sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Como se faz uma tese (Parte II), de Umberto Eco

Editora: Intrínseca

ISBN: 978-85-273-1200-4

Tradução: Gilson Cesar Cardoso de Souza

Opinião: ★★★☆☆

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Páginas: 224

Sinopse: Ver Parte I


 

“Uma tese estuda um objeto por meio de determinados instrumentos. Muitas vezes o objeto é um livro e os instrumentos, outros livros. É o caso de, suponhamos, uma tese sobre O Pensamento Econômico de Adam Smith, cujo objeto é constituído por livros de Adam Smith, enquanto os instrumentos são outros livros sobre Adam Smith. Diremos então que, nesse caso, os escritos de Adam Smith constituem as fontes primárias e os livros sobre Adam Smith constituem as fontes secundárias ou a literatura crítica. É claro que, se o assunto fosse As Fontes do Pensamento Econômico de Adam Smith, as fontes primárias seriam os livros ou os escritos em que Smith se inspirou. Certo é que as fontes de um autor podem ser acontecimentos históricos (certas discussões ocorridas em sua época sobre determinados fenômenos concretos), mas tais acontecimentos são sempre acessíveis sob forma de material escrito, isto é, de outros textos.

Em certos casos, pelo contrário, o objeto é um fenômeno real: é o que acontece com as teses sobre movimentos migratórios internos na Itália atual, sobre o comportamento de crianças problemáticas, sobre opiniões do público a respeito de debates na televisão. Aqui, as fontes não existem ainda sob a forma de textos escritos, mas devem tornar-se os textos que você inserirá na tese à guisa de documentos: dados estatísticos, transcrições de entrevistas, talvez fotografias ou mesmo documentos audiovisuais. Quanto à literatura crítica, pelo contrário, as coisas não mudam muito em relação ao caso precedente. Na falta de livros ou artigos de revista, haverá artigos de jornal ou documentos de outro gênero.

A distinção entre as fontes e a literatura crítica precisa estar bem clara, porquanto esta última, frequentemente, reporta excertos das fontes, mas – como veremos no parágrafo seguinte – estas são fontes de segunda mão. Ademais, um estudo apressado e desordenado pode facilmente fazer com que se confunda o discurso sobre as fontes com o discurso sobre a literatura crítica. Se escolhi como tema O Pensamento Econômico de Adam Smith e me dou conta de que, à medida que o trabalho avança, envolvo-me na discussão das interpretações de um determinado autor e descuro a leitura direta de Smith, posso fazer duas coisas: ou retornar à fonte ou modificar o tema para As Interpretações de Smith no Pensamento Liberal Inglês Contemporâneo. Isso não me isentará de saber o que disse Smith, mas é claro que a esta altura meu interesse é o de discutir não tanto o que ele disse, mas o que outros disseram inspirando-se nele. Contudo, é óbvio que, se pretendo criticar em profundidade seus intérpretes, terei de confrontar suas interpretações com o texto original.

Mas poderia suceder o pensamento original me interessar “muito pouco. Admitamos que comecei uma tese sobre a filosofia Zen na tradição japonesa. Claro está que preciso saber japonês e não me fiar nas raras traduções ocidentais ao meu dispor. Mas suponhamos que, ao examinar a literatura crítica, fiquei interessado pelo uso que certa vanguarda literária e artística americana fez do Zen nos anos cinquenta. Logicamente, a esta altura, não me interessa mais saber com absoluta exatidão teológica e filológica qual seja o sentido do pensamento Zen, mas de que maneira as ideias originais do Oriente se tornaram elementos de uma ideologia artística ocidental. Portanto, o tema da tese passará a ser O Uso de Sugestões Zen na “San Francisco Renaissance” dos Anos Cinquenta; minhas fontes, por seu turno, passarão a ser os textos de Kerouac, Ginsberg, Ferlinghetti e assim por diante. Estas são as fontes sobre as quais terei de trabalhar, ao passo que, quanto ao Zen, bastar-me-ão alguns livros seguros e algumas boas traduções, desde que, naturalmente, eu não tenha intenção de demonstrar que os californianos tenham compreendido mal o Zen original, circunstância em que se tornaria obrigatório o confronto com os textos japoneses. Mas, se me limito a tomar por ponto pacífico que eles se inspiraram livremente em traduções do japonês, o que passa a me interessar é o que fizeram do Zen e não aquilo que o Zen era originalmente.

Tudo para dizer que é muito importante definir logo o verdadeiro objeto da tese, já que, desde o início, impõe-se o problema da acessibilidade das fontes.

No parágrafo 3.2.4., encontra-se um exemplo de como se pode partir praticamente do nada para a descoberta das fontes adequadas ao nosso trabalho, mesmo numa biblioteca modesta. Mas trata-se de um caso-limite. Em geral, aceita-se o tema sem saber se se está em condições de aceder às fontes, e é preciso saber: (1) onde podem ser encontradas, (2) se são facilmente acessíveis, (3) se estou em condições de compulsá-las.”

 

 

Quando trabalhamos sobre livros, uma fonte de primeira mão é uma edição original ou uma edição crítica da obra em apreço.

Tradução não é fonte: é uma prótese, como a dentadura ou os óculos, um meio de atingir de forma limitada algo que se acha fora do alcance.

Antologia não é fonte: é um apanhado de fontes, que pode ser útil num primeiro momento, mas fazer uma tese sobre determinado autor significa tentar ver nele coisas que outros não viram, e uma antologia só me mostra o que ninguém ignora.

Resenhas efetuadas por outros autores, mesmo completadas pelas mais amplas citações, não são fontes: são, quando muito, fontes de segunda mão.

Uma fonte é de segunda mão por várias razões. Se pretendo fazer uma tese sobre os discursos parlamentares de Palmiro Togliatti, os discursos publicados pelo Unità constituem fonte de segunda mão. Ninguém me garante que o redator não tenha feito cortes ou cometido erros. Fontes de primeira mão serão as atas parlamentares. Caso eu conseguisse obter o texto escrito diretamente por Togliatti, teria então uma fonte de primeiríssima mão. Se desejo estudar a declaração de independência dos Estados Unidos, a única fonte de primeira mão é o documento autêntico. Mas também posso considerar de primeira mão uma boa fotocópia. O mesmo se diga do texto elaborado criticamente por qualquer historiógrafo de seriedade indiscutível (“indiscutível”, aqui, quer dizer: jamais discutido pela literatura crítica existente). Vê-se que o conceito de “primeira” e “segunda” mão depende do ângulo da tese. Se esta intenta discutir as edições críticas existentes, é preciso remontar aos originais; se pretende discutir o sentido político da declaração de independência, uma boa edição crítica é mais que suficiente.”

 

 

Uma das primeiras coisas a fazer para começar a trabalhar numa tese é escrever o título, a introdução e o índice final – ou seja, tudo aquilo que os autores deixam no fim. O conselho parece paradoxal: começar pelo fim? Mas quem disse que o índice vem no fim? Em alguns livros aparece no início, de modo que o leitor faça desde logo uma ideia do conteúdo.

Em outras palavras, redigir logo o índice como hipótese de trabalho serve para definir o âmbito da tese.

Objetar-se-á que, à medida que o trabalho avança, esse índice hipotético se vê obrigado a reestruturar-se várias vezes, talvez assumindo uma forma totalmente diferente. Certo. Mas a reestruturação será mais bem feita se contar com um ponto de partida. (...)

O mesmo se passa em relação à sua tese. Você se propõe um plano de trabalho, que assumirá a forma de um índice provisório. Melhor ainda se ele for um sumário onde, para cada capítulo, se esboce um breve resumo. Assim fazendo, esclarecerá para você mesmo o que tem em mente. Em segundo lugar, poderá propor um projeto compreensível ao orientador. Em terceiro lugar, verá se suas ideias já estão suficientemente claras. Há projetos que parecem muito claros enquanto só pensados, quando se começa a escrever, tudo se esboroa entre as mãos. Pode-se ter ideias claras sobre o ponto de partida e de chegada, mas se verificará que não se sabe muito bem como se chegará de um ao outro e o que haverá entre esses dois pontos. Uma tese, tal como uma partida de xadrez, compõe-se de muitos movimentos, só que você deverá ser capaz de predizer os seus movimentos para pôr em xeque o adversário, do contrário fracassará. (...)

Em definitivo, um índice-hipótese deverá ter a seguinte estrutura:

1. Posição do problema

2. Os estudos precedentes

3. Nossa hipótese

4. Dados que estamos em condições de apresentar

5. Sua análise

6. Demonstração da hipótese

7. Conclusões e referências para o trabalho posterior

 

A terceira fase do plano é um esboço de introdução. Esta não é mais que o comentário analítico do índice:

Com o presente trabalho propomo-nos demonstrar uma determinada tese. Os estudos precedentes deixaram em aberto inúmeros problemas e os dados recolhidos não bastam. No primeiro capítulo tentaremos estabelecer o ponto “x”; no segundo, abordaremos o problema “y”. Concluindo, tentaremos provar isto e aquilo. Deve-se ter presente que nos fixamos limites precisos, isto é, tais e tais. Dentro destes limites, o método que seguiremos é o seguinte... etc.

O objetivo dessa introdução fictícia (fictícia porque você a refundirá muitas vezes antes de acabar a tese) é permitir-lhe a fixação das ideias ao longo de uma diretriz que não será alterada exceto às custas de uma reestruturação consciente do índice. Assim você controlará os desvios e os impulsos. Esta introdução também serve para mostrar ao orientador o que se pretende fazer. Mas presta-se sobretudo a demonstrar se já se tem as ideias em ordem. Com efeito, presume-se que o estudante saia da escola secundária já sabendo escrever, pois lhe deram uma infinidade de temas para redação. Depois, passa quatro, cinco ou mais anos na universidade, onde via de regra ninguém lhe exige mais que escreva, e se vê diante da tese completamente desapercebido1. Será um grande choque. Cumpre aprender e escrever depressa, talvez utilizando as próprias hipóteses de trabalho.

Fique atento, pois enquanto não for capaz de redigir um índice e uma introdução não poderá afirmar que aquela é a sua tese. Se não conseguir escrever o prefácio, isto significa que não tem ainda ideias claras sobre como começar. E, se as tem, é porque pode pelo menos “suspeitar” onde chegará. Com base nessa suspeita, precisamente, é que deverá rascunhar a introdução, como se tratasse de um resumo do trabalho já feito. Não tenha medo de avançar demasiado. Sempre poderá alterar seus passos.

Fica, pois, claro que introdução e índice serão continuamente reescritos à medida que o trabalho progride. É assim que se faz. O índice e a introdução finais (que aparecerão no trabalho datilografado) serão diferentes dos iniciais. É normal. Do contrário, pareceria que toda a pesquisa não trouxera nenhuma ideia nova.

O que distinguirá a primeira e a última redação da introdução? O fato de, na última, você prometer muito menos que na primeira, mostrando-se bem mais cauteloso. O objetivo da introdução definitiva será ajudar o leitor a penetrar na tese: mas nada de prometer-lhe o que depois você será incapaz de cumprir. O ideal de uma boa introdução definitiva é que o leitor se contente com ela, entenda tudo e não leia o resto. Trata-se de um paradoxo, mas muitas vezes uma boa introdução, num livro publicado, dá uma ideia exata ao crítico, levando-o a falar dele como o autor desejaria. Mas o que aconteceria se o orientador (ou outro qualquer) lesse a tese e descobrisse que você apregoou na introdução resultados a que em verdade não chegou? Eis a razão por que esta última redação deve ser cautelosa e só prometer o que a tese for capaz de dar.

A introdução serve também para estabelecer qual será o núcleo e a periferia da tese, distinção importante não só por razões de método. Será exigido mais de você no que ficou definido como núcleo do que como periferia. (...)

A primeira coisa a fazer é a pesquisa bibliográfica. (...)

Que lógica presidirá a construção do índice-hipótese? A escolha depende do tipo de tese. Numa tese histórica poderia haver um plano cronológico (por exemplo: A Perseguição dos Valdenses na Itália) ou de causa e efeito (por exemplo: As Causas do Conflito Árabe-israelense). É possível um plano espacial (A Distribuição das Bibliotecas Circulares no Canavesano) ou comparativo-contrastante (Nacionalismo e Populismo na Literatura Italiana no Período da Grande Guerra). Numa tese de caráter experimental você terá um plano indutivo, onde se parte de algumas provas para a proposição de uma teoria; numa tese de caráter lógico-matemático, um plano do tipo dedutivo, onde aparece primeiro a proposição teórica e depois suas possíveis aplicações a exemplos concretos... Direi que a literatura crítica, a que já nos referimos, pode oferecer bons exemplos de planos de trabalho, bastando utilizá-la criticamente, comparando os vários autores e vendo quem responde melhor às exigências do problema formulado no título “secreto” da tese.

O índice já estabelece qual será a subdivisão lógica da tese em capítulos, parágrafos e subparágrafos. Sobre as modalidades dessa subdivisão, vejam-se 6.2.4 e 6.4. Também aqui, uma boa subdivisão em disjunção binária permite acréscimos sem que se altere demais a ordem inicial. Por exemplo, se seu índice for:

1. Problema central

1.1. Subproblema principal

1.2. Subproblema secundário

2. Desenvolvimento do problema central

2.1. Primeira ramificação

2.2. Segunda ramificação

1. O mesmo não acontece em outros países, como os Estados Unidos, onde o estudante, em vez dos exames orais, escreve papers, ensaios ou “pequenas teses” de dez ou vinte páginas para qualquer curso em que se inscreveu. É um sistema muito útil que alguém já adotou também entre nós (dado que os regulamentos não o excluem inteiramente e a forma oral-nocionista do exame é apenas um dos métodos do estudante).

 

 

Um fichário, recordemo-lo, é um investimento que se faz por ocasião da tese, mas que, caso tencionemos prosseguir os estudos, nos serve pelos anos afora, às vezes décadas depois.”

 

 

“A ficha mais comum e mais indispensável é a de leitura: ou seja, aquela em que você anota com exatidão todas as referências bibliográficas concernentes a um livro ou artigo, explora-lhe o conteúdo, tira dele citações-chaves, forma um juízo e faz observações.”

 

 

4.2.4. A humildade científica

Não se deixe impressionar pelo título deste parágrafo. Não se trata de uma discussão ética, mas de métodos de leitura e fichamento.

Viu-se, nos exemplos de fichas que forneci, um no qual, pesquisador jovem, embirrei com um autor e dei cabo dele em poucas linhas. Ainda hoje estou convencido de que tinha razão e, em todo caso, minha atitude se justificava porque ele próprio, em dezoito linhas, liquidara um assunto tão importante. Mas era um caso-limite. Como quer que seja, fichei-o e levei em conta sua opinião, não só porque é preciso registrar todas as opiniões expressas sobre o nosso tema, mas porque nem sempre as melhores ideias nos vêm dos autores maiores. E agora vou contar a história do Abade Vallet.

Para entendê-la bem, cumpre dizer-lhes qual era o problema de minha tese e o escolho interpretativo com que me via às voltas há cerca de um ano. Como o problema não interessa a todos, digamos sucintamente que para a estética contemporânea o momento da percepção do belo é em geral intuitivo, mas em São Tomás não existe a categoria da intuição. Vários intérpretes modernos se esforçaram por demonstrar que ele de algum modo falara de intuição, o que era deturpá-lo. Por outro lado, o momento da percepção dos objetos era, em São Tomás, tão rápido e instantâneo que não explicava a fruição das complexas qualidades estéticas, jogos de proporções, relações entre a essência da coisa e o modo pelo qual ela organiza a matéria etc. A solução estava (e cheguei a ela um mês antes de terminar a tese) em descobrir que a contemplação estética se inseria no ato, bem mais complexo, do juízo. Mas São Tomás não dizia isso claramente. No entanto, pela maneira como falava da contemplação estética não se podia tirar outra conclusão. Ora, o objetivo de uma pesquisa interpretativa é frequentemente este: levar um autor a dizer explicitamente aquilo que não dissera, mas que não deixaria de dizer se alguém lho perguntasse. Em outras palavras: mostrar como, confrontando várias afirmações, deve emanar aquela resposta nos termos do pensamento estudado. O autor talvez não o tenha dito por parecer-lhe demasiado óbvio ou porque – como no caso de São Tomás – jamais tratara organicamente o problema estético, falando dele como incidente e dando o ponto por pacífico.

Tinha, pois, um problema. E nenhum dos autores que eu lia vinha em meu socorro (e, no entanto, se havia algo de original em minha tese, era precisamente aquela pergunta, cuja resposta devia vir de fora). Enquanto me azafamava, desconsolado, a procurar textos que me ajudassem, sucedeu-me encontrar num alfarrabista de Paris um pequeno livro que de início me atraiu pela bela encadernação. Abro-o e vejo que se trata da obra de um certo Abade Vallet, L’idée du Beau dans la philosophie de Saint Thomas d’Aquin (Louvain, 1887). Não o encontrara em nenhuma bibliografia. Era obra de um autor menor do século XIX. Naturalmente o comprei (não custava caro) e pus-me a lê-lo, verifico que o Abade Vallet era um pobre diabo, que se limitava a repetir ideias recebidas, não descobrindo nada de novo. Se continuei a lê-lo, não foi por “humildade científica” (não a conhecia ainda, só a aprendi ao ler aquele livro, o Abade Vallet foi o meu grande mestre), mas por pura obstinação e para justificar o dinheiro gasto. A certa altura, quase entre parênteses e como que por desatenção, sem que o bom abade se desse conta do alcance do que dizia, deparo com uma alusão à teoria do juízo em conexão com a da beleza! Eureca! Encontrara a solução! E quem a dera fora o pobre Abade Vallet; morto havia já cem anos, ignorado de todos, mas que ainda assim tinha algo a ensinar a quem se dispusesse a ouvi-lo.

É isto a humildade científica. Todos podem ensinar-nos alguma coisa. Ou talvez sejamos nós os esforçados quando aprendemos algo de alguém não tão esforçado como nós. Ou então, quem parece não valer grande coisa tem qualidades ocultas. Ou ainda, quem não é bom para este o é para aquele. As razões são muitas. O fato é que precisamos ouvir com respeito a todos, sem por isso deixar de exprimir juízos de valor ou saber que aquele autor pensa de modo diferente do nosso e está ideologicamente distante de nós. Até nosso mais feroz adversário pode sugerir-nos ideias. Isso pode depender do tempo, da estação ou da hora. Talvez, se eu tivesse lido o Abade Vallet um ano antes, não aproveitaria sua sugestão. E quem sabe quantos, mais hábeis que eu, já o tinham lido sem nada encontrar de interessante? Mas com este episódio aprendi que, quando queremos fazer uma pesquisa, não podemos desprezar nenhuma fonte, e isto por princípio. Aí está o que chamo humildade científica. Talvez seja uma definição hipócrita, na medida em que acoberta muito orgulho, mas não é hora de colocarmos problemas morais: orgulho ou humildade, pratiquem-na.”

 

 

“Em geral os textos que não explicam com grande familiaridade os termos que empregam deixam a suspeita de que seus autores são muito mais inseguros do que aqueles que explicitam cada referência e cada passagem. Se você ler os grandes cientistas ou os grandes críticos, verá que, com raríssimas exceções, eles são sempre claros e não se envergonham de explicar bem as coisas.”

 

 

“Uma vez decidido a quem se escreve (à humanidade, não ao examinador), cumpre resolver como se escreve. Problema difícil: se houvesse a respeito regras cabais, seríamos todos escritores de proa. Pode-se recomendar escrever a tese várias vezes, ou escrever outras coisas antes de atacá-la, pois escrever é também questão de treino. De qualquer forma, é possível dar alguns conselhos muito gerais.

Não imite Proust. Nada de períodos longos. Se ocorrerem, registre-os, mas depois desmembre-os. Não receie repetir duas vezes o sujeito. Elimine o excesso de pronomes e subordinadas. (...)

Não pretenda ser e.e. cummings. Cummings era um poeta americano que assinava com as iniciais minúsculas. E, naturalmente, usava vírgulas e pontos com muita parcimônia, cortava os versos, em suma, fazia tudo aquilo que um poeta de vanguarda pode e deve fazer. Mas você não é um poeta de vanguarda. Nem sua tese versa sobre poesia de vanguarda. Se escrever sobre Caravaggio, pôr-se-á de súbito a pintar? Portanto, ao falar do estilo dos futuristas, evite escrever como um deles. Esta é uma recomendação importante, pois hoje em dia muita gente se mete a fazer teses “de ruptura”, onde não se respeitam as regras do discurso crítico. A linguagem da tese é uma metalinguagem, isto é, uma linguagem que fala de outras linguagens. Um psiquiatra que descreve doentes mentais não se exprime como os doentes mentais. Não quero dizer que seja errado exprimir-se como eles: pode-se, e razoavelmente, estar convencido de que os doentes mentais são os únicos a exprimir-se como deve ser. Mas então terá duas alternativas: ou não fazer uma tese e manifestar o desejo de ruptura recusando os títulos universitários e começando, por exemplo, a tocar guitarra; ou fazer a tese, mas explicando por que motivo a linguagem dos doentes mentais não é uma linguagem “de loucos”, e para tal precisará empregar uma metalinguagem crítica compreensível a todos. O pseudopoeta que faz sua tese em versos é um palerma (e com certeza mau poeta). De Dante a Eliot e de Eliot a Sanguineti, os poetas de vanguarda, quando queriam falar de sua poesia, faziam-no em prosa e com clareza. Quando Marx falava dos operários, não escrevia como um operário de sua época, mas como um filósofo. Mas quando, de parceria com Engels, redigiu o Manifesto de 1848, empregou um estilo jornalístico, de períodos curtos, muitíssimo eficaz e provocatório. Diferente do estilo de O Capital, destinado a economistas e políticos. Não diga que a violência poética “brota de dentro” de você e que se sente incapaz de submeter-se às exigências da simples e banal metalinguagem da crítica. É poeta? Não se forme, Montale não se formou e nem por isso deixa de ser um grande poeta. Gadda (formado em engenharia) escrevia como escrevia, tudo regionalismos e rupturas estilísticas; porém, quando precisou elaborar um decálogo para quem redigia notícias de rádio, saiu-se com um delicioso, agudo e reto receituário em prosa clara e compreensível a todos. Quando Montale e escreve um artigo crítico, procede de maneira que todos o entendam, mesmo aqueles que não entendem sua poesia.

Abra parágrafos com frequência. Quando for necessário, para arejar o texto; mas quanto mais vezes melhor.

Escreva o que lhe vier à cabeça, mas apenas em rascunho. Depois perceberá que o ímpeto lhe arrebatou a mão e o afastou do núcleo do tema. Elimine então as partes parentéticas e as divagações, colocando-as em nota ou em apêndice (ver). A finalidade da tese é demonstrar uma hipótese que se elaborou inicialmente, e não provar que se sabe tudo.

Use o orientador como cobaia. Faça-o ler os primeiros capítulos (e depois, aos poucos, o resto) com boa antecedência antes da entrega da tese. As reações dele poderão ser de grande utilidade. Se o orientador for uma pessoa muito ocupada (ou preguiçosa) recorra a um amigo. Verifique se qualquer pessoa entende o que você escreveu. Não se faça de gênio solitário.

Não se obstine em iniciar no primeiro capítulo. Talvez esteja mais preparado e documentado para o quarto capítulo. Comece por aí, com a desenvoltura de quem já pôs em ordem os capítulos anteriores. Ganhará confiança. Naturalmente você conta com um ponto de apoio no índice-hipótese, que vai orientá-lo desde o começo (ver 4.1.).

Não use reticências ou pontos de exclamação, nem faça ironias. Pode-se falar uma linguagem absolutamente referencial ou uma linguagem figurada. Por linguagem referencial entendo uma linguagem onde todas as coisas são chamadas pelo seu nome mais comum, o mais reconhecível por todos e que não se presta a equívocos. (...)

As reticências, como veremos, só se empregam no corpo de uma citação para assinalar os trechos omitidos e, no máximo, no final de um período para indicar que nem tudo terminou, que ainda haveria algo a dizer. Em segundo lugar, o uso do ponto de exclamação para enfatizar uma assertiva. Fica mal, pelo menos num ensaio crítico. Se se der ao trabalho de pesquisar o presente livro, verá que só uma ou duas vezes empreguei um ponto de exclamação. Uma ou duas vezes é lícito, quando se trata de fazer o leitor pular da cadeira ou de sublinhar uma afirmação vigorosa do tipo: “Atenção, nunca cometam este erro!”, mas é melhor falar em voz baixa. Se disser coisas importantes, conseguirá maior efeito. (...)

Defina sempre um termo ao introduzi-lo pela primeira vez. Não sabendo defini-lo, evite-o. Se for um dos termos principais de sua tese e não conseguir defini-lo, abandone tudo. Enganou-se de tese (ou de profissão).

Não comece a explicar onde fica Roma para depois não explicar onde fica Timbuctu. Dá-nos calafrios ler teses com frases do tipo: “O filósofo panteísta judeu-holandês Spinoza foi definido por Guzzo...” Alto lá! Ou você está fazendo uma tese sobre Spinoza e então o leitor sabe quem é Spinoza e que Augusto Guzzo escreveu um livro sobre ele, ou está citando por acaso essa afirmação numa tese sobre física nuclear e então não deve presumir que o leitor ignore quem é Spinoza, mas saiba quem é Guzzo. Ou, ainda, trata-se de uma tese sobre a filosofia pós-gentiliana na Itália, e todos saberão quem é Guzzo, mas a esta altura também quem é Spinoza. Não diga, nem mesmo numa tese de história: “T. S. Eliot, poeta inglês” (à parte o fato de ter nascido nos Estados Unidos). Parte-se do princípio de que Eliot é universalmente conhecido. Quando muito, se quiser sublinhar que foi mesmo um poeta inglês e dizer determinada coisa, é melhor escrever: “Foi um poeta inglês, Eliot, quem disse que...” Mas, se a tese for sobre Eliot, tenha a humildade de fornecer todos os dados, se não no texto, pelo menos numa nota logo no início: em dez linhas condensará, com precisão e honestidade, os dados biográficos necessários. Não se deve exigir do leitor, ainda que especializado, que se lembre de quando Eliot nasceu. Isso vale ainda mais para autores menores de um século passado. Não presuma que todos saibam de quem se trata. Diga logo quem era, sua posição etc. Mas, ainda que fosse Moliere, que custa alinhavar uma nota com duas datas? Nunca se sabe.

Eu ou nós? Deve-se, na tese, introduzir as opiniões próprias na primeira pessoa? Deve-se dizer “penso que...”? Alguns acham isso mais honesto do que apelar para o not majestatis. Não concordo. Dizemos “nós” por presumir que o que afirmamos possa ser compartilhado pelos leitores. Escrever é um ato social: escrevo para que o leitor aceite aquilo que lhe proponho. Quando muito, deve-se procurar evitar o pronome pessoal recorrendo a expressões mais impessoais, como “cabe, pois, concluir que”, “parece acertado que”, “dever-se-ia dizer”, “é lícito supor”, “conclui-se daí que”, “ao exame desse texto percebe-se que” etc. Não é necessário dizer “o artigo que citei anteriormente”, ou “o artigo que citamos anteriormente”, basta dizer “o artigo anteriormente citado”. Entretanto, é válido escrever “o artigo anteriormente citado nos demonstra que”, pois expressões assim não implicam nenhuma personalização do discurso científico.”

 

 

5.6. O ORGULHO CIENTÍFICO

Em 4.2.4. falamos da humildade científica, que diz respeito ao método de pesquisa e leitura de textos. Falemos agora do orgulho científico, que se refere à coragem durante a redação da tese.

Não existe nada mais irritante do que aquelas teses (coisa que também sucede a muitos livros impressos) onde o autor adianta continuamente excusationes non petitae:

Não estamos à altura de afrontar tal assunto, mas arriscaremos a hipótese...

Como não está à altura? Dedicou-se meses, às vezes anos, ao tema escolhido, leu talvez tudo o que era preciso ler sobre ele, meditou, tomou notas, e vem agora com essa conversa de não estar à altura? Mas que diabo esteve fazendo todo esse tempo? Se não se sentia qualificado, não apresentasse a tese. Se a apresentou, é porque se sentia preparado e, em qualquer caso, não tem direito a desculpas. Assim, uma vez expostas as opiniões alheias, uma vez expressas as dificuldades, uma vez esclarecido se sobre determinado tema são possíveis respostas alternativas, vá em frente. Diga tranquilamente: “julgamos que” ou “pode-se concluir que”. Ao falar, você é a autoridade. Se for descoberto que é um charlatão, pior para você, mas não tem o direito de hesitar. Tem o papel de funcionário da humanidade, falando em nome da coletividade sobre aquele assunto. Seja modesto e prudente antes de abrir a boca, mas, depois de abri-la, seja arrogante e orgulhoso.

Fazer uma tese sobre o tema X significa presumir que até então ninguém tivesse dito nada de tão completo e claro sobre o assunto. O presente livro lhe ensinou que deve ser cauteloso ao escolher o tema, ser suficientemente perspicaz para optar por algo limitado, talvez muito fácil, talvez ignobilmente setorial. Mas, sobre o que escolheu, nem que tenha por título Variações na Venda de Jornais na Es quina da Avenida Ipiranga com a Avenida São João de 24 a 28 de Agosto de 1976, você deve ser a máxima autoridade viva.

Mesmo que tenha escolhido uma tese de compilação, que resuma tudo quanto foi dito sobre o assunto sem nada acrescentar de novo, você é uma autoridade sobre o que foi dito por outras autoridades. Ninguém deve conhecer melhor tudo o que foi dito a respeito.

Naturalmente, deve trabalhar de maneira a não atentar contra a consciência. Mas isso é outra coisa. A questão aqui é de estilo. Não seja choramingas e complexado. Isso aborrece.”

 

 

Gostaria de concluir com duas observações: fazer uma tese significa divertir-se, e a tese é como porco – nada se desperdiça.

Quem quer que, sem prática de pesquisa e temeroso da tese que não sabia como fazer, tenha lido este livro, pode ficar aterrorizado. Quantas regras, quantas instruções. Impossível sair são e salvo...

E, no entanto, a verdade é bem outra. Para ser exaustivo, tive de supor um leitor totalmente desprovido de tudo, mas cada um de vocês, lendo algum livro, já se apossou de muitas das técnicas de que se falou. Meu livro serviu, não obstante, para recordar todas elas, para trazer à luz da consciência aquilo que muitos de vocês já haviam absorvido sem se dar conta disso. Mesmo um motorista, quando começa a refletir sobre seus próprios gestos, se dá conta de ser uma máquina prodigiosa que em frações de segundo toma decisões de importância vital sem se permitir qualquer erro. No entanto, quase todo mundo sabe dirigir um automóvel, e o número razoável de pessoas que morrem de acidentes na estrada nos diz que a grande maioria consegue sair viva.

O importante é fazer as coisas com gosto. E se escolheu um tema que lhe interessa, se decidiu dedicar realmente à tese o período, mesmo curto, que lhe foi prefixado (sugerimos um limite mínimo de seis meses), verá agora que a tese pode ser vivida como um jogo, como uma aposta, como uma caça ao tesouro.

Há uma satisfação esportiva em dar caça a um texto que não se encontra, há uma satisfação de charadista em encontrar, após muito refletir, a solução de um problema que parecia insolúvel.

Viva a tese como um desafio. O desafiante é você: foi-lhe feita no início uma pergunta a que você ainda não sabia responder. Trata-se de encontrar a solução em um número finito de lances. Às vezes a tese pode ser vivida como uma partida a dois: o autor que você escolheu não quer confiar-lhe o seu segredo, terá de assediá-lo, de interrogá-lo com delicadeza, de fazê-lo dizer aquilo que ele não queria dizer, mas que terá de dizer. Às vezes, a tese é um puzzle: você dispõe de todas as peças, cumpre fazê-la entrar em seu devido lugar.

Se jogar a partida com gosto ‘fia contenda, fará uma boa tese. Se partir já com a ideia de que se trata-se um ritual sem importância e destituído de interesse, estará derrotado de saída. Neste ponto, já o disse no início (e não me obrigue a repetir porque é ilegal), encomende sua tese, copie-a, mas não arruíne sua vida nem a de quem irá ajudá-lo a lê-lo.

Se fez a tese com gosto, há de querer continuá-la. Comumente, quando se trabalha numa tese só se pensa no momento em que ela estará terminada: sonha-se com as férias que se seguirão. Mas se o trabalho for bem feito, o fenômeno normal, após a tese, é a irrupção de um grande frenesi de trabalho. Quer-se aprofundar todos os pontos que ficaram em suspenso, ir no encalço das ideias que nos vieram à mente, mas que se teve de suprimir, ler outros livros, escrever ensaios. E isto é sinal de que a tese ativou o seu metabolismo intelectual, que foi uma experiência positiva. É sinal, também, de que já se é vítima de uma coação no sentido de pesquisar, à maneira de Chaplin em Tempos Modernos, que continuava a apertar parafusos mesmo depois do trabalho: e será preciso um esforço para se refrear.

Mas, uma vez refreado, pode suceder que descubra ter uma vocação para a pesquisa, que a tese não era apenas o instrumento para se formar e a formatura o instrumento para subir um grau nas funções estatais ou para contentar os pais. E não quer isso dizer que continuar a pesquisar signifique entregar-se à carreira universitária, esperar um contrato, renunciar a um trabalho imediato. Pode-se dedicar um tempo razoável à pesquisa mesmo exercendo uma profissão, sem pretender obter um cargo universitário. Mesmo um bom profissional deve continuar a estudar.

Se, de qualquer forma, se dedicar à pesquisa, descobrirá que uma tese bem feita é um produto de que se aproveita tudo. Como primeira utilização você extrairá dela um ou vários artigos científicos ou mesmo um livro (com alguns aperfeiçoamentos). Mas com o correr do tempo voltará à tese para tirar dela material de citação, reutilizará as fichas de leitura usando partes que porventura não tenham entrado na redação final do seu primeiro trabalho; as partes que eram secundárias na tese surgirão como o início de novos estudos... Pode mesmo suceder que você volte à sua tese dez anos depois. Porque ela ficará como o primeiro amor, e ser-lhe-á difícil esquecê-la. No fundo, será esta a primeira vez que você fez um trabalho científico sério e rigoroso, e isto não é experiência de somenos importância.”

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