Editora: Intrínseca
ISBN: 978-85-273-1200-4
Tradução: Gilson Cesar Cardoso de Souza
Opinião: ★★★☆☆
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Páginas: 224
Sinopse: Ver Parte
I
“Uma
tese estuda um objeto por meio de determinados instrumentos. Muitas vezes o
objeto é um livro e os instrumentos, outros livros. É o caso de, suponhamos,
uma tese sobre O Pensamento Econômico de
Adam Smith, cujo objeto é constituído por livros de Adam Smith, enquanto os
instrumentos são outros livros sobre Adam Smith. Diremos então que, nesse caso,
os escritos de Adam Smith constituem as fontes
primárias e os livros sobre Adam Smith constituem as fontes secundárias ou a literatura
crítica. É claro que, se o assunto fosse As Fontes do Pensamento Econômico de Adam Smith, as fontes
primárias seriam os livros ou os escritos em que Smith se inspirou. Certo é que
as fontes de um autor podem ser acontecimentos históricos (certas discussões
ocorridas em sua época sobre determinados fenômenos concretos), mas tais
acontecimentos são sempre acessíveis sob forma de material escrito, isto é, de
outros textos.
Em
certos casos, pelo contrário, o objeto é um fenômeno real: é o que acontece com
as teses sobre movimentos migratórios internos na Itália atual, sobre o
comportamento de crianças problemáticas, sobre opiniões do público a respeito
de debates na televisão. Aqui, as fontes não existem ainda sob a forma de
textos escritos, mas devem tornar-se os textos que você inserirá na tese à
guisa de documentos: dados estatísticos, transcrições de entrevistas, talvez
fotografias ou mesmo documentos audiovisuais. Quanto à literatura crítica, pelo
contrário, as coisas não mudam muito em relação ao caso precedente. Na falta de
livros ou artigos de revista, haverá artigos de jornal ou documentos de outro
gênero.
A
distinção entre as fontes e a literatura crítica precisa estar bem clara,
porquanto esta última, frequentemente, reporta excertos das fontes, mas – como
veremos no parágrafo seguinte – estas são fontes
de segunda mão. Ademais, um estudo apressado e desordenado pode facilmente
fazer com que se confunda o discurso sobre as fontes com o discurso sobre a
literatura crítica. Se escolhi como tema O
Pensamento Econômico de Adam Smith e me dou conta de que, à medida que o
trabalho avança, envolvo-me na discussão das interpretações de um determinado
autor e descuro a leitura direta de Smith, posso fazer duas coisas: ou retornar
à fonte ou modificar o tema para As
Interpretações de Smith no Pensamento Liberal Inglês Contemporâneo. Isso
não me isentará de saber o que disse Smith, mas é claro que a esta altura meu
interesse é o de discutir não tanto o que ele disse, mas o que outros disseram
inspirando-se nele. Contudo, é óbvio que, se pretendo criticar em profundidade seus
intérpretes, terei de confrontar suas interpretações com o texto original.
Mas
poderia suceder o pensamento original me interessar “muito pouco. Admitamos que
comecei uma tese sobre a filosofia Zen na tradição japonesa. Claro está que
preciso saber japonês e não me fiar nas raras traduções ocidentais ao meu
dispor. Mas suponhamos que, ao examinar a literatura crítica, fiquei
interessado pelo uso que certa vanguarda literária e artística americana fez do
Zen nos anos cinquenta. Logicamente, a esta altura, não me interessa mais saber
com absoluta exatidão teológica e filológica qual seja o sentido do pensamento
Zen, mas de que maneira as ideias originais do Oriente se tornaram elementos de
uma ideologia artística ocidental. Portanto, o tema da tese passará a ser O Uso de Sugestões Zen na “San Francisco
Renaissance” dos Anos Cinquenta; minhas fontes, por seu turno, passarão a
ser os textos de Kerouac, Ginsberg, Ferlinghetti e assim por diante. Estas são
as fontes sobre as quais terei de trabalhar, ao passo que, quanto ao Zen,
bastar-me-ão alguns livros seguros e algumas boas traduções, desde que,
naturalmente, eu não tenha intenção de demonstrar que os californianos tenham compreendido
mal o Zen original, circunstância em que se tornaria obrigatório o confronto
com os textos japoneses. Mas, se me limito a tomar por ponto pacífico que eles
se inspiraram livremente em traduções do japonês, o que passa a me interessar é
o que fizeram do Zen e não aquilo que o Zen era originalmente.
Tudo
para dizer que é muito importante definir logo o verdadeiro objeto da tese, já
que, desde o início, impõe-se o problema da acessibilidade das fontes.
No
parágrafo 3.2.4., encontra-se um exemplo de como se pode partir praticamente do
nada para a descoberta das fontes adequadas ao nosso trabalho, mesmo numa
biblioteca modesta. Mas trata-se de um caso-limite. Em geral, aceita-se o tema
sem saber se se está em condições de aceder às fontes, e é preciso saber: (1)
onde podem ser encontradas, (2) se são facilmente acessíveis, (3) se estou em condições
de compulsá-las.”
“Quando trabalhamos sobre livros, uma fonte de primeira mão é uma edição
original ou uma edição crítica da obra em apreço.
Tradução não é fonte: é uma prótese, como a
dentadura ou os óculos, um meio de atingir de forma limitada algo que se acha fora
do alcance.
Antologia não é fonte: é um apanhado
de fontes, que pode ser útil num primeiro momento, mas fazer uma tese sobre
determinado autor significa tentar ver nele coisas que outros não viram, e uma
antologia só me mostra o que ninguém ignora.
Resenhas efetuadas por outros autores, mesmo completadas pelas mais
amplas citações, não são fontes: são, quando
muito, fontes de segunda mão.
Uma fonte é de segunda mão por várias razões.
Se pretendo fazer uma tese sobre os discursos parlamentares de Palmiro
Togliatti, os discursos publicados pelo Unità
constituem fonte de segunda mão. Ninguém me garante que o redator não tenha
feito cortes ou cometido erros. Fontes de primeira mão serão as atas
parlamentares. Caso eu conseguisse obter o texto escrito diretamente por
Togliatti, teria então uma fonte de primeiríssima mão. Se desejo estudar a
declaração de independência dos Estados Unidos, a única fonte de primeira mão é
o documento autêntico. Mas também posso considerar de primeira mão uma boa
fotocópia. O mesmo se diga do texto elaborado criticamente por qualquer
historiógrafo de seriedade indiscutível (“indiscutível”, aqui, quer dizer:
jamais discutido pela literatura crítica existente). Vê-se que o conceito de “primeira”
e “segunda” mão depende do ângulo da tese. Se esta intenta discutir as edições
críticas existentes, é preciso remontar aos originais; se pretende discutir o
sentido político da declaração de independência, uma boa edição crítica é mais
que suficiente.”
“Uma das primeiras coisas a fazer para começar a trabalhar numa tese é escrever o título, a introdução e o
índice final – ou seja, tudo aquilo que os autores deixam no fim. O conselho parece paradoxal: começar pelo fim? Mas quem
disse que o índice vem no fim? Em alguns livros aparece no início, de modo que
o leitor faça desde logo uma ideia do conteúdo.
Em outras palavras, redigir logo o índice
como hipótese de trabalho serve para definir o âmbito da tese.
Objetar-se-á que, à medida que o trabalho
avança, esse índice hipotético se vê obrigado a reestruturar-se várias vezes,
talvez assumindo uma forma totalmente diferente. Certo. Mas a reestruturação
será mais bem feita se contar com um ponto de partida. (...)
O mesmo se passa em relação à sua tese. Você
se propõe um plano de trabalho, que
assumirá a forma de um índice provisório. Melhor ainda se ele for um sumário
onde, para cada capítulo, se esboce um breve resumo. Assim fazendo, esclarecerá
para você mesmo o que tem em mente. Em segundo lugar, poderá propor um projeto
compreensível ao orientador. Em terceiro lugar, verá se suas ideias já estão
suficientemente claras. Há projetos que parecem muito claros enquanto só
pensados, quando se começa a escrever, tudo se esboroa entre as mãos. Pode-se
ter ideias claras sobre o ponto de partida e de chegada, mas se verificará que
não se sabe muito bem como se chegará de um ao outro e o que haverá entre esses
dois pontos. Uma tese, tal como uma partida de xadrez, compõe-se de muitos movimentos,
só que você deverá ser capaz de predizer os seus movimentos para pôr em xeque o
adversário, do contrário fracassará. (...)
Em definitivo, um índice-hipótese deverá ter
a seguinte estrutura:
1. Posição do
problema
2. Os estudos
precedentes
3. Nossa
hipótese
4. Dados que
estamos em condições de apresentar
5. Sua análise
6. Demonstração
da hipótese
7. Conclusões e
referências para o trabalho posterior
A terceira fase do plano é um esboço de
introdução. Esta não é mais que o comentário analítico do índice:
Com o presente trabalho propomo-nos demonstrar uma determinada tese. Os
estudos precedentes deixaram em aberto inúmeros problemas e os dados recolhidos
não bastam. No primeiro capítulo tentaremos estabelecer o ponto “x”; no
segundo, abordaremos o problema “y”. Concluindo, tentaremos provar isto e
aquilo. Deve-se ter presente que nos fixamos limites precisos, isto é, tais e
tais. Dentro destes limites, o método que seguiremos é o seguinte... etc.
O objetivo dessa introdução fictícia (fictícia
porque você a refundirá muitas vezes antes de acabar a tese) é permitir-lhe a
fixação das ideias ao longo de uma diretriz que não será alterada exceto às
custas de uma reestruturação consciente do índice. Assim você controlará os
desvios e os impulsos. Esta introdução também serve para mostrar ao orientador o que se pretende fazer. Mas presta-se
sobretudo a demonstrar se já se tem as
ideias em ordem. Com efeito, presume-se que o estudante saia da escola secundária
já sabendo escrever, pois lhe deram uma infinidade de temas para redação.
Depois, passa quatro, cinco ou mais anos na universidade, onde via de regra
ninguém lhe exige mais que escreva, e se vê diante da tese completamente
desapercebido1. Será um grande choque. Cumpre aprender e escrever
depressa, talvez utilizando as próprias hipóteses de trabalho.
Fique atento, pois enquanto não for capaz de
redigir um índice e uma introdução não poderá afirmar que aquela é a sua tese. Se não conseguir escrever o
prefácio, isto significa que não tem ainda ideias claras sobre como começar. E,
se as tem, é porque pode pelo menos “suspeitar” onde chegará. Com base nessa
suspeita, precisamente, é que deverá rascunhar a introdução, como se tratasse
de um resumo do trabalho já feito. Não tenha medo de avançar demasiado. Sempre
poderá alterar seus passos.
Fica, pois, claro que introdução e índice serão continuamente reescritos à medida que o
trabalho progride. É assim que se
faz. O índice e a introdução finais (que aparecerão no trabalho datilografado)
serão diferentes dos iniciais. É normal. Do contrário, pareceria que toda a
pesquisa não trouxera nenhuma ideia nova.
O que distinguirá a primeira e a última redação
da introdução? O fato de, na última, você prometer muito menos que na primeira,
mostrando-se bem mais cauteloso. O objetivo da introdução definitiva será
ajudar o leitor a penetrar na tese: mas nada de prometer-lhe o que depois você
será incapaz de cumprir. O ideal de uma boa introdução definitiva é que o leitor
se contente com ela, entenda tudo e não leia o resto. Trata-se de um paradoxo,
mas muitas vezes uma boa introdução, num livro publicado, dá uma ideia exata ao
crítico, levando-o a falar dele como o autor desejaria. Mas o que aconteceria
se o orientador (ou outro qualquer) lesse a tese e descobrisse que você
apregoou na introdução resultados a que em verdade não chegou? Eis a razão por
que esta última redação deve ser cautelosa e só prometer o que a tese for capaz
de dar.
A introdução serve também para estabelecer
qual será o núcleo e a periferia da tese, distinção importante
não só por razões de método. Será exigido mais de você no que ficou definido
como núcleo do que como periferia. (...)
A primeira coisa a fazer é a pesquisa
bibliográfica. (...)
Que lógica presidirá a construção do índice-hipótese?
A escolha depende do tipo de tese. Numa tese histórica poderia haver um plano
cronológico (por exemplo: A Perseguição
dos Valdenses na Itália) ou de causa e efeito (por exemplo: As Causas do Conflito Árabe-israelense).
É possível um plano espacial (A
Distribuição das Bibliotecas Circulares no Canavesano) ou
comparativo-contrastante (Nacionalismo e
Populismo na Literatura Italiana no Período da Grande Guerra). Numa tese de
caráter experimental você terá um plano indutivo,
onde se parte de algumas provas para a proposição de uma teoria; numa tese de
caráter lógico-matemático, um plano do tipo dedutivo,
onde aparece primeiro a proposição teórica e depois suas possíveis aplicações a
exemplos concretos... Direi que a literatura crítica, a que já nos referimos,
pode oferecer bons exemplos de planos de trabalho, bastando utilizá-la
criticamente, comparando os vários autores e vendo quem responde melhor às exigências
do problema formulado no título “secreto” da tese.
O índice já estabelece qual será a subdivisão
lógica da tese em capítulos, parágrafos e subparágrafos. Sobre as modalidades
dessa subdivisão, vejam-se 6.2.4 e 6.4. Também aqui, uma boa subdivisão em
disjunção binária permite acréscimos sem que se altere demais a ordem inicial.
Por exemplo, se seu índice for:
1. Problema
central
1.1.
Subproblema principal
1.2.
Subproblema secundário
2.
Desenvolvimento do problema central
2.1. Primeira
ramificação
2.2. Segunda ramificação
1. O mesmo não acontece em outros países, como os Estados
Unidos, onde o estudante, em vez dos exames orais, escreve papers, ensaios ou “pequenas teses” de dez ou vinte páginas para
qualquer curso em que se inscreveu. É um sistema muito útil que alguém já
adotou também entre nós (dado que os regulamentos não o excluem inteiramente e
a forma oral-nocionista do exame é apenas um dos métodos do estudante).
“Um fichário, recordemo-lo, é um investimento que se faz por ocasião da
tese, mas que, caso tencionemos prosseguir os estudos, nos serve pelos anos
afora, às vezes décadas depois.”
“A ficha mais comum e mais indispensável é a de leitura: ou seja, aquela
em que você anota com exatidão todas as referências bibliográficas concernentes
a um livro ou artigo, explora-lhe o conteúdo, tira dele citações-chaves, forma
um juízo e faz observações.”
“4.2.4.
A humildade científica
Não se deixe impressionar pelo título deste
parágrafo. Não se trata de uma discussão ética, mas de métodos de leitura e
fichamento.
Viu-se, nos exemplos de fichas que forneci,
um no qual, pesquisador jovem, embirrei com um autor e dei cabo dele em poucas
linhas. Ainda hoje estou convencido de que tinha razão e, em todo caso, minha
atitude se justificava porque ele próprio, em dezoito linhas, liquidara um
assunto tão importante. Mas era um caso-limite. Como quer que seja, fichei-o e levei
em conta sua opinião, não só porque é preciso registrar todas as opiniões
expressas sobre o nosso tema, mas porque nem
sempre as melhores ideias nos vêm dos autores maiores. E agora vou contar a
história do Abade Vallet.
Para entendê-la bem, cumpre dizer-lhes qual
era o problema de minha tese e o escolho interpretativo com que me via às
voltas há cerca de um ano. Como o problema não interessa a todos, digamos
sucintamente que para a estética contemporânea o momento da percepção do belo é
em geral intuitivo, mas em São Tomás não existe a categoria da intuição. Vários
intérpretes modernos se esforçaram por demonstrar que ele de algum modo falara
de intuição, o que era deturpá-lo. Por outro lado, o momento da percepção dos
objetos era, em São Tomás, tão rápido e instantâneo que não explicava a fruição
das complexas qualidades estéticas, jogos de proporções, relações entre a essência
da coisa e o modo pelo qual ela organiza a matéria etc. A solução estava (e
cheguei a ela um mês antes de terminar a tese) em descobrir que a contemplação
estética se inseria no ato, bem mais complexo, do juízo. Mas São Tomás não dizia isso claramente. No entanto, pela
maneira como falava da contemplação estética não se podia tirar outra conclusão.
Ora, o objetivo de uma pesquisa interpretativa é frequentemente este: levar um
autor a dizer explicitamente aquilo que não dissera, mas que não deixaria de
dizer se alguém lho perguntasse. Em outras palavras: mostrar como, confrontando
várias afirmações, deve emanar aquela resposta nos termos do pensamento
estudado. O autor talvez não o tenha dito por parecer-lhe demasiado óbvio ou
porque – como no caso de São Tomás – jamais tratara organicamente o problema
estético, falando dele como incidente e dando o ponto por pacífico.
Tinha, pois, um problema. E nenhum dos
autores que eu lia vinha em meu socorro (e, no entanto, se havia algo de
original em minha tese, era precisamente aquela pergunta, cuja resposta devia
vir de fora). Enquanto me azafamava, desconsolado, a procurar textos que me
ajudassem, sucedeu-me encontrar num alfarrabista de Paris um pequeno livro que
de início me atraiu pela bela encadernação. Abro-o e vejo que se trata da obra
de um certo Abade Vallet, L’idée du Beau
dans la philosophie de Saint Thomas d’Aquin (Louvain, 1887). Não o
encontrara em nenhuma bibliografia. Era obra de um autor menor do século XIX.
Naturalmente o comprei (não custava caro) e pus-me a lê-lo, verifico que o
Abade Vallet era um pobre diabo, que se limitava a repetir ideias recebidas, não
descobrindo nada de novo. Se continuei a lê-lo, não foi por “humildade científica”
(não a conhecia ainda, só a aprendi ao ler aquele livro, o Abade Vallet foi o
meu grande mestre), mas por pura obstinação e para justificar o dinheiro gasto.
A certa altura, quase entre parênteses e como que por desatenção, sem que o bom
abade se desse conta do alcance do que dizia, deparo com uma alusão à teoria do
juízo em conexão com a da beleza! Eureca! Encontrara a solução! E quem a dera
fora o pobre Abade Vallet; morto havia já cem anos, ignorado de todos, mas que
ainda assim tinha algo a ensinar a quem se dispusesse a ouvi-lo.
É isto a humildade científica. Todos podem
ensinar-nos alguma coisa. Ou talvez sejamos nós os esforçados quando aprendemos
algo de alguém não tão esforçado como nós. Ou então, quem parece não valer
grande coisa tem qualidades ocultas. Ou ainda, quem não é bom para este o é para
aquele. As razões são muitas. O fato é que precisamos ouvir com respeito a
todos, sem por isso deixar de exprimir juízos de valor ou saber que aquele
autor pensa de modo diferente do nosso e está ideologicamente distante de nós.
Até nosso mais feroz adversário pode sugerir-nos ideias. Isso pode depender do
tempo, da estação ou da hora. Talvez, se eu tivesse lido o Abade Vallet um ano
antes, não aproveitaria sua sugestão. E quem sabe quantos, mais hábeis que eu,
já o tinham lido sem nada encontrar de interessante? Mas com este episódio
aprendi que, quando queremos fazer uma pesquisa, não podemos desprezar nenhuma
fonte, e isto por princípio. Aí está o que chamo humildade científica. Talvez
seja uma definição hipócrita, na medida em que acoberta muito orgulho, mas não é
hora de colocarmos problemas morais: orgulho ou humildade, pratiquem-na.”
“Em geral os textos que não explicam com grande
familiaridade os termos que empregam deixam a suspeita de que seus autores são
muito mais inseguros do que aqueles que explicitam cada referência e cada
passagem. Se você ler os grandes cientistas ou os grandes críticos, verá que,
com raríssimas exceções, eles são sempre claros e não se envergonham de
explicar bem as coisas.”
“Uma vez decidido a quem se escreve (à humanidade, não ao examinador), cumpre
resolver como se escreve. Problema
difícil: se houvesse a respeito regras cabais, seríamos todos escritores de
proa. Pode-se recomendar escrever a tese várias vezes, ou escrever outras
coisas antes de atacá-la, pois escrever é também questão de treino. De qualquer
forma, é possível dar alguns conselhos muito gerais.
Não imite Proust. Nada de períodos longos.
Se ocorrerem, registre-os, mas depois desmembre-os. Não receie repetir duas
vezes o sujeito. Elimine o excesso de pronomes e subordinadas. (...)
Não pretenda ser e.e. cummings. Cummings era
um poeta americano que assinava com as iniciais minúsculas. E, naturalmente,
usava vírgulas e pontos com muita parcimônia, cortava os versos, em suma, fazia
tudo aquilo que um poeta de vanguarda pode e deve fazer. Mas você não é um
poeta de vanguarda. Nem sua tese versa sobre poesia de vanguarda. Se escrever sobre
Caravaggio, pôr-se-á de súbito a pintar? Portanto, ao falar do estilo dos
futuristas, evite escrever como um deles. Esta é uma recomendação importante,
pois hoje em dia muita gente se mete a fazer teses “de ruptura”, onde não se
respeitam as regras do discurso crítico. A linguagem da tese é uma metalinguagem, isto é, uma linguagem que
fala de outras linguagens. Um psiquiatra que descreve doentes mentais não se
exprime como os doentes mentais. Não quero dizer que seja errado exprimir-se
como eles: pode-se, e razoavelmente, estar convencido de que os doentes mentais
são os únicos a exprimir-se como deve ser. Mas então terá duas alternativas: ou
não fazer uma tese e manifestar o desejo de ruptura recusando os títulos
universitários e começando, por exemplo, a tocar guitarra; ou fazer a tese, mas
explicando por que motivo a linguagem dos doentes mentais não é uma linguagem “de
loucos”, e para tal precisará empregar uma metalinguagem crítica compreensível
a todos. O pseudopoeta que faz sua tese em versos é um palerma (e com certeza
mau poeta). De Dante a Eliot e de Eliot a Sanguineti, os poetas de vanguarda,
quando queriam falar de sua poesia, faziam-no em prosa e com clareza. Quando
Marx falava dos operários, não escrevia como um operário de sua época, mas como
um filósofo. Mas quando, de parceria com Engels, redigiu o Manifesto de 1848, empregou um estilo jornalístico, de períodos curtos, muitíssimo eficaz
e provocatório. Diferente do estilo de O Capital, destinado a
economistas e políticos. Não diga que a violência poética “brota de dentro” de você
e que se sente incapaz de submeter-se às exigências da simples e banal
metalinguagem da crítica. É poeta? Não se forme, Montale não se formou e nem
por isso deixa de ser um grande poeta. Gadda (formado em engenharia) escrevia
como escrevia, tudo regionalismos e rupturas estilísticas; porém, quando
precisou elaborar um decálogo para quem redigia notícias de rádio, saiu-se com
um delicioso, agudo e reto receituário em prosa clara e compreensível a todos.
Quando Montale e escreve um artigo crítico, procede de maneira que todos o
entendam, mesmo aqueles que não entendem sua poesia.
Abra parágrafos com frequência. Quando for
necessário, para arejar o texto; mas quanto mais vezes melhor.
Escreva o que lhe vier à cabeça, mas apenas em rascunho. Depois perceberá que o ímpeto lhe arrebatou a mão e o afastou do núcleo
do tema. Elimine então as partes parentéticas e as divagações, colocando-as em nota ou em apêndice (ver). A finalidade da tese é demonstrar uma hipótese que
se elaborou inicialmente, e não provar que se sabe tudo.
Use o orientador como cobaia. Faça-o ler os
primeiros capítulos (e depois, aos poucos, o resto) com boa antecedência antes
da entrega da tese. As reações dele poderão ser de grande utilidade. Se o
orientador for uma pessoa muito ocupada (ou preguiçosa) recorra a um amigo.
Verifique se qualquer pessoa entende o que você escreveu. Não se faça de gênio
solitário.
Não se obstine em iniciar no primeiro capítulo.
Talvez esteja mais preparado e documentado para o quarto capítulo. Comece por aí,
com a desenvoltura de quem já pôs em ordem os capítulos anteriores. Ganhará confiança.
Naturalmente você conta com um ponto de apoio no índice-hipótese, que vai
orientá-lo desde o começo (ver 4.1.).
Não use reticências ou pontos de exclamação,
nem faça ironias. Pode-se falar uma linguagem absolutamente referencial ou uma
linguagem figurada. Por linguagem
referencial entendo uma linguagem onde todas as coisas são chamadas pelo seu
nome mais comum, o mais reconhecível por todos e que não se presta a equívocos.
(...)
As reticências, como veremos, só se empregam
no corpo de uma citação para assinalar os trechos omitidos e, no máximo, no final de um período para indicar
que nem tudo terminou, que ainda haveria algo a dizer. Em segundo lugar, o uso
do ponto de exclamação para enfatizar
uma assertiva. Fica mal, pelo menos num ensaio crítico. Se se der ao trabalho
de pesquisar o presente livro, verá que só uma ou duas vezes empreguei um ponto
de exclamação. Uma ou duas vezes é lícito, quando se trata de fazer o leitor
pular da cadeira ou de sublinhar uma afirmação vigorosa do tipo: “Atenção,
nunca cometam este erro!”, mas é melhor falar em voz baixa. Se disser coisas importantes,
conseguirá maior efeito. (...)
Defina sempre um termo ao introduzi-lo pela primeira vez. Não sabendo defini-lo, evite-o. Se for um dos termos principais de sua
tese e não conseguir defini-lo, abandone tudo. Enganou-se de tese (ou de
profissão).
Não comece a explicar onde fica Roma para depois não explicar onde fica
Timbuctu. Dá-nos calafrios ler teses com frases do
tipo: “O filósofo panteísta judeu-holandês Spinoza foi definido por Guzzo...”
Alto lá! Ou você está fazendo uma tese sobre Spinoza e então o leitor sabe quem
é Spinoza e que Augusto Guzzo escreveu um livro sobre ele, ou está citando por
acaso essa afirmação numa tese sobre física nuclear e então não deve presumir
que o leitor ignore quem é Spinoza, mas saiba quem é Guzzo. Ou, ainda, trata-se
de uma tese sobre a filosofia pós-gentiliana na Itália, e todos saberão quem é
Guzzo, mas a esta altura também quem é Spinoza. Não diga, nem mesmo numa tese de
história: “T. S. Eliot, poeta inglês” (à parte o fato de ter nascido nos
Estados Unidos). Parte-se do princípio de que Eliot é universalmente conhecido.
Quando muito, se quiser sublinhar que foi mesmo um poeta inglês e dizer
determinada coisa, é melhor escrever: “Foi um poeta inglês, Eliot, quem disse
que...” Mas, se a tese for sobre Eliot, tenha a humildade de fornecer todos os
dados, se não no texto, pelo menos numa nota logo no início: em dez linhas
condensará, com precisão e honestidade, os dados biográficos necessários. Não
se deve exigir do leitor, ainda que especializado, que se lembre de quando
Eliot nasceu. Isso vale ainda mais para autores menores de um século passado. Não
presuma que todos saibam de quem se trata. Diga logo quem era, sua posição etc.
Mas, ainda que fosse Moliere, que custa alinhavar uma nota com duas datas?
Nunca se sabe.
Eu ou nós? Deve-se, na tese, introduzir as opiniões próprias
na primeira pessoa? Deve-se dizer “penso que...”? Alguns acham isso mais
honesto do que apelar para o not
majestatis. Não concordo. Dizemos “nós” por presumir que o que afirmamos
possa ser compartilhado pelos leitores. Escrever é um ato social: escrevo para
que o leitor aceite aquilo que lhe proponho. Quando muito, deve-se procurar
evitar o pronome pessoal recorrendo a expressões mais impessoais, como “cabe,
pois, concluir que”, “parece acertado que”, “dever-se-ia dizer”, “é lícito
supor”, “conclui-se daí que”, “ao exame desse texto percebe-se que” etc. Não é
necessário dizer “o artigo que citei anteriormente”, ou “o artigo que citamos
anteriormente”, basta dizer “o artigo anteriormente citado”. Entretanto, é válido
escrever “o artigo anteriormente citado nos demonstra que”, pois expressões assim
não implicam nenhuma personalização do discurso científico.”
“5.6. O ORGULHO CIENTÍFICO
Em 4.2.4. falamos da humildade científica,
que diz respeito ao método de pesquisa e leitura de textos. Falemos agora do
orgulho científico, que se refere à coragem durante a redação da tese.
Não existe nada mais irritante do que aquelas
teses (coisa que também sucede a muitos livros impressos) onde o autor adianta
continuamente excusationes non petitae:
Não estamos à altura de afrontar tal assunto,
mas arriscaremos a hipótese...
Como não está à altura? Dedicou-se meses, às
vezes anos, ao tema escolhido, leu talvez tudo o que era preciso ler sobre ele,
meditou, tomou notas, e vem agora com essa conversa de não estar à altura? Mas
que diabo esteve fazendo todo esse tempo? Se não se sentia qualificado, não apresentasse
a tese. Se a apresentou, é porque se sentia preparado e, em qualquer caso, não
tem direito a desculpas. Assim, uma vez expostas as opiniões alheias, uma vez
expressas as dificuldades, uma vez esclarecido se sobre determinado tema são
possíveis respostas alternativas, vá em
frente. Diga tranquilamente: “julgamos que” ou “pode-se concluir que”. Ao falar,
você é a autoridade. Se for
descoberto que é um charlatão, pior
para você, mas não tem o direito de hesitar. Tem o papel de funcionário da humanidade,
falando em nome da coletividade sobre aquele assunto. Seja modesto e prudente
antes de abrir a boca, mas, depois de abri-la, seja arrogante e orgulhoso.
Fazer uma tese sobre o tema X significa
presumir que até então ninguém tivesse dito nada de tão completo e claro sobre o
assunto. O presente livro lhe ensinou que deve ser cauteloso ao escolher o tema,
ser suficientemente perspicaz para optar por algo limitado, talvez muito fácil,
talvez ignobilmente setorial. Mas, sobre o que escolheu, nem que tenha por título
Variações na Venda de Jornais na Es quina
da Avenida Ipiranga com a Avenida São João de 24 a 28 de Agosto de 1976, você
deve ser a máxima autoridade viva.
Mesmo que tenha escolhido uma tese de compilação,
que resuma tudo quanto foi dito sobre o assunto sem nada acrescentar de novo,
você é uma autoridade sobre o que foi dito por outras autoridades. Ninguém deve
conhecer melhor tudo o que foi dito a respeito.
Naturalmente, deve trabalhar de maneira a não
atentar contra a consciência. Mas isso é outra coisa. A questão aqui é de
estilo. Não seja choramingas e complexado. Isso aborrece.”
“Gostaria de concluir com duas observações: fazer uma tese significa divertir-se, e a tese é como porco – nada se
desperdiça.
Quem quer que, sem prática de pesquisa e
temeroso da tese que não sabia como fazer, tenha lido este livro, pode ficar
aterrorizado. Quantas regras, quantas instruções. Impossível sair são e salvo...
E, no entanto, a verdade é bem outra. Para
ser exaustivo, tive de supor um leitor totalmente desprovido de tudo, mas cada
um de vocês, lendo algum livro, já se apossou de muitas das técnicas de que se
falou. Meu livro serviu, não obstante, para recordar todas elas, para trazer à
luz da consciência aquilo que muitos de vocês já haviam absorvido sem se dar conta
disso. Mesmo um motorista, quando começa a refletir sobre seus próprios gestos,
se dá conta de ser uma máquina prodigiosa que em frações de segundo toma decisões
de importância vital sem se permitir qualquer erro. No entanto, quase todo
mundo sabe dirigir um automóvel, e o número razoável de pessoas que morrem de
acidentes na estrada nos diz que a grande maioria consegue sair viva.
O importante é fazer as coisas com gosto. E
se escolheu um tema que lhe interessa, se decidiu dedicar realmente à tese o
período, mesmo curto, que lhe foi prefixado (sugerimos um limite mínimo de seis
meses), verá agora que a tese pode ser vivida como um jogo, como uma aposta,
como uma caça ao tesouro.
Há uma satisfação esportiva em dar caça a um
texto que não se encontra, há uma satisfação de charadista em encontrar, após
muito refletir, a solução de um problema que parecia insolúvel.
Viva a tese como um desafio. O desafiante é
você: foi-lhe feita no início uma pergunta a que você ainda não sabia
responder. Trata-se de encontrar a solução em um número finito de lances. Às
vezes a tese pode ser vivida como uma partida a dois: o autor que você escolheu
não quer confiar-lhe o seu segredo, terá de assediá-lo, de interrogá-lo com
delicadeza, de fazê-lo dizer aquilo que ele não queria dizer, mas que terá de dizer.
Às vezes, a tese é um puzzle: você
dispõe de todas as peças, cumpre fazê-la entrar em seu devido lugar.
Se jogar a partida com gosto ‘fia contenda,
fará uma boa tese. Se partir já com a ideia de que se trata-se um ritual sem
importância e destituído de interesse, estará derrotado de saída. Neste ponto,
já o disse no início (e não me obrigue a repetir porque é ilegal), encomende
sua tese, copie-a, mas não arruíne sua vida nem a de quem irá ajudá-lo a lê-lo.
Se fez a tese com gosto, há de querer continuá-la.
Comumente, quando se trabalha numa tese só se pensa no momento em que ela estará
terminada: sonha-se com as férias que se seguirão. Mas se o trabalho for bem feito,
o fenômeno normal, após a tese, é a irrupção de um grande frenesi de trabalho.
Quer-se aprofundar todos os pontos que ficaram em suspenso, ir no encalço das
ideias que nos vieram à mente, mas que se teve de suprimir, ler outros livros,
escrever ensaios. E isto é sinal de que a tese ativou o seu metabolismo
intelectual, que foi uma experiência positiva. É sinal, também, de que já se é
vítima de uma coação no sentido de pesquisar, à maneira de Chaplin em Tempos Modernos, que continuava a
apertar parafusos mesmo depois do trabalho: e será preciso um esforço para se
refrear.
Mas, uma vez refreado, pode suceder que
descubra ter uma vocação para a pesquisa, que a tese não era apenas o
instrumento para se formar e a formatura o instrumento para subir um grau nas
funções estatais ou para contentar os pais. E não quer isso dizer que continuar
a pesquisar signifique entregar-se à carreira universitária, esperar um
contrato, renunciar a um trabalho imediato. Pode-se dedicar um tempo razoável à
pesquisa mesmo exercendo uma profissão, sem pretender obter um cargo universitário.
Mesmo um bom profissional deve continuar a estudar.
Se, de qualquer forma, se dedicar à pesquisa,
descobrirá que uma tese bem feita é um produto de que se aproveita tudo. Como
primeira utilização você extrairá dela um ou vários artigos científicos ou
mesmo um livro (com alguns aperfeiçoamentos). Mas com o correr do tempo voltará
à tese para tirar dela material de citação, reutilizará as fichas de leitura
usando partes que porventura não tenham entrado na redação final do seu
primeiro trabalho; as partes que eram secundárias na tese surgirão como o início
de novos estudos... Pode mesmo suceder que você volte à sua tese dez anos
depois. Porque ela ficará como o primeiro amor, e ser-lhe-á difícil esquecê-la.
No fundo, será esta a primeira vez que você fez um trabalho científico sério e
rigoroso, e isto não é experiência de somenos importância.”
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