Editora: Autonomia Literária
ISBN: 978-85-6953-649-9
Opinião: ★★☆☆☆
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Páginas: 392
Sinopse: O título
do livro Sintomas Mórbidos: A Encruzilhada da Esquerda Brasileira, escrito
pela socióloga, feminista e uma das youtubers mais radicais à esquerda nas redes,
Sabrina Fernandes, remete ao interregno pensado pelo revolucionário italiano Antonio
Gramsci na famosa passagem dos seus Cadernos
do Cárcere: “o velho está morrendo e o novo não pode nascer; neste interregno,
uma grande variedade de sintomas mórbidos aparece”. Isso se encaixa como uma luva
no Brasil contemporâneo depois do verdadeiro terremoto político causado pelas manifestações
de junho de 2013 e seus ecos. O equilíbrio desequilibrado que sustentava a frágil
democracia liberal brasileira, aparentemente, se desfez. Como consequência, temos
um perturbador entretempo: de fragmentação das esquerdas e ascensão da extrema-direita
— sobre o qual Sabrina Fernandes disserta, por uma perspectiva marxista, apresentando
a noção crise de práxis como uma chave para o entendimento do que se passa, ao passo
que possibilita (e mira!) na superação da pós-política e da ultrapolítica e na construção
de uma utopia concreta e realizável, fator crucial na revolução necessária do nosso
porvir.
“Foi essa a visão dominante na esquerda radical no momento imediato
a Junho de 2013, com grandes expectativas para as mobilizações contra a Copa e
durante as eleições de 2014. Não se trata de uma leitura errada, apenas
incompleta, uma vez que olhou para Junho somente de dentro de Junho.
Essa
visão foi motivada por um sentimento de euforia que abraçava a esquerda que
aplaudia a aparente redescoberta popular das ruas, após tantos anos de
desmobilização vertical. E, com tanta euforia, muitos de nós, enquanto
pensadores, esquerda, intelectuais orgânicos e tantos outros nos propusemos a
pensar Junho de 2013.
No
entanto, nos equivocamos nas predições de que isso traria uma grande
oportunidade para a esquerda, dada a crise de representação. Deixamos passar
elementos que apontavam que essa crise poderia, por seu turno, também ser
sintomática de uma desconexão maior, e duradoura, entre pessoas e atores da
esquerda, tanto a moderada quanto a radical.
Por
conta disso, a esquerda não petista se polarizou no entendimento dos gritos de
“Não me representa”. Enquanto parte ouvia um clamor progressista por justiça e
democracia radical, outra, minoritária, debatia Junho como um momento
ideologicamente pequeno-burguês por sua rejeição a partidos de esquerda,
sindicatos e movimentos sociais, que deveriam ter sido reconhecidos, de
imediato, como participantes legítimos de qualquer ato de ocupação das ruas.”
“A crise de práxis trata não somente da fragmentação da esquerda, mas
também como esta reflete em uma estrutura de politização que permeia toda a
sociedade – e, na situação atual, mostra que todo o campo de esquerda (e não
apenas o PT!) tem responsabilidade sobre o grau de consciência de classe e
despolitização que afeta a sociedade brasileira.
A
esquerda tinha sido incapaz de conciliar a consciência teórica e prática das
massas, dos oprimidos, e agora essa consciência fragmentada coletiva deu lugar
à despolitização de dois tipos: pós-político e ultrapolítico.
Despolitização
esta que não deve ser confundida com a classificação geralmente derrogatória de
uma simples alienação, manipulação e uso do povo como massa de manobra.
Trata-se, ao contrário, de uma análise gramsciana pela perspectiva da práxis e
da unificação das consciências em contradição na sociedade sob hegemonia
capitalista.
Aqui,
vemos que a pós-política e a ultrapolítica favoreceram a renovação hegemônica
por meio da percepção da perda de relevância de atores de esquerda além dos
envolvidos em nichos tradicionais de politização (por exemplo: sindicatos,
movimentos estudantis, etc.).
Assim,
a própria práxis foi se fragmentando. Essa fragmentação se estendeu à
consciência, ao bom senso, à capacidade de politizar, à construção de bases e
ao estado das próprias organizações, ainda presas em cisões, diálogos rasos,
dificuldades para estabelecer uma síntese comum e combater as contradições,
tentando descobrir o que fazer com os fragmentos do PT em seu apego à hegemonia
de esquerda, do poder e da consciência política.
Eu
trabalho com o conceito de “crise de práxis” para escapar da visão dicotômica
da crise de representação exposta em Junho de 2013 como uma crise boa (com
oportunidades para a esquerda capturar os frustrados) ou como ruim (como
abertura para a direita se apropriar de pautas e, posteriormente, mobilizar
multidões contra um governo de esquerda sob o pretexto da luta anticorrupção).
Em
vez disso, minha intenção é analisar as raízes dessa crise de representação e
como ela se relaciona com os desafios de organização da esquerda e o potencial
revolucionário. A noção de práxis é essencial aqui. Práxis implica ação e
pensamento em dialética, e, como tal, formulações políticas, táticas e
estratégias que ressoam e alcançam a classe trabalhadora para se organizar e se
mobilizar efetivamente em direção a objetivos revolucionários.
Embora
uma crise de representação trate de capacidades formais e institucionais de
representar as classes, a crise de práxis ocorre em muitas camadas, sendo que
apenas uma é representação. Este estudo explica a crise de práxis a partir de
dois eixos: a despolitização e a fragmentação da esquerda.
Esses
dois elementos trabalham juntos e se reproduzem nesta crise de práxis. Sob
eles, a esquerda, cuja práxis deve estar em coerência com seus objetivos, acaba
presa em um ciclo de prática e pensamento incompatíveis – exatamente como o
processo que ocorre na consciência contraditória da classe trabalhadora.
Essa
consciência contraditória afeta as perspectivas da classe se tornar um sujeito
político efetivo. Do ponto de vista da politização e da despolitização
propostas aqui, enraizada na visão gramsciana de que a politização implica na
unificação da consciência teórica e prática,3 a forma
de politização da direita é, de fato, uma despolitização de questões e é
preocupante quando a esquerda faz o mesmo ou se acostuma com tal prática.
O
referido processo transforma a grande política em uma pequena política e
reveste o pensamento político de significantes confusos, vazios ou deturpados
do senso comum. A despolitização desencaminha as pessoas de se tornarem
sujeitos e criarem a realidade política coletivamente e por suas próprias mãos.
Apesar
de precederem a conjuntura atual, as características particulares do processo
de fragmentação e despolitização que marcam a atual conjuntura despontaram com
os primeiros sinais de declínio do PT como agregador e representante das
aspirações antissistêmicas na esquerda, sendo que muito disso se deve à
governabilidade e à conciliação de classe como alicerces da política lulista.
A
fragmentação da esquerda em uma ala moderada e outra radical aumentou na medida
em que o PT, que anteriormente representava as esperanças de uma esquerda mais
unificada, começou a se dedicar à despolitização: dessa forma, também, se
impedia a subjetivação, como forma de dissuasão da mobilização que poderia
interromper o partido e o seu projeto político do governo.
O
PT, também desmobilizado por meio da cooptação, cedeu à burocratização, abafou
esforços de produzir críticas de dentro de suas próprias fileiras e campos
aliados, trocando valores importantes para a consciência de classe por ideais
neoliberais de empoderamento e inclusão através do mercado.
Tudo
isso foi mascarado e legitimado por políticas sociais (cujos benefícios não
podem ser negados por qualquer historiador ou sociólogo, apesar de todas as
falhas resultantes do contexto ambíguo em que tais políticas eram inseridas).
Tal
processo contribuiu para o estado presente da fragmentação da esquerda, através
de cisões, divisões, novas formulações, esforços para combater o setor da
direita e o governismo petista, bem como uma consciência fragmentada geral. À
medida que a consciência de classe se tornava mais fragmentada, a
despolitização crescia, e isso permitiu um novo enraizamento da disputa entre o
até então governismo e a direita no contexto brasileiro.”
3 Antonio Gramsci, The Antonio
Gramsci Reader: Selected Writings, 1916-1935, ed. David Forgacs, New
York University Press (New York: New York University Press, 2000), 333.
“Afinal, a conciliação é uma ilusão que a elite concede aos progressistas
sob tempos de abundância, de modo a contra-atacar para cobrir perdas e extrair
os maiores ganhos possíveis assim que a esquerda da conciliação não consegue
mais oferecer o mesmo de antes.
Há
também a desmobilização, tanto pela influência direta nas lideranças dos
movimentos quanto através do apaziguamento de ânimos e da política do medo que
internaliza que nada pode ser feito e que tudo pode ser perdido no
enfrentamento.”
“Basta analisar a sociedade para além do alcance militante e disciplinado
da esquerda, em um país de mais de 200 milhões de pessoas, para ver como a
maioria, mesmo perturbada com a política, não se sente compelida a tomar as
ruas, e as praças, e os prédios, e o Congresso, e o poder assim tão bem quanto
a esquerda organizada deseja. Daí o entendimento que a esquerda precisa
compreender o verbo “mobilizar” para além da ação de convocar.
Lideranças
convocam, mas o poder de convocatória vem da base, o que depende do que
ensinamos à base sobre como mobilizar, pelo que mobilizar e contra o que
mobilizar, não importa os ocupantes do poder institucional.”
“A pós-política é sintoma e causa da despolitização precisamente porque
suprime o político. Enquanto isso, a ultrapolítica se despolitiza por falácias
e polarizações essencialistas que favorecem a ordem conservadora – se valendo
de maniqueísmos e valendo-se de maniqueísmos e cristalização de inimigos na
consciência popular que marcaram as relações de real antagonismo e exploração
na sociedade.
Ambas
criam novos mitos, distorcem ou negam a história e tentam separar a consciência
de sua leitura prática da realidade. Apesar de cada possuir um modus
operandi diferente, as duas oferecem soluções falsas aos problemas causados
pela despolitização e, em vez disso, acabam por servir à restauração dos
elementos básicos do status quo.
A
despolitização pós-política dá permissão passiva para a ultrapolítica, que, por
sua vez, militariza conflitos ao ponto de promover caricaturas da luta de
classes que afastam a base potencial da esquerda.
Em
vez de apatia, paralisia ou anestesia, a pós-política promove a ação política como
ineficaz em sua “ideologização da realidade”, enquanto a ultrapolítica promove
um circuito de confrontos que dão a importância de guerra para batalhas
facilmente mediadas pelo status quo.
Isso
permite um estado de desmobilização mesmo quando a esquerda e seus militantes
se engajam sem parar, principalmente quando se repete que “fazer política é
tomar as ruas” sem o devido cuidado de reforçar a razão pela qual se toma as
ruas e com quem. Ademais, a despolitização também colabora para a renovação
imperativa do senso comum. O senso comum é percebido por Gramsci como:
[…] não algo rígido e sem mobilidade, mas que
está continuamente se transformando, se enriquecendo com ideias científicas e
opiniões filosóficas que entraram na vida ordinária. o “senso comum” é o
folclore da filosofia, e está sempre entre ser folclore no sentido padrão e ser
a filosofia, ciência e economia dos especialistas. o senso comum cria o
folclore do futuro, ou seja, como uma fase relativamente rígida do conhecimento
popular em certo momento e espaço.4
Um
terreno de despolitização, seja pós ou ultrapolítico, é fértil para a direita,
por apresentar uma miríade de desafios para a esquerda. Esse é o caso do
Brasil, apesar de novas faíscas de politização e interesse político (que não
são a mesma coisa) surgidos de Junho de 2013 em diante. Afinal, essas mesmas
faíscas podem ser capturadas pela direita em um processo de manipulação do
consentimento para o senso comum.”
4 Antonio Gramsci, “Selections
From the Prison Notebooks of Antonio Gramsci”, Elec Book 73, no. 3
(1999): 630, https://doi.org/10.2307/479844.
“Some-se isso a um contexto no qual os artefatos democráticos foram
manipulados para retirar direitos e, ainda, promover perseguição política no
âmbito da consolidada seletividade penal brasileira. Portanto, se vê que a
esquerda é vulnerável à despolitização também e que, ao adentrar na disputa
viciosa com a direita, ela acaba por incorrer na substituição do seu projeto
por pulsões eleitorais – situando-se, por conseguinte, em uma encruzilhada, ou
mesmo em uma crise.”
“A sensação reportada com frequência pelos militantes com quem conversei
é de que a esquerda como um todo é um “quadradinho” que passa mais tempo
disputando espaço no quadradinho do que investindo em táticas para seu crescimento
e sustentabilidade.
No
fundo, a maior parte da esquerda radical esperava que Junho de 2013 fosse um
marco para um novo período de ascensão das massas, enquanto isso, a esquerda
moderada temia Junho. (...)
O
frustrante é que a direita também teve expectativas quanto a Junho e, mais
efetivamente soube interpelar e capturar discursos. Esses discursos foram
canalizados pela força material do campo da direita e investidos pelo impeachment,
assim como no período pós-impeachment, com as contrarreformas de Michel
Temer, e também durante os ataques antipetistas sofridos por Lula em relação à
Lava Jato.
A
tentativa de reconstrução de Lula em um mito (não-humano, uma ideia) visaria
não somente salvar Lula, mas recuperar a imagem do PT dentro da esquerda, e
fora dela, como uma organização que lotava ruas e arrastava multidões Brasil
afora – mesmo não sendo isso o ocorrido na ocasião infortunada da prisão. O
interessante é que, naquele momento, até a esquerda radical, já
tradicionalmente melancólica, parecia esperar o mesmo.”
“Marx considera o trabalhador, por meio da classe trabalhadora, o
protagonista da história. Seu argumento é baseado na relação da humanidade com
a natureza e a capacidade produtiva, bem como a conclusão histórica do papel
central das lutas de classes.
Esse
argumento também é feito a partir da perspectiva da abolição positiva da
propriedade privada, e sua apropriação da existência humana, como a abolição de
toda alienação. Assim, há uma conexão entre as análises de alienação de
exploração por Marx, dos Manuscritos ao Capital, e assim por
diante.10
Para
Marx, é a possibilidade de uma unidade de pensamento e ação na humanidade que
diferencia os humanos de outros seres na natureza. Marx fala da consciência da
espécie humana que é, por sua vez, confirmada pela vida social.
Isso
torna os seres humanos indivíduos únicos e comunais, em uma conexão inseparável
entre a existência livre e a atividade social. O resultado é “a existência
subjetiva da sociedade como pensada e experienciada”.11
O
problema da alienação e a questão da revolução devem ser considerados por meio
do pensamento e da prática, cuja unidade (empreendida por mim mesma como
práxis) é fundamental para superar o idealismo de Hegel:
a resolução das contradições teóricas só
é possível através de meios práticos, através da energia prática do
homem. sua resolução não é, portanto, de modo algum, apenas um problema de
conhecimento, mas é um problema real da vida que a filosofia foi incapaz
de resolver precisamente porque viu aí um problema puramente teórico.12
Baseado
nisso, Marx complementa sua crítica ainda latente à dialética hegeliana,
estabelecendo não apenas seu conceito de humanidade – que “se autentica tanto
no ser como no pensamento”.13
Marx
retomou a questão da práxis revolucionária e do núcleo materialista de seu
método logo depois em suas Teses
sobre Feuerbach (1845), fazendo eco à fundação da revolução como uma
atividade prático-crítica e exortando a humanidade a não simplesmente
interpretar o mundo, mas a fazê-lo a fim de mudá-lo.14”
10 Recomendo a discussão de Löwy e Sayre acerca da base dos Manuscritos para o pensamento marxista humanista, e também
marxiano, no capítulo 3 de Michael Löwy e Robert Sayre, Revolta e
Melancolia: O Romantismo na Contracorrente da Modernidade (São Paulo:
Boitempo Editorial, 2015).
11 Marx em Erich Fromm, Marx’s
Concept of Man (Mansfield Centre: Martino Publishing, 2011), 131 (minha
ênfase).
12 Marx em Fromm, 135 (ênfase no original)
13 Karl Marx, Economic and Philosophic
Manuscripts of 1844, ed. Erich Fromm, trans. T. B. Bottomore, Marx’s
Concept of Man (Mansfield Centre: Martino Publishing, 2007).
14 Karl Marx, “Theses on
Feuerbach”, in Selected Writings (Hackett Publishing Company, 1994).
“A visão de Gramsci sobre a hegemonia, a pedagogia e a formação dialética
do bom senso (versus senso comum) é elementar para ver a práxis como uma força
política, especialmente quando esses mesmos temas são repetidos e expandidos
por Paulo Freire no pensamento pedagógico crítico, coisa que muitos estudiosos
identificam como um quadro gramsciano-freiriano.22
A
emancipação, de acordo com uma visão gramsciana, não é apenas de caráter
econômico, mas também contém a emancipação da existência total do homem.
Mesmo
tendo Gramsci claramente seu foco na classe trabalhadora, que pode dar origem a
uma interpretação economicista, não nega que o poder totalizador do capitalismo
esteja ligado à opressão num sentido mais amplo.
Essa
tensão é negociada pela sugestão de Gramsci de que, ao se emancipar, a classe
trabalhadora, por meio de seu papel histórico revolucionário, também colaborará
na emancipação de todos os outros grupos dominados.23
Paulo
Freire argumenta de maneira semelhante ao dizer que “a grande tarefa humanista
e histórica dos oprimidos é libertar a si mesmos e a seus opressores”.24 Nas palavras de Gramsci no L’Ordine Nuovo: “O
proletariado, tendo conquistado o poder social, terá que assumir o trabalho de
reconquista, para restaurar plenamente para si e para toda a humanidade
o reino devastado do espírito.”25”
22 Jacob P. K. Gross, “Education
and Hegemony: The Influence of Antonio Gramsci,” in Beyond Critique:
Exploring Critical Social Theories and Education, ed. Bradley Levinson
(Boulder: Paradigm Publishers, 2011); Magaret Ledwith, “Community Work as
Critical Pedagogy: Re-Envisioning Freire and Gramsci,” Community Development
Journal 36, no. 3 (2001): 171–82, https://doi.org/10.1093/cdj/36.3.171;
Peter Mayo, “Transformative Adult Education in an Age of Globalization: A Gramscian-Freirean
Synthesis and Beyond,” The Alberta Journal of Educational Research 42
(1996): 148–60; Peter Mayo, “Antonio Gramsci and His Relevance to the Education
of Adults,” in Gramsci and Educational Thought, ed. Peter Mayo (West
Sussex: Wiley-Blackwell, 2010), 21–37; Giovanni Semeraro, “Da Libertação à
Hegemonia: Freire e Gramsci No Processo de Democratização Do Brasil,” Revista
de Sociologia e Política, no. 29 (2007): 95–104,
https://doi.org/10.1590/S0104-44782007000200008.
23 Gramsci, The Antonio Gramsci
Reader: Selected Writings, 1916-1935.
24 Paulo Freire, Pedagogy of the
Oppressed (New York: The Seabury Press, 1970), 28.
25 Antonio Gramsci, The Modern
Prince & Other Writings (New York: International Publishers, 2007), 20.
“O consentimento capitalista via consumo, concessões de direitos e
valorização de sua forma de desenvolvimento econômico esconde o antagonismo de
classe entre explorados e exploradores – e pode até mesmo encorajar uma
sensação de dívida/gratidão dos explorados para com os exploradores quando
estes promovem melhorias de vida pontuais.
Assim,
em vez de usar o antagonismo de classe para revitalizar a luta, a classe
trabalhadora se encontra em uma posição fatalista cultural e materialista
devido à ilusão de progresso no crescimento da capacidade produtiva (e
potencial de consumo). Esse ponto é extremamente importante quando se considera
como o potencial de mudança social está inevitavelmente ligado ao nível e tipo
de politização das pessoas.
As
verdades que ganham tal natureza ao serem reproduzidas no senso comum
determinam quais portas políticas se abrem. Se o senso comum é a média do
projeto ideológico da classe dominante, essa classe consegue manter sua
hegemonia na base do consentimento.
Para
eles não é interessante que os explorados assim se enxerguem e, muito menos,
que aprendam a identificar os seus exploradores. Por isso, o projeto de
hegemonia dos capitalistas envolve a despolitização da luta de classes, o
antagonismo e a realidade das lutas sociais.
Trata-se
de despolitização porque se utiliza de distorções tidas como verdadeiras no
senso comum para evitar o surgimento de um movimento formador de sujeitos
políticos em si e para si. O projeto requer que lhes seja inviável tomar
consciência de sua situação material – a isso, Marx chamava de consciência de
classe.
Esse
modelo de dominação que se sustenta para além da coerção, afirmando-se como
hegemonia por conta do fator de consentimento, passa por tentativas de
renovação durante crises próprias do sistema capitalista (de recursos,
competição, conflitos (re)distributivos, bolhas financeiras, etc.) e crises
políticas (mediante politização da classe trabalhadora ou mesmo crises de
representação nutridas pela despolitização).
Isso
aponta para a necessidade de fazer mais do que uma disputa contra-hegemônica
com o capital, mas sim a construção de uma nova hegemonia. O senso comum entra
em disputa. Num projeto politizador a questão passa por transformá-lo em bom
senso, em que haja atividade crítica-prática, ou seja, um projeto de hegemonia
é um projeto de práxis.
Mesmo
os momentos de revoltas em massa podem, eventualmente, se diluir em
reivindicações fracas e em várias expressões de autoindulgência, se a
perspectiva dominante de mudança estiver entrelaçada com uma visão afirmativa
do capitalismo.
A
preocupação de Marcuse com o fato da classe trabalhadora ter se tornado
fatalista e acomodada, em sua falta de liberdade, realmente torna a liberdade
inseparável da consciência – e da prática – em um processo dialético.30
Faz-se
então necessário falar de Karel
Kosik, um dos autores que mais explicitamente lidam com a perspectiva da
práxis, ao lado de Paulo Freire, cujas influências teóricas acabam por conectar
sua práxis a Gramsci. Kosik vê a cognição como uma grande capacidade humana de
superação da consciência ingênua31 quando confronta
materialmente a realidade histórica.32
Isso
significa que tanto o trabalho quanto a capacidade do homem de decodificar a
realidade e engajar-se criticamente com ela são atividades que indicam a
potencialidade humana. A cognição, como elemento dialético no nexo
teórico-prático/sujeito-objeto, auxilia na formação da realidade objetiva e na
autoformação da humanidade como sujeito histórico– o que Kosik chama de
processo de “humanizar o homem”.33
Uma
práxis revolucionária baseia-se numa cognição autêntica da realidade, a qual
permite ao sujeito se engajar criticamente com uma totalidade tanto no campo
teórico quanto no prático. Kosik estabelece que a totalidade concreta é uma
teoria da realidade estruturada dialeticamente, segundo a qual o homem é
sujeito e objeto.
Esse
quadro é diferente daquele apresentado pela economia clássica na forma do
“homem econômico”, pois a humanidade só é retratada como objeto nesse contexto
e, portanto, está localizada fora da práxis.
A
cognição se torna um dos elementos importantes que conectam essa relação,
especialmente a cognição da utopia. Para Leszek Kolakowski, a utopia é um elemento
necessário no processo de criar um movimento revolucionário e pensar nas
ferramentas para uma revolução.
Utopia
não significa aquilo que é impossível – como propagado tendenciosa e
ingenuamente por aqueles que acusam o comunismo de ser apenas teoria, mas não
prática –, mas sim não-lugar.
Utopia
é aquilo que ainda não tem lugar na nossa sociedade. Portanto, a utopia nos
move para a construção do lugar. Ela traz o conteúdo e orienta a construção
hegemônica de mudanças estruturais e revolucionárias necessárias para a
execução desse conteúdo.
Utopia
influencia a teoria e o imaginário consciente do movimento a fim de estabelecer
uma direção de ação proposital.
Em O
Espírito da Utopia (publicado pela primeira vez em 1918), Ernst Bloch
explora como a cognição do processo revolucionário, o qual busca uma
consciência desperta, só é possível por meio de uma utopia que forma a
associação entre o primeiro sonho (uma percepção interna de nossa vontade) e a
restauração dessa vontade na realidade.34
Assim,
a utopia não é um sonho que recorda o passado. Pelo contrário, é “apenas aquele
anseio que traz consigo o que não foi realizado, o que não poderia ter
absolutamente nenhuma realização terrena, o desejo desperto do que por si só é
correto para nós”.35
Para
Bloch, mesmo um estado de alienação profunda não pode impedir o pressentimento
de uma potencialidade humana oculta, que é precisamente o que alimenta a
capacidade de utopia.36
Portanto,
a utopia não é o mesmo que um sonho ou uma esperança desengajada, e sim o fruto
de uma posição dialética entre a esperança e a escuridão.37
É a esperança que surge das trevas e, como tal, da opressão e da alienação,
pois há pouca razão para continuar a esperar quando a potencialidade otimista
que a carrega já foi realizada.
Se
o negativo está contido no positivo, o mesmo ocorre no contrário, como uma
centelha que contraria a percepção inevitável de uma totalidade opressora.
A
cognição histórica se prepara para a revolução na medida em que determina a
primeira negação total do sistema que se opõe à utopia. A segunda negação (aufheben38) ocorre quando a utopia é abolida em seu ato de
fruição. Aquilo que se torna real não é mais uma utopia, mas deve gerar novas
utopias no movimento contínuo da visão humanista.
Desse
modo, a utopia é, sim, uma característica central do comunismo, mas também deve
ser de toda esquerda que se propõe como alternativa ao status quo.
Utopias não devem ser abandonadas ou rifadas, pois sua ausência cria um vácuo
que é facilmente preenchido pela ordem capitalista, com distopias de um mundo
fraturado, por exemplo, em que alguns dominam uma maioria cada vez mais
explorada.
Essa
discussão colocada por Bloch é importante também porque resgata o termo utopia
do significado negativo que lhe foi atribuído até então (e que prevalece em
muitos círculos até hoje). Trata-se de um resgate porque retoma a utopia como
“ideal social legitimamente oposto ao estado de coisas vigentes”.39
O
que faz da utopia importante no marxismo será o materialismo histórico, pois,
como filosofia da práxis, o marxismo oferece o caminho material para que se
faça a ponte entre a utopia e o lugar concreto.
Utopias
alimentam teorias que, por sua vez, alimentam práticas que devem resultar na
realização (e assim suprassunção) da utopia. A teoria contribui para o
processo de cognição, mas, se for fetichizada e promovida instrumentalmente,
seu potencial revolucionário será anulado.
Se
percebida como parte de um movimento dialético comprometido com uma perspectiva
materialista histórica, em vez dos interesses individuais das organizações, a
teoria pode reenergizar intelectualmente o partido político e também construir
uma ponte entre o pensamento e a realidade das decisões tomadas.40
A
esquerda deve evitar a tendência à autopreservação, em sua forma de organização
política, substituindo-a pela responsabilidade moral de reconhecer (e agir)
contra a alienação e a opressão.
Isso
requer a visão da utopia como objetividade, mesmo quando a possibilidade parece
ser mínima; isto é, “o excesso de esperanças e demandas sobre as possibilidades
é necessário para forçar a realidade a produzir todos os potenciais que ela
contém e explorar todos os recursos ocultos nela”.41
Também
é importante ver a classe trabalhadora, ou o proletariado, de um modo inclusivo
e não-economicista. Como a classe consiste em relações humanas, bem como em
localizações de classe mediadas,42 pode-se falar da
“classe trabalhadora” sem negar as experiências heterogêneas de pessoas que
trabalham em diferentes setores.
Isso
é, especialmente, importante quando consideramos o impacto material das
estruturas de dominação sobre diferentes corpos e como nunca foi possível
separar na prática as demandas anticapitalistas daquelas de emancipação humana
– faz-se necessário que se mantenham unidas teoricamente também.
As
contingências criadas na relação de um trabalhador com outro bem como suas
experiências de exploração são, ambas, reveladas em unidade pela consciência de
classe, uma vez que ela expressa “uma identidade de interesses entre todos
esses grupos diferentes de trabalhadores e contra os interesses” de outras
classes.43
A
consciência de classe assegura que as pessoas mantenham sua agência em sua
própria elaboração da história, em vez de seguir uma receita determinista dada
por condições estruturais anteriores. É essa consciência que determina quanto
os seres humanos podem fazer história modificando condições que foram dadas
historicamente.
Na
medida em que a consciência de classe surge da experiência unificada de intensa
exploração, também arma a classe trabalhadora contra o processo de
instrumentalização que ocorre enquanto a exploração capitalista se desenvolve e
se adapta.
A
exploração também é uma relação que varia em intensidade de acordo com o
contexto, mas à medida que o capitalismo se desenvolve tende a progredir em uma
direção onde os humanos são totalmente reduzidos “ao status de um
‘instrumento’” (Thompson, 1991, p. 222).
Ela
transforma a classe trabalhadora em uma “coisa” desprovida de potencialidade
humana e nada mais que a mercadoria preciosa que vendem à classe capitalista
com o único propósito de sustentar a acumulação.
Aqui,
devo apontar sobre o uso de classe trabalhadora como uma categoria central não
economicista, ou seja, que reconhece a proletarização como fenômeno central
capitalista que gera sua própria contradição ao explorar a maioria da sociedade
– a mesma maioria que pode derrubar o capital.
É
importante mencionar que, quando falamos de povo e da massa, os significados
podem ser bem diferentes, mas eles se aplicam, quando referentes a um sujeito
antissistêmico como fundamentalmente semelhantes, sob a opressão.44
É
frequente a insistência em colocar um tipo particular de opressão como mais
relevante do que outro, o que nos distrai da importância de reconhecer a
opressão como o conceito central na desumanização, perda e sofrimento que une
todos os sistemas de desapropriação.
Voltando
aos Manuscritos
Econômico-Filosóficos, vemos que a exploração capitalista é uma forma
de opressão particular do capitalismo e que opera como eixo central do sistema.
Todavia,
não é suficiente pensar em revolução e contrarrevolução simplesmente do ponto
de vista de uma mudança na propriedade dos meios de produção (propriedade
privada), uma vez que uma ampla gama de processos, que Marx conecta a uma
estrutura, chega à materialidade por meio da atuação da superestrutura, do
domínio da consciência, da subjetividade e do conhecimento.”
30 Marcuse, One-Dimensional Man, 222.
31 Paulo Freire também usa esse termo, consciência
ingênua,para indicar uma forma de senso comum (de modo gramsciano) que
estabelece a causalidade como fato e reproduz “verdades” não verificadas
(Freire, 2010, p. 113).
32 Karel Kosik, Dialectics of the
Concrete: A Study on Problems of Man and World (Boston: D. Reidel Publishing
Company, 1976), 26.
33 Kosik, 30.
34 Ernst Bloch, The Spirit of Utopia (Stanford: Stanford
University Press, 2000), 145.
35 Bloch, 156.
36 Bloch, 168.
37 Bloch, 201.
38 Aufheben é uma palavra do alemão de difícil tradução,
porém central para a compreensão da visão revolucionária marxista. Quando
traduzida, tende a corresponder às palavras sublação (assimilação de algo menor
em algo maior) ou suprassunção (elevação ao grau de essência máxima). Na
discussão dialética, aufheben está frequentemente associada à segunda
negação.
39 Löwy and Sayre, Revolta e
Melancolia: O Romantismo Na Contracorrente Da Modernidade, 239.
40 Leszlek Kolakowski, Toward a
Marxist Humanism (New York: Grove Press, 1968), 163, 166, 171.
41 Kolakowski, 151.
42 Erik Olin Wright,
Understanding Class (London: Verso, 2015), 155.
43 Edward Palmer Thompson, The
Making of the English Working Class (London: Penguin Books, 1991), 212.
44 Alguns termos explorados
posteriormente, como base, multidões e massa, são usados em contextos
específicos para se referir a frações da classe trabalhadora e/ou sujeitos-em-formação
maiores/menores que a classe trabalhadora.
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