Editora: Graphia
ISBN: 978-85-8527-714-7
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 132
Sinopse: Em
estilo claro, em que traduz o ‘economês’ para a linguagem comum e a mesma
argumentação consistente de “Formação Histórica do Brasil”, “Síntese de
História da Cultura Brasileira”, “História da Imprensa no Brasil” e “História
da Literatura Brasileira”, entre outras obras fundamentais para a compreensão
do passado e dos problemas atuais do país, Nelson Werneck Sodré analisa e
denuncia um dos grandes embustes ideológicos deste final de milênio.
Apropriando-se de conceitos sedutores – ‘modernidade’, ‘globalização’ –
disfarçam-se as mais antigas formas de espoliação de um pequeno grupo de nações
sobre as demais, ampliando, em escala sem precedentes, a miséria e a violência
no mundo.
“Há dois aspectos do nosso desenvolvimento,
ao longo dos decênios e desde pelo menos o início do século XX, que sempre têm
sido omitidos e propositadamente esquecidos: o primeiro deles é o processo
como, ao longo do tempo e em fases históricas diversas, realizou-se a
transferência dos efeitos das crises cíclicas do capitalismo às áreas menos
desenvolvidas, ao Brasil em particular; o segundo é o processo como foi transferida
a renda oriunda do nosso trabalho ao exterior, seu dimensionamento. Certos
conceitos, como o de subdesenvolvimento (tendo em contrapartida o de
desenvolvimento), como o de atraso, como o de dependência, na verdade, mais
escondem do que revelam a verdade da exploração colonialista a que se segue a
exploração imperialista. Um arsenal imenso de conceitos e de disfarces vem
servindo para esconder a verdade histórica. Do ponto de vista dos julgamentos
de pessoas, como no nível dos processos, o real se apresenta desfigurado por
simulações que vivem da mera repetição. No conjunto, esse arsenal conceitual
configura, essencialmente, uma ideologia. Os seus formuladores originais
empreendem, sempre, a gigantesca tarefa, em que têm obtido sucesso, de
confundir as coisas e de, em última análise, fazer com que as vítimas se
conformem. Isto significa, realmente, a necessidade dos exploradores
convencerem os explorados de que a exploração de que estes são vítimas é
legítima, fatal, natural. As técnicas de transmissão do pensamento,
extraordinariamente ampliadas nos últimos lustros, têm servido para essa
tarefa. A seu serviço, a serviço de exploradores, técnicas complexas de
convencimento são utilizadas, quase sempre com sucesso. O último produto
ideológico intensamente trabalhado e propagado, o último entorpecente das
mentes, vem sendo o conceito de globalização, com tudo o que ele encerra e mais
tudo o que pretende alcançar. É o produto de uma época histórica de transição,
quando uma época entra em crise e os modelos, padrões e significações sofrem
distorção inevitável. É preciso, para assegurar a continuidade da exploração,
convencer que determinadas nações têm direito a comandar o desenvolvimento,
enquanto outras devem submeter-se a esse desenvolvimento, como tudo o que
convém às primeiras, tidas como desenvolvidas, avançadas etc. O produto novo no
arsenal conceitual da época de transição é o de globalização. Estamos num mundo
só e, em consequência, os que já estão desenvolvidos, os que já são ricos,
devem continuar assim, e os demais devem conformar-se em continuar pobres, ou
menos desenvolvidos. A globalização é o fim da História. A sua consagração.”
“Para o neoliberalismo, o grande inimigo do
progresso, ou do desenvolvimento, era o Estado. O Estado era por definição mau
gestor, não deveria operar na área em que as empresas privadas operavam, não
deveria, de forma alguma, ocupar-se de tarefas que deveriam ser próprias da
área privada. Assim, tratava-se, antes de mais nada, de enxugar o Estado, de
despojá-lo de empresas que criara em muitos casos por força da incapacidade
financeira ou pelo puro desinteresse da área privada. Os serviços públicos que
eram, ao tempo da economia colonial, e ao largo da economia dependente, geridos
por empresas estrangeiras, as ferrovias que os ingleses construíram, com
contratos privilegiados com um século de duração e garantia de juros, toda
estrutura econômica que o desenvolvimento material e o processo de urbanização
exigiram, e que haviam passado à gestão do Estado, deveriam ser postos em hasta
pública e privatizados.
Privatizar, eis a solução para o
neoliberalismo. As empresas estatais, surgidas a partir da ruína da estrutura
de serviços gerados pelos investimentos estrangeiros, que largamente e
secularmente as exploraram, deveriam passar à área privada. E havia,
finalmente, que romper o movimento pendular que nos forçara, por exemplo, a
aturar e engordar a Light & Power
por tantos anos, para depois comprá-la, quando se aproximavam do fim os seus
contratos de exploração. Deveríamos voltar a entregá-lo a uma multinacional, e
que, agora, aproveitaria dos grandes investimentos que o Estado realizara para
transformá-la em entidade apta a prestar serviços. Nesse vai-e-vem de compra e
venda, como é fácil deduzir, quem paga é o povo, que, entre outras mazelas,
comprou caro e pretende vender barato, nesse tipo de negócio em que o
imperialismo se especializou e que o tornou no que é. Lutamos arduamente para
convencer os meios políticos de que o Brasil tinha petróleo, porque a ciência
estrangeira afirmava positivamente que não tínhamos. Adiante, assumimos os
riscos de procurar petróleo quando a “ciência” estrangeira e os chicago-boys da época afirmavam de pés
juntos que não dispúnhamos de capitais e só eles, que dispunham de capitais,
poderiam enfrentar a tarefa gigantesca dessa prospecção difícil. Acabamos
encontrando petróleo e o Estado, uma vez que a iniciativa privada não tinha
envergadura para isto, assumiu o risco do investimento. Passaram a afirmar que
não dispúnhamos de técnica para a prospecção e eles, que dispunham da técnica,
deveriam ser encarregados disso. Criamos ou aprendemos a técnica petrolífera e
somos hoje mestres nela. Pois bem, o neoliberalismo quer que entreguemos a
empresa petrolífera aqui montada pelo Estado à iniciativa privada, isto é, às
multinacionais do ramo. Mas entregar a empresa já pronta, em funcionamento, uma
empresa vitoriosa e próspera. Em que, aliás, o Estado não coloca um real, para
empregar uma moeda envilecida.
Trata-se, no fim das contas, de passar recibo
de nossa pretensa incapacidade, desta incapacidade que os chicago-boys afirmam, com ênfase singular, que é um traço nacional.
A ideologia do colonialismo, antes, em velhos tempos, pretendia nos convencer,
e convenceu a muitos, principalmente governantes, recrutados numa classe
dominante retrógrada e inepta, de que estávamos condenados ao atraso, porque
grande parte de nossa força de trabalho era negra e o negro é racialmente
inferior; a nos convencer de que jamais poderíamos atingir alto nível de
civilização porque vivíamos nos trópicos e a civilização é privativa, segundo
eles, dos climas frios. Era moda, ao tempo da vigência triunfal da ideologia do
colonialismo, que os nossos credores, aqueles que auferiram lucros prodigiosos
com o nosso endividamento, enviassem para cá, para ensinar a esses sauvages de la bas, como diziam os
colonialistas franceses, elementos de economia, esclarecendo sempre que não
poderíamos gerir senão segundo os princípios que eles adotavam. O último desses
financistas, não muito antes do movimento de 1930, deixou um relatório, em que
propunha as normas que deveriam presidir a reforma da nossa economia, um
relatório que Normano, um dos poucos economistas que entenderam a
especificidade do nosso desenvolvimento material, bem qualificou e com rigor
como modelo de alienação. Aquele precursor dos chicago-boys era cego para a realidade, mas com uma diferença: ele
era inglês e nada tinha conosco, a não ser o fato de estar aqui para servir aos
nossos credores externos, então predominantemente ingleses; e os nossos
grotescos chicago-boys nasceram no
Brasil. Não cometerei a injúria de dizer que são brasileiros.”
“A concentração da renda é um fenômeno
mundial e assinala apenas a crise do capitalismo que, por isso mesmo, procura
reordenar o mundo de acordo com os interesses dos que detêm a maior parcela do
capital. É o mundo a que estamos assistindo, com as populações famintas
caminhando desesperadamente em busca do trabalho, com ondas de migração caminhando
desesperadamente em busca do trabalho, com ondas de migração inéditas na
história, gerando conflitos por toda a parte. O chamado primeiro mundo não
apresenta cenário invejável pelo contrário, nele, o que se vê é um quadro de
pobreza e de degradação, inclusive de costumes, flagrante no desespero dos
jovens, que sentem a degradação desse mundo e a ausência de perspectivas para
eles mesmos, que mal conseguem ingressar no mercado de trabalho. Por toda a
parte, o mundo assiste, em meio à incerteza e à perplexidade, o renascimento da
violência, ainda a violência política, geradora das novas ondas de fascismo e
de nazismo e de propostas de solução dos problemas da sociedade pela exclusão e
pelo uso da força. Estamos longe do paraíso. O neoliberalismo tem sido a
fórmula mágica com que um mundo, o primeiro, afundado em crise, tenta
transferir ao terceiro, a nós que nele vivemos, os seus problemas.”
“Bem sabemos que, por força de sua formação
colonial e de uma estrutura de produção que passou apenas da fase colonial para
a fase de dependência, apresentamos uma sociedade historicamente fundada na
exclusão, sem o mínimo do que se conhece como justiça social, tudo coroado pela
secular tendência à concentração de renda, levada, no Brasil, ao auge. Ora, as
privatizações, que o neoliberalismo em curso no nosso país apresenta como
solução, aprofundam esse processo porque gravitam para instituições financeiras
e grupos privados já amplamente beneficiados. Por outro lado, o modelo adotado
aqui acompanha o modelo externo e serve ao capital estrangeiro já existente e
ao capital que se espera vir, atraído por uma política de destruição e
sucateamento do patrimônio público. Se não bastasse isto, a onda de importações
de bens duráveis de luxo não apenas denuncia a profunda e esterilizante
desigualdade que reina entre nós e se mostra como extravagante acinte à nossa
miséria, mas agrava a paisagem de crise. A crise do primeiro mundo, no qual o
desemprego é índice alarmante, é transferida ao terceiro mundo e a países como
o Brasil, em particular. Desemprego em massa e crescente, criminalidade gerando
um quadro de incerteza na sociedade, prostituição em aumento acelerado,
enfermidades antigas, algumas já em processo de desaparecimento, e outras,
novas, acompanhadas da derrocada da estrutura de saúde, do desmantelamento da
rede hospitalar, são mazelas que o neoliberalismo gera ou fomenta, com uma
insensibilidade que não toca nem de longe e nem constitui preocupação dos
responsáveis por tais receitas importadas, que correspondem ao que funcionou,
em priscas eras, como a ideologia do colonialismo. Agora transformada, com alta
tecnologia, na ideologia da exploração “moderna”.
É interessante insistir em coisas elementares
como, por exemplo, que uma economia eficiente não depende apenas de tecnologia
e de investimentos: ela deve ser fruto de uma sociedade justa. O que a fúria
neoliberal que se apoderou do poder, em nosso país, agora, esquece, e não por
falta de inteligência, é outro dado fundamental, lembrado, há pouco, por
eminente estudioso dos problemas sociais e políticos: uma estrutura política
geradora de pauperismo, como a referida, não tem condições, pela sua própria
natureza, de curar ou reduzir os males do pauperismo. O desemprego, que
acompanha, indivisivelmente, as medidas defendidas e praticadas pelos adeptos
do neoliberalismo, que resulta de cada uma das mudanças operadas,
particularmente das privatizações, faz crescer desmedidamente, de forma
absolutamente antissocial, o exército de reserva que é acólito do avanço
capitalista e que, para ele, funciona como espécie de seguro de força de
trabalho, sempre disponível para as rápidas fases de euforia e disponível, de
forma terrível, para as fases de crise e de penúria, que pontilham o
desenvolvimento capitalista e que, com o neoliberalismo, são levadas às últimas
consequências.
A sociedade brasileira conserva desigualdades
históricas, como já foi referido. As mudanças apresentadas pelo neoliberalismo,
entretanto, e apresentadas como sendo progressistas, propiciadoras do
desenvolvimento, contribuem, na verdade, para reforçar a paisagem histórica das
desigualdades, o quadro de uma sociedade injusta. Elas não visam de forma
alguma alterar as estruturas arcaicas que herdamos. Pelo contrário, com
alterações formais, contribuem de maneira acentuada para reforçar a referida
estrutura.”
“A busca de capitais estrangeiros, levada ao
extremo, como se neles estivesse a nossa salvação, tem apresentado apenas a
paisagem tormentosa de entrada de capitais flutuantes especulativos, que
constituem, em bilhões de moeda forte, uma das mais virulentas e sintomáticas
demonstrações de um mundo em crise. Esses capitais migrantes, que ora se voltam
para um país, ora se voltam para outro, de preferência para aqueles, como o
Brasil, onde uma política econômica fundada no neoliberalismo denuncia o grau
de decomposição do país, representam mais ameaça do que realização e nada
deixam de positivo em sua passagem meteórica, que as bolsas comemoram como
fatos importantes, esquecidas de que a economia nacional nada lhes deve e que
os prejuízos que causam não justificam a euforia ingênua de incautos, de olhos
postos em índices falsos, enganados pelas aparências e esquecidos do essencial.
Não basta crescer em índices de importância meramente quantitativa. E nem se
trata, por outro lado, do sempre mencionado, no discurso dos partidários do
neoliberalismo “desenvolvimento sustentado”. Sustentado por quem, de que forma?
O neoliberalismo, aliás, embriaga-se com palavras e expressões que não têm nada
de comum com a realidade e constituem apenas formas de propaganda que só
convence ingênuos.”
“A pretensa globalização escamoteia que é o
processo de assegurar as vantagens de que os países mais desenvolvidos já
usufruem, em detrimento dos menos desenvolvidos. É a colonização em suas novas
formas e disfarces. Por outro lado, certas ficções, como a da existência de um
mercado livre, em que todos podem se apresentar em igualdade de condições,
dispensando a intervenção reguladora do Estado, ignoram deliberadamente o
desnível entre desenvolvidos e subdesenvolvidos. A pregação em torno desse
fictício mercado livre, que não existiu em tempo algum e que o mundo moderno,
nas condições que agora apresenta, não tem a mínima condição de fazer
funcionar, esconde o conteúdo do problema. As relações do Estado com a
sociedade e as relações do Estado com o indivíduo são propositadamente
esquecidas, dadas como inexistentes ou aceitas como constantes e imutáveis,
quando são, na realidade, relações complexas, historicamente condicionadas.
São, principal e essencialmente, relações de natureza política. O Estado não é
um ente abstrato, neutro, acima das classes e dos indivíduos. O Estado nasceu,
precisamente, do processo de desenvolvimento social quando apareceram as
classes. Não há Estado neutro. É uma entidade política, sujeita ao jogo
político, inclusive, para chegar aos detalhes, ao jogo eleitoral. Ora, é este
aspecto de entidade política, inerente ao Estado, que os tecnocratas do
neoliberalismo pretendem destruir, quando pregam a sua ausência, em benefício
de uma entidade fictícia, a do mercado livre. O Estado ideal, para o
neoliberalismo, é um Estado mínimo, sem nenhuma interferência na estrutura
econômica, na esfera da produção, e sem nenhuma função reguladora. Como
neoliberais, esses tecnocratas admitem e aceitam como dogma que a economia é
uma técnica e não uma política. Daí odiarem a presença de uma entidade
política, que poderia, pelas contingências políticas, romper a estabilidade de
uma forma estabelecida como se fosse eterna, a forma ideal de dominação, a
forma de dominação com que sonham os dominadores. Mas, ao contrário do que
prega essa propaganda danosa, as relações do Estado com a sociedade são
flexíveis justamente porque a sociedade é dividida em classes e estas classes
têm interesses contraditórios.
O neoliberalismo não passa de uma farsa, o
disfarce com que se apresenta uma forma de política que pretende, justamente, o
“fim da História”, isto é, os ricos ficarão mais ricos, os pobres ficarão mais
pobres, e tudo será como no país das maravilhas. A realidade não importa, as
características nacionais não importam, os interesses do povo não importam.
Ideias arroladas como obsoletas, não por serem antigas, mas por se oporem a
essa visão simplista e unilateral da realidade, – a ideia de nação, a ideia de
soberania, a ideia de pátria – são esquecidas ou negadas, como se não
existissem. Mas o fato é que elas existem, traduzem relações sociais e estão
longe de funcionarem como técnicas, quando o receituário dita as regras. Regras
e receituário que obedecem a interesses muito poderosos.
Porque as ideias não surgem do nada. Elas não
podem ser extraídas do ar, como o azoto. Elas traduzem relações sociais. No
conjunto, constituem as ideologias. Conhecemos, no Brasil, as diversas e
variáveis ideologias. A do colonialismo, nos tempos mais recuados, que
pretendeu nos convencer de que não poderíamos jamais atingir os níveis de
desenvolvimento material alcançados pelos países que hoje se intitulam do
primeiro mundo; depois a ideologia da dependência, que serviu ao modelo de
economia dependente, exposta, nesses tempos, com espalhafatosa desenvoltura por
seus porta-vozes mais perniciosos. A chamada globalização, dogma em que se
apoia o neoliberalismo desenfreado que ocupa o palco, entre nós, agora, é uma
ideologia de submissão, de desconhecimento do que existe em nós de nacional, de
brasileiro, de popular. É claro que se trata de mais uma aventura, de mais um
estratagema da dominação secular. E, também, uma ideologia peculiar a um mundo
que conhece e sofre a transição de uma época histórica para outra. O
neoliberalismo é um elemento de época histórica em agonia, o pressentimento de
final próximo, de extinção. Nós, no Brasil, não pretendemos, e o povo logo dirá
como, participar desse funeral.”
“Uma das questões fundamentais que se
colocam, atualmente, para a reestruturação da economia brasileira é a da dívida
externa. No complexo conjunto da crise brasileira, o seu interesse avulta e vem
provocando, de um lado, agudas polêmicas, nem sempre bem colocadas, e, de outro
lado, uma análise cuja tendenciosidade transparece à simples vista O fato é
que, a partir dos anos 70, o peso da dívida externa denunciou um nível
perigoso, uma grave ameaça no nosso desenvolvimento. Isso decorreu,
precisamente, da elevação das taxas de juros internacionais e do caráter
unilateral dessa elevação que, assim, escapava inteiramente ao nosso controle.
(...)
Seguindo excelente análise de Celso Furtado,
a nossa situação foi a de ‘“um país que houvesse perdido a guerra”. A elevação
das taxas de juros, desde o final dos anos 70, o corte abrupto dos créditos
externos, no início dos anos 80, “assemelharam-se a uma agressão externa”,
reafirmou aquele economista. Os ajustamentos internos decorrentes foram
drásticos e levaram à aceleração da taxa de inflação, ao crescimento do
desemprego e à concentração da renda. Isto é: os custos sociais foram imensos.
Mas a propaganda, insidiosamente, atribuía ao Estado a culpa dessas mazelas,
omitindo, rigorosamente, a responsabilidade do setor financeiro internacional
que, em aparente paradoxo, estava facilitando ao máximo o nosso endividamento
enquanto se locupletava ao máximo com as elevações da taxa de juros. Como
definiu Celso Furtado, foi, na realidade, “um processo de desmantelamento do
sistema econômico sob pretexto de aumentar o seu grau de integração na economia
internacional”. Objetivamente tratava-se da agudização de um processo secular
de transferência de renda, em benefício da economia norte-americana em
desequilíbrio, quando mais da metade da poupança internacional foi drenada para
os Estados unidos. No Brasil, entretanto, a propaganda dirigida
responsabilizava o Estado quando este absorveu imensa parcela da poupança
privada, assegurando a esta elevadas taxas de juros, na chamada “ciranda
financeira” desatinada, que aprofundou a concentração da renda e desviou para a
especulação tudo o que deveria ser destinado às atividades produtivas. Assim,
ao mesmo passo que se acelerava a transferência de renda para o exterior,
internamente entrava em vertiginoso processo a transferência de renda do
trabalho à propriedade, dos trabalhadores e classe média aos que especulam em
vez de produzir.
A abrupta elevação das taxas de juros,
decorrente da crise na economia norte-americana, acarretou a insolvência da
dívida da América Latina, dívida que já absorveu cerca de 80% do valor de sua
exportação. Na verdade, entre 1982 e 1991, os países latino-americanos
transferiram ao exterior cerca de 200 bilhões de dólares. Só para dar ideia da
grandeza de tal sangria, é interessante lembrar que correspondia ao dobro da
doação dos Estados Unidos à Europa Ocidental, pelo Plano Marshall. A América
Latim, na verdade, financiou essa doação, que obedecia ao propósito político de
dominação mundo, no esforço para deter a influência soviética, crescente após o
fim da Segunda Guerra Mundial.”
“Em novembro de 1989 reunia-se, em
Washington, convocada pelo Institute for
International Economics, um grupo de interessados no assunto: Latin American Adjustment: How Much
Happened? O citado Instituto já definira os seus propósitos no documento Towards Economic Growth in Latin America.
No mesmo de 1989, o Banco Mundial baixava as curiosas postulações colocadas no
estudo Trade Policy in Brazil: the Case
for Reform.
Uma delas prescrevia, sem meias medidas que
“a inserção internacional de nosso país fosse feita pela revalorização da
agricultura de exportação. Era, nada mais, nada menos que impor uma violenta
volta ao passado, ao famigerado refrão do “essencialmente agrícola”, tabuleta
que nos foi pregada pela república oligárquica e que, a partir de 1930, foi
naturalmente atirada ao lixo. Pois era esse o processo de regressão que os
nossos amigos do Banco Mundial, já em 1989, pretendiam nos impor. Mas isso não
era o pior. O pior é que a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a
FIESP, logo em 1990, como eco da voz do dono, divulgava uma publicação
intitulada Livre para Crescer. Proposta
para Brasil Moderno, em que aceita e perfilha o receituário do Banco
Mundial. Isto é, a Federação das Indústrias pregava a volta ao predomínio da
agricultura, o triste regresso ao “essencialmente agrícola”. Isso apenas
mostra, de forma contristadora e contundente, como a doutrina do neoliberalismo
estava sendo rapidamente absorvida por importantes áreas das nossas ditas elites
políticas, empresariais e intelectuais, a título de modernidade, e se
incorporava, como peça essencial ao discurso dessas elites e à sua ação. Isto
é, tomavam como de seu interesse, e até de sua criação original, de sua
iniciativa, justamente aquilo que feria frontalmente esses interesses, para não
mencionar, e isso seria sacrilégio, os interesses nacionais. Pois o nacional
passava a ser o inimigo, o atraso, o oposto à “modernidade”.”
“De que se trata a proposta neoliberal, em
suma? Trata-se, em primeiro lugar, de uma drástica redução do Estado como
instrumento de gestão política e econômica. (...)
Essa paranoia, fundada em sólidas razões
antinacionais, gerou o primado técnico de um tipo de economista, o chicago-boy, formado e marcado por
essencial alienação, por um tranquilo e soberano desprezo por tudo aquilo
ligado ao povo e pela realidade do nosso país, cujos gritantes problemas, em
agravamento progressivo, escapava inteiramente à cogitação desses exilados em
sua própria terra de nascimento. Crentes de uma nova religião – a religião
cartaginesa de que o lucro justifica tudo – o chicago-boy coloca a economia tão simplesmente como uma técnica que
deve obedecer friamente determinadas regras, tidas como universais e absolutas.
A história, particularmente a republicana, ensinou-nos que o prestígio de
brasileiros no exterior – e no Brasil – tem o traço desmoralizante da
alienação. Eles são tidos como bons fora porque são ruins dentro. O chicago-boy é exemplar neste sentido.
Com o primado do neoliberalismo, que ele conheceu nas fontes, passou a ser
personagem destacada e típica de uma época triste.”
“A aceitação do neoliberalismo importa,
realmente, na destruição da soberania brasileira. Desmantelando o Estado,
privando-o das empresas que lhe permitem preservar a estrutura econômica do
país, estabelecendo a franquia máxima do mercado interno, em decisão não
negociada, aos fornecimentos externos, estabelecendo a regressão a um padrão
econômico pré-industrial, como pregou o Consenso de Washington, deixaríamos de
existir como nação. E foi este o caminho aceito aqui pelos círculos políticos,
empresariais e intelectuais que esposaram as teses levantadas pelo
neoliberalismo. Mais do que isto: obedeceram efetivamente ao que dispunham
essas teses. As privatizações em curso vinculam-se diretamente à tarefa de
debilitamento do Estado. A contenção dos preços públicos e as tarifas dos
serviços estatais, além de constituírem ações demagógicas, visando popularizar o
fim escondido, são outra forma de enfraquecer o Estado. As ameaças e, agora, a
efetivação das franquias ao mercado interno – outra maneira demagógica de
popularizar o fim real – somam-se às privatizações em efeitos destruidores
sobre a economia nacional. Privatização e desnacionalização estão sendo,
naturalmente, sinônimos de desemprego e recessão.”
“A destruição do Estado no país, meta
inequívoca e proclamada do neoliberalismo, não só busca desconhecer o seu papel
e sua possibilidade de intervir no mercado, desde que dispondo de vontade
política e de instrumentos, que são as grandes empresas que detêm, omite o seu
importante papel de grande comprador, inclusive e principalmente através das
grandes empresas estatais, no mercado interno. É curioso observar como a
intervenção do Estado, nos países mais avançados no desenvolvimento
capitalista, é sonegada ao conhecimento dos brasileiros na monolítica,
altamente financiada e antinacional campanha da mídia brasileira – aceito aqui
o eufemismo. A simples estatística mostraria como as despesas do setor público,
neles, estão em crescimento. Nos Estados Unidos, passaram de menos de 10%, no
início do século, para 37%, em 1980. Nos últimos vinte anos, nos citados
países, eles se elevaram de 31 para 40%. Cresceram na Inglaterra da sra.
Thatcher, como nos Estados Unidos de mr. Reagan. Na Alemanha, é mantido o
monopólio estatal em setores tradicionais, como as ferrovias, mas também em
áreas de ponta, como as telecomunicações. Mas aqui, na área dominada, prega-se
o Estado mínimo, destinado apenas a reduzir despesas, aumentar impostos e gerir
um orçamento voltado, unilateralmente, ao financiamento de atividades como as
de saúde, segurança e educação, quando muito e de acordo com modelos pautados
por receituário importado. Receituário, aliás, único, como fórmula sem exceção,
aplicado a todos os países e desconhecendo as suas peculiaridades e
diversidades. A nossa política macroeconômica não pode ser ditada de fora. O
Brasil não é apenas imenso, mas diverso. Na continentalidade de suas dimensões
territoriais. Sua estrutura econômica, por isso mesmo e por motivos culturais,
é extremamente complexa. Não pode ser atendido por um receituário único,
uniforme e ditado por interesses externos. Esse receituário, ultimamente, sob
domínio do neoliberalismo, nos tem levado à carestia, pobreza, desemprego,
depressão, emissões e altas taxas de juros. Um receituário suicida, no fim de
contas.”
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