Editora: Graphia
ISBN: 978-85-8527-714-7
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 132
Sinopse: Ver Parte I
“Como bem sabemos, uma das grandes anomalias
da economia brasileira vem sendo o precoce primado do capital financeiro. Esse
primado ocorre nas fases de plenitude do desenvolvimento de relações
capitalistas, por toda parte. É justamente uma das características dessa
plenitude. Entre nós, paradoxalmente, a anomalia começa com o advento tardio
dessas relações. O capitalismo, no Brasil, nasceu e vem crescendo na fase
justamente de sua crise geral em termos mundiais. Ele chegou atrasado,
historicamente. Isso provavelmente está nas raízes da anomalia muito brasileira
de predomínio do capital financeiro no conjunto da economia. Chegamos tarde ao
capitalismo e cedo ao primado do capital financeiro. Não é preciso ser alguém
especialmente observador para constatar como o capital financeiro, entre nós,
tem sido o grande beneficiário da nossa crise.”
“Já o IPES, uma das instituições de vanguarda
na montagem do golpe de 1964, ainda em 1963, defendia como “desestatizantes e
antidemagógicas” as medidas que recomendava aos que pretendia levar ao poder
para servi-lo, isto é, para servir a interesses antibrasileiros. Isto significa
que a ditadura foi estabelecida no firme propósito de comandar a
desestatização. Ela fez, entretanto, justamente o contrário: com a total
liberdade de legislar, estabeleceu em decretos-leis, e firmou um valor para as
cartas-patentes bancárias, um valor comercial arbitrário, que seria sempre
considerado nas falências fraudulentas como parte do patrimônio a ser liquidado
– uma proeza inédita, realmente, em favor de instituições financeiras cujas
sucessivas quebras pontilharam a crônica da época, permitindo, como anotou um
pesquisador, “o autêntico milagre pelo qual, a cada virada de sinal na política
econômica e em plena crise financeira, todos os agentes envolvidos em fracassos
empresariais, alguns em fraudes, saíssem invariavelmente ganhando fortunas”. As
intervenções do Banco Central no pretendido do mercado financeiro foi, na
verdade, festival oneroso, que custou muito caro ao país.
Já em 1977, as autoridades confessavam que o
Banco Central perdera cerca de 10 bilhões de cruzeiros de um total de 18,6
bilhões aplicados em 142 intervenções até aquele ano. Em 1979, as sociedades
sob intervenção ou já liquidadas atingiam 191 e o montante aplicado chegava a
quase 16 bilhões de cruzeiros. Isto é, o Estado, à custa dos cofres públicos,
acudia a iniciativa privada fraudulenta em suas crises. Assim, com o cinismo
peculiar a aventureiros e a aventuras, enquanto, de um lado, o Estado amparava
iniciativas da área privada malsucedidas por diversos motivos, era alvo de
furiosa campanha para entregar a essa área o seu patrimônio, como se isso
levasse a algo melhor para o país. Apresentar como de interesse geral aquilo
que é apenas de interesse privado, através de ampla e bem financiada campanha
publicitária, realmente, é o espetáculo que o Brasil apresentou e continua a
apresentar. Trata-se, realmente, de engenhosa manobra, repousando em falsidades
evidentes mas escamoteadas em sua verdadeira significação e em travestimento de
palavras e de conceitos. Tal como estamos assistindo agora.
Convém lembrar, por isso, e a título de
ilustração, apenas alguns dos casos da extensa série que a ditadura conheceu e
acobertou, em que instituições financeiras foram “saneadas” pelo Estado. O
primeiro pode ser o “caso Halles”, que explodiu em 16 de abril de 1974,
alarmando o mercado financeiro, quando a intervenção do Banco Central tornou-o
público. Em junho, dois meses depois, a operação já custara mais de oito
bilhões de cruzeiros. Em outubro, o Conselho Monetário autorizava o Banco do
Central a pagar, com recursos da reserva monetária, os depositantes e credores
de instituições financeiras sob intervenção, salvando, assim, aplicadores do
Banco Faro, das financeiras Cibrafi, Credence, Atlântica, Cofra, Imigrantes,
das corretoras Aplitec e Vitória, das distribuidoras Aplitec, Atlântico, Prisma
e Rubens Teixeira, das holdings Price
e Mota. Um verdadeiro carnaval, queimando dinheiros públicos. Em seguida, quase
como prolongamento, o grupo Soares Sampaio assumia o controle do Investbanco,
chamando à sua presidência o ex-ministro Roberto Campos, saído de uma passagem
tormentosa pelo Ministério do Planejamento, marcada por extensos e profundos
danos na área empresarial. Claro que os danos atingiram os investidores
menores, as empresas menores. Era um “saneamento” à moda da casa. A nova
instituição bancária entraria forte nas operações, montando conglomerado de
amplas proporções em relação à economia brasileira. Foi a esse conglomerado que
o Banco Central teve de acudir, em setembro, quando a imprensa noticiava a
“maior operação financeira realizada no país”, que era a liquidação do Banco
União Comercial. O decreto-lei 1342 autorizava o Banco Central a bancar, com
recursos da reserva monetária, as instituições falidas. Do passivo, cerca de
dois bilhões seriam incobráveis. Tratava-se, como escreveu J. Carlos de Assis,
em seu livro A Chave do Tesouro, da
operação menos onerosa de quantas o decreto-lei permitira, com “o uso do
Tesouro para reconstituir patrimônio líquido de empresas financeiras falidas.
Por curiosidade, é interessante lembrar que, ao tempo, Roberto Campos e Mário
Henrique Simonsen dedicavam-se a escrever A
Modernização da Economia Brasileira. A palavra moderno, então usada, à
época das sucessivas falcatruas bancárias, seria retomada, como se sabe, para
outras proezas, inclusive no campo financeiro. É difícil ser original,
realmente.
Em agosto de 1976, com proporções de grande
escândalo, estourou o “caso Econômico”, quando o banco com esse nome recusou
honrar dois cheques administrativos de um de seus agentes. Seria descoberta
então, uma engenhosa fraude que consistia em fazer o cheque correr de caixa em
caixa, percorrendo determinado circuito, cujo lance inicial era a sua aceitação
como provido de fundos. Em uma sequência de operações no open, processava-se revezamento de cheques sem fundos. O Banco Central,
no esforço para “sanear” o mercado, realizou uma sequência de adiantamentos que
permitiram salvar alguns devedores em dificuldades. Como escreveu J. Carlos de
Assis, “só não se salvava, como sempre, a caixa do Tesouro, representada no ato
pelo Banco Central, uma vez que sobre os ‘adiantamentos’ feitos não se cobravam
juros”. Já em 1975, o Governo decidira “aquecer” a economia, com o que chamou
de “refinanciamento compensatório”, mecanismo de concessão ao sistema bancário
de empréstimos a juros baixos — 6% ao ano, sem correção monetária — para que os
repassassem às empresas. Não havia restrições quanto ao destino das aplicações.
Foram liberados, inicialmente, três bilhões, em março, mais dois bilhões, em
abril. Essa medida provocou a ampliação do mercado bancário e deu grande
impulso à especulação. Foi nesse festival financeiro que ocorreu o escândalo
das Obrigações Reajustáveis da Eletrobrás, com papel destacado para a Corretora
Laureano, que havia recebido, em 1976, o dobro do que a Bolsa de Valores do Rio
e mais do que o quíntuplo do que qualquer outra beneficiária dos créditos
liberados pelo Banco Central com o fim de salvar instituições atoladas em
Obrigações Reajustáveis da Eletrobrás, valorizadas em desvairada especulação e
agora arrastadas à insolvência. A Laureano, a que haviam sido destinados 45%,
quase a metade da linha de financiamento, cujo total se aproximava a 600
milhões de cruzeiros, não foi a única a ser protegida, mas também como a Brant
Ribeiro, a Bandeirantes, a Global, a Godoy, a Santa Fé, a Supra e a O.R. No fim
da história, o sistema Caixa Econômica/BNH, a que as instituições financeiras
brocadas recorreram, para atender seus compromissos, com empréstimos de favor,
de longo prazo e juros anuais inferiores a 1% tinha, bloqueados nesses títulos
praticamente irresgatáveis, mais de 46 bilhões de cruzeiros, “valor da
contribuição do Sistema Financeiro de Habitação aos marginais do mercado
financeiro”.
Ainda em 1976, a praça do Rio de Janeiro
seria abalada com o caso da União de Empresas Brasileiras (UEB), gigantesco
conglomerado que sofreria, em maio, intervenção do Banco Central, após pedido
de falência de empresa do grupo e de concordata de outra e que, apesar disso,
conseguiria empréstimo bilionário da Caixa Econômica para a construção de
prédio Rio Sul, em Botafogo. O rombo nos cofres públicos, resultante de várias
operações, alcançara segundo os cálculos, a 148 bilhões de cruzeiros. Se o caso
da UEB culminaria no desastre dos 44 andares do prédio do Rio Sul, o “caso
Lume” giraria em torno do projeto de edifício de 55 andares, a ser construído
em área central do Rio, segundo a ideia do empresário Lynaldo Uchoa de Medeiros
Em lugar do prédio, ficou o que os cariocas apelidaram “buraco do Lume”. Em
abril de 1976, foi decretada a intervenção e imediata liquidação extrajudicial
do Grupo Lume. A história desse grupo, de seus projetos e empreendimentos,
constitui verdadeira novela e ilustra escandalosamente não só o que representou
a ditadura como paraíso de negócios ilícitos como o que representou essa fase
do desenvolvimento capitalista, no Brasil, particularmente do capital
financeiro. Em agosto, realmente, o rombo do Grupo Lume no BNH era calculado em
938 bilhões de cruzeiros e o prejuízo a órgãos estatais e a particulares era
incalculável, tudo isso sem falar, por ser detalhe insignificante ante o
conjunto, a sonegação de 800 bilhões do imposto de renda e endividamento de
mais de seis bilhões de sonegação do imposto sobre lucro, arbitrado pelo
Ministério da Fazenda.
A época conheceu o “caso Ipiranga”, o “caso
Áurea”, o “caso Lutfalla”, o “caso TAA”, o “caso Vitória-Minas”, o “caso
Delfin”, sem falar em coisas como o “escândalo da mandioca”, o “escândalo do
adubo-papel”, para só citar alguns. Seria alongar esta recapitulação de casos e
escândalos que marcaram época. O importante, daí este pequeno arrolamento, está
na constatação – agora, quando tanto se fala em privatização – de quanto o
Estado brasileiro favoreceu a decantada iniciativa privada e justamente na fase
em que se desenvolvia, com tanto rigor e veemência sistemática a campanha pela
desestatização. Na verdade, no caso, o Brasil precisa é ser desprivatizado.
Precisa deixar de ser um instrumento dos interesses particulares, uma garantia
dos interesses privados, um protetor deles, para ser instrumento da sociedade,
a seu serviço, isto é, do povo brasileiro, tão carente de tudo. Só a propaganda
mais solerte e deformadora levantou e mantém a imagem do Estado como
interessado em resolver os problemas populares. Ele tem se esmerado em resolver,
em verdade, os problemas da minoria que dele se serve. Ele opera sempre em
benefício da ordem privada. Se há campanha justa e oportuna no Brasil, hoje, é
a da desprivatização do Estado.”
“Claro está que, com o passar do tempo, a
área estatal da economia passou por alterações, algumas importantes. A criação
do CNP, Conselho Nacional do Petróleo, levou à descoberta do campo petrolífero
de Lobato, na Bahia; e colocou em cena o problema de exploração do petróleo,
suscitando uma campanha – a do “Petróleo é nosso” que abalou o País. No
decorrer dessa campanha, é bom não esquecer, quando a crusade da grande imprensa foi a da entrega da exploração do
petróleo brasileiro às multinacionais, é que foi criada pelo Congresso
Nacional, com a lei 2004, a Petrobrás, empresa encarregada dessa grande tarefa
sob regime de monopólio estatal. Estamos próximos de comemorar quatro décadas
sobre essa decisão dos representantes do povo brasileiro1. Quando a
área estatal começou a comandar a ampliação da energia elétrica, com a Eletrobrás,
disseminando empresas estatais geradoras de energia e, consequentemente, do
desenvolvimento brasileiro. Se isso despertou ufania em muitos, despertou
também, em alguns, a cobiça, o impulso para tomar ao Estado essa condição de
regente da economia, para, agora, favorecer os que buscam o lucro privado, que
é a razão e a lógica do capital.”
1: O monopólio da Petrobrás veio a ser
quebrado em 1997, por iniciativa do governo FHC.
“Esse pretenso moralismo sempre acobertou,
entre nós, o reacionarismo mais enrustido. O combate à corrupção, realmente,
toca muito fundo a credulidade popular e cria condições para permitir ao
candidato mais reacionário exercer com eficiência o seu papel real, que é o de
servir bem os interesses dos que promovem a sua candidatura e a sua eleição,
inclusive financiando-a.”
“Fernando Collor foi uma espécie de Jânio
mais jovem, mais audacioso e sem compromissos partidários, sem base política
aparentemente nas forças organizadas, candidato avulso, com a singularidade de
sua audaciosa proposta. Como o seu antecessor em política, propunha-se a acabar
com a corrupção e, para início da tarefa, a combater a inflação. Seria fácil,
segundo o seu discurso: derrotada a corrupção, a inflação seria varrida do
cenário. Como Jânio, conquistou largo apoio popular e foi depositário de
grandes esperanças. Para alcançar esse apoio, colocou a tônica de seu discurso
em dois pilares, que foram os mitos da ampla mistificação imposta ao país: o
mito da austeridade e o mito da modernidade.
Não é preciso esclarecer o primeiro: a
Comissão Parlamentar de Inquérito, como é público para espanto nacional,
desvendou essa enorme falácia. O governo Collor, realmente, abrigou e se
serviu, de um lado, de um bando de pivetes; de outro lado, da última sagra de chicago-boys, que se julgavam inventores
da economia. Foi um lance de audácia, sem dúvida, dispensar-se de apelar para
os gastos economistas da ditadura e do “milagre” brasileiro, apresentando ao
público, acima de todas as forças políticas e de suas figuras notórias, esse
bando de aventureiros cuja originalidade consistia na coragem de pregar
reformas pretensamente inovadoras e na arrogância em executá-las, como se o
país fosse fazenda sua e o povo um conjunto de idiotas. Esse bando de pivetes
não deixou pedra sobre pedra, como se sabe. A palavra mágica era, porém,
modernidade. Eles vinham para modernizar e não deixavam por menos.
Era como se os seus antecessores fossem
tolos, pretendendo administrar com métodos obsoletos. Tratava-se, para esse
simples hibridismo de pivetes, desertores dos bandos de trombadinhas, com
jovens chicago-boys recém púberes, de
jogar fora tudo o que antes se fazia. Tratava-se de começar tudo de novo. Para
isso, era preciso o uso moderado da arrogância que começava por modernizar e
conduziria o país triunfalmente ao que chamavam de primeiro mundo, em simples
passe de mágica. Um passe, por exemplo, consistia na nova significação das
palavras. A mais usada foi mercado. Tratava-se, diziam, de inaugurar aqui a
“economia de mercado”. Era, realmente, necessária muita audácia para, em mera
alteração semântica, subverter a economia. Ora, os mais desatentos e primários
estudiosos ou aprendizes de economia e de história bem sabem que vivemos em
economia de mercado há séculos. A rigor, desde o escravismo. Os fenícios viviam
em economia de mercado, como os árabes, como os europeus do medievalismo. Essa
economia de mercado, muito velha, recebeu considerável impulso com a criação do
mercado mundial, com as grandes navegações. O que os confusionistas pretendiam,
com aquela expressão esdrúxula, era abrir caminho para a passagem do
neoliberalismo. Esses pregoeiros da poção mágica do neoliberalismo eram, então,
como os descobridores da pólvora, meros defensores da franquia do mercado
brasileiro aos produtos estrangeiros. Modernizar, para eles, ingressar na
economia de mercado, era derrubar as tarifas alfandegárias, deixar livres as
trocas. E que, como nas olimpíadas, vencesse o melhor. Seríamos,
inevitavelmente, os perdedores. Ora, esse neoliberalismo, que seria
compreensível em economia de concorrência, fase já longamente superada na
história, seria, e é, agora, na economia de monopólios, ou ingenuidade, ou
ignorância ou profunda maldade. Supor que a receita neoliberal do FMI, a
serviço de estruturas de produção solidamente monopolizadas, nos pudesse servir
só poderia, realmente, passar pela cabeça dos híbridos já mencionados. O
neoliberalismo é a fórmula agora pregada pelos próceres dos países dominantes
naquilo que convencionaram conhecer como nova era. A meta desse neoliberalismo
é uma estabilidade, uma imobilidade em que as economias dominantes continuem no
comando e as economias dependentes aceitem passiva e conformadamente a
dependência e não tenham veleidades de sair dela. Para que abram os seus
mercados à invasão dos produtos colocados por aqueles nos mercados mundiais,
abandonem tarifas de proteção, vendam o patrimônio que porventura tenham
construído. Um mundo, em suma, como o imperialismo sonhou.
Trata-se, em última análise, de convencer os
países dependentes que a dependência é a fatalidade a que estão submetidos e
não devem por isso apegar-se aos mitos que acalentaram quando, como no Brasil,
criaram uma área estatal de economia para poder comandar o conjunto do
desenvolvimento e, em alguns casos, reservaram o mercado interno como espaço de
expansão de suas economias. Porque, muito ao contrário do que afirmava um
ministro da ditadura, exportar não é a solução. A solução é fundar o
desenvolvimento no mercado interno, que é o mercado que seu poder alcança.
Claro que um mercado interno em que o povo tenha poder aquisitivo. Nesse
sentido, ao contrário do que pensam ou pregam os chicago-boys, massacrar o salário é uma traição nacional porque
atira o mercado interno a esse destino estreito e apagado a que chegou aqui: o
pântano, O lamaçal a que as privatizações nos vão reduzindo.
O mito da austeridade reduzido aos farrapos
que a Comissão Parlamentar de Inquérito mostrou e o mito da modernização
resumido nas desatinadas privatizações a que vamos assistindo, destruindo o
patrimônio nacional que tanto custou ao nosso povo, arrasta-nos a essa amostra
subdesenvolvida de thatcherismo com resultados piores do que aqueles
representados pela Inglaterra, hoje país de segunda ordem, satélite infeliz da
política norte-americana, colônia de sua ex-colônia. Aqui, como lá,
“privatização é sinônimo de corrupção”, na frase de um comentarista da
autoridade de Barbosa Lima Sobrinho. Aqui, como lá, privatização é sinônimo de
desnacionalização. Aqui, como lá, privatização é sinônimo de desemprego. As
empresas recém privatizadas, aqui, a preços de banana, não só despedem
trabalhadores em massa como batem à porta dos bancos estatais que as ajudem:
logo após o “leilão”, a Piratini, produtora de aços finos, demitiu metade de
seus operários. Japoneses que, recentemente, com bons modos, pleitearam do
governador de um estado sulino a privatização, para eles, de um porto nesse
estado, tiveram de lhe confessar, quando ele pediu que indicassem um exemplo
dessa medida no Japão, que, realmente, naquele país não há portos privados.
Nós, que bem sabemos o que foi o porto de Santos quando na iniciativa privada,
que o geriu por tantos decênios em benefício de uma família nisso enriquecida,
podemos esperar das privatizações dos portos o rol de mazelas que tem
acompanhado tal, medida, isto é, sabemos que terá desemprego em massa. Tudo
bem, para um plano econômico que faz do desemprego meta prioritária. Tudo mal
para a economia brasileira que bem conhece o que está por trás dessa política
desenvolvida fria, metódica e implacavelmente, e que, entretanto, de tão
monstruosa, parece à primeira vista filha de simples desatino.
O povo ficou mais pobre, chegando àquele
limite de miserabilidade a que assistimos. Com a criminalidade em limite
extremo, com a cultura reduzida a zero, com a ciência abandonada e até
perseguida, com as multidões famintas migrando para as cidades, com as ruas
ocupadas por milhares de crianças abandonadas, apresentamos um quadro inédito
em nossa história. Nunca descemos tanto. É o nível de degradação a que chegamos
que pede um paradeiro. Isto tem de acabar e acabará. O imperialismo mostrou que
é possível dominar os povos sem recurso à ditadura. Também a democracia pode
permitir essa monstruosidade. É o que estamos vendo e o que deve e precisa ser
enfrentado. Porque a democracia é um processo que só se define quando o povo
assume o comando desse processo.
Munidos da receita universal do FMI, entidade
que responde, com sua sistemática, pela preservação de uma ordem econômica que
o tempo arruinou, os nossos economistas vulgares, usando a palavra mágica,
modernidade, puseram mãos à obra com fúria. Tudo o que faziam era para isso,
visava a esse fim, desde o confisco da poupança até à entrega do patrimônio
nacional, com as privatizações. Fiéis à campanha contra a área estatal da
economia e frenéticos na tarefa da modernização, atropelaram tudo o que
construímos em decênios de esforço e trabalho. Novos bárbaros, apesar do
disfarce, puseram ímpeto desvairado em derrubar conceitos, tidos como velhos. A
chantagem da modernidade era como a roupa do rei; qualquer criança via que o
rei, estava nu. Mas a intensa propaganda – em que só era original o elefante –
pretendia provar que éramos todos idiotas, atrasados, incapazes de compreender
e de aceitar a esplêndida “modernidade” com que nos presenteavam, os
alvoroçados chicago-boys, inventores
da economia, cuja audácia foi logo acompanhada pelos vigaristas que depressa
encheriam o noticiário policial, rápidos no gatilho dos cheques em dólares e
sagazes no manejo das facilidades administrativas, trabalhadas com desenvoltura
sem par. A grande meta era principalmente a área estatal da economia.
Tratava-se, dizia o elefante inteligente e burlesco, de uma velharia. Era
preciso dar agilidade à máquina. Foi o atropelo a que o país assistiu, um pouco
assustado e um pouco surpreso. Empresas estatais altamente rentáveis foram
entregues contra pacotes de moedas podres. Foram doadas, na verdade. A
iniciativa privada, apregoada como detentora de mágicos poderes, como fonte de
salvação, recebeu tais empresas e, logo, dando-as como garantia, pleitearam
generosos empréstimos. Era a fórmula antiga, agora posta em prática com
capricho. O povo sofria fome, morava em baixo dos viadutos, dormia nas
calçadas, multidões de desempregados, de famintos, de maltrapilhos, alguns
morrendo no frio de um inverno que somava efeitos aos do descalabro econômico,
invadiam cidades, assaltavam, e as prisões ficavam superlotadas e muitos
condenados continuavam nas ruas porque já não havia nelas espaço para que
cumprissem as suas penas, os preços das coisas, inclusive as mais triviais, e
particularmente os dos alimentos, subiam a cada hora, os remédios passaram a
ser privativos dos ricos e os hospitais foram sucateados, os serviços públicos
foram desorganizados. Mas o cronograma da desmontagem do Estado, por cima das
crises e das tormentas, insensível ao dantesco espetáculo de tanta miséria,
prosseguia fria, metódica, rigorosamente. Nada o detinha.
Claro que a “modernidade”, como cedo se
verificou, consistia em paralisar a cultura, deixando-a ao desamparo, em
paralisar a pesquisa científica, deixando-a sem recursos, mas, ao mesmo tempo,
providenciar com urgência uma lei que protegesse patentes estrangeiras do que
era nosso, em sucatear a rede hospitalar, em fazer com que indústrias antes
prósperas fossem à falência. Empresas modelares, como a Usiminas, foram
vendidas por preço vil. Outras da área siderúrgica e da área petroquímica,
áreas essenciais, em que o Estado fundamentara sua presença estimuladora, como
a siderúrgica de Tubarão, com 40% de sua produção colocados no exterior, ou a
Nitriflex, competidora privilegiada de congêneres estrangeiras e abastecedora
do mercado interno, eram “leiloadas” às pressas, com um afã de fim de festa,
antes que alguém bradasse um protesto. O cerco à CSN e à Petrobrás era fechado,
a cada dia. A meta era mesmo liquidar as possibilidades de existência de uma
base nacional para desenvolvimento.
Nada poderia deter a marcha de uma política,
insana na aparência, realmente dotada de fria lógica e determinação, articulada
à tavolagem financeira internacional, agora proposta a dominar o mundo e
colocá-lo a seu serviço, para isso necessitada de uma subordinação absoluta,
que se materializaria, particularmente, no nível da dívida externa. Não
deveríamos seguir a ideia de pagá-la sem sacrifício do povo brasileiro, mas, ao
contrário, deveríamos capitular ante todas as exigências, ainda as mais
antinacionais, para insistir num propósito impossível, o de saldar um
endividamento já liquidado e que vem sacrificando o povo brasileiro, como o
povo de todos os países latino-americanos, acorrentados ao mesmo jugo.
Deveríamos persistir em exportar matérias-primas, inclusive as minerais, em que
a natureza foi tão pródiga conosco. Os sacrifícios que nos têm sido impostos
pelos credores internacionais, com a conivência amável dos negociadores
brasileiros, passaram, com Collor, de qualquer limite aceitável. Só um governo
do tipo do que suportamos poderia ter a coragem de portar-se como algoz de seu
próprio povo, fazendo qualquer negócio, sem nenhum cuidado, sem nenhum
escrúpulo. Com a tranquilidade de entregar o que nos pertence e, com audácia
ilimitada, este rapaz despreparado para exercer a Presidência da República
chegou a envolver-se na bandeira brasileira, como se fosse defensor do que é
nacional em nós, enquanto traía uma verdade simples, corriqueira, velha: só é
nacional o que é popular. Isso é muito antigo. Nada tem a ver com a
“modernidade”.”
“Os que viveram os anos cinquenta recordam-se
do que foi a campanha pela exploração do petróleo em regime de monopólio do
Estado. Foi uma tempestuosa campanha, que abalou o país, e nessa campanha, a
grande imprensa esteve firmemente, continuamente, deslavadamente em favor da
exploração pelos monopólios petrolíferos estrangeiros. Foi preciso que uma
gigantesca e séria campanha nacional se levantasse para que fosse criada a
Petrobrás, nas condições políticas da época. Criada a empresa estatal, foi ela
minada, continuadamente, por diretorias de gente que não acreditava na empresa,
não acreditava na eficácia do regime de monopólio estatal. Corram a lista dos
que dirigiram a Petrobras, desde a sua criação: não houve nela um só diretor
nomeado que formasse na campanha pelo monopólio estatal, salvo Francisco
Mangabeira, que teve o seu período de direção sabotado. E a Vargas, como se
sabe, jamais foi perdoado o crime de ter aceito o monopólio estatal do
petróleo.
Poucos se recordam como foi criada a
Companhia Siderúrgica Nacional, outra obra de Vargas. Da criação da CSN nasceu
a indústria brasileira de bens de produção, nasceu o avanço industrial do país,
nasceram numerosas empresas que alteraram profundamente a estrutura econômica
do país. Pois bem, não podendo arrasá-la, suprimi-la, liquidá-la, a ofensiva
reacionária operou de maneira solerte: operou a sua descapitalizaçao. A CSN
operou no vermelho anos a fio, fornecendo chapas baratas a indústrias
estrangeiras estabelecidas no Brasil para que estas auferissem gordos lucros —
convenientemente remetidos para o exterior, e produzisse, por exemplo,
automóveis caros e ruins. A siderurgia nacional, de que a CSN foi pioneira e
motor do desenvolvimento, está sendo entregue, pelos modianos da vida, a preço
de banana, obedecendo a uma política impatriótica, apelidada, ironicamente, de
modernização.”
“Mas, por outro lado, é preciso aceitar que o
Estado é uma categoria histórica, isto é, ele muda de conteúdo ao longo do
tempo e é subordinado à correlação de forças sociedade. O Estado não existiu
sempre, ele surgiu com a sociedade de classes: as comunidades primitivas não
têm classes – não conhecem o Estado: os ianomâmis têm Estado. É importante,
entretanto, reter o que de fundamental existe na definição, embora vulgar, de
Estado: o Estado tem razões políticas, move-se por razões políticas — nível em
que o público, o povo, intervém conforme a etapa de desenvolvimento da
sociedade. A ordem privada tem razões de lucro, move-se por razões de lucro.
Claro que isso ocorre numa determinada etapa histórica como aquela em que
vivemos, no Brasil. Quando se pretende, pois, deslocar determinada empresa da
área do Estado para a área privada – quando se pretende privatizá-la – isto
significa que ela em lugar de pertencer ao público, ao povo, passa a pertencer
a indivíduos, ou agrupamento de indivíduos em empresas. Deixa de ser de todos
para ser de alguns E só a ânsia do lucro pode explicar o furor com que, como
atualmente no Brasil, e nem só no Brasil, indivíduos e grupos de indivíduos se
atiram à rapina do Estado. Eles são movidos pelas razões do lucro. (...)
Daí a fúria das privatizações. Era, na
realidade, uma tarefa de rigorosa destruição do Estado, encetada, no governo
Collor, por um grupo de chicago-boys
intitulados gênios que trataram preliminarmente de despedir milhares de
funcionários, paralisando o funcionamento de inúmeras repartições, em muitos
casos simplesmente extintas, enquanto se fazia do desemprego meta de governo.
O sucateamento da rede hospitalar, a
destruição do ensino público, o abandono já antigo do transporte ferroviário e
do transporte por água, justamente os mais eficientes e mais baratos, e mil e
uma outras proezas foram consequência dessa desvairada política, batizada
ironicamente ou sarcasticamente de “modernidade”. O pior efeito, entretanto,
dessa tempestuosa impostura foi incutir em nosso povo a descrença nas
potencialidades do Brasil. Essa tenebrosa tarefa de convencimento de milhões de
seres humanos de que não lhes restava senão entregar as riquezas naturais e o patrimônio
já constituído à iniciativa privada, foi pior do que o quadro generalizado de
miséria e de criminalidade consequentes de tais desmandos e da pregação e
vitória dessas teses devastadoras. Com uma urgência já por si suspeita,
passavam a indivíduos e grupos de indivíduos, bem instalados no mercado, pela
utilização das chamadas “moedas podres”, correspondendo a doações
envilecedoras, empresas com o que o Estado se fazia presente na estrutura da
produção, com eminente papel. O processo imoral acelerou a concentração de
renda, aumentou o desemprego, debilitou gravemente o patrimônio público. (...).
A apresentação do mercado como potentado
mítico, dotado de poderes mágicos, não é apenas falsa e tola, ela representa a
falta de qualquer sentido e relação com a realidade. Claro está que o Estado
sempre teve intervenção na economia, no Brasil e em todo o mundo, simplesmente
por existir. Não há Estado neutro, não há Estado acima da sociedade, desligado
de suas condições. Afirmar o contrário não é apenas uma deslavada impostura: é
uma falsidade que, por si só denuncia sua ligação a determinados interesses
privados, insaciáveis em sua cobiça e absolutamente desinteressados do que o
povo necessita e estima e carece.
Os que estudaram o nosso desenvolvimento
econômico bem sabem que houve nele dois períodos importantes: o da Primeira
Guerra Mundial e o da crise de 1929. Não por coincidência, dois períodos em que
o imperialismo, ocupado com a guerra ou limitado na disponibilidade de
capitais, reduziu sua pressão. Tal fato forçou o Estado, nos países de economia
dependente a intervir energicamente. Celso Furtado frisa que no primeiro caso,
“o Estado nacional emerge como um fator importante no sistema econômico
brasileiro”. A economia brasileira antecipou-se mesmo às economias mais
desenvolvidas na recuperação de seus índices de produção. Em 1933, o Brasil já
estava recuperado da crise, enquanto Estados Unidos e Europa nela permaneciam.
Isso decorreu da ação do Estado aqui, da intervenção do Estado na economia.
Foi, fatalmente, a intervenção que salvou a economia, O avanço industrial,
então, privou “fundamentalmente do processo de substituição de importações, a
captação de recursos dependeu fundamentalmente da ação do Estado”, como
escreveu Celso Furtado.
A economista Helga Hoffmann, apreciando o
problema do planejamento econômico, situa com realismo o quadro: “A intervenção
do Estado na economia dos países subdesenvolvidas, em particular, América
Latina, não foi no sentido de limitar as funções do capital privado; ela surgiu
precisamente para suprir as deficiências desse capital privado, buscar melhor
aplicação para recursos escassos e dispersos, enfrentar a espoliação e a
concorrência estrangeira, criar a base econômica necessária ao reforçamento da
independência nacional”.”
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