Editora: Cortez
ISBN: 978-85-2490-498-1
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 96
Sinopse: Ver Parte
I
“Se a minha argumentação é procedente, a
crise do socialismo real, vulnerabilizando
vitalmente uma vertente da tradição marxista, o marxismo-leninismo, não
comprometeu a obra teórica de Marx — ainda que tenha deflagrado um clima
político-ideológico pouco propício, a curto prazo, para a sua valorização
contemporânea (e não se pode deixar de consignar que, objetivamente, os crimes
e as mentiras cometidos e difundidas em nome do projeto social de Marx — mesmo
que este nada tenha a ver com eles — operam para dar densidade a este clima).
Entretanto, em termos substantivos, o futuro da herança teórica de Marx
depende, antes de mais nada, de ela revelar-se fecunda no desvelamento da
dinâmica contemporânea da ordem burguesa: depende, pois, da implementação que
dela fizeram os seus legatários. E isto porque é no marco da ordem burguesa que
se joga a alternativa com a qual se imbrica a obra marxiana: comunismo ou
barbárie.
A alternativa comunista
Não seria exagerado falar em barbárie, no momento mesmo em que a
massa crítica de que dispõe a humanidade lhe permitiria um controle da natureza
capaz de, sem destruí-la (antes, preservando-a), prover otimamente as
necessidades de reprodução da sociedade? Não seria uma retórica de mau-gosto
falar em barbárie, quando as
condições técnicas de socialização dos bens culturais possibilitariam aos
homens um desenvolvimento ideal sem precedentes? Não seria insensato falar em barbárie, quando a ordem burguesa aparece
plenamente constituída, com todas as suas potencialidades em processo de
explicitação?
É precisamente porque estamos confrontados
com a ordem burguesa plenamente constituída que a barbárie revela a sua face
contemporânea. A fome não é um fenômeno a afetar somente massas de milhões de
homens no “Terceiro Mundo”: “Nos Estados Unidos, fontes oficiais estimam que
cerca de 10 a 20 milhões de habitantes são cronicamente subalimentados. O
destino dos aposentados que vivem de pensões miseráveis causa pena em países
como Grã-Bretanha, França, Itália, Espanha. Na Andaluzia, não longe do paraíso
turístico da Costa del Sol, famílias de 300.000 trabalhadores agrícolas em
desemprego sazonal persistente devem se contentar durante uma boa parte do ano
com uma refeição ordinária composta de pão seco e tomates” (Mandel, A crise do capital, 1990: 116-117). E
esta fome, em todas as latitudes, é grandemente produzida “pela política deliberada de sustentação de preços através de uma redução artificial das áreas
plantadas e da produção, ou seja, através da lógica infernal da economia de
mercado” (idem, 115).
A ignorância e o analfabetismo são expressões
da miséria do “Terceiro Mundo”, mas a cretinização geral dos indivíduos envolve
o capitalismo desenvolvido: em maio de 1990, a revista Veja informava que, no
sistema universitário norte-americano, “um em cada quatro estudantes não sabe quando
Colombo chegou à América, é capaz de confundir um discurso de Stálin com outro de
Churchill e não sabe que Dante escreveu a Divina
Comédia”. Um ano depois, a mesma publicação resumia dados de uma pesquisa,
realizada no Oregon, com 2.000 alfabetizados entre 16 e 65 anos, mostrando que
somente “35% dos pesquisados conseguiram determinar a dose correta de um
remédio infantil usando uma tabela de peso e idade e somente 18% conseguiram
achar os horários de partida dos ônibus dispostos numa placa”; comentando a
mesma pesquisa, o Jornal da Ciência Hoje,
de maio de 1991, observava que apenas “quatro em cada cem adultos... sabem
interpretar um gráfico e só nove compreendem claramente o que leem”.
A verdade é que a ordem burguesa, no seu
patamar de desenvolvimento contemporâneo, continua apresentando a necessária
contradição que é uma das suas marcas mais peculiares: no seu processo,
objetivam-se compulsoriamente possibilidades de libertação e realização dos
homens e realidades regressivas, mutilantes e opressoras; o diferencial efetivo
entre possibilidades e realidades manifesta o cariz da barbárie que lhe é
própria. O assombroso, todavia, quando se considera a sua realidade atual, é
que seus apologistas e arautos a situem como a forma adequada, modelar e
desejável de organização societária, que estaria, em face da “crise do
socialismo”, comprovadamente destinada a assinalar o “fim da história”; de
fato, dada a evidente crise do socialismo
real, o que essa consideração patenteia é, mais uma vez, “a sóbria verdade
de que a supremacia econômica é capaz de produzir as formas mais inesperadas de
mistificação ideológica” (Mészáros, A
crise atual, 1989: 170).
Com efeito, a consequência mais visível da
crise do socialismo real, para a ordem burguesa, “é que o
capitalismo e os ricos pararam, por enquanto, de ter medo”, precisamente
porque, “por enquanto, não há nenhuma parte do mundo que apresente com
credibilidade um sistema alternativo ao capitalismo” (Hobsbawm, in Blackburn,
org., Depois da queda, 1992:
103-104). É assim que, neste quadro, pode a ordem burguesa fazer-se passar —
por enquanto — como a paragem final do milenar processo de construção da
socialidade, como o “fim da história”.
Mas a folha-corrida da ordem burguesa, ao
longo deste século, não autoriza nenhum otimismo quanto à natureza desse “fim
da história”: duas guerras mundiais e dezenas de conflagrações localizadas, uma
crise econômica catastrófica que quase pôs abaixo o sistema social e crises
menores, mas reiterativas, o imperialismo, o fascismo etc. Um único dado é
suficiente para indicar a barbárie ou, se se preferir, a “eficiência” da ordem
burguesa madura na promoção do crescimento econômico e do bem-estar: a
abrangência do “mundo desenvolvido” reduziu-se
de 33% da população mundial, em 1900, para cerca de 15%, em 1989 (Hobsbawm, op.
e loc. cit.). E se o capitalismo e a ordem burguesa “funcionam” hoje para 15%
da humanidade, a situação dos que não fazem parte desta minoria está mais longe
ainda de depor favoravelmente para esta santa ordem social — a pobreza é a generalizada dominante que
ela vem produzindo, como o atestam fontes indesmentíveis41.
41: Cf. FGV/Banco Mundial (1990). O mesmo
panorama é reiterado na segunda versão do “Relatório de desenvolvimento humano
do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento/PNUD” (cf. O Estado de S. Paulo, ed. de 23 de maio
de 1991).
“É nesta decrescente eficácia
econômico-social da ordem burguesa que reside o núcleo elementar da sua
exponenciada problematicidade. Mas o que compromete a ordem burguesa como
totalidade — e manifesta especialmente a sua barbarização — é muito mais
abrangente e inclusivo do que pode fazer crer uma pura análise
econômico-social: centra-se nas peculiaridades
socioculturais e políticas macroscópicas que vincam o conjunto das
instâncias e expressões da vida social no mundo burguês. A descrição do “sistema
irracional”, feita por Baran e Sweezy (Monopoly
Capital, 1966) há mais de um quarto de século, não resistiu apenas à prova
do tempo: ganhou cores mais dramáticas e dimensões mais sombrias. O modo de
vida burguês, nas suas áreas mais desenvolvidas — e proclamadas exemplares
pelos seus apologistas — vem engendrando um ethos
em que o consumismo compulsivo se inscreve numa constelação ideal de alienação
e individualismo48; florescem o privatismo, o intimismo, a
agressividade e o cinismo desembuçados, apenas com verniz de “modernidade”49.
No terreno estritamente político, as liberdades democráticas, resultantes de
lutas populares de largo curso50 e por isto mesmo profundamente
inseridas na “cultura política” da ordem burguesa, não foram golpeadas nos
últimos cinquenta anos — e, no plano dos direitos civis, registraram-se mesmo
desenvolvimentos progressistas; mas a possibilidade de fazer incidir tais
liberdades no sistema de poder das
sociedades típicas da ordem burguesa tem sido amplamente neutralizada pelos
mecanismos que, nelas, conectam os aparatos das grandes corporações
capitalistas com as instâncias estatais — donde quer uma acentuada autonomia
deste sistema em face de aspirações objetivadas pelos movimentos democráticos51,
quer uma prática corrupta recorrente52, configurando as
consequências de uma das características contraditórias da ordem burguesa: a
sua compatibilidade com a socialização da política (cuja significação positiva não pode sob nenhum pretexto, ser
menosprezada) é simultânea à sua incompatibilidade com a socialização do
poder político53.
Com estes traços, a ordem burguesa
defronta-se, no limiar do século XXI, com três desafios fundamentais: “o
crescente alargamento da distância entre o mundo rico e o pobre (e
provavelmente dentro do mundo rico, entre os seus ricos e seus pobres); a
ascensão do racismo e da xenofobia; e a crise ecológica do globo, que nos
afetará a todos” (Hobsbawm, op. e loc. cit. p. 104). Em face destes desafios,
acrescenta em seguida o historiador que estou citando: “As formas de lidar [com
eles] ainda não são claras, mas a privatização e o mercado livre não se incluem
nelas” (idem). É pertinente a contundência desta conclusão, que aponta para a
impossibilidade de a ordem burguesa reproduzir-se sem reproduzir a barbárie? A
resposta é afirmativa: nenhum desses problemas pode ser resolvido sem
modalidades de controle social cuja racionalidade transcenda aquela que é
inerente ao capital; esses problemas só podem ser equacionados e solucionados,
sem a reiteração de vetores barbarizantes, mediante intervenções cuja
estratégia supere compulsoriamente as requisições específicas da lógica de
acumulação e valorização sem a qual o movimento do capital é impensável. Curta
e grossamente: no marco da ordem burguesa, esses problemas tendem a
cronificar-se, a receber pseudo-soluções ou de altíssimo custo sócio-humano,
porque “'o capitalismo e a racionalidade do planejamento social abrangente são
radicalmente incompatíveis”54.
Com estas pontuações, estou longe de sugerir
que a ordem burguesa se revela à análise como esgotada ou em vias de entrar em
algo semelhante a um colapso — a ideia de uma “crise geral” catastrófica, com o
capitalismo e suas instituições sociais à beira da débacle, não me parece encontrar suportes sólidos —; enfim, não se
trata de supor o capitalismo como agonizante, incapaz já de reproduzir-se como
tal. Com estas pontuações, quero apenas afirmar que a ordem burguesa
contemporânea se exauriu como padrão progressista, se esgotou no que pode
oferecer de ascencional aos homens. Superado o seu grandioso papel
histórico-universal civilizador, ela só pode reproduzir-se agora com a (re)produção
de complexos de contradições, antagonismos e problemas que, no seu marco, não
podem ser ladeados senão com o aprofundamento de traços barbarizantes: mesmo os
avanços e êxitos que possa lograr na exploração de novas alternativas geradoras
de riquezas e de condições societárias inéditas vêm acompanhados de sequelas
tais que não se trava o aviltamento de imensos contingentes populacionais55.
Esta argumentação vem tematizando a ordem
burguesa em bloco, como um todo. O procedimento não é infundado: o
desenvolvimento histórico do capitalismo universalizou, há muito, os seus
processos de matrização sócio-política — planetarizada, a lógica específica do
capital opera independentemente de latitudes e longitudes. Isto, entretanto,
não cancela formas e arranjos sócio-políticos diferenciais sobre o topus da dominação do capital. É sabido
que a análise teórica, quando recusa a redução economicista e a ilusão
politicista, verifica concretamente que uma determinada estrutura econômica
pode imbricar-se congruentemente com ordenamentos sócio-políticos alternativos
(cuja pluralidade, todavia, tem fronteiras). O estudo da ordem burguesa, na sua
maturação histórica, mostra que estruturas econômicas substantivamente
similares comportam configurações sócio-políticas muito diversas — a estrutura
do capitalismo monopolista suporta tanto o Welfare
State quanto o modelo fascista —; ou, como já tive oportunidade de
assinalar, “o sistema capitalista tem
produzido e articulado distintos regimes
políticos, compatibilizando, é
verdade que diferencialmente, seus mecanismos estritamente econômicos com
formas políticas muito variadas” (Netto, Democracia
e transição socialista, 1990:72). Esta determinação é necessária para
permitir tangenciar o projeto sócio-político que veio disputando com os
liberais e conservadores a direção de vários Estados burgueses e que, agora,
com a “crise do socialismo”, adquire um relevo curioso — refiro-me ao projeto socialdemocrata.
Quanto à sua prática política, onde pôde
realizar experiências duráveis, a socialdemocracia operou uma “gestão social”
do capitalismo: um Estado com forte iniciativa no campo de políticas sociais
redistributivas e com pronunciada intervenção nos serviços e equipamentos
sociais, fiador de controles tributários sobre o capital e articulador
institucional de parcerias entre capital e trabalho, sobre a base do jogo
político democrático. Geralmente, a eficácia do modelo socialdemocrata é
localizada em alguns países da Europa nórdica, com a lateralização dos seus
pobres experimentos sul-europeus. Este modelo, como é notório, pouco tem a ver
com a socialdemocracia “clássica” inspirada no movimento operário
revolucionário do século XIX e marcada por influxos marxistas; de fato, o que
se efetiva neste modelo é uma proposta política de controle, redução e reforma
dos aspectos mais deletérios e brutais da ordem burguesa, sem a
vulnerabilização dos seus fundamentos. Tem-se, em realidade, uma configuração
sócio-política que, de alguma forma limitando as sequelas próprias à ordem
burguesa, é compatível com a dinâmica do capital. Não é um acidente, pois, que,
em seus experimentos mais logrados, as propostas socialdemocratas jamais tenham
afetado substantivamente as estruturas básicas da ordem burguesa — antes as tenham
consolidado e legitimado. Por outra parte, é significativo que estes
experimentos só registrem êxito em conjunturas de expansão capitalista: não só
não se creditam a eles processos de arranque no crescimento como,
especialmente, mostraram-se sempre muito susceptíveis de reversão em situações
de crise. Em suma, a gestão socialdemocrata da ordem burguesa — certamente
contabilizando ganhos para setores sociais amplos, que não os obteriam nos
quadros do “liberalismo” — não contribuiu para superar o capitalismo e suas
instituições básicas56.”
50. É inteiramente supérfluo reiterar aqui
que instituições políticas democráticas não são conaturais à ordem burguesa —
já é acacianismo notar que liberalismo não é sinônimo de democracia. A
democracia política, expressando possibilidades da ordem burguesa, jamais foi
seu resultado “normal” — foi sempre o fruto de conquistas dos trabalhadores.
51. Uma das formas imediatas da percepção
deste fenômeno aparece no estereótipo de que nada é mais igual aos
conservadores no governo que os oposicionistas que os substituem. Outro sinal é
o preocupante absenteísmo que se registra em processos eleitorais
significativos.
52. Pouco importa se os casos mais
escandalosos dessas práticas corriqueiras — que não são apanágio de uma ou
outra “cultura política”, posto que atingem da impoluta realeza belga aos
honoráveis dirigentes japoneses —, vindos a público, sejam eventualmente objeto
de sanção.
53. Contradição que Lênin agarrou com
perspicácia: antes de anotar que “o desenvolvimento do capitalismo cria as premissas para que todos possam realmente intervir na direção do
Estado”, ele constatou que, “se todos
intervêm realmente na direção do Estado, o capitalismo já não poderá
sustentar-se” (Lênin, O Estado e a
Revolução, 1987:141).
54. A determinação é de Mészáros (A necessidade do controle social, 1987:31),
que, neste texto, desenvolve uma arguta reflexão em torno da “crise estrutural
geral das instituições capitalistas de controle social na sua totalidade”.
55. Parece-me esclarecedor, a título de
exemplo, remeter aos novos métodos de organização do trabalho na ordem burguesa
— se já estão para trás, nas áreas desenvolvidas, os tempos da “gerência
científica” taylorista, nem por isto os trabalhadores submetidos à gerência “humanizada”
ou “com preocupações sociais”, “participativa”, têm reduzida a sua exploração integral. Cf. entre muitos
estudos, os ensaios de C. Dejours, dos quais está vertido ao português A loucura do trabalho (1989).
56. Esta macroavaliação, frise-se, não pode
esbater a diferencialidade que existiu historicamente, entre propostas e
práticas socialdemocratas e propostas e práticas conservadoras e/ou liberais.
“Numa palavra, toda uma cultura política (mais largamente: uma cultura sociocêntrica)
deverá ser substituída, configurando-se a prospecção de uma revolução processual cuja estratégia
terá que ser resgatada, pela razão teórica, do movimento histórico-social real
— o movimento ao comunismo, uma vez
que este “não é um estado a
implantar-se, um ideal a que a
realidade deve sujeitar-se. Chamamos comunismo ao movimento real que anula e
supera o estado de coisas atual. As condições deste movimento arrancam das
premissas hoje existentes” (Marx e Engels, La
ideología alemana, 1978:37).
Estas premissas, de forma muito mais clara do
que à época em que foram escritas tais palavras, estão dadas: é hoje possível
erradicar a barbárie, substituindo a ordem burguesa pela “livre associação de
livres produtores”, transitando da “pré-história” à “história humana”.
O fato de, nesta dramática conjuntura de
final de século, esta possibilidade não aparecer, nítida, para os sujeitos
sociais mais interessados nela, e de a ela não imbricar já uma estratégia política
que a potencie e a atualize — este fato não depõe contra a sua efetividade. Não
seria a primeira vez, aliás, que a consciência social tardaria a apreender (e
intervir sobre) tendências históricas operantes abaixo da epiderme da
sociedade: a velha toupeira de que falava Marx prossegue o seu trabalho, ainda
que os seus possíveis beneficiários não o visualizem.
Por tudo isto, a alternativa à barbárie — o
comunismo — é uma possibilidade histórica
concreta. E, por tudo isto, a conjuntura não deixa de recolocar, com mais força
que antes, o dilema: comunismo ou barbárie.
A este breve escrito polêmico escapa a
tematização da ultrapassagem da conjuntura. Mas lhe é indispensável a afirmação
de que a aposta na superação da ordem burguesa não é um voto fideísta num
futuro escatológico é uma projeção calçada em tendências reais. Os homens podem preferir a barbárie, mas é pouco
provável que o façam, pela simples (ou muito complexa) razão de que, com esta
escolha, ao contrário do poeta, prefeririam nenhum movimento.”
“É absolutamente inegável que a falência do socialismo real — que configura, sem
dúvidas, uma crise terminal, enquanto processo irreversível
— sinaliza um traço particular deste final de século, com uma inequívoca
significação histórico-universal. A derrocada de um padrão societário que
identificou sumariamente socialização com estatização, que colonizou a
sociedade civil mediante a hipertrofia de Estado e partido fusionados, que
intentou articular direitos sociais sobre a quase inexistência de direitos civis
e políticos, esta derrocada reclama um balanço de todo um projeto político que
terminou por ser decepcionante em
face das promessas do socialismo revolucionário. Implica mais, porém: mesmo que
um tal balanço apresente conquistas que não podem ser menosprezadas2,
dele decorre a urgência de repensar, com radicalidade crítica, o essencial da cultura política que, há mais de um
século, tornou-se a expressão mobilizadora dos valores humanistas mais
vigorosos e concretos — numa palavra, está em questão o conjunto de proposições
e de práticas que permitiu, até a década passada, indicar com alguma credibilidade
que havia alternativas positivas à ordem do capital. A ausência desta
indicação, por mínima que seja, constitui hoje um dado ponderabilíssimo no
conjunto das lutas sociais em todos os quadrantes do mundo.”
2: Quero assinalar, porém, e mais uma vez,
que não compartilho das avaliações superficiais do processo global do socialismo real, consistentes em
considerar o conjunto da sua experiência sem ponderar os ganhos sociais que ela
proporcionou, tanto no interior do ex-”campo socialista”, quanto pelo
efeito-temor no mundo do capital. Alguns desses ganhos são sumariados por
Hobsbawm, no texto há pouco referido.
“A grande burguesia monopolista e a
oligarquia financeira, em todas a latitudes, apreenderam minimamente as
experiências do desenvolvimento capitalista neste século: nenhum grande burguês
(e/ou seus executivos mais
responsáveis) tem a menor ilusão acerca do abstencionismo estatal ou do mercado
“livre”; nenhum deles imagina que a crise é uma invenção marxista; nenhum deles
pretende erradicar mecanismos reguladores da economia. O que desejam e pretendem, em face da crise contemporânea da ordem do
capital, é erradicar mecanismos reguladores que contenham qualquer
componente democrático de controle do
movimento do capital. O que desejam e pretendem não é “reduzir a
intervenção do Estado”, mas encontrar as
condições ótimas (hoje só possíveis com o estreitamento das instituições
democráticas) para direcioná-la segundo seus particulares interesses de classe23.
A grande burguesia monopolista tem absoluta
clareza da funcionalidade do pensamento neoliberal e, por isto mesmo, patrocina
a sua ofensiva: ela e seus associados compreendem que a proposta do “Estado
mínimo” pode viabilizar o que foi bloqueado pelo desenvolvimento da democracia
política — o Estado máximo para o capital.”
23: Nas décadas de setenta e oitenta, por
exemplo, não se viu nenhum dos bons burgueses que protestava contra a alocação
de recursos aos fundos sociais bradar contra os investimentos estatais
centrados nas indústrias bélicas.
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