terça-feira, 20 de agosto de 2019

Dialética do Concreto (Parte I) – Karel Kosík

Editora: Paz e Terra
ISBN: 978-85-2190-442-7
Tradução: Célia Neves e Alderico Toríbio
Opinião: ★★★★★
Páginas: 230
Sinopse: Kosík analisa as mistificações da pseudoconcreticidade, que é o mundo da reificação, das aparências enganadoras, dos preconceitos, da práxis fetichizada. Para não se perder em face dos múltiplos aspectos fenomênicos da realidade que a autêntica práxis vai desvendando, o conhecimento humano precisa discernir no real, a cada passo, a unidade dialética da essência e do fenômeno. Por isso, Kosík insiste no caráter necessariamente totalizante do conhecimento.

“A atitude primordial e imediata do homem, em face da realidade, não é a de um abstrato sujeito cognoscente, de uma mente pensante que examina a realidade especulativamente, porém a de um ser que age objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico que exerce a sua atividade prática no trato com a natureza e com os outros homens, tendo em vista a consecução dos próprios fins e interesses, dentro de um determinado conjunto de relações sociais. Portanto, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira vista, sob o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender teoricamente, cujo polo oposto e complementar seja justamente o abstrato sujeito cognoscente, que existe fora do mundo e apartado do mundo; apresenta-se como o campo em que se exercita a sua atividade prático-sensível, sobre cujo fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade. No trato prático-utilitário com as coisas – em que a realidade se revela como mundo dos meios, fins, instrumentos, exigências e esforços para satisfazer a estas – o indivíduo “em situação” cria suas próprias representações das coisas e elabora todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da realidade.”


“O fenômeno não é, portanto, outra coisa senão aquilo que – diferentemente da essência oculta – se manifesta imediatamente, primeiro e com maior frequência. Mas por que a “coisa em si”, a estrutura da coisa, não se manifesta imediata e diretamente? Por que são necessários um esforço e um desvio para compreendê-la? Por que a “coisa em si” se oculta, foge à percepção imediata? De que gênero de ocultação se trata? Tal ocultação não pode ser absoluta: se quiser pesquisar a estrutura da coisa e quiser perscrutar “a coisa em si”, se apenas quer ter a possibilidade de descobrir a essência oculta ou a estrutura da realidade – o homem, já antes de iniciar qualquer investigação, deve necessariamente possuir uma segura consciência do fato de que existe algo susceptível de ser definido como estrutura da coisa, essência da coisa, “coisa em si”, e de que existe uma oculta verdade da coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam imediatamente . O homem faz um desvio, se esforça na descoberta da verdade só porque, de um modo qualquer, pressupõe a existência da verdade, porque possui uma segura consciência da existência da “coisa em si” Por que, então, a estrutura da coisa não é direta e imediatamente acessível ao homem, por que, então, para captá­la ele tem de fazer um desvio? E a que leva tal desvio? O fato de na percepção imediata não se captar a “coisa em si” mas o fenômeno da coisa, dependerá, talvez, do fato de que a estrutura da coisa pertence a outra ordem de realidade, distinta da dos fenômenos, e que, portanto, constitui uma outra realidade existente por trás dos fenômenos?
Como a essência – ao contrário dos fenômenos – não se manifesta diretamente, e desde que o fundamento oculto das coisas deve ser descoberto mediante uma atividade peculiar, tem de existir a ciência e a filosofia. Se a aparência fenomênica e a essência das coisas coincidissem diretamente, a ciência e a filosofia seriam inúteis.1
O esforço direto para descobrir a estrutura da coisa e “a coisa em si” constitui desde tempos imemoriais, e constituirá sempre, tarefa precípua da filosofia. As várias tendências filosóficas fundamentais são apenas modificações desta problemática fundamental e de sua solução em cada etapa evolutiva da humanidade. A filosofia é uma atividade humana indispensável, visto que a essência da coisa, a estrutura da realidade, a “coisa em si”, o ser da coisa, não se manifesta direta e imediatamente. Neste sentido a filosofia pode ser caracterizada como um esforço sistemático e crítico que visa a captar a coisa em si, a estrutura oculta da coisa, a descobrir o modo de ser do existente.
O conceito da coisa é compreensão da coisa, e compreender a coisa significa conhecer-lhe a estrutura. A característica precípua do conhecimento consiste na decomposição do todo. A dialética não atinge o pensamento de fora para dentro, nem de imediato, nem tampouco constitui uma de suas qualidades; o conhecimento é que é a própria dialética em uma das suas formas; o conhecimento é a decomposição do todo. O “conceito” e a “abstração”, em uma concepção dialética, têm o significado de método que decompõe o todo para poder reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa, e, portanto, compreender a coisa.2
1. “... Se os homens apreendessem imediatamente as conexões, para que serviria a ciência?” (Marx a Engels, carta de 27-6-1867). “Toda ciência seria supérflua se a forma fenomênica e a essência coincidissem diretamente.” Marx, O Capital, III, sec. VII, cap. XLVIII, III. (Tr. ital. Roma, Rinascita, 1959, III, a, pág. 228). “Para as formas fenomênicas... a diferença da relação essencial... vale exatamente aquilo que vale para todas as formas fenomênicas e para o fundamento oculto por detrás delas. As formas fenomênicas se reproduzem imediatamente por si mesmas, como formas correntes do pensamento, mas o seu fundamento oculto tem de ser descoberto somente pela ciência.” Marx, O Capital, I, sec. VI, cap. XVII. (Tr. ital. I, 2, pág. 259).
2. Alguns filósofos (por ex. Granger, L'ancienne et la nouvelle économie, ““Esprit”, 1956, pág. 551-5) atribuem apenas a Hegel o “método da abstração” e “do conceito”. Na realidade este é o único caminho da filosofia para chegar à estrutura da coisa e, portanto, à compreensão da coisa.


“Todo agir é “unilateral”, já que visa a um fim determinado e, portanto, isola alguns momentos da realidade como essenciais àquela ação, desprezando outros, temporariamente. Através deste agir espontâneo, que evidencia determinados momentos importantes para a consecução de determinado objetivo, o pensamento cinde a realidade única, penetra nela e a “avalia”.”


“A dialética é o pensamento crítico que se propõe a compreender a “coisa em si” e sistematicamente se pergunta como é possível chegar à compreensão da realidade. Por isso, é o oposto da sistematização doutrinária ou da romantização das representações comuns. O pensamento que quer conhecer adequadamente a realidade, que não se contenta com os esquemas abstratos da própria realidade, nem com suas simples e também abstratas representações, tem de destruir a aparente independência do mundo dos contatos imediatos de cada dia. O pensamento que destrói a pseudoconcreticidade para atingir a concreticidade é ao mesmo tempo um processo no curso do qual sob o mundo da aparência se desvenda o mundo real; por trás da aparência externa do fenômeno se desvenda a lei do fenômeno; por trás do movimento visível, o movimento real interno; por trás do fenômeno, a essência.4 O que confere a estes fenômenos o caráter de pseudoconcreticidade não é a sua existência por si mesma, mas a independência com que ela se manifesta. A destruição da pseudoconcreticidade – que o pensamento dialético tem de efetuar – não nega a existência ou a objetividade daqueles fenômenos mas destrói a sua pretensa independência, demonstrando o seu caráter mediato e apresentando, contra a sua pretensa independência, prova do seu caráter derivado.
A dialética não considera os produtos fixados, as configurações e os objetos, todo o conjunto do mundo material reificado, como algo originário e independente. Do mesmo modo como assim não considera o mundo das representações e do pensamento comum, não os aceita sob o seu aspecto imediato: submete-os a um exame em que as formas reificadas do mundo objetivo e ideal se diluem, perdem a sua fixidez, naturalidade e pretensa originalidade para se mostrarem como fenômenos derivados e mediatos, como sedimentos e produtos da práxis social da humanidade.5
5. “O marxismo é um esforço para ler, por trás da pseudo-imediaticidade do mundo econômico reificado as relações inter-humanas que o edificaram e se dissimularam por trás de sua obra.” A. de Walhens, L’idée phénoménologique d'intentionalité, in Husserl et la pensée moderne, Haia, 1959, págs. 127-28.


“O pensamento acriticamente reflexivo6 coloca imediatamente – e portanto sem uma análise dialética – em relação causal as representações fixadas e as condições igualmente fixadas, fazendo passar tal forma de “pensamento bárbaro” por uma análise “materialista” das ideias. Como os homens tomaram consciência de seu tempo (e, portanto, já o viveram, avaliaram, criticaram e compreenderam) nas categorias da “fé do carvoeiro” e do ceticismo “pequeno-burguês”, o doutrinador supõe que se fizera a análise “científica” daquelas ideias ao procurar para elas um equivalente econômico, social ou de classe. Ao invés, mediante tal “materialização” efetua-se apenas uma dupla mistificação: a subversão do mundo da aparência (das ideias fixadas) tem as suas raízes na materialidade subvertida (reificada). A teoria materialista deve iniciar a análise com a questão: por que os homens tomaram consciência de seu tempo justamente nestas categorias e qual o tempo que se mostra aos homens nestas categorias? Fazendo esta indagação, o materialista prepara o terreno para proceder à destruição da pseudoconcreticidade tanto das ideias quanto das condições, e só depois disso pode procurar uma explicação racional para a íntima conexão entre o tempo e a ideia.”
6. Hegel assim define o pensamento reflexivo: “A reflexão é a atividade que consiste em constatar as oposições e em passar de uma para outra, mas sem ressaltar a sua conexão e a unidade que as compenetra.” Hegel, Phil. der Religion, I, pág. 126 (Werke, Vol. XI). Ver também Marx, Grundrisse, pág. 10.


“O mundo real, oculto pela pseudoconcreticidade, apesar de nela se manifestar, não é o mundo das condições reais em oposição às condições irreais, tampouco o mundo da transcendência em oposição à ilusão subjetiva; é o mundo da práxis humana. É a compreensão da realidade humano-social como unidade de produção e produto, de sujeito e objeto, de gênese e estrutura. O mundo real não é, portanto, um mundo de objetos “reais” fixados, que sob o seu aspecto fetichizado levem uma existência transcendente como uma variante naturalisticamente entendida das ideias platônicas; ao invés, é um mundo em que as coisas, as relações e os significados são considerados como produtos do homem social, e o próprio homem se revela como sujeito real do mundo social. O mundo da realidade não é uma variante secularizada do paraíso, de um estado já realizado e fora do tempo; é um processo no curso do qual a humanidade e o indivíduo realizam a própria verdade, operam a humanização do homem. Ao contrário do mundo da pseudoconcreticidade, o mundo da realidade é o mundo da realização da verdade, é o mundo em que a verdade não é dada e predestinada, não está pronta e acabada, impressa de forma imutável na consciência humana: é o mundo em que a verdade devém. Por esta razão a história humana pode ser o processo da verdade e a história da verdade. A destruição da pseudoconcreticidade significa que a verdade não é nem inatingível, nem alcançável de uma vez para sempre, mas que ela se faz; logo, se desenvolve e se realiza.”


“Como as coisas não se mostram ao homem diretamente tal qual são e como o homem não tem a faculdade de ver as coisas diretamente na sua essência, a humanidade faz um détour (desvio) para conhecer as coisas e a sua estrutura. Justamente porque tal détour é o único caminho acessível ao homem para chegar à verdade, periodicamente a humanidade tenta poupar-se o trabalho desse desvio e procura observar diretamente a essência das coisas (o misticismo é justamente a impaciência do homem em conhecer a verdade). Com isso corre o perigo de perder-se ou de ficar no meio do caminho, enquanto percorre tal desvio.
A obviedade não coincide com a perspicuidade e a clareza da coisa em si; ou melhor, ela é a falta de clareza da representação da coisa. A natureza se manifesta como algo de inatural. O homem tem de envidar esforços e sair do “estado natural” para chegar a ser verdadeiramente homem (o homem se forma evoluindo-se em homem) e conhecer a realidade como tal. Para os grandes pensadores de todos os tempos e de todas as tendências – no mito platônico da caverna, na imagem baconiana dos ídolos, em Spinoza, Hegel, Heidegger e Marx – o conhecimento é corretamente caracterizado como superação da natureza, como a atividade ou o “esforço” supremo. A dialética da atividade e da passividade do conhecimento humano manifesta-se sobretudo no fato de que o homem, para conhecer as coisas em si, deve primeiro transformá-las em coisas para si; para conhecer as coisas como são independentemente de si, tem primeiro de submetê-las à própria práxis: para poder constatar como são elas quando não estão em contato consigo, tem primeiro de entrar em contato com elas. O conhecimento não é contemplação. A contemplação do mundo se baseia nos resultados da práxis humana. O homem só conhece a realidade na medida em que ele cria a realidade humana e se comporta antes de tudo como ser prático.”


“O ponto de partida do exame deve ser formalmente idêntico ao resultado. Este ponto de partida deve manter a identidade durante todo o curso do raciocínio, visto que ele constitui a única garantia de que o pensamento não se perderá no seu caminho. Mas o sentido do exame está no fato de que no seu movimento em espiral ele chega a um resultado que não era conhecido no ponto de partida e que, portanto, dada a identidade formal do ponto de partida e do resultado, o pensamento, ao concluir o seu movimento, chega a algo diverso – pelo seu conteúdo – daquilo de que tinha partido. Da vital, caótica, imediata representação do todo, o pensamento chega aos conceitos, às abstratas determinações conceituais, mediante cuja formação se opera o retorno ao ponto de partida; desta vez, porém, não mais como ao vivo mas incompreendido todo da percepção imediata, mas ao conceito do todo ricamente articulado e compreendido. O caminho entre a “caótica representação do todo” e a “rica totalidade da multiplicidade das determinações e das relações” coincide com a compreensão da realidade. O todo não é imediatamente cognoscível para o homem, embora lhe seja dado imediatamente em forma sensível, isto é, na representação, na opinião e na experiência. Portanto, o todo é imediatamente acessível ao homem, mas é um todo caótico e obscuro. Para que possa conhecer e compreender este todo, possa torná-lo claro e explicá-lo, o homem tem de fazer um détour: o concreto se torna compreensível através da mediação do abstrato, o todo através da mediação da parte. Exatamente o caminho da verdade é um détourder Weg Wahrheit ist Umweg – o homem pode perder-se ou ficar no meio do caminho.
O método da ascensão do abstrato ao concreto é o método do pensamento; em outras palavras, é um movimento que atua nos conceitos, no elemento da abstração. A ascensão do abstrato ao concreto não é uma passagem de um plano (sensível) para outro plano (racional): é um movimento no pensamento e do pensamento. Para que o pensamento possa progredir do abstrato ao concreto, tem de mover-se no seu próprio elemento, isto é, no plano abstrato, que é negação da imediatidade, da evidência e da concreticidade sensível. A ascensão do abstrato ao concreto é um movimento para o qual todo início é abstrato e cuja dialética consiste na superação desta abstratividade. O progresso da abstratividade à concreticidade é, por conseguinte, em geral movimento da parte para o todo e do todo para a parte; do fenômeno para a essência e da essência para o fenômeno; da totalidade para a contradição e da contradição para a totalidade, do objeto para o sujeito e do sujeito para o objeto. O processo do abstrato ao concreto, como método materialista do conhecimento da realidade, é a dialética da totalidade concreta, na qual se reproduz idealmente a realidade em todos os seus planos e dimensões. O processo do pensamento não se limita a transformar o todo caótico das representações no todo transparente dos conceitos; no curso do processo o próprio todo é concomitantemente delineado, determinado e compreendido.”


“Justamente porque o real é um todo estruturado que se desenvolve e se cria, o conhecimento de fatos ou conjuntos de fatos da realidade vem a ser conhecimento do lugar que eles ocupam na totalidade do próprio real. Ao contrário do conhecimento sistemático (que procede por via somatória) do racionalismo e do empirismo – conhecimento que se move de pontos de partida demonstrados através de um sistemático acrescentamento linear de fatos ulteriores –, o pensamento dialético parte do pressuposto de que o conhecimento humano se processa num movimento em espiral, do qual cada início é abstrato e relativo. Se a realidade é um todo dialético e estruturado, o conhecimento concreto da realidade não consiste em um acrescentamento sistemático de fatos a outros fatos, e de noções a outras noções. É um processo de concretização que procede do todo para as partes e das partes para o todo, dos fenômenos para a essência e da essência para os fenômenos, da totalidade para as contradições e das contradições para a totalidade; e justamente neste processo de correlações em espiral no qual todos os conceitos entram em movimento recíproco e se elucidam mutuamente, atinge a concreticidade. O conhecimento dialético da realidade não deixa intactos os conceitos no ulterior caminho do conhecer; não é uma sistematização dos conceitos que procede por soma, sistematização essa fundada sobre uma base imutável e encontrada uma vez por todas: é um processo em espiral de mútua compenetração e elucidação dos conceitos, no qual a abstratividade (unilateralidade e isolamento) dos aspectos é superada em uma correlação dialética, quantitativo­qualitativa, regressivo-progressiva. A compreensão dialética da totalidade significa não só que as partes se encontram em relação de interna interação e conexão entre si e com o todo, mas também que o todo não pode ser petrificado na abstração situada por cima das partes, visto que o todo se cria a si mesmo na interação das partes.
As opiniões relativas à cognoscibilidade ou incognoscibilidade da concreticidade, como conhecimento de todos os fatos, baseiam-se na concepção empírico-racionalista segundo a qual o conhecimento se realiza mediante um método de análise e soma, cujo postulado é  constituído pela representação atomística da realidade como congérie de coisas, processos, fatos. Ao contrário, no pensamento dialético o real é entendido e representado como um todo que não é apenas um conjunto de relações, fatos e          processos, mas também a sua criação, estrutura e gênese. Ao todo dialético pertence a criação do todo e a criação da unidade, a unidade das contradições e a sua gênese.”


“Para o materialismo a realidade social pode ser conhecida na sua concreticidade (totalidade) quando se descobre a natureza da realidade social, se elimina a pseudoconcreticidade, se conhece a realidade social como unidade dialética de base e de supra-estrutura, e o homem como sujeito objetivo, histórico-social. A realidade social não é conhecida como totalidade concreta se o homem no âmbito da totalidade é considerado apenas e sobretudo como objeto e na práxis histórico-objetiva da humanidade não se reconhece a importância primordial do homem como sujeito. A questão da concreticidade ou totalidade do real, portanto, não concerne em primeiro lugar à completicidade ou incompleticidade dos fatos, à variabilidade ou ao deslocamento dos horizontes, mas sim à questão fundamental: que é a realidade? No que toca à realidade social, é possível responder a tal pergunta se ela é reduzida a uma outra pergunta: como se cria a realidade social? Nessa problemática que indaga o que é a realidade social mediante a verificação de como é criada esta mesma realidade social, está contida uma concepção revolucionária da sociedade e do homem.
Voltando ao problema do fato e do seu significado no conhecimento da realidade social, ao princípio geralmente admitido de que todo fato só é compreensível em seu contexto e no todo,22 devemos insistir sobre uma verdade ainda mais importante e fundamental, que geralmente é descurada: o próprio conceito do fato é determinado pela concepção total da realidade social. O problema: que é o fato histórico? constitui apenas uma parte do problema principal: que é a realidade social?
Concordamos com o historiador soviético Kon, quando diz que os fatos elementares demonstraram ser algo muito complexo; e a ciência, que no passado se ocupava com os fatos isolados, hoje se vê cada vez mais orientando para os processos e as relações. A dependência entre os fatos e as generalizações é uma conexão e dependência recíproca; assim como a generalização é impossível sem os fatos, do mesmo modo tampouco existem fatos científicos que não contenham o elemento da generalização. O fato histórico é, em certo sentido, não só um pressuposto da investigação mas também um resultado seu.23 Mas se entre os fatos e as generalizações existe uma relação dialética de compenetração, pela qual cada fato traz em si o elemento da generalização e cada generalização é generalização de fatos, como explicar esta reciprocidade lógica? Nesta relação lógica se exprime a verdade de que a generalização é conexão interna dos fatos e que o próprio fato é reflexo de um determinado contexto. Cada fato na sua essência ontológica reflete toda a realidade; e o significado objetivo dos fatos consiste na riqueza e essencialidade com que eles completam e ao mesmo tempo refletem a realidade. Por esta razão é possível que um fato deponha mais que um outro, ou que o mesmo fato deponha mais, ou menos, dependendo do método e da atitude subjetiva do cientista, isto é, da capacidade do cientista para interrogar os fatos e descobrir o seu conteúdo e significado objetivo. A distinção dos fatos com base em seu significado e na sua importância não é o resultado de uma avaliação subjetiva, mas resulta do conteúdo objetivo dos fatos isolados. A realidade, em certo sentido, não existe a não ser como conjunto de fatos, como totalidade hierarquizada e articulada de fatos. Cada processo cognoscitivo da realidade social é um movimento circular em que a investigação parte dos fatos e a eles retoma. Advém alguma coisa destes fatos, no curso do processo cognoscitivo? O conhecimento da realidade histórica é um processo de apropriação teórica – isto é, de crítica, interpretação e avaliação de fatos –, processo em que a atividade do homem; do cientista é condição necessária ao conhecimento objetivo dos fatos. Esta atividade que revela o conteúdo objetivo e o significado dos fatos é o método científico. O método científico é mais ou menos eficiente segundo a maior ou menor riqueza de realidade – contida objetivamente neste ou naquele fato – que ele é capaz de descobrir, explicar e motivar. É notória a indiferença que certos métodos e tendências demonstram para com determinados fatos, em decorrência da incapacidade de ver, naqueles fatos, algo de importante, isto é, o seu próprio conteúdo e significado objetivo.”
23: I. Kon, Filozofskij idealizm i krizis burzoasnoj istoriceskoj mysli (O Idealismo Filosófico e a Crise do Pensamento Histórico Burguês). Moscou, 1959, pág. 237.


“A teoria materialista distingue um duplo contexto de fatos: o contexto da realidade, no qual os fatos existem originária e primordialmente, e o contexto da teoria, em que os fatos são, em um segundo tempo, mediatamente ordenados, depois de terem sido precedentemente arrancados do contexto originário do real. Como é possível, porém, falar do contexto do real, em que os fatos existem de maneira primordial e originária, se tal contexto pode ser conhecido pela mediação de fatos que foram arrancados do contexto do real? O homem não pode conhecer o contexto do real a não ser arrancando os fatos do contexto, isolando-os e tornando-os relativamente independentes. Eis aqui o fundamento de todo conhecimento: a cisão do todo. Todo conhecimento é uma oscilação dialética (dizemos dialética porquanto também existe uma oscilação metafísica, que parte de ambos os polos considerados como grandezas constantes e registra as suas relações exteriores e reflexivas), oscilação entre os fatos e o contexto (totalidade), cujo centro ativamente mediador é o método de investigação. A absolutização desta atividade do método (e tal atividade é inegável) dá origem à ilusão idealista de que o pensamento é que cria o concreto, ou que os fatos adquirem um sentido e um significado apenas na mente humana.”


“A falsa totalização e sintetização manifesta-se no método do princípio abstrato que despreza a riqueza do real, isto é, a sua contraditoriedade e multiplicidade de significados, para levar em conta apenas aqueles fatos que estão de acordo com o princípio abstrato. O princípio abstrato, erigido em totalidade, é totalidade vazia, que trata a riqueza do real como “resíduo” irracional e incompreensível. O método do “princípio abstrato” deforma a imagem total da realidade (acontecimentos históricos, obras de arte) e ao mesmo tempo se mostra destituído de sensibilidade em face dos particulares. Está a par dos fatos particulares, registra-os mas não os compreende, porque não entende o seu significado. Não revela o sentido objetivo dos fatos (particulares) mas o obscurece. Assim fazendo rompe a integridade do fenômeno em causa porque o cinde em duas esferas independentes: uma parte que convém ao princípio e que por ele é explicada; e uma outra parte que contradiz o princípio e que, portanto, permanece na sombra (sem explicação e compreensão acional), como “resíduo” não explicado e inexplicável do fenômeno.
O ponto de vista da totalidade concreta nada tem de comum com a totalidade holística, organicista ou neorromântica, que hipostasia o todo antes das partes e efetua a mitologização do todo.27 A dialética não pode entender a totalidade como um todo já feito e formalizado, que determina as partes, porquanto à própria determinação da totalidade pertencem a gênese e o desenvolvimento da totalidade, o que, de um ponto de vista metodológico, comporta a indagação de como nasce a totalidade e quais são as fontes internas do seu desenvolvimento e movimento. A totalidade não é um todo já pronto que se recheia com um conteúdo, com as qualidades das partes ou com as suas relações; a própria totalidade é que se concretiza e esta concretização não é apenas criação do conteúdo mas também criação do todo. O caráter genético-dinâmico da totalidade foi destacado por Marx, nos geniais trechos dos Grundrisse: “Em um sistema burguês desenvolvido, toda relação econômica pressupõe outras relações na forma econômica burguesa e, portanto, todo fato é ao mesmo tempo um pressuposto; assim efetivamente acontece em todo sistema orgânico. Este mesmo sistema orgânico, como totalidade, tem os seus pressupostos, e o seu desenvolvimento no sentido da totalidade consiste justamente no submeter a si todos os elementos da sociedade ou no criar para si os órgãos que ainda lhe faltam. Transforma-se em totalidade histórica. O desenvolvimento rumo a esta totalidade é um momento do seu processo, de seu desenvolvimento.”28
A concepção genético-dinâmica da totalidade é pressuposto da compreensão racional do surgimento de uma nova qualidade. Os pressupostos que na origem foram condições históricas do surgimento do capital, depois que este surgiu e se constitui, se revelam como resultados da sua própria realização e reprodução; eles já não são condições do seu nascimento histórico, mas resultado e condições da sua existência histórica. Os elementos isolados que historicamente precederam o surgimento do capitalismo – que existiam independentemente dele e que comparados a ele têm uma existência remota (como dinheiro, valor, troca, força-de-trabalho) – após o surgimento do capital passaram a fazer parte do processo de reprodução do capital e existem como seus momentos orgânicos. Assim o capital, à época do capitalismo, se transforma numa estrutura significativa que determina o conteúdo interno e o sentido objetivo dos fatores ou elementos, sentido que era diferente na fase pré-capitalista. A criação da totalidade como estrutura significativa é, portanto, ao mesmo tempo, um processo no qual se cria realmente o conteúdo objetivo e o significado de todos os seus fatores e partes. Esta conexão recíproca, assim como esta profunda diferença entre as condições de surgimento e as condições da existência histórica – as primeiras das quais constituem um pressuposto histórico independente, dado uma única vez, enquanto as segundas são produzidas e reproduzidas pelas formas históricas de existência – inclui a dialética do lógico e do histórico: a investigação lógica mostra onde começa o histórico, e o histórico completa e pressupõe o lógico.”
27. As geniais intuições do jovem Schelling sobre natureza como unidade de produto e de produtividade ainda não foram suficientemente apreciadas. E no entanto já naqueles anos no seu pensamento se afirma uma forte tendência para hipostasiar o todo, como demonstra, por ex., um texto de 1799: “... se em cada todo orgânico tudo se sustém em um apoio recíproco, assim esta organização entendida como um todo devia preexistir às suas partes: não era o todo que podia surgir das partes, mas as partes, do todo.” Schelling, Werke, Munique, 1927, Zeiter Hauptband, pág. 279.
28. Marx, Grundrisse, (Fundamentos) 189, (Grifos de K.K.).

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