quarta-feira, 3 de outubro de 2018

A Farsa do Neoliberalismo (Parte II), de Nelson Werneck Sodré

Editora: Graphia

ISBN: 978-85-8527-714-7

Opinião: ★★★☆☆

Páginas: 132

Sinopse: Ver Parte I



“Como bem sabemos, uma das grandes anomalias da economia brasileira vem sendo o precoce primado do capital financeiro. Esse primado ocorre nas fases de plenitude do desenvolvimento de relações capitalistas, por toda parte. É justamente uma das características dessa plenitude. Entre nós, paradoxalmente, a anomalia começa com o advento tardio dessas relações. O capitalismo, no Brasil, nasceu e vem crescendo na fase justamente de sua crise geral em termos mundiais. Ele chegou atrasado, historicamente. Isso provavelmente está nas raízes da anomalia muito brasileira de predomínio do capital financeiro no conjunto da economia. Chegamos tarde ao capitalismo e cedo ao primado do capital financeiro. Não é preciso ser alguém especialmente observador para constatar como o capital financeiro, entre nós, tem sido o grande beneficiário da nossa crise.”

 

 

“Já o IPES, uma das instituições de vanguarda na montagem do golpe de 1964, ainda em 1963, defendia como “desestatizantes e antidemagógicas” as medidas que recomendava aos que pretendia levar ao poder para servi-lo, isto é, para servir a interesses antibrasileiros. Isto significa que a ditadura foi estabelecida no firme propósito de comandar a desestatização. Ela fez, entretanto, justamente o contrário: com a total liberdade de legislar, estabeleceu em decretos-leis, e firmou um valor para as cartas-patentes bancárias, um valor comercial arbitrário, que seria sempre considerado nas falências fraudulentas como parte do patrimônio a ser liquidado – uma proeza inédita, realmente, em favor de instituições financeiras cujas sucessivas quebras pontilharam a crônica da época, permitindo, como anotou um pesquisador, “o autêntico milagre pelo qual, a cada virada de sinal na política econômica e em plena crise financeira, todos os agentes envolvidos em fracassos empresariais, alguns em fraudes, saíssem invariavelmente ganhando fortunas”. As intervenções do Banco Central no pretendido do mercado financeiro foi, na verdade, festival oneroso, que custou muito caro ao país.

Já em 1977, as autoridades confessavam que o Banco Central perdera cerca de 10 bilhões de cruzeiros de um total de 18,6 bilhões aplicados em 142 intervenções até aquele ano. Em 1979, as sociedades sob intervenção ou já liquidadas atingiam 191 e o montante aplicado chegava a quase 16 bilhões de cruzeiros. Isto é, o Estado, à custa dos cofres públicos, acudia a iniciativa privada fraudulenta em suas crises. Assim, com o cinismo peculiar a aventureiros e a aventuras, enquanto, de um lado, o Estado amparava iniciativas da área privada malsucedidas por diversos motivos, era alvo de furiosa campanha para entregar a essa área o seu patrimônio, como se isso levasse a algo melhor para o país. Apresentar como de interesse geral aquilo que é apenas de interesse privado, através de ampla e bem financiada campanha publicitária, realmente, é o espetáculo que o Brasil apresentou e continua a apresentar. Trata-se, realmente, de engenhosa manobra, repousando em falsidades evidentes mas escamoteadas em sua verdadeira significação e em travestimento de palavras e de conceitos. Tal como estamos assistindo agora.

Convém lembrar, por isso, e a título de ilustração, apenas alguns dos casos da extensa série que a ditadura conheceu e acobertou, em que instituições financeiras foram “saneadas” pelo Estado. O primeiro pode ser o “caso Halles”, que explodiu em 16 de abril de 1974, alarmando o mercado financeiro, quando a intervenção do Banco Central tornou-o público. Em junho, dois meses depois, a operação já custara mais de oito bilhões de cruzeiros. Em outubro, o Conselho Monetário autorizava o Banco do Central a pagar, com recursos da reserva monetária, os depositantes e credores de instituições financeiras sob intervenção, salvando, assim, aplicadores do Banco Faro, das financeiras Cibrafi, Credence, Atlântica, Cofra, Imigrantes, das corretoras Aplitec e Vitória, das distribuidoras Aplitec, Atlântico, Prisma e Rubens Teixeira, das holdings Price e Mota. Um verdadeiro carnaval, queimando dinheiros públicos. Em seguida, quase como prolongamento, o grupo Soares Sampaio assumia o controle do Investbanco, chamando à sua presidência o ex-ministro Roberto Campos, saído de uma passagem tormentosa pelo Ministério do Planejamento, marcada por extensos e profundos danos na área empresarial. Claro que os danos atingiram os investidores menores, as empresas menores. Era um “saneamento” à moda da casa. A nova instituição bancária entraria forte nas operações, montando conglomerado de amplas proporções em relação à economia brasileira. Foi a esse conglomerado que o Banco Central teve de acudir, em setembro, quando a imprensa noticiava a “maior operação financeira realizada no país”, que era a liquidação do Banco União Comercial. O decreto-lei 1342 autorizava o Banco Central a bancar, com recursos da reserva monetária, as instituições falidas. Do passivo, cerca de dois bilhões seriam incobráveis. Tratava-se, como escreveu J. Carlos de Assis, em seu livro A Chave do Tesouro, da operação menos onerosa de quantas o decreto-lei permitira, com “o uso do Tesouro para reconstituir patrimônio líquido de empresas financeiras falidas. Por curiosidade, é interessante lembrar que, ao tempo, Roberto Campos e Mário Henrique Simonsen dedicavam-se a escrever A Modernização da Economia Brasileira. A palavra moderno, então usada, à época das sucessivas falcatruas bancárias, seria retomada, como se sabe, para outras proezas, inclusive no campo financeiro. É difícil ser original, realmente.

Em agosto de 1976, com proporções de grande escândalo, estourou o “caso Econômico”, quando o banco com esse nome recusou honrar dois cheques administrativos de um de seus agentes. Seria descoberta então, uma engenhosa fraude que consistia em fazer o cheque correr de caixa em caixa, percorrendo determinado circuito, cujo lance inicial era a sua aceitação como provido de fundos. Em uma sequência de operações no open, processava-se revezamento de cheques sem fundos. O Banco Central, no esforço para “sanear” o mercado, realizou uma sequência de adiantamentos que permitiram salvar alguns devedores em dificuldades. Como escreveu J. Carlos de Assis, “só não se salvava, como sempre, a caixa do Tesouro, representada no ato pelo Banco Central, uma vez que sobre os ‘adiantamentos’ feitos não se cobravam juros”. Já em 1975, o Governo decidira “aquecer” a economia, com o que chamou de “refinanciamento compensatório”, mecanismo de concessão ao sistema bancário de empréstimos a juros baixos — 6% ao ano, sem correção monetária — para que os repassassem às empresas. Não havia restrições quanto ao destino das aplicações. Foram liberados, inicialmente, três bilhões, em março, mais dois bilhões, em abril. Essa medida provocou a ampliação do mercado bancário e deu grande impulso à especulação. Foi nesse festival financeiro que ocorreu o escândalo das Obrigações Reajustáveis da Eletrobrás, com papel destacado para a Corretora Laureano, que havia recebido, em 1976, o dobro do que a Bolsa de Valores do Rio e mais do que o quíntuplo do que qualquer outra beneficiária dos créditos liberados pelo Banco Central com o fim de salvar instituições atoladas em Obrigações Reajustáveis da Eletrobrás, valorizadas em desvairada especulação e agora arrastadas à insolvência. A Laureano, a que haviam sido destinados 45%, quase a metade da linha de financiamento, cujo total se aproximava a 600 milhões de cruzeiros, não foi a única a ser protegida, mas também como a Brant Ribeiro, a Bandeirantes, a Global, a Godoy, a Santa Fé, a Supra e a O.R. No fim da história, o sistema Caixa Econômica/BNH, a que as instituições financeiras brocadas recorreram, para atender seus compromissos, com empréstimos de favor, de longo prazo e juros anuais inferiores a 1% tinha, bloqueados nesses títulos praticamente irresgatáveis, mais de 46 bilhões de cruzeiros, “valor da contribuição do Sistema Financeiro de Habitação aos marginais do mercado financeiro”.

Ainda em 1976, a praça do Rio de Janeiro seria abalada com o caso da União de Empresas Brasileiras (UEB), gigantesco conglomerado que sofreria, em maio, intervenção do Banco Central, após pedido de falência de empresa do grupo e de concordata de outra e que, apesar disso, conseguiria empréstimo bilionário da Caixa Econômica para a construção de prédio Rio Sul, em Botafogo. O rombo nos cofres públicos, resultante de várias operações, alcançara segundo os cálculos, a 148 bilhões de cruzeiros. Se o caso da UEB culminaria no desastre dos 44 andares do prédio do Rio Sul, o “caso Lume” giraria em torno do projeto de edifício de 55 andares, a ser construído em área central do Rio, segundo a ideia do empresário Lynaldo Uchoa de Medeiros Em lugar do prédio, ficou o que os cariocas apelidaram “buraco do Lume”. Em abril de 1976, foi decretada a intervenção e imediata liquidação extrajudicial do Grupo Lume. A história desse grupo, de seus projetos e empreendimentos, constitui verdadeira novela e ilustra escandalosamente não só o que representou a ditadura como paraíso de negócios ilícitos como o que representou essa fase do desenvolvimento capitalista, no Brasil, particularmente do capital financeiro. Em agosto, realmente, o rombo do Grupo Lume no BNH era calculado em 938 bilhões de cruzeiros e o prejuízo a órgãos estatais e a particulares era incalculável, tudo isso sem falar, por ser detalhe insignificante ante o conjunto, a sonegação de 800 bilhões do imposto de renda e endividamento de mais de seis bilhões de sonegação do imposto sobre lucro, arbitrado pelo Ministério da Fazenda.

A época conheceu o “caso Ipiranga”, o “caso Áurea”, o “caso Lutfalla”, o “caso TAA”, o “caso Vitória-Minas”, o “caso Delfin”, sem falar em coisas como o “escândalo da mandioca”, o “escândalo do adubo-papel”, para só citar alguns. Seria alongar esta recapitulação de casos e escândalos que marcaram época. O importante, daí este pequeno arrolamento, está na constatação – agora, quando tanto se fala em privatização – de quanto o Estado brasileiro favoreceu a decantada iniciativa privada e justamente na fase em que se desenvolvia, com tanto rigor e veemência sistemática a campanha pela desestatização. Na verdade, no caso, o Brasil precisa é ser desprivatizado. Precisa deixar de ser um instrumento dos interesses particulares, uma garantia dos interesses privados, um protetor deles, para ser instrumento da sociedade, a seu serviço, isto é, do povo brasileiro, tão carente de tudo. Só a propaganda mais solerte e deformadora levantou e mantém a imagem do Estado como interessado em resolver os problemas populares. Ele tem se esmerado em resolver, em verdade, os problemas da minoria que dele se serve. Ele opera sempre em benefício da ordem privada. Se há campanha justa e oportuna no Brasil, hoje, é a da desprivatização do Estado.”

 

 

“Claro está que, com o passar do tempo, a área estatal da economia passou por alterações, algumas importantes. A criação do CNP, Conselho Nacional do Petróleo, levou à descoberta do campo petrolífero de Lobato, na Bahia; e colocou em cena o problema de exploração do petróleo, suscitando uma campanha – a do “Petróleo é nosso” que abalou o País. No decorrer dessa campanha, é bom não esquecer, quando a crusade da grande imprensa foi a da entrega da exploração do petróleo brasileiro às multinacionais, é que foi criada pelo Congresso Nacional, com a lei 2004, a Petrobrás, empresa encarregada dessa grande tarefa sob regime de monopólio estatal. Estamos próximos de comemorar quatro décadas sobre essa decisão dos representantes do povo brasileiro1. Quando a área estatal começou a comandar a ampliação da energia elétrica, com a Eletrobrás, disseminando empresas estatais geradoras de energia e, consequentemente, do desenvolvimento brasileiro. Se isso despertou ufania em muitos, despertou também, em alguns, a cobiça, o impulso para tomar ao Estado essa condição de regente da economia, para, agora, favorecer os que buscam o lucro privado, que é a razão e a lógica do capital.”

1: O monopólio da Petrobrás veio a ser quebrado em 1997, por iniciativa do governo FHC.

 

 

“Esse pretenso moralismo sempre acobertou, entre nós, o reacionarismo mais enrustido. O combate à corrupção, realmente, toca muito fundo a credulidade popular e cria condições para permitir ao candidato mais reacionário exercer com eficiência o seu papel real, que é o de servir bem os interesses dos que promovem a sua candidatura e a sua eleição, inclusive financiando-a.”

 

 

“Fernando Collor foi uma espécie de Jânio mais jovem, mais audacioso e sem compromissos partidários, sem base política aparentemente nas forças organizadas, candidato avulso, com a singularidade de sua audaciosa proposta. Como o seu antecessor em política, propunha-se a acabar com a corrupção e, para início da tarefa, a combater a inflação. Seria fácil, segundo o seu discurso: derrotada a corrupção, a inflação seria varrida do cenário. Como Jânio, conquistou largo apoio popular e foi depositário de grandes esperanças. Para alcançar esse apoio, colocou a tônica de seu discurso em dois pilares, que foram os mitos da ampla mistificação imposta ao país: o mito da austeridade e o mito da modernidade.

Não é preciso esclarecer o primeiro: a Comissão Parlamentar de Inquérito, como é público para espanto nacional, desvendou essa enorme falácia. O governo Collor, realmente, abrigou e se serviu, de um lado, de um bando de pivetes; de outro lado, da última sagra de chicago-boys, que se julgavam inventores da economia. Foi um lance de audácia, sem dúvida, dispensar-se de apelar para os gastos economistas da ditadura e do “milagre” brasileiro, apresentando ao público, acima de todas as forças políticas e de suas figuras notórias, esse bando de aventureiros cuja originalidade consistia na coragem de pregar reformas pretensamente inovadoras e na arrogância em executá-las, como se o país fosse fazenda sua e o povo um conjunto de idiotas. Esse bando de pivetes não deixou pedra sobre pedra, como se sabe. A palavra mágica era, porém, modernidade. Eles vinham para modernizar e não deixavam por menos.

Era como se os seus antecessores fossem tolos, pretendendo administrar com métodos obsoletos. Tratava-se, para esse simples hibridismo de pivetes, desertores dos bandos de trombadinhas, com jovens chicago-boys recém púberes, de jogar fora tudo o que antes se fazia. Tratava-se de começar tudo de novo. Para isso, era preciso o uso moderado da arrogância que começava por modernizar e conduziria o país triunfalmente ao que chamavam de primeiro mundo, em simples passe de mágica. Um passe, por exemplo, consistia na nova significação das palavras. A mais usada foi mercado. Tratava-se, diziam, de inaugurar aqui a “economia de mercado”. Era, realmente, necessária muita audácia para, em mera alteração semântica, subverter a economia. Ora, os mais desatentos e primários estudiosos ou aprendizes de economia e de história bem sabem que vivemos em economia de mercado há séculos. A rigor, desde o escravismo. Os fenícios viviam em economia de mercado, como os árabes, como os europeus do medievalismo. Essa economia de mercado, muito velha, recebeu considerável impulso com a criação do mercado mundial, com as grandes navegações. O que os confusionistas pretendiam, com aquela expressão esdrúxula, era abrir caminho para a passagem do neoliberalismo. Esses pregoeiros da poção mágica do neoliberalismo eram, então, como os descobridores da pólvora, meros defensores da franquia do mercado brasileiro aos produtos estrangeiros. Modernizar, para eles, ingressar na economia de mercado, era derrubar as tarifas alfandegárias, deixar livres as trocas. E que, como nas olimpíadas, vencesse o melhor. Seríamos, inevitavelmente, os perdedores. Ora, esse neoliberalismo, que seria compreensível em economia de concorrência, fase já longamente superada na história, seria, e é, agora, na economia de monopólios, ou ingenuidade, ou ignorância ou profunda maldade. Supor que a receita neoliberal do FMI, a serviço de estruturas de produção solidamente monopolizadas, nos pudesse servir só poderia, realmente, passar pela cabeça dos híbridos já mencionados. O neoliberalismo é a fórmula agora pregada pelos próceres dos países dominantes naquilo que convencionaram conhecer como nova era. A meta desse neoliberalismo é uma estabilidade, uma imobilidade em que as economias dominantes continuem no comando e as economias dependentes aceitem passiva e conformadamente a dependência e não tenham veleidades de sair dela. Para que abram os seus mercados à invasão dos produtos colocados por aqueles nos mercados mundiais, abandonem tarifas de proteção, vendam o patrimônio que porventura tenham construído. Um mundo, em suma, como o imperialismo sonhou.

Trata-se, em última análise, de convencer os países dependentes que a dependência é a fatalidade a que estão submetidos e não devem por isso apegar-se aos mitos que acalentaram quando, como no Brasil, criaram uma área estatal de economia para poder comandar o conjunto do desenvolvimento e, em alguns casos, reservaram o mercado interno como espaço de expansão de suas economias. Porque, muito ao contrário do que afirmava um ministro da ditadura, exportar não é a solução. A solução é fundar o desenvolvimento no mercado interno, que é o mercado que seu poder alcança. Claro que um mercado interno em que o povo tenha poder aquisitivo. Nesse sentido, ao contrário do que pensam ou pregam os chicago-boys, massacrar o salário é uma traição nacional porque atira o mercado interno a esse destino estreito e apagado a que chegou aqui: o pântano, O lamaçal a que as privatizações nos vão reduzindo.

O mito da austeridade reduzido aos farrapos que a Comissão Parlamentar de Inquérito mostrou e o mito da modernização resumido nas desatinadas privatizações a que vamos assistindo, destruindo o patrimônio nacional que tanto custou ao nosso povo, arrasta-nos a essa amostra subdesenvolvida de thatcherismo com resultados piores do que aqueles representados pela Inglaterra, hoje país de segunda ordem, satélite infeliz da política norte-americana, colônia de sua ex-colônia. Aqui, como lá, “privatização é sinônimo de corrupção”, na frase de um comentarista da autoridade de Barbosa Lima Sobrinho. Aqui, como lá, privatização é sinônimo de desnacionalização. Aqui, como lá, privatização é sinônimo de desemprego. As empresas recém privatizadas, aqui, a preços de banana, não só despedem trabalhadores em massa como batem à porta dos bancos estatais que as ajudem: logo após o “leilão”, a Piratini, produtora de aços finos, demitiu metade de seus operários. Japoneses que, recentemente, com bons modos, pleitearam do governador de um estado sulino a privatização, para eles, de um porto nesse estado, tiveram de lhe confessar, quando ele pediu que indicassem um exemplo dessa medida no Japão, que, realmente, naquele país não há portos privados. Nós, que bem sabemos o que foi o porto de Santos quando na iniciativa privada, que o geriu por tantos decênios em benefício de uma família nisso enriquecida, podemos esperar das privatizações dos portos o rol de mazelas que tem acompanhado tal, medida, isto é, sabemos que terá desemprego em massa. Tudo bem, para um plano econômico que faz do desemprego meta prioritária. Tudo mal para a economia brasileira que bem conhece o que está por trás dessa política desenvolvida fria, metódica e implacavelmente, e que, entretanto, de tão monstruosa, parece à primeira vista filha de simples desatino.

O povo ficou mais pobre, chegando àquele limite de miserabilidade a que assistimos. Com a criminalidade em limite extremo, com a cultura reduzida a zero, com a ciência abandonada e até perseguida, com as multidões famintas migrando para as cidades, com as ruas ocupadas por milhares de crianças abandonadas, apresentamos um quadro inédito em nossa história. Nunca descemos tanto. É o nível de degradação a que chegamos que pede um paradeiro. Isto tem de acabar e acabará. O imperialismo mostrou que é possível dominar os povos sem recurso à ditadura. Também a democracia pode permitir essa monstruosidade. É o que estamos vendo e o que deve e precisa ser enfrentado. Porque a democracia é um processo que só se define quando o povo assume o comando desse processo.

Munidos da receita universal do FMI, entidade que responde, com sua sistemática, pela preservação de uma ordem econômica que o tempo arruinou, os nossos economistas vulgares, usando a palavra mágica, modernidade, puseram mãos à obra com fúria. Tudo o que faziam era para isso, visava a esse fim, desde o confisco da poupança até à entrega do patrimônio nacional, com as privatizações. Fiéis à campanha contra a área estatal da economia e frenéticos na tarefa da modernização, atropelaram tudo o que construímos em decênios de esforço e trabalho. Novos bárbaros, apesar do disfarce, puseram ímpeto desvairado em derrubar conceitos, tidos como velhos. A chantagem da modernidade era como a roupa do rei; qualquer criança via que o rei, estava nu. Mas a intensa propaganda – em que só era original o elefante – pretendia provar que éramos todos idiotas, atrasados, incapazes de compreender e de aceitar a esplêndida “modernidade” com que nos presenteavam, os alvoroçados chicago-boys, inventores da economia, cuja audácia foi logo acompanhada pelos vigaristas que depressa encheriam o noticiário policial, rápidos no gatilho dos cheques em dólares e sagazes no manejo das facilidades administrativas, trabalhadas com desenvoltura sem par. A grande meta era principalmente a área estatal da economia. Tratava-se, dizia o elefante inteligente e burlesco, de uma velharia. Era preciso dar agilidade à máquina. Foi o atropelo a que o país assistiu, um pouco assustado e um pouco surpreso. Empresas estatais altamente rentáveis foram entregues contra pacotes de moedas podres. Foram doadas, na verdade. A iniciativa privada, apregoada como detentora de mágicos poderes, como fonte de salvação, recebeu tais empresas e, logo, dando-as como garantia, pleitearam generosos empréstimos. Era a fórmula antiga, agora posta em prática com capricho. O povo sofria fome, morava em baixo dos viadutos, dormia nas calçadas, multidões de desempregados, de famintos, de maltrapilhos, alguns morrendo no frio de um inverno que somava efeitos aos do descalabro econômico, invadiam cidades, assaltavam, e as prisões ficavam superlotadas e muitos condenados continuavam nas ruas porque já não havia nelas espaço para que cumprissem as suas penas, os preços das coisas, inclusive as mais triviais, e particularmente os dos alimentos, subiam a cada hora, os remédios passaram a ser privativos dos ricos e os hospitais foram sucateados, os serviços públicos foram desorganizados. Mas o cronograma da desmontagem do Estado, por cima das crises e das tormentas, insensível ao dantesco espetáculo de tanta miséria, prosseguia fria, metódica, rigorosamente. Nada o detinha.

Claro que a “modernidade”, como cedo se verificou, consistia em paralisar a cultura, deixando-a ao desamparo, em paralisar a pesquisa científica, deixando-a sem recursos, mas, ao mesmo tempo, providenciar com urgência uma lei que protegesse patentes estrangeiras do que era nosso, em sucatear a rede hospitalar, em fazer com que indústrias antes prósperas fossem à falência. Empresas modelares, como a Usiminas, foram vendidas por preço vil. Outras da área siderúrgica e da área petroquímica, áreas essenciais, em que o Estado fundamentara sua presença estimuladora, como a siderúrgica de Tubarão, com 40% de sua produção colocados no exterior, ou a Nitriflex, competidora privilegiada de congêneres estrangeiras e abastecedora do mercado interno, eram “leiloadas” às pressas, com um afã de fim de festa, antes que alguém bradasse um protesto. O cerco à CSN e à Petrobrás era fechado, a cada dia. A meta era mesmo liquidar as possibilidades de existência de uma base nacional para desenvolvimento.

Nada poderia deter a marcha de uma política, insana na aparência, realmente dotada de fria lógica e determinação, articulada à tavolagem financeira internacional, agora proposta a dominar o mundo e colocá-lo a seu serviço, para isso necessitada de uma subordinação absoluta, que se materializaria, particularmente, no nível da dívida externa. Não deveríamos seguir a ideia de pagá-la sem sacrifício do povo brasileiro, mas, ao contrário, deveríamos capitular ante todas as exigências, ainda as mais antinacionais, para insistir num propósito impossível, o de saldar um endividamento já liquidado e que vem sacrificando o povo brasileiro, como o povo de todos os países latino-americanos, acorrentados ao mesmo jugo. Deveríamos persistir em exportar matérias-primas, inclusive as minerais, em que a natureza foi tão pródiga conosco. Os sacrifícios que nos têm sido impostos pelos credores internacionais, com a conivência amável dos negociadores brasileiros, passaram, com Collor, de qualquer limite aceitável. Só um governo do tipo do que suportamos poderia ter a coragem de portar-se como algoz de seu próprio povo, fazendo qualquer negócio, sem nenhum cuidado, sem nenhum escrúpulo. Com a tranquilidade de entregar o que nos pertence e, com audácia ilimitada, este rapaz despreparado para exercer a Presidência da República chegou a envolver-se na bandeira brasileira, como se fosse defensor do que é nacional em nós, enquanto traía uma verdade simples, corriqueira, velha: só é nacional o que é popular. Isso é muito antigo. Nada tem a ver com a “modernidade”.”

 

 

“Os que viveram os anos cinquenta recordam-se do que foi a campanha pela exploração do petróleo em regime de monopólio do Estado. Foi uma tempestuosa campanha, que abalou o país, e nessa campanha, a grande imprensa esteve firmemente, continuamente, deslavadamente em favor da exploração pelos monopólios petrolíferos estrangeiros. Foi preciso que uma gigantesca e séria campanha nacional se levantasse para que fosse criada a Petrobrás, nas condições políticas da época. Criada a empresa estatal, foi ela minada, continuadamente, por diretorias de gente que não acreditava na empresa, não acreditava na eficácia do regime de monopólio estatal. Corram a lista dos que dirigiram a Petrobras, desde a sua criação: não houve nela um só diretor nomeado que formasse na campanha pelo monopólio estatal, salvo Francisco Mangabeira, que teve o seu período de direção sabotado. E a Vargas, como se sabe, jamais foi perdoado o crime de ter aceito o monopólio estatal do petróleo.

Poucos se recordam como foi criada a Companhia Siderúrgica Nacional, outra obra de Vargas. Da criação da CSN nasceu a indústria brasileira de bens de produção, nasceu o avanço industrial do país, nasceram numerosas empresas que alteraram profundamente a estrutura econômica do país. Pois bem, não podendo arrasá-la, suprimi-la, liquidá-la, a ofensiva reacionária operou de maneira solerte: operou a sua descapitalizaçao. A CSN operou no vermelho anos a fio, fornecendo chapas baratas a indústrias estrangeiras estabelecidas no Brasil para que estas auferissem gordos lucros — convenientemente remetidos para o exterior, e produzisse, por exemplo, automóveis caros e ruins. A siderurgia nacional, de que a CSN foi pioneira e motor do desenvolvimento, está sendo entregue, pelos modianos da vida, a preço de banana, obedecendo a uma política impatriótica, apelidada, ironicamente, de modernização.”

 

 

“Mas, por outro lado, é preciso aceitar que o Estado é uma categoria histórica, isto é, ele muda de conteúdo ao longo do tempo e é subordinado à correlação de forças sociedade. O Estado não existiu sempre, ele surgiu com a sociedade de classes: as comunidades primitivas não têm classes – não conhecem o Estado: os ianomâmis têm Estado. É importante, entretanto, reter o que de fundamental existe na definição, embora vulgar, de Estado: o Estado tem razões políticas, move-se por razões políticas — nível em que o público, o povo, intervém conforme a etapa de desenvolvimento da sociedade. A ordem privada tem razões de lucro, move-se por razões de lucro. Claro que isso ocorre numa determinada etapa histórica como aquela em que vivemos, no Brasil. Quando se pretende, pois, deslocar determinada empresa da área do Estado para a área privada – quando se pretende privatizá-la – isto significa que ela em lugar de pertencer ao público, ao povo, passa a pertencer a indivíduos, ou agrupamento de indivíduos em empresas. Deixa de ser de todos para ser de alguns E só a ânsia do lucro pode explicar o furor com que, como atualmente no Brasil, e nem só no Brasil, indivíduos e grupos de indivíduos se atiram à rapina do Estado. Eles são movidos pelas razões do lucro. (...)

Daí a fúria das privatizações. Era, na realidade, uma tarefa de rigorosa destruição do Estado, encetada, no governo Collor, por um grupo de chicago-boys intitulados gênios que trataram preliminarmente de despedir milhares de funcionários, paralisando o funcionamento de inúmeras repartições, em muitos casos simplesmente extintas, enquanto se fazia do desemprego meta de governo.

O sucateamento da rede hospitalar, a destruição do ensino público, o abandono já antigo do transporte ferroviário e do transporte por água, justamente os mais eficientes e mais baratos, e mil e uma outras proezas foram consequência dessa desvairada política, batizada ironicamente ou sarcasticamente de “modernidade”. O pior efeito, entretanto, dessa tempestuosa impostura foi incutir em nosso povo a descrença nas potencialidades do Brasil. Essa tenebrosa tarefa de convencimento de milhões de seres humanos de que não lhes restava senão entregar as riquezas naturais e o patrimônio já constituído à iniciativa privada, foi pior do que o quadro generalizado de miséria e de criminalidade consequentes de tais desmandos e da pregação e vitória dessas teses devastadoras. Com uma urgência já por si suspeita, passavam a indivíduos e grupos de indivíduos, bem instalados no mercado, pela utilização das chamadas “moedas podres”, correspondendo a doações envilecedoras, empresas com o que o Estado se fazia presente na estrutura da produção, com eminente papel. O processo imoral acelerou a concentração de renda, aumentou o desemprego, debilitou gravemente o patrimônio público. (...).

A apresentação do mercado como potentado mítico, dotado de poderes mágicos, não é apenas falsa e tola, ela representa a falta de qualquer sentido e relação com a realidade. Claro está que o Estado sempre teve intervenção na economia, no Brasil e em todo o mundo, simplesmente por existir. Não há Estado neutro, não há Estado acima da sociedade, desligado de suas condições. Afirmar o contrário não é apenas uma deslavada impostura: é uma falsidade que, por si só denuncia sua ligação a determinados interesses privados, insaciáveis em sua cobiça e absolutamente desinteressados do que o povo necessita e estima e carece.

Os que estudaram o nosso desenvolvimento econômico bem sabem que houve nele dois períodos importantes: o da Primeira Guerra Mundial e o da crise de 1929. Não por coincidência, dois períodos em que o imperialismo, ocupado com a guerra ou limitado na disponibilidade de capitais, reduziu sua pressão. Tal fato forçou o Estado, nos países de economia dependente a intervir energicamente. Celso Furtado frisa que no primeiro caso, “o Estado nacional emerge como um fator importante no sistema econômico brasileiro”. A economia brasileira antecipou-se mesmo às economias mais desenvolvidas na recuperação de seus índices de produção. Em 1933, o Brasil já estava recuperado da crise, enquanto Estados Unidos e Europa nela permaneciam. Isso decorreu da ação do Estado aqui, da intervenção do Estado na economia. Foi, fatalmente, a intervenção que salvou a economia, O avanço industrial, então, privou “fundamentalmente do processo de substituição de importações, a captação de recursos dependeu fundamentalmente da ação do Estado”, como escreveu Celso Furtado.

A economista Helga Hoffmann, apreciando o problema do planejamento econômico, situa com realismo o quadro: “A intervenção do Estado na economia dos países subdesenvolvidas, em particular, América Latina, não foi no sentido de limitar as funções do capital privado; ela surgiu precisamente para suprir as deficiências desse capital privado, buscar melhor aplicação para recursos escassos e dispersos, enfrentar a espoliação e a concorrência estrangeira, criar a base econômica necessária ao reforçamento da independência nacional”.”

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