Editora: Loyola
ISBN: 978-85-15-03536-6
Tradução: Adail Sobral e Maria Stela Gonçalves
Opinião: ★★★★☆
Páginas: 256
Sinopse: Ver Parte
I
“Isso nos leva, finalmente, à problemática
questão da abordagem seguida por Estados neoliberais quanto aos mercados de
trabalho. No plano doméstico, o Estado neoliberal é necessariamente hostil a
toda forma de solidariedade social que imponha restrições à acumulação do
capital. (...) O resultado geral se traduz em baixos salários, crescente
insegurança no emprego e, em muitos casos, perdas de benefícios e de proteções
ao trabalho. Podemos discernir prontamente essas tendências em Estados que
seguiram o caminho neoliberal. Dado o violento ataque a todas as formas de
organização do trabalho e aos direitos do trabalhador, a que se adiciona o
amplo recurso a reservas de mão-de-obra numerosas mas altamente desorganizadas
em países como a China, a Indonésia, a Índia, o México e Bangladesh, tem-se a
impressão de que o controle do trabalho e a manutenção de um elevado grau de
exploração do trabalho têm se constituído desde o começo num componente
essencial da neoliberalização. A formação ou a restauração do poder de classe
ocorrem, como sempre, à custa dos trabalhadores.
É justo nesse contexto de redução de recursos
pessoais advinda do mercado de trabalho que a determinação neoliberal de
devolver toda responsabilidade por seu bem-estar ao indivíduo tem efeitos
duplamente deletérios. À medida que reduz os recursos dedicados ao bem-estar
social e reduz o seu papel em áreas como a assistência à saúde, o ensino
público e a assistência social, que um dia foram tão fundamentais para o
liberalismo embutido, o Estado vai deixando segmentos sempre crescentes da
população expostos ao empobrecimento10. A rede de seguridade social
é reduzida ao mínimo indispensável em favor de um sistema que acentua a
responsabilidade individual. Em geral se atribuem os fracassos pessoais a
falhas individuais, e com demasiada frequência a vítima é quem leva a culpa!”
10. V. NAVARRO (Ed.), The
Political Economy of Social lnequalities: Consequences for Health and the
Quality of life, Arnityville, NY, Baywood, 2002.
“O Estado produz tipicamente legislação e
estruturas regulatórias que privilegiam as corporações e, em alguns casos,
interesses específicos, como energia, produtos farmacêuticos, agronegócios etc.
Em muitos casos das parcerias público-privadas, em especial no nível dos
municípios, o governo assume boa parte do risco enquanto o setor privado fica
com a maior parte dos lucros. Se necessário, o Estado neoliberal além disso
recorre a legislações coercivas e táticas de policiamento (por exemplo, regras
antipiquete) para dispersar ou reprimir formas coletivas de oposição ao poder corporativo.
As maneiras de vigiar e policiar se multiplicam: nos Estados Unidos, a prisão
se tornou uma estratégia-chave do Estado para resolver problemas que surgem
entre trabalhadores descartados e populações marginalizadas. O braço coercivo
do Estado é fortalecido para proteger interesses corporativos e, se necessário,
reprimir a dissensão. Nada disso parece compatível com a teoria neoliberal. O
temor neoliberal de que grupos de interesses pervertam e subvertam o Estado em
nenhum lugar se realiza melhor do que em Washington, em que exércitos de
lobistas corporativos (muitos dos quais se aproveitaram da “porta móvel” que
lhes permite deixar o emprego no Estado e buscar empregos bem mais lucrativos
nas corporações) ditam na prática a legislação mais adequada a seus interesses.
Embora alguns Estados continuem a respeitar a tradicional independência do
serviço público, esta condição tem estado em toda parte ameaçada no curso da
neoliberalização. A fronteira entre o Estado e o poder corporativo tornou-se
cada vez mais porosa. O que resta da democracia representativa é sufocado,
quando não, como no caso dos Estados Unidos, totalmente, ainda que legalmente,
corrompido pelo poder do dinheiro.”
“O enfraquecimento (como na, Grã-Bretanha e
nos Estados Unidos), a superação (como na Suécia) ou a destruição violenta
(como no Chile) das forças do trabalho organizado é uma precondição necessária
da neoliberalização. Da mesma maneira, esta tem dependido com frequência do
poder, da autonomia e da coesão crescentes dos negócios e corporações e de sua
capacidade como classe de pressionar o poder do Estado (como nos Estados Unidos
e na Suécia). Essa capacidade é exercida com maior facilidade, de maneira
direta, por meio das instituições financeiras, dos comportamentos de mercado,
da interrupção de investimentos ou da fuga de capitais, e, indiretamente,
influenciando o resultado de eleições, fazendo lobby, subornando e corrompendo,
ou, de forma mais sutil, obtendo o poder sobre as ideias econômicas. O grau em
que a neoliberalização foi incorporada às compreensões de senso comum da
população em geral tem exibido amplas variações, a depender da força da crença
no poder das solidariedades sociais e na importância das tradições de
responsabilidade e provisão sociais coletivas. Tradições políticas e culturais
que estão na base do senso comum popular tiveram por conseguinte participação
na diferenciação do grau de aceitação política dos ideais da liberdade
individual e das determinações do livre mercado, em oposição a outras formas de
sociabilidade.
Contudo, o aspecto mais digno de nota da
neoliberalização vem da complexa interação entre dinâmica interna e forças
externas. Embora em certos casos se possa conceber com certo grau de
racionalidade que estas últimas foram dominantes, na maioria dos exemplos as
relações são bem mais intricadas. Afinal, no Chile, foram as classes altas que
procuraram a ajuda dos Estados Unidos para arquitetar o golpe, e foram elas que
aceitaram a reestruturação neoliberal como o caminho a seguir, ainda que com base
nos conselhos de tecnocratas treinados nos Estados Unidos. E na Suécia foram os
patrões que buscaram a integração europeia como recurso para estabelecer um
programa doméstico neoliberal para uma economia em dificuldades. É improvável
que mesmo o mais draconiano programa de reestruturação do FMI possa ir adiante
sem ao menos algum apoio interno da parte de alguém. Tem-se por vezes a
impressão de que o FMI apenas assume a responsabilidade por fazer coisas que
alguma força de classe interna quer fazer de qualquer maneira. E há um número
suficiente de casos bem-sucedidos de rejeição de conselhos do FMI para sugerir
que o complexo Tesouro dos Estados Unidos-Wall Street-FMI não é tão poderoso
quanto por vezes se afirma. Só quando a estrutura interna de poder foi reduzida
a uma casca oca e os arranjos institucionais internos estão num total caos,
seja em função de um colapso (como na União Soviética e na Europa Central), por
causa de guerras civis (como em Moçambique, no Senegal ou na Nicarágua) ou em
razão de fraquezas degenerativas (como nas Filipinas), vemos forças externas
orquestrando livremente reestruturações neoliberais. (...)
Se a neoliberalização produz descontentamento
social e instabilidade política do tipo que a Indonésia ou a Argentina
vivenciaram em época recente, ou se resulta em depressão e restrições ao
crescimento dos mercados internos, então seria possível com a mesma facilidade
dizer que ela antes repele do que estimula investimentos46. Mesmo
quando algum aspecto da política neoliberal com relação a, digamos, mercados de
trabalho flexibilizados ou liberalização financeira foi solidamente implantado,
não fica claro que isso seja por si só bastante para atrair capitais móveis. E
há, além disso, o problema bem mais sério de que tipo de capital é atraído. O
capital de portfólio é atraído com a mesma facilidade por uma expansão
especulativa e por sólidos arranjos institucionais e infraestruturais que
poderiam atrair indústrias de alto valor adicionado. Atrair “capital predador”
dificilmente parece ser um empreendimento benéfico, mas isso é o que na
realidade a neoliberalização conseguiu na maioria das vezes (como o admitem
declaradamente críticos como Stiglitz). (...)
E o fato de os Estados Unidos já não
precisarem se defender da ameaça do comunismo implica que o país já não tem
necessidade de preocupar-se excessivamente com o fato de reestruturações
neoliberais desencadearem desemprego em massa e descontentamento social aqui ou
ali. Os Estados Unidos, para grande tristeza dos leais tailandeses, que apoiaram
o país durante toda a Guerra do Vietnã, não se deu ao trabalho de resgatar a
Tailândia no momento da aflição. Na verdade, instituições financeiras
norte-americanas e de outras procedências se deliciaram consideravelmente com o
papel de capital predador.
Mas um fato persistente no âmbito dessa
complexa história da neoliberalização desigual tem sido a tendência universal a
aumentar a desigualdade social e a expor os membros menos afortunados de toda e
qualquer sociedade – seja na Indonésia, no México ou na Inglaterra – ao frio
glacial da austeridade e ao destino tenebroso da crescente marginalidade.
Embora essa tendência tenha sido minorada aqui e ali por políticas sociais, os
efeitos na outra extremidade do espectro social têm sido deveras espetaculares.
Não se viam desde a década de 1920 as incríveis concentrações de riqueza e de
poder hoje existentes nas altas esferas capitalistas. Têm sido espantosos os
fluxos de tributos em favor dos principais centros financeiros mundiais. No
entanto, o que é ainda mais surpreendente é o hábito de tratar tudo isso como
um mero e, em alguns casos, até feliz subproduto da neoliberalização. Parece
inconcebível a própria ideia de que isso possa ser – apenas possa ser – o cerne
fundamental do que a neoliberalização sempre foi. Tem constituído um talento
especial da teoria neoliberal a capacidade de oferecer uma máscara benevolente,
plena de palavras que soam prodigiosamente positivas, como liberdade de ação,
liberdade de pensamento, escolha e direitos, para ocultar as realidades
extremamente desagradáveis da restauração ou reconstituição do poder de classe
nu e cru, tanto no plano local como no transnacional, porém mais
especificamente nos principais centros financeiros do capitalismo global.”
46. STIGLITZ. Globalization and
its Discontents, New York, Norton, 2002, p. 43.
“As duas máquinas econômicas que vêm
alimentando o mundo desde a recessão global instaurada a partir de 2001 são os
Estados Unidos e a China. A ironia é que esses dois países têm se comportado
como Estados keynesianos num mundo supostamente governado por regras
neoliberais. Os Estados Unidos têm recorrido a amplos financiamentos via dívida
de seu militarismo e seu consumismo, enquanto a China tem financiado via dívida
empréstimos bancários de difícil recebimento, amplos investimentos em
infraestruturas e capital fixo. Os neoliberais ortodoxos dirão sem dúvida que a
recessão é indício de neoliberalização insuficiente ou imperfeita, e podem
muito bem destacar as operações do FMI e do exército de bem pagos lobistas em
Washington que pervertem regularmente o processo orçamentário norte-americano
para atender a seus próprios interesses especiais como prova de sua tese. Mas
não há como verificar suas alegações, e ao fazê-las eles apenas seguem os
passos de uma longa linhagem de eminentes teóricos da economia de acordo com as
quais tudo correria bem no mundo se todos se comportassem de acordo com os
preceitos dos manuais por eles escritos1.
Há no entanto uma interpretação mais sinistra
desse paradoxo. Se deixarmos de lado, como creio que devamos fazer, o argumento
de que a neoliberalização é apenas um exemplo de teoria errônea que saiu do
controle (com a permissão do economista Stiglitz) ou um caso de busca sem
sentido de uma falsa utopia (com a permissão do filósofo político conservador
John Gray2), resta-nos a tensão entre, de um lado, a sustentação do
capitalismo e, de outro, a restauração/ reconstituição do poder de classe. Se
nos encontramos num ponto de contradição absoluta entre esses dois objetivos,
não pode haver dúvida quanto o lado para o qual se inclina o atual governo Bush,
dado seu ávido esforço de redução de impostos que incidem sobre as corporações
e os ricos. Além disso, uma crise financeira global provocada em parte por suas
próprias políticas irresponsáveis permitiria que o governo dos Estados Unidos
finalmente se livrasse de toda e qualquer obrigação de prover o bem-estar dos
cidadãos a não ser no sentido de mobilizar o poder militar e policial capaz de
conter a revolta social e impor a disciplina global. Vozes mais sensatas no
âmbito da classe capitalista escutaram com cuidado advertências do tipo feito
por Paul Volcker quanto à alta probabilidade de haver uma grave crise
financeira nos próximos cinco anos3. Mas isso teria como implicação
reduzir alguns dos privilégios e o poder que nos últimos trinta anos vêm se
acumulando nas altas esferas da classe capitalista. Fases anteriores da
história do capitalismo – penso em 1973 ou nos anos 1920 –, quando havia uma
opção sombria parecida, não são um bom augúrio. As classes altas, insistindo em
seu sacrossanto direito de propriedade, preferiram fazer o sistema vir abaixo a
renunciar a algum privilégio ou ao poder. Ao agir assim, não estariam se esquecendo
de seus próprios interesses, pois caso se posicionem bem, como bons advogados
de falências, poderão lucrar com o colapso enquanto o resto de nós será
horrivelmente atingido pelo dilúvio. Alguns membros seus poderão ser apanhados
e acabar se jogando de alguma janela de Wall Street, mas essa não seria a
norma. O único temor que têm é de movimentos políticos que os ameacem de
expropriação ou de violência revolucionária. Embora possam ter a expectativa de
que o sofisticado aparato militar com o qual contam hoje (graças ao complexo
industrial militar) proteja sua riqueza e seu poder, o fracasso desse aparato
quanto à fácil pacificação do Iraque em terra deveria levá-los a fazer uma
pausa. Mas classes dirigentes raramente renunciam voluntariamente (se é que o
fazem) a seus poderes, e não vejo motivos para crer que o fuçam agora.
Paradoxalmente, um forte e vigoroso movimento socialdemocrata e da classe
trabalhadora tem mais condições de favorecer o capitalismo do que o próprio
poder de classe capitalista. Embora possa parecer uma conclusão
contrarrevolucionária para a extrema esquerda, isso não deixa de implicar certa
dose de autopreservação, já que são as pessoas comuns que sofrem, padecem
inanição e mesmo morrem durante crises do capitalismo (lembremos da Indonésia e
da Argentina). Se a política preferida das elites dirigentes é aprés moi le déluge (depois de mim o
dilúvio), então o dilúvio leva de roldão em ampla medida os impotentes e os
crédulos, enquanto as elites já preparam arcas em que poderão, ao menos por
algum tempo, sobreviver muito bem.”
1. MARX, Theories of Surplus Value,
London. Lawrence & Wishan 1969, parte 2, 200.
2. J. GRAY, False Damn: The
Ilusions of Global Capitalism, London, Granta Press, 1998.
3. P. BOND, US and Global Economy Volatility:
Theoretical, Empirical and Political
Considerations. Comunicação apresentada ao Empire Seminar,
York University, nov. 2004.
“Até que ponto a neoliberalização conseguiu
estimular a acumulação do capital? Os dados concretos mostram ser nada menos
que decepcionantes. As taxas agregadas de crescimento global ficaram em mais ou
menos 3,5% nos anos 1960 e mesmo no curso da conturbada década de 1970 caíram
apenas para 2,4%. Mas as taxas subsequentes de crescimento de 1,4% e 1,1% nos
anos 1980 e 1990 (e uma taxa que mal alcança 1% a partir de 2000) indicam que a
neoliberalização em larga medida não conseguiu estimular o crescimento mundial
(ver a figura 6.1)4. Em alguns casos, como nos territórios da
ex-União Soviética e nos países da Europa Central que se submeteram à “terapia
de choque” neoliberal, houve perdas catastróficas. Nos anos 1990, a renda per capita russa caiu a uma taxa anual
de 3,5%. Uma grande parcela da população caiu na pobreza, e a expectativa de
vida das pessoas do sexo masculino sofreu por isso uma redução de cinco anos. A
experiência da Ucrânia foi parecida. Só a Polônia, que desprezou o conselho do
FMI, mostrou algum aumento pronunciado. Em boa parte da América Latina, a
neoliberalização produziu ou estagnação (na “década perdida” de 1980) ou surtos
de crescimento seguidos por colapso econômico (como na Argentina). Na África, a
neoliberalização não fez coisa alguma que gerasse resultados positivos. Só no
leste e no sudeste da Ásia, seguidos agora em certa medida pela Índia, ela foi
associada a algum registro positivo de crescimento, e, nessa região, os Estados
desenvolvimentistas não muito neoliberais tiveram um papel bem importante. É
flagrante o contraste entre o crescimento da China (cerca de 10% ao ano) e o
declínio da Rússia (– 3,5% ao ano). A economia informal disparou em todo o
mundo (estima-se que tenha passado de 29% nos anos 1980 para 44% da população
economicamente ativa da América Latina na década de 1990), e quase todos os
indicadores globais de saúde, expectativa de vida, moralidade infantil etc.
mostram perdas e não ganhos em bem-estar a partir dos anos 1960. A parcela da
população mundial em estado de pobreza teve contudo uma redução, mas isso se
deve quase por completo a melhorias ocorridas apenas na Índia e na China5.
A redução e o controle da inflação são o único sucesso sistemático que a
neoliberalização pode reivindicar.
Se esses fossem tipos de fatos amplamente
conhecidos, boa parte dos louvores à neoliberalização e à sua forma peculiar de
globalização sem dúvida não seria pronunciada. Por que então tantos estão
convencidos de que a globalização via neoliberalização é a “única alternativa”
e que ela obteve grande sucesso? Destacam-se dois motivos. Em primeiro lugar, a
volatilidade dos desenvolvimentos geográficos desiguais se acelerou, permitindo
que certos territórios avançassem espetacularmente (ao menos por algum tempo) a
expensas de outros. Se, por exemplo, os anos 1980 foram dominados amplamente
pelo Japão, pelos “tigres” asiáticos e pela Alemanha Ocidental, e se a década
de 1990 o foi pelos Estados Unidos e pelo Reino Unido, então o fato de que
algum lugar teria de ter “sucesso” obscurece o fato de que a neoliberalização
em geral fracassou em estimular o crescimento ou promover o bem-estar. Em
segundo lugar, a neoliberalização, o processo, não a teoria, foi um enorme
sucesso do ponto de vista das classes altas. Ou promoveu a restauração do poder
de classe das elites dirigentes (como nos Estados Unidos e até certo ponto no
Reino Unido), ou criou condições para a formação de uma classe capitalista
(como na China, na Índia, na Rússia e em outros lugares). Sendo a mídia
dominada pelos interesses da classe dominante, pôde-se propagar o mito de que
Estados fracassaram economicamente por não serem competitivos (criando assim a
demanda por ainda mais reformas neoliberais). A crescente desigualdade social
num dado território foi concebida como necessária para estimular o risco dos
empreendedores e a inovação que conferissem poder competitivo e estimulassem o
crescimento. Se as condições entre as classes inferiores pioraram, é que elas
fracassaram, em geral por razões pessoais e culturais, na tarefa de aprimorar
seu capital humano (por meio da dedicação à educação, da aquisição de uma ética
de trabalho protestante, da submissão à disciplina do trabalho, da
flexibilidade e de outras coisas desse tipo). Em suma, surgiram problemas
particulares por causa da falta de vigor competitivo ou por deficiências
pessoais, culturais e políticas. Num mundo neoliberal darwiniano, dizia o
argumento, só os mais aptos devem sobreviver e de fato sobrevivem.”
Fonte: World Commision on the Social Dimension of
Globolization. A Fair Globolization
4. As duas melhores avaliações oficiais estão em WORLD COMMISSION ON THE
SOCIAL DIMENSION OF GLOBALIZATION, A fair
Globalization: Creating Üpportunities for All, Geneve, lnternational Labour
Office, 2004; UNITED NATIONS DEVELOPMENT PROGRAM, Human Development Report, 1999; Human
Development Report, 2003.
5. M. WEISBROT, D. BAKER, E. KRAEV, J. CHEN, The Scorecard on
Globalization 1980-2000: lts Consequences for Economic and Social Well-Being,
in V. NAVARRO, C. MUNTANER, Political and
Economic Determinants of Population Health and Well-Being, Amityville, NY,
Baywood, 2004, 91-114.
“A principal realização substantiva da
neoliberalização foi no entanto redistribuir, em vez de criar, riqueza e renda.
Fiz em outra obra uma descrição dos mecanismos dessa distribuição sob a rubrica
“acumulação por espoliação”9. Pretendi designar com isso a
continuidade e a proliferação de práticas de acumulação que Marx tratara como
“primitivas” ou “originais” durante a ascensão do capitalismo. Incluem-se aí: a
mercadificação e a privatização da terra, bem como a expulsão pela força de
populações camponesas (comparem-se os casos acima descritos do México e da
China, em que se avalia que 70 milhões de camponeses foram expulsos em época
recente); a conversão de várias formas de direitos de propriedade (comuns,
coletivas, estatais etc.) em direitos de propriedade exclusiva (cujo exemplo
mais extraordinário é o da China); a supressão dos direitos aos bens comuns; a
mercadificação da força de trabalho e a supressão de formas alternativas
(nativas) de produção e consumo; processos coloniais, neocoloniais e imperiais
de apropriação privada de ativos (incluindo recursos naturais); a monetização
do câmbio e a taxação, principalmente da terra; o comércio de escravos (que
continua de modo especial na indústria do sexo); e a usura, a dívida nacional e
o aspecto mais devastador de todos: o uso do sistema de crédito como meio
radical de acumulação por espoliação. O Estado, com seu monopólio da violência
e definições de legalidade, desempenha um papel vital tanto no apoio como na
promoção desses processos. A essa relação de mecanismos, podemos adicionar
agora uma pletora de técnicas como a extração de renda a partir de patentes e
direitos de propriedade intelectual e a redução ou eliminação de várias formas
de direitos de propriedade comum (como benefícios de seguridade social, férias
remuneradas e acesso à educação e à atenção médica) conquistadas durante uma
geração ou mais de lutas de classes. A proposta de privatização de todos os benefícios
de seguridade social (que teve o Chile durante a ditadura como pioneiro) é, por
exemplo, um dos objetivos preferidos dos republicanos nos Estados Unidos.”
9. D. Harvey, Espaços de esperança, cap. 4.
“A neoliberalização busca acabar com as capas
protetoras que o liberalismo embutido permitia e por vezes alimentava. O ataque
geral à força de trabalho opera em duas frentes. O poder dos sindicatos e de
outras instituições da classe trabalhadora é restringido ou desmantelado no interior
de um Estado particular (se necessário por meio da violência). Estabelecem-se
mercados de trabalho flexíveis. O Estado deixa de proporcionar o bem-estar
social, e mudanças tecnologicamente induzidas das estruturas do emprego que
tornam amplos segmentos da força de trabalho redundantes completam a dominação
do capital sobre o trabalho no mercado. O trabalhador individualizado e
relativamente impotente vê-se assim diante de um mercado de trabalho em que só
se oferecem contratos de curto prazo personalizados. A estabilidade no emprego
se torna uma coisa do passado (por exemplo, Thatcher a aboliu nas
universidades). Um “sistema de responsabilidade pessoal” (que precisão tinha a
linguagem de Deng!) substitui as proteções sociais (pensões, assistência à saúde,
proteções contra acidentes) que foram antes responsabilidade dos empregadores e
do Estado. Os indivíduos compram produtos nos mercados, que passam a ser os
novos fornecedores de proteções sociais. A segurança individual se torna assim
uma questão de escolha individual vinculada à capacidade de pagamento por
produtos financeiros inseridos em mercados financeiros arriscados.
A segunda frente de ataque envolve
transformações das coordenadas espaciais e temporais do mercado de trabalho.
Embora muito se possa fazer com a “corrida para o fundo” destinada a conseguir
os estoques de mão-de-obra mais baratos e dóceis, a mobilidade geográfica do
capital permite-lhe o domínio de uma força de trabalho global cuja própria
mobilidade geográfica é restringida. Como a imigração é limitada, são
abundantes as forças de trabalho cativas. Só se pode fugir a essas barreiras
através da imigração ilegal (que cria uma força de trabalho facilmente
explorável) ou de contratos de curto prazo que permitem, por exemplo, que
trabalhadores mexicanos trabalhem em agronegócios da Califórnia e sejam
vergonhosamente repatriados quando adoecem ou mesmo morrem por causa dos
pesticidas a que estão expostos.”
“Infelizmente, essa cultura, por mais
espetacular, glamourosa e atraente, joga perpetuamente com desejos sem nunca oferecer
satisfações além da limitada identidade do centro de compras e das ansiedades
do status por meio da boa aparência
(no caso das mulheres) ou das posses materiais. O “compro, logo existo” e o
individualismo possessivo constroem juntos um mundo de pseudosatisfações
estimulante na superfície, mas no fundo vazio. Mas para quem perdeu o emprego
ou nunca conseguiu sair das extensivas economias informais que hoje oferecem um
arriscado refúgio à maioria dos trabalhadores descartáveis do mundo a história
é completamente diferente. Com cerca de 2 bilhões de pessoas condenadas a viver
com menos de 2 dólares por dia, o cruel mundo da cultura consumista
capitalista, as fenomenais gratificações obtidas pelos serviços financeiros e a
polêmica auto-satisfeita quanto ao potencial emancipador da neoliberalização,
da privatização e da responsabilidade social têm de ser uma piada macabra.
A neoliberalização transformou a posição do
trabalho, das mulheres e dos povos indígenas na ordem social ao enfatizar na
ordem social ao enfatizar a ideia do trabalho como uma mercadoria qualquer.
Privada da capa protetora de instituições democráticas vivas e ameaçada por
todo tipo de desarticulação social, uma força de trabalho descartável se volta
inevitavelmente para outras formas institucionais por meio das quais construir
solidariedades sociais e exprimir a vontade coletiva. Tudo prolifera – de
gangues e cartéis criminosos a redes de narcotráfico, minimáfias, chefes de
favelas, cultos seculares e seitas religiosas, passando por organizações
comunitárias, organizações de defesa das tradições e organizações
não-governamentais. Essas são as formas sociais alternativas que preenchem o
vazio deixado pelos poderes do Estado, por partidos políticos e outras formas
institucionais, que ou se desmantelaram ativamente ou simplesmente se deixaram
esgotar como centros de empreendimento coletivo e de relacionamento social. O
marcado recurso atual à religião é relevante quanto a isso.”
“A ascensão desses grupos e de ONGs (o
chamado “terceiro setor”) acompanhou, como os discursos sobre direitos de modo
mais geral, a virada neoliberal, tendo passado por um aumento espetacular a
partir de mais ou menos 1980. As ONGs em muitos casos vieram preencher o vácuo
de benefícios sociais deixado pela saída do Estado dessas atividades. Isso
equivale a uma privatização via ONGs. Em alguns casos, isso ajudou a acelerar o
afastamento ainda maior do Estado dos benefícios sociais. Assim, as ONGs
funcionam como “cavalos de Tróia do neoliberalismo global”37. Além
disso, as ONGs não são organizações inerentemente democráticas. Tendem a ser
elitistas, a não dar satisfação a ninguém (a não ser a quem as financia) e, por
definição, são distantes daqueles a quem buscam ajudar ou proteger, por mais
bem-intencionadas ou progressistas que possam ser. Costumam esconder sua pauta
de interesses e preferem a negociação direta com o Estado e o poder de classe,
ou a influência sobre eles, costumando antes controlar sua clientela do que
representá-la. Alegam e presumem falar em favor daqueles que não podem falar
por si mesmos, e até definem os interesses daqueles em cujo nome falam – como
se as pessoas não pudessem elas mesmas fazê-lo. Mas a legitimidade de seu
estatuto está sempre aberta a dúvida. (...)
O universalismo parece funcionar
particularmente bem com questões globais como a mudança climática, o buraco na
camada de ozônio, a perda de biodiversidade pela destruição de habitats e
coisas desse tipo. Porém seus resultados no campo dos direitos humanos são mais
problemáticos, dada a diversidade de circunstâncias político-econômicas e de
práticas culturais que há no mundo. Ademais, tem sido muito fácil cooptar
questões de direitos humanos como “espadas do império” (para usar a cortante
caracterização de Bartholomew e Breaskpear39). Os chamados “falcões
liberais” nos Estados Unidos, por exemplo, apelaram a essas questões para
justificar intervenções imperialistas em Kosovo, no Timor Leste, no Haiti e,
sobretudo, no Afeganistão e no Iraque. Eles justificam o humanismo militar “em
nome da proteção da liberdade, dos direitos humanos e da democracia mesmo
quando esta é buscada unilateralmente por uma potência imperialista
autonomeada” como os Estados Unidos40.”
37. T. WALLACE, NGO Dilemmas: Trojan Horses for Global Neoliberalism?, Socialist Register (2003), 202-219. Para um levantamento geral do papel das ONGs, cf M. EDWARDS. D. HULME (Orgs.), Non-Governmental Organizations, Performance
and Accountability, London. Earthscan, 1995.
39. A. BARTHOLOMEW, J. BREAKSPEAR, Human Rights as Swords of Empire, Socialist Register, London, Merlin Press
(2003) 124-145.
40. lbid., 126.
“Objetivos desse tipo não podem ser
realizados sem a contestação das bases de poder fundamentais sobre as quais foi
assentado o neoliberalismo e para as quais os processos de neoliberalização
contribuíram tão fortemente. Isso significa não só reverter o abandono pelo
Estado dos benefícios sociais, mas também enfrentar os poderes avassaladores do
capital financeiro. Keynes desprezava os “usurários” detentores de títulos, que
viviam parasiticamente de dividendos e juros, e esperava ansiosamente o evento
que chamou de “eutanásia dos rentistas” como condição necessária não apenas
para se chegar a um mínimo de justiça social, mas também para evitar a
devastação das crises periódicas que o capitalismo é propenso a ter. A virtude
do compromisso keynesiano e do liberalismo embutido construído a partir de 1945
residia no fato de aproximar-se de alguma maneira da realização dessas metas.
Em contraste com isso, o advento da neoliberalização celebrou o papel do
rentista, cortou os impostos pagos pelos ricos, privilegiou os dividendos e
ganhos especulativos em detrimento dos salários e da renda e desencadeou crises
financeiras inéditas, ainda que geograficamente contidas, que trouxeram imenso
desemprego e tiveram um efeito devastador sobre as oportunidades de vida em
país após país. A única maneira de realizar as tais metas pias dos chefes de
Estado é enfrentar o poder da finança e reverter os privilégios de classe que
se estabeleceram a partir desse poder. Mas não há entre as potências o mínimo
indício de fazer alguma coisa parecida com isso.
Quanto ao retorno ao keynesianismo, contudo,
o governo Bush, como já indiquei, é um campeão sem rivais, mostrando-se pronto
a tolerar uma espiral de déficits públicos que se estendem interminavelmente no
futuro. Não obstante, ao contrário das prescrições keynesianas tradicionais, as
redistribuições no caso dele são de baixo para cima, para as grandes
corporações, seus ricos chefes executivos e seus conselheiros
financeiros/jurídicos, à custa dos pobres, da classe média e até de acionistas
comuns (incluindo os fundos de pensão), para não mencionar as futuras gerações.
Mas o fato de o keynesianismo poder ser deturpado e invertido dessa maneira não
deveria nos surpreender, pois, como já demonstrei, há amplas provas de que a
teoria e a retórica neoliberais (particularmente a retórica política referente
à liberdade individual e coletiva) vêm funcionando desde o começo
primordialmente como máscara para práticas que só têm como objetivo manter,
reconstituir e restaurar o poder da classe de elite. Assim sendo, a exploração
de alternativas tem de sair dos quadros de referência definidos por esse poder
de classe e pela ética de mercado e ao mesmo tempo estar sobriamente ancorada
nas realidades de nosso tempo e de nosso lugar. E essas realidades indicam a
possibilidade de uma grande crise no próprio coração da ordem neoliberal.”
“Quase um terço das ações de Wall Street e
quase metade dos títulos do Tesouro dos Estados Unidos já estão nas mãos de
estrangeiros, e os dividendos e juros que são remetidos a proprietários
estrangeiros aproximam-se hoje, se não superam, o tributo que corporações e
operações financeiras norte-americanas extraem do exterior*. Esse balanço de
benefícios vai ficar mais fortemente negativo quanto mais os Estados Unidos
tomarem recursos, e o país hoje o faz a uma taxa próxima de 2 bilhões de
dólares por dia. Além disso, se as taxas de juro dos Estados Unidos se elevarem
(como têm de se elevar num dado momento), aquilo que aconteceu com o México
depois que Volcker aumentou a taxa de juro em 1979 começará a pairar como um
problema concreto. Os Estados Unidos logo estarão pagando bem mais pelo serviço
da dívida com o resto do mundo do que estará entrando no país17.
Essa extração de riqueza dos Estados Unidos não vai ser bem-aceita no plano
interno. As perpétuas elevações do consumismo financiado por dívida, que têm
sido o fundamento da paz social no país desde 1945, terão de parar.”
*: Duménil, Lévy. The Economics of
US lmperialism.
17. Duménil, Lévy. Neoliberal
Dynamics: Towards a New Phase?
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