Editora: Paz e Terra
ISBN: 978-85-2190-442-7
Tradução: Célia Neves e Alderico Toríbio
Opinião: ★★★★★
Páginas: 230
Sinopse: Kosík
analisa as mistificações da pseudoconcreticidade, que é o mundo da reificação,
das aparências enganadoras, dos preconceitos, da práxis fetichizada. Para não
se perder em face dos múltiplos aspectos fenomênicos da realidade que a
autêntica práxis vai desvendando, o conhecimento humano precisa discernir no
real, a cada passo, a unidade dialética da essência e do fenômeno. Por isso, Kosík
insiste no caráter necessariamente totalizante do conhecimento.
“A atitude primordial e imediata do homem, em
face da realidade, não é a de um abstrato sujeito cognoscente, de uma mente
pensante que examina a realidade especulativamente, porém a de um ser que age
objetiva e praticamente, de um indivíduo histórico que exerce a sua atividade
prática no trato com a natureza e com os outros homens, tendo em vista a
consecução dos próprios fins e interesses, dentro de um determinado conjunto de
relações sociais. Portanto, a realidade não se apresenta aos homens, à primeira
vista, sob o aspecto de um objeto que cumpre intuir, analisar e compreender
teoricamente, cujo polo oposto e complementar seja justamente o abstrato
sujeito cognoscente, que existe fora do mundo e apartado do mundo; apresenta-se
como o campo em que se exercita a sua atividade prático-sensível, sobre cujo
fundamento surgirá a imediata intuição prática da realidade. No trato
prático-utilitário com as coisas – em que a realidade se revela como mundo dos
meios, fins, instrumentos, exigências e esforços para satisfazer a estas – o
indivíduo “em situação” cria suas próprias representações das coisas e elabora
todo um sistema correlativo de noções que capta e fixa o aspecto fenomênico da
realidade.”
“O fenômeno não é, portanto, outra coisa
senão aquilo que – diferentemente da essência oculta – se manifesta
imediatamente, primeiro e com maior frequência. Mas por que a “coisa em si”, a
estrutura da coisa, não se manifesta imediata e diretamente? Por que são
necessários um esforço e um desvio para compreendê-la? Por que a “coisa em si”
se oculta, foge à percepção imediata? De que gênero de ocultação se trata? Tal
ocultação não pode ser absoluta: se quiser pesquisar
a estrutura da coisa e quiser perscrutar “a coisa em si”, se apenas quer ter a
possibilidade de descobrir a essência oculta ou a estrutura da realidade – o
homem, já antes de iniciar qualquer investigação, deve necessariamente possuir
uma segura consciência do fato de que existe algo susceptível de ser definido
como estrutura da coisa, essência da coisa, “coisa em si”, e de que existe uma
oculta verdade da coisa, distinta dos fenômenos que se manifestam imediatamente
. O homem faz um desvio, se esforça na descoberta da verdade só porque, de um
modo qualquer, pressupõe a existência da verdade, porque possui uma segura
consciência da existência da “coisa em si” Por que, então, a estrutura da coisa
não é direta e imediatamente acessível ao homem, por que, então, para captála
ele tem de fazer um desvio? E a que leva tal desvio? O fato de na percepção
imediata não se captar a “coisa em si” mas o fenômeno da coisa, dependerá,
talvez, do fato de que a estrutura da coisa pertence a outra ordem de
realidade, distinta da dos fenômenos, e que, portanto, constitui uma outra
realidade existente por trás dos fenômenos?
Como a essência – ao contrário dos fenômenos
– não se manifesta diretamente, e desde que o fundamento oculto das coisas deve
ser descoberto mediante uma atividade peculiar, tem de existir a ciência e a
filosofia. Se a aparência fenomênica e a essência das coisas coincidissem
diretamente, a ciência e a filosofia seriam inúteis.1
O esforço direto para descobrir a estrutura
da coisa e “a coisa em si” constitui desde tempos imemoriais, e constituirá
sempre, tarefa precípua da filosofia. As várias tendências filosóficas fundamentais são apenas modificações
desta problemática fundamental e de sua solução em cada etapa evolutiva da
humanidade. A filosofia é uma atividade
humana indispensável, visto que a essência da coisa, a estrutura da
realidade, a “coisa em si”, o ser da coisa, não se manifesta direta e
imediatamente. Neste sentido a filosofia pode ser caracterizada como um esforço
sistemático e crítico que visa a captar a coisa em si, a estrutura oculta da
coisa, a descobrir o modo de ser do existente.
O conceito da coisa é compreensão da coisa, e
compreender a coisa significa conhecer-lhe a estrutura. A característica
precípua do conhecimento consiste na decomposição do todo. A dialética não
atinge o pensamento de fora para dentro, nem de imediato, nem tampouco constitui
uma de suas qualidades; o conhecimento é que é a própria dialética em uma das
suas formas; o conhecimento é a decomposição do todo. O “conceito” e a
“abstração”, em uma concepção dialética, têm o significado de método que
decompõe o todo para poder reproduzir espiritualmente a estrutura da coisa, e,
portanto, compreender a coisa.2
1. “... Se os homens apreendessem
imediatamente as conexões, para que serviria a ciência?” (Marx a Engels, carta
de 27-6-1867). “Toda ciência seria supérflua se a forma fenomênica e a essência
coincidissem diretamente.” Marx, O
Capital, III, sec. VII, cap. XLVIII, III. (Tr. ital. Roma, Rinascita, 1959,
III, a, pág. 228). “Para as formas
fenomênicas... a diferença da relação essencial... vale exatamente aquilo que
vale para todas as formas fenomênicas e para o fundamento oculto por detrás
delas. As formas fenomênicas se reproduzem imediatamente por si mesmas, como
formas correntes do pensamento, mas o seu fundamento oculto tem de ser
descoberto somente pela ciência.” Marx, O
Capital, I, sec. VI, cap. XVII. (Tr. ital. I, 2, pág. 259).
2. Alguns filósofos (por ex. Granger, L'ancienne et la nouvelle économie,
““Esprit”, 1956, pág. 551-5) atribuem apenas a Hegel o “método da abstração” e
“do conceito”. Na realidade este é o único caminho da filosofia para chegar à
estrutura da coisa e, portanto, à compreensão da coisa.
“Todo agir é “unilateral”, já que visa a um
fim determinado e, portanto, isola alguns momentos da realidade como essenciais
àquela ação, desprezando outros, temporariamente. Através deste agir
espontâneo, que evidencia determinados momentos importantes para a consecução
de determinado objetivo, o pensamento cinde a realidade única, penetra nela e a
“avalia”.”
“A dialética é o pensamento crítico que se
propõe a compreender a “coisa em si” e sistematicamente se pergunta como é
possível chegar à compreensão da realidade. Por isso, é o oposto da
sistematização doutrinária ou da romantização das representações comuns. O
pensamento que quer conhecer adequadamente a realidade, que não se contenta com
os esquemas abstratos da própria realidade, nem com suas simples e também
abstratas representações, tem de destruir a aparente independência do mundo dos
contatos imediatos de cada dia. O pensamento que destrói a pseudoconcreticidade
para atingir a concreticidade é ao mesmo tempo um processo no curso do qual sob
o mundo da aparência se desvenda o mundo real; por trás da aparência externa do
fenômeno se desvenda a lei do fenômeno; por trás do movimento visível, o
movimento real interno; por trás do fenômeno, a essência.4 O que
confere a estes fenômenos o caráter de pseudoconcreticidade não é a sua
existência por si mesma, mas a independência com que ela se manifesta. A
destruição da pseudoconcreticidade – que o pensamento dialético tem de efetuar –
não nega a existência ou a objetividade daqueles fenômenos mas destrói a sua
pretensa independência, demonstrando o seu caráter mediato e apresentando,
contra a sua pretensa independência, prova do seu caráter derivado.
A dialética não considera os produtos
fixados, as configurações e os objetos, todo o conjunto do mundo material
reificado, como algo originário e independente. Do mesmo modo como assim não
considera o mundo das representações e do pensamento comum, não os aceita sob o
seu aspecto imediato: submete-os a um exame em que as formas reificadas do mundo
objetivo e ideal se diluem, perdem a sua fixidez, naturalidade e pretensa
originalidade para se mostrarem como fenômenos derivados e mediatos, como
sedimentos e produtos da práxis
social da humanidade.5”
5. “O marxismo é um esforço para ler, por
trás da pseudo-imediaticidade do mundo econômico reificado as relações
inter-humanas que o edificaram e se dissimularam por trás de sua obra.” A. de
Walhens, L’idée phénoménologique
d'intentionalité, in Husserl et la
pensée moderne, Haia, 1959, págs. 127-28.
“O pensamento acriticamente reflexivo6
coloca imediatamente – e portanto sem uma análise dialética – em relação causal
as representações fixadas e as condições igualmente fixadas, fazendo passar tal
forma de “pensamento bárbaro” por uma análise “materialista” das ideias. Como
os homens tomaram consciência de seu tempo (e, portanto, já o viveram,
avaliaram, criticaram e compreenderam) nas categorias da “fé do carvoeiro” e do
ceticismo “pequeno-burguês”, o doutrinador supõe que se fizera a análise
“científica” daquelas ideias ao procurar para elas um equivalente econômico,
social ou de classe. Ao invés, mediante tal “materialização” efetua-se apenas
uma dupla mistificação: a subversão do mundo da aparência (das ideias fixadas)
tem as suas raízes na materialidade subvertida (reificada). A teoria
materialista deve iniciar a análise
com a questão: por que os homens tomaram consciência de seu tempo justamente
nestas categorias e qual o tempo que
se mostra aos homens nestas categorias? Fazendo esta indagação, o materialista
prepara o terreno para proceder à destruição da pseudoconcreticidade tanto das ideias quanto das condições, e só depois disso pode procurar uma
explicação racional para a íntima conexão entre o tempo e a ideia.”
6. Hegel assim define o pensamento reflexivo:
“A reflexão é a atividade que consiste em constatar as oposições e em passar de
uma para outra, mas sem ressaltar a sua conexão e a unidade que as compenetra.”
Hegel, Phil. der Religion, I, pág.
126 (Werke, Vol. XI). Ver também
Marx, Grundrisse, pág. 10.
“O mundo real, oculto pela
pseudoconcreticidade, apesar de nela se manifestar, não é o mundo das condições
reais em oposição às condições irreais, tampouco o mundo da transcendência em
oposição à ilusão subjetiva; é o mundo da práxis
humana. É a compreensão da realidade humano-social como unidade de produção e produto, de sujeito e objeto, de gênese e
estrutura. O mundo real não é, portanto, um mundo de objetos “reais” fixados,
que sob o seu aspecto fetichizado levem uma existência transcendente como uma
variante naturalisticamente entendida das ideias platônicas; ao invés, é um
mundo em que as coisas, as relações e os significados são considerados como produtos do homem social, e o próprio
homem se revela como sujeito real do mundo social. O mundo da realidade não é
uma variante secularizada do paraíso, de um estado já realizado e fora do
tempo; é um processo no curso do qual a humanidade e o indivíduo realizam a
própria verdade, operam a humanização do homem. Ao contrário do mundo da
pseudoconcreticidade, o mundo da realidade é o mundo da realização da verdade, é o mundo em que a verdade não é dada e
predestinada, não está pronta e acabada, impressa de forma imutável na
consciência humana: é o mundo em que a verdade devém. Por esta razão a história humana pode ser o processo da
verdade e a história da verdade. A destruição da pseudoconcreticidade significa
que a verdade não é nem inatingível, nem alcançável de uma vez para sempre, mas
que ela se faz; logo, se desenvolve e se realiza.”
“Como as coisas não se mostram ao homem
diretamente tal qual são e como o homem não tem a faculdade de ver as coisas
diretamente na sua essência, a humanidade faz um détour (desvio) para conhecer as coisas e a sua estrutura.
Justamente porque tal détour é o único caminho acessível ao homem para
chegar à verdade, periodicamente a humanidade tenta poupar-se o trabalho desse
desvio e procura observar diretamente
a essência das coisas (o misticismo é justamente a impaciência do homem em
conhecer a verdade). Com isso corre o perigo de perder-se ou de ficar no meio
do caminho, enquanto percorre tal desvio.
A obviedade não coincide com a perspicuidade
e a clareza da coisa em si; ou melhor, ela é a falta de clareza da
representação da coisa. A natureza se manifesta como algo de inatural. O homem
tem de envidar esforços e sair do “estado natural” para chegar a ser
verdadeiramente homem (o homem se forma
evoluindo-se em homem) e conhecer a realidade como tal. Para os grandes
pensadores de todos os tempos e de todas as tendências – no mito platônico da
caverna, na imagem baconiana dos ídolos, em Spinoza, Hegel, Heidegger e Marx –
o conhecimento é corretamente caracterizado como superação da natureza, como a
atividade ou o “esforço” supremo. A dialética da atividade e da passividade do
conhecimento humano manifesta-se sobretudo no fato de que o homem, para
conhecer as coisas em si, deve primeiro transformá-las em coisas para si; para
conhecer as coisas como são independentemente de si, tem primeiro de
submetê-las à própria práxis: para
poder constatar como são elas quando não estão em contato consigo, tem primeiro
de entrar em contato com elas. O conhecimento não é contemplação. A contemplação
do mundo se baseia nos resultados da práxis
humana. O homem só conhece a realidade na medida em que ele cria a realidade humana e se comporta
antes de tudo como ser prático.”
“O ponto de partida do exame deve ser
formalmente idêntico ao resultado. Este ponto de partida deve manter a identidade
durante todo o curso do raciocínio, visto que ele constitui a única garantia de
que o pensamento não se perderá no seu caminho. Mas o sentido do exame está no
fato de que no seu movimento em espiral ele chega a um resultado que não era
conhecido no ponto de partida e que, portanto, dada a identidade formal do
ponto de partida e do resultado, o pensamento, ao concluir o seu movimento,
chega a algo diverso – pelo seu conteúdo – daquilo de que tinha partido. Da
vital, caótica, imediata representação do todo, o pensamento chega aos
conceitos, às abstratas determinações conceituais, mediante cuja formação se
opera o retorno ao ponto de partida; desta vez, porém, não mais como ao vivo
mas incompreendido todo da percepção imediata, mas ao conceito do todo
ricamente articulado e compreendido. O caminho entre a “caótica representação
do todo” e a “rica totalidade da multiplicidade das determinações e das
relações” coincide com a compreensão da realidade. O todo não é imediatamente
cognoscível para o homem, embora lhe seja dado imediatamente em forma sensível,
isto é, na representação, na opinião e na experiência. Portanto, o todo é
imediatamente acessível ao homem, mas é um todo caótico e obscuro. Para que
possa conhecer e compreender este todo, possa torná-lo claro e explicá-lo, o
homem tem de fazer um détour: o
concreto se torna compreensível através da mediação do abstrato, o todo através
da mediação da parte. Exatamente o caminho da verdade é um détour – der Weg Wahrheit ist
Umweg – o homem pode perder-se ou ficar no meio do caminho.
O método da ascensão do abstrato ao concreto
é o método do pensamento; em outras
palavras, é um movimento que atua nos conceitos, no elemento da abstração. A
ascensão do abstrato ao concreto não é uma passagem de um plano (sensível) para
outro plano (racional): é um movimento no pensamento e do pensamento. Para que
o pensamento possa progredir do abstrato ao concreto, tem de mover-se no seu
próprio elemento, isto é, no plano abstrato, que é negação da imediatidade, da
evidência e da concreticidade sensível. A ascensão do abstrato ao concreto é um
movimento para o qual todo início é abstrato e cuja dialética consiste na
superação desta abstratividade. O progresso da abstratividade à concreticidade
é, por conseguinte, em geral movimento da parte para o todo e do todo para a
parte; do fenômeno para a essência e da essência para o fenômeno; da totalidade
para a contradição e da contradição para a totalidade, do objeto para o sujeito
e do sujeito para o objeto. O processo do abstrato ao concreto, como método
materialista do conhecimento da realidade, é a dialética da totalidade
concreta, na qual se reproduz idealmente a realidade em todos os seus planos e dimensões. O processo do pensamento não
se limita a transformar o todo caótico das representações no todo transparente
dos conceitos; no curso do processo o próprio todo é concomitantemente
delineado, determinado e compreendido.”
“Justamente porque o real é um todo
estruturado que se desenvolve e se cria, o conhecimento de fatos ou conjuntos
de fatos da realidade vem a ser conhecimento do lugar que eles ocupam na
totalidade do próprio real. Ao contrário do conhecimento sistemático (que
procede por via somatória) do racionalismo e do empirismo – conhecimento que se
move de pontos de partida demonstrados através de um sistemático
acrescentamento linear de fatos ulteriores –, o pensamento dialético parte do
pressuposto de que o conhecimento humano se processa num movimento em espiral,
do qual cada início é abstrato e
relativo. Se a realidade é um todo dialético e estruturado, o conhecimento concreto
da realidade não consiste em um acrescentamento sistemático de fatos a outros
fatos, e de noções a outras noções. É um processo de concretização que procede do todo para as partes e das partes para
o todo, dos fenômenos para a essência e da essência para os fenômenos, da
totalidade para as contradições e das contradições para a totalidade; e
justamente neste processo de correlações em espiral no qual todos os conceitos
entram em movimento recíproco e se
elucidam mutuamente, atinge a concreticidade. O conhecimento dialético da
realidade não deixa intactos os conceitos no ulterior caminho do conhecer; não
é uma sistematização dos conceitos que procede por soma, sistematização essa
fundada sobre uma base imutável e encontrada uma vez por todas: é um processo
em espiral de mútua compenetração e
elucidação dos conceitos, no qual a abstratividade (unilateralidade e
isolamento) dos aspectos é superada em uma correlação dialética,
quantitativoqualitativa, regressivo-progressiva. A compreensão dialética da
totalidade significa não só que as partes se encontram em relação de interna
interação e conexão entre si e com o todo, mas também que o todo não pode ser
petrificado na abstração situada por cima das partes, visto que o todo se cria a si mesmo na interação das
partes.
As opiniões relativas à cognoscibilidade ou
incognoscibilidade da concreticidade, como conhecimento de todos os fatos,
baseiam-se na concepção empírico-racionalista segundo a qual o conhecimento se
realiza mediante um método de análise e soma, cujo postulado é constituído pela representação atomística da
realidade como congérie de coisas, processos, fatos. Ao contrário, no
pensamento dialético o real é entendido e representado como um todo que não é apenas um conjunto de relações, fatos e processos, mas também a sua criação, estrutura e gênese. Ao todo
dialético pertence a criação do todo e a criação da unidade, a unidade das
contradições e a sua gênese.”
“Para o materialismo a realidade social pode
ser conhecida na sua concreticidade (totalidade) quando se descobre a natureza
da realidade social, se elimina a pseudoconcreticidade, se conhece a realidade
social como unidade dialética de base e de supra-estrutura, e o homem como
sujeito objetivo, histórico-social. A realidade social não é conhecida como totalidade concreta se o homem no âmbito da
totalidade é considerado apenas e sobretudo como objeto e na práxis histórico-objetiva da humanidade
não se reconhece a importância primordial do homem como sujeito. A questão da concreticidade ou totalidade do real,
portanto, não concerne em primeiro lugar à completicidade ou incompleticidade
dos fatos, à variabilidade ou ao deslocamento dos horizontes, mas sim à questão
fundamental: que é a realidade? No que toca à realidade social, é possível responder
a tal pergunta se ela é reduzida a uma outra pergunta: como se cria a
realidade social? Nessa problemática que indaga o que é a realidade social mediante a verificação de como é criada esta mesma realidade social, está
contida uma concepção revolucionária da sociedade e do homem.
Voltando ao problema do fato e do seu
significado no conhecimento da realidade social, ao princípio geralmente
admitido de que todo fato só é
compreensível em seu contexto e no todo,22 devemos insistir sobre
uma verdade ainda mais importante e fundamental, que geralmente é descurada: o próprio conceito do fato é determinado
pela concepção total da realidade social. O problema: que é o fato
histórico? constitui apenas uma parte do problema principal: que é a realidade
social?
Concordamos com o historiador soviético Kon,
quando diz que os fatos elementares demonstraram ser algo muito complexo; e a
ciência, que no passado se ocupava com os fatos isolados, hoje se vê cada vez
mais orientando para os processos e as relações. A dependência entre os fatos e
as generalizações é uma conexão e dependência recíproca; assim como a
generalização é impossível sem os fatos, do mesmo modo tampouco existem fatos
científicos que não contenham o elemento da generalização. O fato histórico é,
em certo sentido, não só um pressuposto da investigação mas também um resultado
seu.23 Mas se entre os fatos e as generalizações existe uma relação
dialética de compenetração, pela qual cada fato traz em si o elemento da
generalização e cada generalização é generalização de fatos, como explicar esta
reciprocidade lógica? Nesta relação
lógica se exprime a verdade de que a generalização é conexão interna dos fatos e que o próprio fato é reflexo de um
determinado contexto. Cada fato na sua essência ontológica reflete toda a
realidade; e o significado objetivo
dos fatos consiste na riqueza e essencialidade com que eles completam e ao
mesmo tempo refletem a realidade. Por
esta razão é possível que um fato deponha mais que um outro, ou que o mesmo
fato deponha mais, ou menos, dependendo do método e da atitude subjetiva do
cientista, isto é, da capacidade do cientista para interrogar os fatos e
descobrir o seu conteúdo e significado objetivo. A distinção dos fatos com base
em seu significado e na sua importância não é o resultado de uma avaliação
subjetiva, mas resulta do conteúdo objetivo dos fatos isolados. A realidade, em
certo sentido, não existe a não ser como conjunto de fatos, como totalidade
hierarquizada e articulada de fatos. Cada processo cognoscitivo da realidade
social é um movimento circular em que a investigação parte dos fatos e a eles
retoma. Advém alguma coisa destes fatos, no curso do processo cognoscitivo? O
conhecimento da realidade histórica é um processo de apropriação teórica – isto
é, de crítica, interpretação e avaliação de fatos –, processo em que a atividade do homem; do cientista é
condição necessária ao conhecimento objetivo
dos fatos. Esta atividade que revela o conteúdo objetivo e o significado dos
fatos é o método científico. O método científico é mais ou menos eficiente
segundo a maior ou menor riqueza de realidade – contida objetivamente neste ou naquele fato – que ele é capaz de descobrir,
explicar e motivar. É notória a indiferença que certos métodos e tendências
demonstram para com determinados fatos, em decorrência da incapacidade de ver,
naqueles fatos, algo de importante, isto é, o seu próprio conteúdo e
significado objetivo.”
23: I. Kon, Filozofskij idealizm i krizis burzoasnoj istoriceskoj mysli (O
Idealismo Filosófico e a Crise do Pensamento Histórico Burguês). Moscou, 1959,
pág. 237.
“A teoria materialista distingue um duplo contexto de fatos: o contexto da
realidade, no qual os fatos existem originária e primordialmente, e o contexto
da teoria, em que os fatos são, em um segundo tempo, mediatamente ordenados,
depois de terem sido precedentemente arrancados do contexto originário do real.
Como é possível, porém, falar do contexto do real, em que os fatos existem de
maneira primordial e originária, se tal
contexto só pode ser conhecido pela
mediação de fatos que foram arrancados
do contexto do real? O homem não pode conhecer o contexto do real a não ser
arrancando os fatos do contexto, isolando-os e tornando-os relativamente
independentes. Eis aqui o fundamento de todo conhecimento: a cisão do todo.
Todo conhecimento é uma oscilação dialética (dizemos dialética porquanto também
existe uma oscilação metafísica, que parte de ambos os polos considerados como
grandezas constantes e registra as suas relações exteriores e reflexivas),
oscilação entre os fatos e o contexto (totalidade), cujo centro ativamente
mediador é o método de investigação. A absolutização desta atividade do método
(e tal atividade é inegável) dá origem à ilusão idealista de que o pensamento é
que cria o concreto, ou que os fatos adquirem um sentido e um significado apenas na mente humana.”
“A falsa totalização e sintetização
manifesta-se no método do princípio abstrato que despreza a riqueza do real,
isto é, a sua contraditoriedade e multiplicidade de significados, para levar em
conta apenas aqueles fatos que estão de acordo com o princípio abstrato. O
princípio abstrato, erigido em totalidade, é totalidade vazia, que trata a
riqueza do real como “resíduo” irracional e incompreensível. O método do
“princípio abstrato” deforma a imagem total da realidade (acontecimentos
históricos, obras de arte) e ao mesmo tempo se mostra destituído de
sensibilidade em face dos particulares. Está a par dos fatos particulares,
registra-os mas não os compreende, porque não entende o seu significado. Não
revela o sentido objetivo dos fatos (particulares) mas o obscurece. Assim
fazendo rompe a integridade do fenômeno em causa porque o cinde em duas esferas
independentes: uma parte que convém ao princípio e que por ele é explicada; e
uma outra parte que contradiz o princípio e que, portanto, permanece na sombra
(sem explicação e compreensão acional), como “resíduo” não explicado e
inexplicável do fenômeno.
O ponto de vista da totalidade concreta nada
tem de comum com a totalidade holística, organicista ou neorromântica, que
hipostasia o todo antes das partes e efetua a mitologização do todo.27
A dialética não pode entender a totalidade como um todo já feito e formalizado,
que determina as partes, porquanto à própria determinação da totalidade
pertencem a gênese e o desenvolvimento da totalidade, o que, de
um ponto de vista metodológico, comporta a indagação de como nasce a totalidade e quais são as fontes internas do seu
desenvolvimento e movimento. A totalidade não é um todo já pronto que se
recheia com um conteúdo, com as qualidades das partes ou com as suas relações;
a própria totalidade é que se concretiza e esta concretização não é apenas criação do conteúdo mas também criação do
todo. O caráter genético-dinâmico da totalidade foi destacado por Marx, nos
geniais trechos dos Grundrisse: “Em
um sistema burguês desenvolvido, toda relação econômica pressupõe outras
relações na forma econômica burguesa e, portanto, todo fato é ao mesmo tempo um
pressuposto; assim efetivamente acontece em todo sistema orgânico. Este mesmo
sistema orgânico, como totalidade, tem os seus pressupostos, e o seu desenvolvimento
no sentido da totalidade consiste justamente no submeter a si todos os
elementos da sociedade ou no criar para si os órgãos que ainda lhe faltam. Transforma-se em totalidade histórica. O
desenvolvimento rumo a esta totalidade é um momento do seu processo, de seu
desenvolvimento.”28
A concepção genético-dinâmica da totalidade é
pressuposto da compreensão racional do surgimento de uma nova qualidade. Os
pressupostos que na origem foram condições históricas do surgimento do capital,
depois que este surgiu e se constitui, se revelam como resultados da sua
própria realização e reprodução; eles já não são condições do seu nascimento histórico, mas resultado e
condições da sua existência histórica.
Os elementos isolados que historicamente precederam o surgimento do capitalismo
– que existiam independentemente dele e que comparados a ele têm uma existência
remota (como dinheiro, valor, troca, força-de-trabalho) – após o surgimento do
capital passaram a fazer parte do processo de reprodução do capital e existem
como seus momentos orgânicos. Assim o capital, à época do capitalismo, se
transforma numa estrutura significativa que determina
o conteúdo interno e o sentido objetivo dos fatores ou elementos, sentido que
era diferente na fase pré-capitalista. A
criação da totalidade como estrutura significativa é, portanto, ao mesmo tempo,
um processo no qual se cria realmente o conteúdo objetivo e o significado de
todos os seus fatores e partes. Esta conexão recíproca, assim como esta
profunda diferença entre as condições de surgimento e as condições da
existência histórica – as primeiras das quais constituem um pressuposto
histórico independente, dado uma única vez, enquanto as segundas são produzidas
e reproduzidas pelas formas históricas de existência – inclui a dialética do
lógico e do histórico: a investigação lógica mostra onde começa o histórico, e
o histórico completa e pressupõe o lógico.”
27. As geniais intuições do jovem Schelling
sobre natureza como unidade de produto e de produtividade ainda não foram suficientemente
apreciadas. E no entanto já naqueles anos no seu pensamento se afirma uma forte
tendência para hipostasiar o todo, como demonstra, por ex., um texto de 1799:
“... se em cada todo orgânico tudo se sustém em um apoio recíproco, assim esta
organização entendida como um todo devia preexistir às suas partes: não era o
todo que podia surgir das partes, mas as partes, do todo.” Schelling, Werke, Munique, 1927, Zeiter Hauptband, pág. 279.
28. Marx, Grundrisse,
(Fundamentos) 189, (Grifos de K.K.).
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