação se realiza pelo
controle político direto, violando a autodeterminação e a soberania dos povos e
Estados. Apesar de suas diferenças, hegemonia e imperialismo não representam
necessariamente realidades historicamente antagônicas, tendo mais se
complementado na história do capitalismo ao cumprirem funções distintas na
organização dessa economia mundial.
“Theotonio dos Santos sintetiza o
conteúdo das relações de dependência ao assinalar: “A dependência, como se vê,
não é uma relação de uma economia segundo a situação condicionante que dá o
marco ao seu desenvolvimento ou segundo as respostas que elas podem oferecer aos
estímulos produzidos pela sociedade dominante. A resposta final não está,
entretanto, determinada por essa situação condicionante, mas pelas forças
internas que compõem a sociedade dependente. É o caráter dessas forças internas
que explica sua situação submissa, assim como sua capacidade de enfrentamento
com os impulsos externos que a condicionam”. Theotonio dos Santos, Imperialismo y dependência, cit., p.
313-4.
Para o autor, a dependência se
estabelece a partir do conceito de compromisso que integra os três níveis de
análise que a constituem: as estruturas internacionais do capital, as relações
econômicas internacionais e as estruturas internas dos países-objeto da
expansão do capital internacional. O compromisso ou combinação de interesses
vincula-se necessariamente a uma composição de forças sociopolíticas nos países
dependentes que aceitem a integração internacional dentro das possibilidades
oferecidas pela situação condicionante: “Um terceiro aspecto essencial para a
compreensão da dependência é o que se refere à articulação entre os interesses
dominantes nos centros hegemônicos e os interesses dominantes nas sociedades
dependentes. A dominação ‘externa’ é por princípio impraticável. A dominação
somente é possível quando encontra respaldo nos setores nacionais que se
beneficiam dela [...] Ao mostrar a correspondência entre os interesses da
dominação e os interesses dos dominadores dominados (daí o caráter específico
das classes dominantes dos países dependentes), mostramos que, apesar de
existirem conflitos internos entre esses interesses dominantes, são conflitos
fundamentalmente comuns. O conceito de compromisso ou de combinação dos
distintos interesses que compõem a situação de dependência é um elemento
essencial para elaboração de uma teoria da dependência.” Theotonio dos Santos, Socialismo o fascismo: el nuevo carácter de
la dependencia y el dilema latinoamericano (México D.F., Edicol, 1978), p.
309.”
“Wallerstein afirma que a crise
do moderno sistema mundial é a crise do sistema interestatal. Ela se estabelece
desde 1968 e se manifesta nas crises do Estado de bem-estar social,
desenvolvimentista e socialista. Essas formas, segundo o autor, são expressões
distintas do reformismo liberal que utiliza o Estado e a nação como os
instrumentos institucionais e ideológicos de sua dominação das massas
populares. O Estado de bem-estar social desloca para si as pressões sociais
para melhoria da qualidade de vida e passa a gerenciá-las segundo um ritmo
compatível com a acumulação capitalista. As reivindicações são atendidas desde
uma burocracia que coloca as massas em estado de passividade e espera. Essa
espera é alimentada por uma melhoria lenta, ordenada, mas contínua das
condições de vida. O Estado desenvolvimentista também impulsiona o ideal de
reformas, mas o faz de forma distinta. Aqui as melhorias sociais e o próprio
bem-estar organizado desde o Estado são condicionados ao desenvolvimento a ser
alcançado por sua liderança na organização das políticas públicas. A espera
pelas reformas sociais é mais longa, pois é necessário alcançar esse
condicionante, o desenvolvimento, para viabilizá-las. Mas o desenvolvimento é
visto como um processo contínuo e gradual, e, se inicialmente os benefícios
distribuídos às massas seriam mais escassos, depois se intensificariam em razão
da aceleração do próprio desenvolvimento.
O Estado socialista não se
excluiu da hegemonia liberal. Aceitou suas principais teses, que podem ser
resumidas pelo fato de que a nação é o âmbito fundamental de organização da
vida social e a revolução não pode ser uma ação internacional, mas deve se
submeter aos limites da soberania nacional. A Guerra Fria organizou-se a partir
da comunhão dessas premissas entre socialistas e liberais, restringindo a ação
de cada uma dessas ideologias às suas zonas de influência. Mas o socialismo que
daí emergia era maculado pelo liberalismo. Não pretendia destruir e superar o
Estado e o sistema interestatal que garantiam a dominação capitalista e
liberal.
Segundo Wallerstein (1995, 1999b,
2000a), o nacionalismo era um antídoto contra o socialismo e permitirá aos
liberais, por mais de um século, vencerem seu desafio. O grande medo dos
liberais do século XIX, que os aproximava de conservadores como Montesquieu e
Tocqueville, era que a liberdade, ao ser estendida aos não proprietários sob a
forma de sufrágio universal, conduzisse à ditadura da maioria. Por isso
relutavam enormemente em realizar esse movimento. O liberalismo era uma
ideologia centrada no indivíduo e pretendia defendê-lo contra a tirania do
Estado, organizando um sistema representativo que garantisse os direitos
individuais de propriedade, pensamento e expressão. Era vulnerável, portanto, a
uma ideologia, como o socialismo, que associava a liberdade à defesa dos
interesses das grandes massas populares.
Pressionados pelos socialistas
para a universalização de direitos civis e políticos, os liberais usam a
repressão enquanto buscam uma forma de resolver o impasse. E a encontram no
nacionalismo, que surge como uma ideologia de toda a nação, centrada no Estado
e em sua capacidade de oferecer melhorias sociais. Esse nacionalismo vai se
articular fortemente, entretanto, com o imperialismo, o chauvinismo e a
hostilidade ao estrangeiro. A apropriação internacional de excedentes será
fundamental para impulsionar a sua capacidade de elevar os padrões de vida das
massas e atender às pressões de participação política.
Este foi um longo processo
social, como assinala o autor, e a sua difusão circunscreveu o socialismo ao
âmbito nacional e o transformou numa ideologia divisionista, já que se dirigia
a uma parte da nação e não ao seu conjunto. O resultado foi sua derrota
política global, embora tenha conquistado vitórias locais onde falhava a
capacidade do Estado em convencer as massas de que sua vida iria melhorar no
médio e longo prazo. O elo mais fraco do liberalismo foi o Estado
desenvolvimentista.
Wallerstein (1996c) se refere às
teorias da dependência como um enfoque politicamente radical que denuncia as
insuficiências do desenvolvimentismo e suas promessas de reformas sociais. Mas
ele assinala que seu programa de transformações econômicas era decepcionante e
não estava à altura de sua radicalidade política, pois se apoiava no Estado
nacional:
Os dependentistas foram muito
radicais politicamente. Quando se olha, entretanto, para o programa econômico
recomendado pelos dependentistas, fica-se desapontado. É simplesmente uma
proposta a mais para a ação estatal, com talvez maior ênfase no delinking que em ouras variantes.
(Wallerstein, 1996c, p. 356.)
Para o autor, a entrada da
economia-mundo numa crise longa e que se associa ao esgotamento de suas
tendências seculares coloca o liberalismo definitivamente em ocaso como
ideologia e, com ele, o Estado-nação. As lutas pela emancipação humana rompem
as cadeias do Estado nacional e se tornam mundiais. A primeira expressão desse
processo é 1968. Cria-se um movimento mundial que resgata as bandeiras da
Revolução Francesa de liberdade, igualdade e fraternidade e as lança contra o
imperialismo, a tecnocracia, a desigualdade e a intolerância. A recomposição
conservadora que se estabelece não nega as postulações de Wallerstein. Pelo
contrário. O liberalismo é uma ideologia centrista e de negociação, e seu
deslocamento em favor do fundamentalismo neoliberal demonstra a crescente
dificuldade do sistema em negociar. O período de 1989 a 1991 expressa a queda
do Muro de Berlim e o fim da União Soviética e impulsiona o esgotamento do
liberalismo ao eliminar as perspectivas do socialismo num só país ou região. O
conservadorismo, inicialmente, sob a forma de neoliberalismo, e o socialismo,
sob a forma de movimentos sociais e políticos mundialmente articulados, se
batem para ocupar o lugar que vai sendo deixado pelo liberalismo. As lutas
mundiais assumem crescente protagonismo nas lutas sociais e se tornam cada vez
mais condição para a conquista de vitórias nacionais e regionais.”
“De acordo com Theotonio dos
Santos (1978 e 1991), a dependência representa uma situação onde a estrutura
socioeconômica e o crescimento econômico de uma região são determinados, em sua
maior parte, pelo desenvolvimento das relações comerciais, financeiras e tecnológicas
de outras regiões238. A dependência é gerada e reproduzida a partir
da internacionalização capitalista e de sua tendência a concentrar e
centralizar os excedentes que resultam da acumulação mundial nos centros
dinâmicos do sistema mundial.”
238 “A relação de interdependência entre duas ou
mais economias, e entre estas e o comércio mundial, assume a forma de
dependência quando alguns países (os dominantes) podem expandir-se e
autoimpulsionar-se, enquanto que outros (dependentes) somente podem fazê-lo
como reflexo dessa expansão, que pode atuar positiva e/ou negativamente sobre
seu desenvolvimento imediato.” Imperialismo
y dependência, cit., p. 305.
“A afirmação do neoliberalismo na
América Latina possui dois grandes determinantes: a derrota da ofensiva dos
movimentos populares que se desenvolve nos anos 1960 e 1970, com a imposição de
regimes ditatoriais fascistizantes e processos de redemocratização articulados
à hegemonia estadunidense na região; e a revisão das políticas públicas dos
Estados Unidos para a região a partir da crise de sua hegemonia.
Vimos que os Estados Unidos
exerceram entre os anos 1930 e 1960 uma liderança virtuosa na economia mundial.
Esta cresceu a taxas extremamente altas, impulsionada pela descentralização
proporcionada pelos superávits de sua conta corrente e pela exportação de
capital de suas multinacionais. Nesse período, os Estados Unidos criaram e
reinventaram um conjunto de instituições internacionais que representaram
conquistas progressivas para a humanidade. Mas, a partir dos anos 1970, os
Estados Unidos deixam de ter esse papel impulsionador da economia mundial e se
tornaram um travão ao seu desenvolvimento, como mostramos no capítulo 4. As
instituições que criaram nos anos 1940 passam a sofrer forte crise de
legitimidade internacional. Ela se manifesta na crise do sistema de Bretton
Woods, expressa na quebra do padrão monetário mundial pautado na paridade
ouro-dólar; na crise de legitimidade das bases institucionais da ONU, que passa
a ser vista, com o seu atual formato decisório, como um instrumento das grandes
potências ao invés de uma garantia da autodeterminação; e na crise dos padrões
de desenvolvimento mundiais.
Vimos que a crise de hegemonia se
inicia pela economia. Os Estados Unidos, em vez de oferecer liquidez à economia
mundial, passam a ser captadores da poupança internacional em razão de seus
crescentes déficits em conta corrente. Essa tendência se inicia em 1971-1972, é
provisoriamente controlada até 1976, mas, desde então, se impõe
sistematicamente. Ela afeta profundamente os padrões de desenvolvimento na
periferia, em particular na América Latina. Esta havia contraído déficits
comerciais expressivos durante os anos 1970, confiando na disponibilidade de
capitais internacionais para financiar os resultados negativos em conta
corrente que se avolumavam.
Mas os Estados Unidos reagem à
perda de sua competitividade internacional. Elevam o valor do dólar e utilizam o
seu poder regional para postergar sua decadência. O neoliberalismo se torna um
instrumento ideológico de sua ofensiva estatal sobre a região. Através dessa
ofensiva, os Estados Unidos buscavam: reduzir seus déficits comerciais com o
mundo por meio da conquista de saldos comerciais com a América Latina; criar as
condições para que seus investidores venham a auferir rendas e incorporar
ativos através da especulação e da barganha; e baixar ao mínimo as restrições à
circulação de mercadorias e capitais, viabilizando uma reorganização da divisão
do trabalho regional que reduza os custos de produção e aumente a
competitividade de suas empresas.
Entretanto, essa ofensiva só vai
se generalizar na América Latina e desmontar amplamente a estrutura
protecionista criada pelas políticas de substituição de importações nos anos
1990, em razão das fortes dificuldades que se apresentam para o seu
estabelecimento. A drenagem de recursos que se impõe à América Latina nos anos
1980 exigiu a obtenção de fortes saldos comerciais para financiá-los, o que
vinculou os experimentos neoliberais a regimes autoritários. Estes
impulsionavam amplamente a superexploração do trabalho, compensando os efeitos
negativos da abertura comercial para a obtenção dos saldos necessários ao
financiamento dos déficits em conta corrente, que cresciam junto com o
endividamento externo. O Chile é a expressão mais consolidada desse
neoliberalismo e impôs através do fascismo um brutal processo de
superexploração da força de trabalho. Mas o caso chileno é relativamente
isolado e as ditaduras argentina e uruguaia não resistem à recessão dos anos
1980. (...)
Os Estados Unidos assistem a esse
processo, durante grande parte da década de 1980, sem muita condição de o
reverter. Eles retomarão a iniciativa a partir de mudanças em suas políticas
públicas. A tentativa durante o governo Reagan de os Estados Unidos manejarem
seus déficits em conta corrente através da diplomacia do dólar forte e de uma
guinada de sua política econômica rumo ao neoliberalismo, acarreta a brutal
expansão da dívida pública e dos déficits da balança comercial, assinalando os
limites desse enfoque. Aprofunda-se a compreensão do caráter explosivo da
dívida pública e dos déficits em conta corrente para o equilíbrio econômico
estadunidense. Tomam-se iniciativas, ainda, no governo Bush, para desvalorizar
o dólar, reduzir as taxas de juros e aprofundar a extensão do neoliberalismo ao
conjunto da América Latina e Caribe. A queda das taxas de juros, a crise
econômica de 1990-1991 e a necessidade de dirigir a poupança para o
investimento produtivo reduzem provisoriamente os déficits em conta corrente,
que caem de aproximadamente US$ 160 bilhões em 1987 para US$ 48 bilhões em
1992. Os capitais tornam-se disponíveis e passa a ser necessário internacionalizá-los
para reorganizar a inserção competitiva do país na economia mundial.
Renegocia-se a dívida externa latino-americana, impulsiona-se a liberalização
comercial e tarifária da região, estimula-se a valorização do câmbio e seu
ancoramento ao dólar para os preços internacionais nivelarem os preços internos
da região. Surge a Iniciativa para as Américas e negocia-se o Nafta. O governo
Clinton leva mais adiante a queda das taxas de juros, a desvalorização do dólar
e mantém o aprofundamento da integração regional sob um enfoque
predominantemente neoliberal.
Estavam criadas as condições para
a região substituir os superávits comerciais dos anos 1980, absorvidos no
pagamento dos juros da dívida externa, por déficits comerciais cada vez mais
expressivos nos anos 1990. Constitui-se uma ampla ofensiva neoliberal na
América Latina, que tem como principal referência ideológica a formulação do
que se chamou Consenso de Washington.
Este surge, durante o governo
Reagan, de uma convergência de posições entre a alta burocracia das agências
econômicas do governo dos Estados Unidos, do Federal Reserve Board, das
agências financeiras internacionais situadas em Washington e consultores
econômicos e membros do Congresso norte-americano. Entretanto, suas propostas
só se tornam exequíveis para a América Latina em fins dos anos 1980. Segundo
Williamson (1990), o Consenso de Washington formula um programa de
desenvolvimento para a região baseado numa ampla revisão de suas políticas
públicas centradas na implementação de dez pontos. Esses pontos são: disciplina
fiscal; priorização do gasto em saúde e educação; realização de uma reforma
tributária; estabelecimento de taxas de juros positivas; apreciação e fixação
do câmbio para torná-lo competitivo; desmonte das barreiras tarifárias e paratarifárias
para estabelecer políticas comerciais liberais; abertura à inversão
estrangeira; privatização das empresas públicas; ampla desregulamentação da
economia; e proteção à propriedade privada.
Esse programa alcançou ampla
aplicação, ainda que tenha assumido especificidades locais, como taxas de juros
estratosféricas no Brasil e o câmbio demasiadamente apreciado para ser
competitivo na grande maioria dos países latino-americanos. Mas elas foram
amplamente apoiadas pelos atores que embasaram o Consenso de Washington e, em
verdade, não estavam fora dele. O resultado desse processo foi impressionante e
revela a profundidade do fenômeno da dependência que envolve as classes
dominantes da região. As reduções tarifárias que se faziam lentamente entre os
países latino-americanos, em movimentos de stop
and go, desde 1960, através da Alalc e da Aladi, realizaram-se de forma
concentrada e profunda. A integração latino-americana se ajustou e se
subordinou ao novo projeto hegemônico.
O Consenso de Washington prometia
a retomada do desenvolvimento, a elevação da competitividade e a redução da
pobreza das economias latino-americanas. As taxas de crescimento econômico
voltariam a se elevar, os ingressos de capital estrangeiro se restabeleceriam,
o aumento da competição impulsionaria a produtividade das economias nacionais,
que se especializariam em suas vantagens comparativas descartando os setores de
maiores custos de produção relativos. No entanto, os resultados alcançados
foram profundamente medíocres. O crescimento do PIB per capita não se
sustenta e leva à crise e estagnação entre 1998 e 2003. As ilusões de consumo e
de aumento do poder de compra dos trabalhadores, estabelecidas pela
sobrevalorização das moedas, são revertidas e levam à deterioração dos níveis
salariais que se combina com o aumento do desemprego e da pobreza. Ao mesmo
tempo se elevam o endividamento externo, a desnacionalização e a destruição dos
segmentos de maior valor agregado da região, impulsionando a deterioração dos
termos de troca.
A partir de fins dos anos 1990, a
hegemonia estadunidense volta a se encontrar numa profunda crise de
legitimidade envolvendo as burguesias locais que a ela se articulam. Essa crise
atinge profundamente a dependência, pois esta encontra sua configuração
histórica numa situação de compromisso que articula internamente o capital
estrangeiro e o capital nacional. Esse capital já é, desde seu nascedouro,
dependente e dirige o Estado como instrumento de negociação e conciliação
interesses. Mas a afirmação do neoliberalismo na América Latina torna
profundamente obsoletas as bases desse compromisso. Destrói amplamente as
estruturas produtivas das burguesias nacionais, desnacionalizando-as, e
restringe a iniciativa do Estado nacional, limitando sua capacidade de direção
ao submetê-lo às regras “cosmopolitas” da circulação internacional de capitais
e mercadorias. Em consequência, a situação de compromisso que estabeleceu a
dependência como uma necessidade histórica entra em crise profunda. As
burguesias nacionais perdem drasticamente sua autonomia e a capacidade de
liderarem o desenvolvimento das forças produtivas. Foi a capacidade de
impulsionar as forças produtivas, mesmo com a superexploração do trabalho, que
deu respaldo ao controle do Estado pelas distintas frações da burguesia
nacional. Essa desvinculação se manifesta na crise política desses grupos,
impulsionando a conjuntura política latino-americana para a esquerda em
particular no período cíclico de egressos de capital estrangeiro que se inicia
em 1999 e se estende até 2006. A reconstituição da legitimidade do poder
burguês se faz desde a centro-esquerda em países que aplicaram políticas de
terceira via (caso, particularmente, de Brasil, Uruguai e Chile) ou um
nacionalismo mais moderado, centrado nas burocracias partidárias e estatais
(Argentina). Para isso, desempenha um papel importante o redirecionamento do
comércio exterior latino-americano em direção à China, na primeira década de
2000. Isso elevou provisoriamente os termos da troca em benefício da América
Latina, contribuindo para o estabelecimento de uma conjuntura favorável, de
expansão econômica, que restabeleceu a fase A do Kondratiev para o conjunto da
região.”
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