Editora: Graphia
ISBN: 978-85-8527-714-7
Opinião: ★★★☆☆
Páginas: 132
Sinopse: Ver Parte I
“No Brasil, é fácil lembrar, sempre que
repontou qualquer ideia de alteração no regime de obediência silenciosa,
absoluta e mansa ao que era determinado pelo imperialismo, mesmo que de
dimensão reduzida, recebia a pecha de subversão e a intimidação poderosa de uma
força impositiva. Vargas foi deposto e levado ao suicídio porque pretendeu
combater a desenfreada remessa de lucros de alguns investimentos estrangeiros,
que acabou por denunciar em sua carta-testamento, e por ter permitido a
fundação da Petrobrás e da Eletrobrás. João Goulart foi deposto tão
simplesmente porque acenou com as chamadas “reformas de base”. Isto para só
mencionar dois exemplos clamorosos e bem conhecidos. Todos sabem que a defesa
dos interesses nacionais foi, no Brasil, tenazmente perseguida e o nacionalismo
confundido como subversão para os fins da mais severa e criminosa repressão. A
defesa dos interesses nacionais foi, no Brasil e não só aqui, colocada como
crime, punível pela legislação, enquanto a submissão às imposições americanalhadas
se constituía em mérito.”
“Mas havia que convencer, como foi feito no
passado, as vítimas, de que deveriam aceitar o que lhes era imposto
ideologicamente, considerando-o excelente. Deveriam ter prazer em submeter-se
ao tratamento de choque que o neoliberalismo exige. E achar que isto lhes era
benéfico, positivo, progressista, “moderno”. As vítimas, como na etapa em que a
ideologia do colonialismo gerou preconceitos destinados à aceitação, pelos
dominados, de uma dominação espoliadora, deveriam ser submetidas,
progressivamente, a um entorpecimento, a uma espécie de anestesia que
permitisse a operação espoliadora sem riscos e proporcionando o lucro máximo.
Daí ter sido desencadeada a campanha pelo neoliberalismo, em termos universais.
A peça principal dessa nova doutrina “salvadora” residiu na ressurreição do
livre-cambismo. A luta contra o protecionismo – por sinal aquilo que
possibilitou o desenvolvimento capitalista no ocidente europeu e nos Estados
Unidos, iniciado na Grã Bretanha – foi uma arma de comprovada eficiência. Nós,
no Brasil, conhecemos os seus efeitos perniciosos desde os dias em que Alves
Branco propôs a primeira alteração nas taxas alfandegárias impostas pelos
tratados de 1810 e 1824, que entregaram o mercado brasileiro aos ingleses.
Todos os países depois conhecidos como desenvolvidos, isto é, de altas taxas de
acumulação capitalista, criaram indústrias e reservaram os seus mercados
internos, amparados num protecionismo que chegou a extremos limites. Mas aos
outros impuseram sempre taxas alfandegárias baixas, impuseram formas de
livre-cambismo, que os forçou à estagnação ou a um lento desenvolvimento.”
“A segunda peça no instrumental do
neoliberalismo foi aquela que se no extraordinário esforço para destruir tudo
aquilo que representava o elemento nacional em cada país. A categoria nação —
uma criação da época ascensional da burguesia, aliás — deveria ceder lugar à
integração num mundo decisivamente internacionalizado, a começar pela
integração de todas as estruturas econômicas em uma só, sem barreiras.
Tratava-se, para isso, de destruir, de extirpar pelas raízes, todas as
características nacionais em cada país, a começar pelas culturais. A alienação
cultural com que nos deparamos e que responde pela estagnação em todos os
gêneros de criação artística; nesta fase, deriva dessa pressão que pretende,
justamente, nos desfigurar, nos descaracterizar. O nacional, nas criações
artísticas, não tem espaço, não tem vez: o cinema nacional desapareceu, o
teatro vai capengando nas peças importadas ou nos pastiches descoloridos, a música
popular foi abafada pelo implacável controle das gravadoras e dos disc-jókeis, a literatura se arrasta em
nível baixíssimo, com o mercado editorial absorvido no best-seller mais reles,
fundado no sexo e na violência. E daí por diante, como é fácil constatar na
imprensa — jornais e revistas — no rádio e na televisão, dotada esta de
extraordinário avanço técnico que multiplica a sua indigência de conteúdo, que
supõe em nós nível próximo da imbecilidade. Os filmes de TV, os célebres
“enlatados”, veículo diário do crime e de todas as formas de violência,
espantam e dão ideia dos processos que o neoliberalismo usa, em doses maciças e
cotidianas, e são pagos em dólar.”
“Privatizar foi a palavra de ordem do
neoliberalismo. Por razões de lucro, que são aquelas razões que a razão não
explica, segundo alguém disse do amor. Claro está que a doutrina foi pregada,
também, e com ênfase, sob numerosos meios e aspectos, como nas escolas
destinadas ao ensino daquilo que conhecem como Economia, particularmente
naquelas que forjavam esse subproduto da tramoia, da alienação e da falsidade
que é o chicago-boy. Por isso é que,
periodicamente, assistimos às proezas de grupos de chicago-boys chamados ao poder, chamados por agentes ou mandatários
do G-7, operando sucessivos, inócuos e abusivos malabarismos na área fazendária
e no planejamento econômico. Entra um grupo, faz o seu número, e sai; entrando
outro grupo, que passa do trapézio ao fio dos equilibristas; e tudo continua
como dantes, com as consequências conhecidas pelo povo, que a tudo assiste e
tudo sofre.”
“Os trabalhos da Comissão Parlamentar de
Inquérito (CPI) para apurar tramoias operadas na Comissão do Orçamento1
na Câmara dos Deputados levaram ao conhecimento do público as ações de
conhecida e poderosa empresa, a Odebrecht. Tanto bastou para que o seu
presidente fizesse furiosas declarações à imprensa. Nessas declarações frisou
que as acusações contra a sua empresa provinham daqueles que conheciam posição
dele e de sua empresa em favor das privatizações. Tratava-se, na circunstância,
de tramoias orçamentárias e por isso a declaração, embora natural em quem se
tornara já beneficiário das privatizações, mostrava que o indiciado sabia muito
bem do que era essencial no quadro atual do Brasil. Ele está e esteve empenhado,
e profundamente, na ampliação e no apressamento do processo de privatizações.
Sócio dos cofres públicos, com agentes no aparelho de Estado, e bem pagos, ao
que parece, agentes que respondem por falcatruas gigantescas, que desvendaram
os intestinos da corrupção neste país, ele deixava bem claro que estava
vinculado ao processo das privatizações. E estava claro que se esse processo
não avançasse a sua empresa teria grandes prejuízos, ou deixaria de auferir
grandes lucros, aqueles que lhe permitiram receber grossas fatias do orçamento,
isto é, dos cofres públicos.
Não foi esse aspecto importante de suas
declarações, entretanto, perfeitamente integradas na essência do que é ele e a
sua empresa. O importante, nas referidas declarações é a comprovação, da parte de
beneficiário de que, no Brasil, o Estado, longe de deter uma área própria de
empresas, era usado e explorado por empresas privadas — como a Odebrecht. Isto
significava, em última análise, importando em confissão da parte de figura
notoriamente ligada aos cofres públicos, e de notória influência no processo de
privatizações, que a tarefa urgente, no Brasil, é justamente a oposta ao que
pregam ingênuos e espertos: a tarefa urgente, no Brasil, é desprivatizar o
Estado, livrá-lo da espoliação nele operada pelas empresas privadas.
Poucos dias depois, capturado do outro lado
do mundo, onde se refugiara, fugindo à polícia brasileira, outro eminente
prócer do governo Collor, o sr. P.C. Farias, iria declarar, ante a já citada
CPI, com a tranquilidade de quem menciona o óbvio, que, sob a legislação
vigente, os grandes empresários, isto é, a área privada da economia, não
poderiam deixar de subsidiar monetariamente — e vá lá eufemismo — governantes e
parlamentares, para favorecimento de seus negócios. Essas duas ilustres
figuras, o ex-chefe do governo Collor e o seu financiador e beneficiário,
concordavam que o Estado, no Brasil, não é público — é privado. O Estado serve
a interesses privados, evidentemente, com a estrutura econômica e política em
que vivemos. E nele, a área que serve o interesse público é, justamente, a área
estatal.”
1: Refere-se ao escândalo dos anões do
orçamento (assim chamados devido à baixa estatura dos principais atores
envolvidos), que data de 1993. Políticos manipulavam emendas parlamentes com o
intuito de desviarem o dinheiro através de entidades sociais fantasmas ou com a
ajuda de empreiteiras.
“Todos devem estar lembrados proclamada a
Constituição, logo pipocou, de diversos quadrantes, a começar por Sarney; então
presidente, a saraivada de ataques visando demonstrar que os seus dispositivos
“tornavam o Brasil ingovernável”. Era o recado externo, sempre imperativo.
Dessa origem surgiu e cresceu a ofensiva pela revisão constitucional. Visando,
naturalmente, expurgar da Constituição tudo o que perturbasse a pilhagem da
economia brasileira. Despedido Collor, porque trabalhou mal e porque, como P.
C. Farias, cuidou mais dos seus interesses do que dos interesses das forças que
o geraram e elegeram, Itamar Franco seu vice, assumiu e demonstrou, nos
primeiros dias, inclusive em desabusadas declarações, que pretendia ser fiel à
imagem que fixara em sua já longa carreira política, de homem honrado, coerente
e nacionalista. Imediatamente, a mídia tratou de arrasá-lo, inclusive em
campanha debochativa que não poupou nem o topete nem a exclamação uai. Itamar e seus auxiliares sofreram
virulenta e sistemática campanha de achincalhe. Visava essa campanha,
particularmente, à área econômica. Era urgente assegurar a continuidade do
programa de privatizações e das negociações referentes à dívida externa. Não
por acaso, a pasta da Fazenda acabou por pertencer a Fernando Henrique Cardoso,
“intelectual de renome e sociólogo marxista”, como mencionou, nisto
completamente equivocado, o jornal Le
Monde Diplomatique, em novembro.
O novo ministro, entre cujos escritos antigos
existia um em que ele estudava “as classes sociais no mundo capitalista da
periferia”, tratou de esclarecer, apressadamente, que era “preciso esquecer”
tudo o que ele havia escrito. Estava, pois, encerrado o drama: havia sido
encontrado o homem certo para o lugar certo. Desde julho de 1993, na realidade,
passou o poder a FHC, e este encontrou, no exterior e no interior, segundo a
mídia, intensamente mobilizada para promovê-lo, um apoio veemente. E por isso
mesmo suspeito, sem a menor dúvida. Como esclareceu um comentarista
estrangeiro, criou-se um ambiente altamente auspicioso para as suas ações. E
desde logo, e sabiamente, ele mobilizou e convocou alguns chicago-boys, como de praxe, experientes em mágicas monetárias e
fórmulas aprendidas, em que sãos efetivamente, Phds. Citado comentarista viu
bem: “Graças à mídia fortemente controlada por interesses financeiros,
explicou-se à opinião a prevista desindexação dos salários era ‘o único meio de
combater a inflação’”. Continuou assim sua crítica: “o ministro anunciou cortes
orçamentários de 50% na educação, na saúde e nos serviços sociais. Seu plano
com referência aos salários, votado em agosto pelo Congresso, deveria
corresponder, em termos reais, a uma baixa de 31% nos salários, ou seja, uma
'economia' de aproximadamente 11 bilhões de dólares para o Tesouro... e em
proveito dos credores”. Claro que não seria a primeira vez que um homem “de
esquerda” seria escolhido para servir numa tarefa que repugnaria mesmo a um
conservador honesto e patriota. O poder, no Brasil, está cheio de antigos
“esquerdistas”, que se arrependeram ou disfarçaram. O “esquerdismo”, realmente,
prejudica a carreira de quem quer que seja.
As vitórias da pressão popular, efetivadas
destacadamente com o impedimento de Collor, a prisão de seu melhor aliado, P.
C. Farias, e a instalação da CPI do Orçamento, altamente positivas, sem dúvida,
apresentam, no entanto, um perigo iminente: o de considerar fenômenos políticos
complexos em termos simples. No caso: em considerar que os males brasileiros
serão resolvidos ou devem ser, apenas no nível ético. Isto é, que as grandes,
profundas e conhecidas deficiências que a sociedade e a economia brasileiras, e
até as de ordem cultural apresentam, são passíveis de solução desde que a
exigência para o exercício do poder seja limitada à honestidade pessoal. Não é
assim: homens de inatacável probidade podem desenvolver atividades políticas
profundamente lesivas ao país. O moralismo, muitas vezes, não passa de disfarce
para malefícios muito sérios. As falcatruas de Collor, de P. C. Farias, dos
“anões” da Comissão do Orçamento são coisas menores, em comparação com as
medidas, por exemplo, de FHC na área econômica. Uma privatização, como a da
CSN, representa lesão muito mais grave do que um desvio de verba por este ou
aquele parlamentar, em benefício próprio. Os pequenos furtos não afetam as
estruturas do poder e mesmo perturbam os grandes problemas nacionais: o que
interessa são os grandes. E estes, quase sempre, são legais, isto é, cobertos
pela legislação vigente. É preocupante, para descer ao singular, ao concreto,
que um partido político, como o PSDB, passe a desfrutar do prestígio que a
situação atual lhe vem proporcionando. É a ideia de que, trocando as pessoas, o
poder passa por mudança substancial. Na verdade, os males do Brasil são
estruturais. A inflação só poderá ser realmente combatida com reformas
estruturais. A extinta e saudosa UDN, União Democrática Brasileira, que o atual
PSDB tanto faz lembrar, foi responsável, entre outras coisas, por vários golpes
de Estado, todos destinados a impedir reformas que afetariam os interesses dos
poderosos despe país e do exterior, os donos do poder. Ela cultivava um
farisaísmo que lhe proporcionou largo prestígio. Prestígio, não votos. Para
chegar ao poder; valeu-se sempre de terceiros, quase sempre aqueles que não
hesitavam em violar a lei. O Brasil está carente demais para repetir a
experiência. Ser honesto é exigência que deve ser cobrada a cada cidadão, e
naturalmente aos que ascendem ao poder, em qualquer nível. Mas, infelizmente,
não leva, por si só, à solução dos nossos problemas. Quem viver, verá!”
“É preciso, antes de mais nada, mencionar que
as estruturas dominantes no Brasil estão, e nisto há acordo de opiniões, mais
do que superadas. São estruturas obsoletas, ancoradas em condições muito
diferentes das atuais. São estruturas que consagraram o empobrecimento das
populações e ficaram sempre condicionadas não só a um mecanismo de concentração
da renda já bem discutido como a condições sociais que bradam aos céus. O
Brasil arcaico está em nossos dias, e preside a nossa política e a nossa
economia. Todos estão de acordo que as estruturas são arcaicas e que é preciso
mudá-las. Aí entram os partidários do neoliberalismo e proclamam que,
realmente, as estruturas estão arcaicas e que é preciso “modernizá-las”. Opinam
que o neoliberalismo é a saída e que ele é moderno. Trata-se, bem analisadas as
suas características, entretanto, de que o neoliberalismo é arcaico, , revive
coisas superadas, etapas ultrapassadas, conceitos velhos, numa época nova.
Enquanto estes conceitos velhos, apresentados como “modernos”, para convencer
todos aqueles que se recusam a aceitar a permanência das velhas estruturas, são
facilmente descartados, os novos, definidos como revolucionários, criam uma
situação em que negá-los passa a ser heresia. Quem pode recusar o novo, quem
aceita ser qualificado como infenso ao que é moderno? Trata-se de uma chantagem
que vem sendo alimentada por largos recursos porque serve a poderosos
interesses. Os modelos antigos estão superados, esgotaram as suas
possibilidades. Mas, então, é preciso considerar as raízes das coisas, dos
fenômenos. Considerar as raízes é ser radical, realmente. Mas aquilo que se
apresenta como novo tem por característica essencial a de conservar as velhas
estruturas, de não tocar nas velhas estruturas. O neoliberalismo é uma farsa
que se ocupa fundamentalmente do que existe de formal em nós.
O desatinado neoliberalismo, realmente, não
afeta em nada e nem mesmo arranha as estruturas obsoletas que definiram a
economia colonial e a economia dependente. Pelo contrário, disfarçado em
roupagens que fantasiam o povo, o neoliberalismo consagra o que temos de mais
velho, aquilo que precisa realmente ser superado. Num mundo que permanece em
desordem, o neoliberalismo só vê um aspecto, o da dominação externa, cujos
modelos, que lhe são impostos, tratam de aceitar, pregar e, quando pode,
executar. Pretende, em suma, substituir o modelo agrário-exportador, quando
dominamos, com o açúcar e com o café, a troca internacional, por longos anos,
quando não passávamos de exportador de matérias-primas e de alimentícios, para
um modelo que é aparentemente novo, o modelo exportador de grãos e de minérios
e de produtos industrializados no Brasil, fabricados por multinacionais. O
modelo vem do Consenso de Washington, do qual emanam as prescrições, que são
sagradas para os pretensos inovadores. Operam, portanto, na superfície dos
fenômenos, preocupadíssimos em não tocar as estruturas, em não tocar na
essência. Isto encontra suporte de alguma importância na anomalia de termos
atingido, no capitalismo brasileiro, uma etapa de desenvolvimento, enquanto
regime, em que a oligarquia financeira tem papel relevante, justamente porque
ela representa o elo mais poderoso dos vínculos com o exterior. É anômala a
primazia porque a hegemonia do capital financeiro no desenvolvimento
capitalista indica uma etapa superior desse desenvolvimento, etapa que no
Brasil estamos longe de ter atingido. A dominação do capital financeiro deforma
a nossa estrutura de produção. Não espanta que os pretensos economistas que nos
governam, com os chicago-boys ditando
regras, considerem a inflação, por exemplo, como fenômeno meramente monetário
e, portanto, passível de solução no nível da moeda. Ela se mede em termos de
moeda, realmente, mas é complexo processo vinculado à economia como um todo.
Ainda nisto o neoliberalismo é arcaico.
O neoliberalismo, aqui, pretende esquecer
que, nos últimos seis anos, as empresas estrangeiras instaladas no Brasil, e
sob regime de privilégio, investiram no país menos de meio milhão de dólares e
transferiram às suas matrizes nove milhões de dólares. É a exportação do lucro,
a exportação da acumulação, problema antiquíssimo entre nós. Elas sempre
procuram aqui recursos naturais e força de trabalho barata. O neoliberalismo
proclama a sua finalidade de prolongar e aprofundar esse tipo de exploração,
sob o pretexto da globalização da economia. Defende para nós a abertura do mercado,
não tendo preocupação alguma com o protecionismo dos que exportam para o
Brasil. Fingem ignorar que o serviço da dívida, que pretendem eternizar,
cresceu sete vezes, só entre 1970 e 1975, há vinte e poucos anos. A dívida
externa é sagrada para o neoliberalismo brasileiro, porque os seus adeptos são
submissos aos credores e deles dependem, inclusive nos ensinamentos que
receberam e que pretendem impor ao país. O problema da reforma agrária, para
eles, não existe, vai sendo empurrado com a barriga, através de promessas vãs,
enquanto o campo é teatro de sucessivos genocídios, com os responsáveis sempre
impunes. São assuntos a que esses adeptos têm horror, porque são os assuntos
que a realidade suscita. Alienados, inteiramente fascinados por receitas recebidas
e mal digeridas, tudo o que diz respeito ao real lhes desperta ojeriza. O real
contraria o que eles pensam e dizem e praticam. Pior para o real.”
“Um dos terrenos em que o neoliberalismo
agrava velhas posturas reacionárias reside em seu horror ao trabalho e,
portanto, a tudo o que decorre dos seus reflexos, na economia como política.”
“A questão da democracia é fundamental. Um
regime autenticamente democrático é com o ou, antes, o neoliberalismo é
incompatível com um regime autenticamente democrático. É por isso que convém
demorar um pouco na análise do problema democrático. Considerar que a
democracia se limita ao ato eleitoral é mostrar desconhecimento da matéria.
Democracia é muito mais do que atos eleitorais, admitindo que a legislação
específica seja, na realidade, ampla, isto é, permita a livre manifestação da
vontade popular. A nossa legislação eleitoral é a negação dessa liberdade, como
é bem sabido.
A classe dominante, de olhos postos na Grécia
antiga, conhece bem as formas de limitar a democracia aos atos eleitorais e os
atos eleitorais a um cerimonial destinado a consagrar o status quo. Não é demais lembrar o caso brasileiro. No tempo do
Império, isto é, desde que proclamada a independência, o espaço político era
muito estreito, ocupado quase tão somente pela classe dominante. A Constituição
elaborada pelos “altos e nobres senhores”, como se intitulavam os elementos da
classe dominante, estabelecia condições severas e eliminatórias para o processo
eleitoral, condições fundadas, em diversos níveis, na renda dimensionada em
mandioca; a exigência, para cada caso, era assinalada pela renda: para ser
eleitor, um mínimo de renda; para ser eleito, renda muito maior. Era a
“Constituição da mandioca”, como ficou conhecida. As circunscrições eleitorais
tinham número reduzido de eleitores e os parlamentares eram escolhidos também
por número exíguo deles. Deputados e senadores, estes escolhidos pelo
imperador, depois das eleições, em lista tríplice, podiam ser eleitos por
dezenas de eleitores. Em seu livro O
Senado do Império, Taunay assinala o caso de senadores escolhidos por
trinta, quarenta, cinquenta eleitores. Um senador de duzentos votos era
exceção, ainda no fim do regime. Rui Barbosa, parlamentar destacado, alcançou
cerca de quatrocentos votos em uma de suas vitoriosas eleições.
A República acabou com a exigência eleitoral
baseada na renda, A exigência nova era estabelecida pela alfabetização. Num
país pobre, recém saído do escravismo, ser alfabetizado estava condicionado
pela renda, embora não declaradamente: pobre não podia estudar e, portanto, não
podia ser alfabetizado e, portanto, não podia ser eleitor. Os colégios
eleitorais eram reduzidos e a contagem dos votos obedecia ao que estava
registrado em atas eleitorais manuscritas. Era a época das eleições a bico de
pena e de apurações fraudadas. O movimento de 1930 é que alterou fundamentalmente
esse sistema, criando o voto feminino, depois o voto do analfabeto, e ainda a
justiça eleitoral. Mas todos sabemos quanto uma eleição é cara para o candidato
e o papel que o poder econômico exerce no processo eleitoral.
Temos, hoje, cerca de cento e cinquenta
milhões de eleitores isso leva muitos a afirmar que somos uma democracia. Será
verdadeira essa afirmação? Num país em que um terço da população, como é o
nosso caso, vive no nível da miséria é possível existir democracia? O triste
espetáculo que os pleitos eleitorais no Brasil apresentam, inclusive depois que
chegou ao fim a ditadura, parece demonstrar quão apoucada é a democracia aqui.
Como bem sabemos, o eleitor não escolhe candidatos, ele opta por candidatos;
quem escolhe os candidatos é o partido político. A participação do povo na
organização desses partidos é mínima ou não existe; os eleitores só encontram
os partidos no ato eleitoral. Nossa classe dominante e composta de
conservadores e reacionários, refratários à mudança. Ela está profundamente
interessada na permanência, se possível pela eternidade, de uma estrutura
arcaica. Um dos traços definidores dessa classe é o seu horror a povo, a tudo o
que é popular. Daí a sua especialidade em fabricar eleições que, democráticas
em seus aspectos formais, definem, no fundo, o enraizado sentido
antidemocrático secular entre nós. Reacionários e conservadores detestam correr
riscos e encarar mudanças. Isso em todos os sentidos, em todos os campos, em
todos os níveis. Daí a receptividade que encontrou neles o neoliberalismo que
se apresentou como renovador. O sentido de renovar sem mudança alguma nas
estruturas, que define o neoliberalismo, foi percebido facilmente por uma
classe dominante preocupada apenas na preservação de seus interesses, procurando
fazer crer que eles são de todos, são do povo brasileiro.
As últimas eleições presidenciais (de 1994)
foram prova concreta e insofismável de como o processo eleitoral e a democracia
carecem de afinidades, aqui. Já o pleito anterior mostrara, com exemplar
clareza, a possibilidade de fabricar um candidato adequado à execução dos
planos que definem o neoliberalismo. Catado em Estado nordestino de parca
expressão politica ou econômica, o candidato logo se esmerou em cumprir o
mandato que lhe havia sido conferido, formalmente pelo voto, efetivamente pelas
forças mais atrasadas da sociedade brasileira. Como meta essencial de sua
administração tratou de, rapidamente, desmontar os serviços públicos e
estabelecer que reformar e desempregar são sinônimos para o neoliberalismo.
Escolhido, e com justa razão, para cumprir determinado papel, e nele se
esmerando, não teve condições para chegar ao fim do mandato que as citadas
forças lhe haviam conferido. Ficou pelo caminho e as exigências da reação
conservadora verificaram cedo que, para manter os aspectos formais do pleito
presidencial, era preciso que o candidato apresentasse promessas e fantasias
mas, ao mesmo tempo, tivesse determinados traços pessoais e alguma tradição não
conservadora. O novo candidato foi logo consagrado em sucessivas viagens aos
Estados Unidos e sucessivos banquetes oferecidos pelas chamadas classes
conservadoras.
As forças interessadas no desenvolvimento do
neoliberalismo, compostas em monolítica aliança, estabeleceram as condições da
vitória desse subproduto em singular tripé: intervenção do poder, em todos os
escalões; mobilização intensa das forças econômicas e embora por último mas, na
verdade, imprescindível, articulação total da mídia. Obedientes aos imperativos
mais atualizados da publicidade comercial, capaz de vender geladeira no polo,
foi fabricado o candidato que tinha todas as condições para operar o esforço na
manutenção das estruturas arcaicas, apresentando tal tarefa como modernizadora.
Tratava-se, preliminarmente, de retomar a missão que o candidato no pleito
anterior deixara em meio, apenas começada com o desmantelamento do aparelho de
Estado. Era necessário e urgente prosseguir a tarefa e levá-las às últimas
consequências. O candidato assim “produzido” deveria, desde logo, mostrar a que
vinha.
Ficou evidente, após mais essa demonstração
concreta, que a democracia, no Brasil, não passa de uma farsa formal. E não
passará mesmo enquanto persistirem tais condições presidindo os pleitos, na
comprovação mais contundente de que democracia não se limita à realização de
eleições. Menos ainda quando as eleições forem condicionadas pela mídia,
devidamente mobilizada e unificada. Na realidade, enquanto a mídia, impressa e
eletrônica, exercer o controle da opinião, servindo aos interesses conservadores
minoritários e até aos externos, não há condições para a vigência da democracia
entre nós. Isso, no fim de contas, não passa de demonstração repetida de que
democracia e miséria são incompatíveis e que a continuidade dessa farsa nos
leva a um recrudescimento de lutas políticas, com profundos reflexos sociais,
porque a burla fica cada vez mais ostensiva. O nosso povo está compreendendo,
com a persistência dessa continuada agressão aos seus direitos mais
elementares, que a sua convocação às urnas, periodicamente, não passa da
consagração de uma farsa. Terminará pela constatação de que a liberdade é o
mais precioso dos bens e que não há condições de liberdade com a existência e
funcionamento desse poder que é a mídia, colocado acima de todos os poderes e
com a mais ampla liberdade para exercer a sua tarefa. E desde logo deve ficar
bem claro que não cabe brandir a apregoada liberdade de imprensa. Não há
liberdade numa tarefa essencialmente pública e monopolizada como a de controlar
a opinião. A democratização, entre nós, precisa começar pelo rompimento do
monopólio da informação. O problema central da democracia é a preservação da
liberdade, valor supremo.
Os pontos mais destacados em que o
neoliberalismo vem se especializando e apurando consistem em processos de
falsificação da verdade. O processo de difamação que prega a necessidade de
reduzir o Estado a funções mínimas, meramente administrativas. Na verdade,
muito ao contrário do que prega a mídia neoliberal, trata-se, no Brasil, e como
condição essencial, de desprivatizar o Estado. Porque, entre nós, o Estado é
regulado no exercício de seus poderes, por número reduzido de pessoas e de
entidades e trabalha para elas. A outra tarefa importante do neoliberalismo
aqui vem sendo a de destruir o patrimônio público, com as privatizações. Estas,
na verdade, e sob as condições a que vêm sendo submetidas, constituem na
prática destruição da riqueza que pertence a todos, porque pública, e a redução
do Estado, privado desses instrumentos poderosos, de profunda influência na
geração da riqueza. As fontes de exploração — riquezas naturais e mão de obra
barata — devem ser pasto da fúria desatinada, decorrente da crise mundial, com
que as forças econômicas internacionais se atiram ao domínio de todas as áreas.
A profunda crise do capitalismo contemporâneo necessita dessa furiosa
arremetida em busca de novas áreas de exploração. O Brasil, como bem sabemos, é
uma das áreas prediletas da cobiça internacional. Quando o neoliberalismo
levanta e implanta o conceito de globalização está indicando que as nossas
riquezas pertencem a todos e particularmente aos que as desejem explorar. Não
são nossas, são de todos. É uma espécie de socialização às avessas.
As consequências mais ostensivas do
neoliberalismo, no caso brasileiro, está no crescimento do desemprego. O
desemprego é a face verdadeira do neoliberalismo. Seus efeitos são terríveis,
como conhecem com clareza, assistindo às suas mazelas. Ele retira do
trabalhador as condições mínimas para lutar pelo salário. Hoje, o trabalhador
luta, principalmente, pelo emprego. E está perdendo essa luta. O neoliberalismo
reduz as massas trabalhadoras a legiões de desempregados que perambulam pelas
ruas, dormem nas ruas e não encontram lar. O fenômeno é mundial, sem dúvida,
porque a crise tem dimensões mundiais. Está gerando, inclusive e como um de
seus males mais graves, o renascimento do fascismo e do nazismo, de todas as
formas de violência contra o homem que pareciam superadas. Não estão superadas
uma vez que se repetem as condições que as motivaram no passado. É a democracia
que está em perigo, com o neoliberalismo. Ou o Brasil acaba com o
neoliberalismo ou ele acaba com o Brasil.”
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