Editora: Autêntica
ISBN: 978-65-8823-981-0
Opinião: ★★★☆☆
Análise em vídeo: Clique aqui
Link para compra: Clique aqui
Páginas: 288
Sinopse: Ver Parte
I
“Se aceitarmos que a vida psíquica é na
verdade um setor da vida social, com suas dinâmicas de internalização de
normas, ideais e de princípios de autoridade, por que não se perguntar como
tais processos sociais nos fazem sofrer, como eles podem estar na base das reações
que irão levar sujeitos a hospitais psiquiátricos e consultórios?”
“A noção psicanalítica do sofrimento psíquico
como expressão de sistemas de conflitos e de contradições nos processos de
socialização e de individuação, conflitos esses que mostravam muitas vezes a
natureza contraditória, problemática e traumática de nossas próprias instituições
e estruturas (como a família, o casamento, o mundo do trabalho, a escola, a
igreja, a sexualidade), foi um elemento decisivo não apenas para compreender o
que era o sofrimento psíquico, mas também para mobilizar certo horizonte crítico
a respeito dos custos de nosso processo civilizacional, dos problemas imanentes
a nossas formas de vida na sociedade capitalista. Lembremos como o eixo de
organização do DSM-I era a noção de “reação”, vinda da psicobiologia de Adolf
Meyer. Ou seja, o sofrimento psíquico era analisado a partir de sua estrutura
relacional em relação às injunções normativas do meio.
Tenhamos em mente esses dois fenômenos quando
procurarmos melhor compreender o que estava de fato em jogo na ruptura nos padrões
de classificação de doenças mentais e formas de sofrimento psíquico no final
dos anos 1970. Pois tais fenômenos indicam como o campo da clínica do
sofrimento psíquico estava em rota de assumir a relação entre contradições
imanentes às estruturas institucionais da vida social (família, hospital,
Estado, escola, entre tantos outros) e produção de sofrimento psíquico, produção
da vida psíquica como espaço de expressão da recusa à aceitação dos quadros
normativos que nos governam.32 Essa articulação sempre foi e será
politicamente explosiva, pois leva à conscientização de transformações
institucionais profundas tendo em vista a luta contra o sofrimento psíquico e
social.
Normalmente, a justificativa oficial das
modificações produzidas a partir do DSM-III tem a forma da produção de um mero
quadro classificatório dotado de neutralidade axiológica. Certo conflito de
interpretações reinaria no campo do diagnóstico do sofrimento psíquico até então.
Daí a dificuldade em ter um quadro unificado que permitiria chegarmos às mesmas
conclusões diagnósticas. Nesse sentido, o melhor seria eliminar toda reflexão
etiológica em prol de descrições sindrômicas convergentes.33 Na
verdade, podemos dizer que a “neutralidade” do DSM-III procurava realizar três
ambições: “ultrapassar as clivagens ideológicas através da ciência, colocar
entre parênteses a questão etiológica para se concentrar em descrições clínicas,
reformar o vocabulário diagnóstico evitando ao máximo as inferências”
(Demazeux, Qu’est-ce que le DSM?, 2013, p. 156).
O resultado foi um processo de reconfiguração
completa da forma de descrever o sofrimento psíquico, cujos principais fatores
são: o desaparecimento das neuroses como quadro compreensivo principal para a
determinação do sofrimento psíquico; a individualização das depressões (que
escapa da estrutura mania-depressão) e sua ascensão como quadro principal de
descrição de sofrimento psíquico; a ascensão das patologias narcísicas e borderlines;
a elevação da esquizofrenia a condição de “psicose unitária”, categoria geral
de organização do campo das antigas psicoses.”
“O primeiro fenômeno está ligado à hegemonia
das depressões. Se procurarmos a definição psiquiátrica dos transtornos
depressivos, encontraremos descrições como “a característica comum de todos
esses transtornos é a presença de humor ligado a sentimentos de tristeza,
esvaziamento, irritação, acompanhado de modificações somáticas e cognitivas que
afetam de forma significativa a capacidade individual para funcionar (to
function – um termo sintomático por denunciar demanda por desempenho)”
(AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, Diagnostic And Statistical Manual Of
Mental Disorders: DSM-5. 2013, p. 155). Tais transtornos, descritos sem
levar em conta perspectiva etiológica alguma, devem durar ao menos duas semanas
e envolver modificações sensíveis nos afetos, na cognição e em funções
neurovegetativas.
Até 1994, o DSM reconhecia apenas dois tipos
de transtorno depressivo: o transtorno depressivo maior e a distimia, ambos
compreendidos como formas de transtornos afetivos particularizados a partir de
1980 (ano de publicação do DSM-III), momento em que a atenção clínica à depressão
conhece substancial crescimento. Até então, a depressão passara por um processo
através do qual ela deixara de ser apenas a descrição de um polo de reações no
interior de uma patologia bipolar maníaco-depressiva (como era o caso em
Kraepelin, no final do século XIX) ou no quadro geral das neuroses. Com a
publicação do DSM-II, em 1968, ela aparece como “neurose depressiva”, deixando
de ser compreendida como reação depressiva neurótica enquanto termo geral para
depressão não bipolar, isso quando não era caracterizada como “depressão endógena”
(causada por fatores eminentemente biológicos e caracterizada por ausência de
causas exógenas). Por fim, a partir do final dos anos 1970, ela ganhará
autonomia em relação ao quadro, agora abandonado, das neuroses.
Tal dissociação entre depressão e o quadro
das neuroses, com sua herança psicanalítica, não é um mero ajuste nosográfico
ocorrido, por coincidência, exatamente no momento de imposição da guinada
neoliberal nos países capitalistas centrais. Na verdade, a neurose e a depressão
são modelos radicalmente distintos de patologias. Uma ocupa o lugar da outra.
Como viu claramente Alain Ehrenberg (2000), a depressão só pode aparecer como
problema central no momento em que o modelo disciplinar de gestão de condutas
cede lugar a normas que incitam cada um à iniciativa pessoal, à obrigação de
ser si mesmo. Pois contrariamente ao modelo freudiano das neuroses, em que o
sofrimento psíquico gira em torno das consequências de internalização de uma
lei que socializa o desejo, organizando a conduta a partir da polaridade
conflitual permitido/proibido, na depressão tal socialização organizaria a
conduta a partir de uma polaridade muito mais complexa e flexível, a saber, a
polaridade possível/impossível.34 A proibição moral advinda das exigências
normativas de socialização dá lugar a uma situação de flexibilização das leis,
de gestão da anomia que coloca as ações não mais sob o crivo da permissão
social, mas sob o crivo individual do desempenho, da performance, da força
relativa à capacidade de sustentar demandas de satisfação irrestrita. Assim, o
indivíduo é confrontado a uma patologia da insuficiência e da disfuncionalidade
da ação, em vez de uma doença da proibição e da lei. Se a neurose é um drama da
culpabilidade, drama ligado ao conflito perpétuo entre duas normas de vida,
drama que só pode ser tratado através da compreensão das contradições imanentes
ao funcionamento “normal” da lei, a depressão aparece como tragédia implosiva
da insuficiência e da inibição.
Não há intervenção clínica na neurose sem o
desvelamento daquilo que psicanalistas como Jacques Lacan chamaram de “falta no
Outro”, outra forma de dizer que o conflito neurótico só pode ser superado à
condição de que a inadaptação à norma não seja sentida como inadequação do
sujeito, mas como impossibilidade da própria estrutura institucional em dar
conta da natureza singular do desejo. Nada disso está presente no horizonte clínico
da depressão. A implosão das neuroses implica também perda de visibilidade e de
espaço de intervenção analítica na modificação de modos de participação e de
adesão social como condição para a cura. Ou seja, é uma tecnologia de intervenção
clínica baseada na elaboração das articulações entre conflitos psíquicos e
sociais que entra juntamente colapso. Outra tecnologia que elimina tal dimensão
do sofrimento aparecerá em seu lugar. Esse ponto mereceria ser mais pesquisado.
Por outro lado, notemos os elementos que estão
em jogo na reconfiguração radical do quadro das psicoses, reconfiguração que
levou, no DSM-V, ao desaparecimento da paranoia e à transformação da
esquizofrenia em psicose unitária. A paranoia foi a categoria fundamental da clínica
psicanalítica das psicoses. Uma das razões para tanto era que ela fora pensada
a partir de uma visão da doença como degenerescência, ou seja, a doença faria o
caminho inverso do desenvolvimento normal. Por mais que tal definição tivesse
seus problemas, havia algo de significativo aqui, a saber, a patologia não era
uma ordem outra em relação à normalidade. Ela era uma fixação ou regressão
dentro de um processo comum. Por isso, a doença dizia sempre algo a respeito da
normalidade, ela deixava visíveis processos que na normalidade ficavam
relativamente escondidos. Havia certa proximidade entre os dois, um terreno
movediço.35
Essa solidariedade relativa entre normalidade
e patologia desaparecerá com a hegemonia da esquizofrenia, que agora representa
praticamente todo o espectro do que entendíamos por psicoses. Pois, nesse caso,
a distinção é funcional. Há um princípio de unidade das condutas, de organização
da experiência e de síntese que não está presente. Na esquizofrenia, os
processos estão dissociados, pois não há mais a unidade sintética da
personalidade. A linha entre normalidade e patologia é funcionalmente definida,
e a personalidade é o verdadeiro marcador desse processo. Tal linha é clara, e
nada passa de um lado a outro. Linhas claras, divisões estritas, lugares
determinados. Mesmo que a personalidade não seja um fator biológico, mas uma
construção social. Dessa maneira, a forma estrutural da personalidade, com suas
ilusões de autonomia, de individualidade e de unidade, a mesma personalidade
que será necessariamente encarnada na figura do médico como autoridade não
problemática, aparece como o elemento estrutural na exclusão da produtividade
imanente às experiências de multiplicidade no interior da vida psíquica.
Note-se que não é um acaso que a unidade
tenha se tornado a determinação funcional fundamental e única para a distinção
entre normalidade e patologia em um momento histórico como o nosso. Em uma
situação social no qual todos os setores da vida são indexados a partir de uma
visão unitária baseada na generalização da racionalidade econômica, na
generalização de uma mesma gramática da experiência para todas as esferas da ação
humana, o quadro clínico fundamental para a definição do sofrimento psíquico não
poderia ser outro além exatamente da perda da capacidade de organizar as dimensões
da vida a partir de um princípio geral de unidade, de coerência e de síntese.
As formas de sofrer aparecem como impossibilidades de operar uma reconversão
geral da vida a partir da abstração geral da unidade e da síntese, abstração
essa que será agora vista como “liberdade”. Dessa forma, o neoliberalismo nos
levou a sofrer de outra forma, procurando retirar de nosso sofrimento psíquico
a consciência potencial da violência social.”
34 “O direito de escolher sua vida e a injunção
a advir si mesmo colocam a individualidade em um movimento permanente. Isso
leva a colocar de outra forma o problema dos limites reguladores da ordem
interior: a partilha entre o permitido e o proibido declina em prol de um esgarçamento
entre o possível e o impossível” (EHRENBERG, 2000, p. 15).
35 Isso apenas realizava a explicação
freudiana: “Se atiramos ao chão um cristal, ele se parte, mas não
arbitrariamente. Ele se parte, segundo suas linhas de clivagem, em pedaços
cujos limites, embora fossem invisíveis, estavam determinados pela estrutura do
cristal” (FREUD, Gesammelte Werke,
1999, p. 64). O patológico é esse cristal partido que, graças à sua
quebra, fornece a inteligibilidade do comportamento definido como normal. Para
um bom comentário desse problema em Freud, ver: VAN HAUTE, P.; DE VLEMINCK, J.
Aan gene zijde van Freud: De grenzen en de mogelijkheden van een
psychoanalytische pathoanalyse. In: Freud als filosoof. Leuven:
University of Leuven Press, 2013.
______________________
“O sujeito e a
ordem do mercado: gênese teórica do neoliberalismo”, de Fábio Franco, Julio
Cesar Lemes de Castro, Ronaldo Manzi, Vladimir Safatle e Yasmin Afshar.
“A hipertrofia da ação individual chega a seu
ponto máximo na doutrina neoliberal, cuja expressão mais significativa é o
conceito de “capital humano”, associado principalmente ao nome de Gary Becker,
da Escola de Chicago. Esse conceito implica uma relação a si mesmo marcada pela
exigência de autovalorização constante, mediada pela lógica da mercadoria. Num
quadro de extrema heteronomia, os indivíduos são alçados a agentes autônomos,
capazes de agir livremente para satisfazer seus interesses. Sendo cada um
convertido em “capital”, os sujeitos passam a se compreender como empresas
submetidas à insegurança típica da dinâmica dos mercados. Em uma sociedade
competitiva, os indivíduos comparam e hierarquizam constantemente coisas e
pessoas, sendo eles mesmos passíveis de (des)classificação a todo momento. “Especialista
dele mesmo, empregado dele mesmo, inventor dele mesmo, empresário dele mesmo: a
racionalidade neoliberal pressiona o eu a agir sobre ele mesmo no sentido de
seu próprio reforço para seguir na competição. Todas as atividades devem se
comparar a uma produção, a um investimento, a um cálculo de custo. A economia
se torna uma disciplina pessoal” (Dardot; Laval, 2010, p. 412).
Esse investimento extremo sobre si e suas
capacidades aparece, ao mesmo tempo, como plena realização individual e como
disciplina inflexível – tomando aqui disciplina em sentido lato. Quando o indivíduo
é colocado como centro da dinâmica, na verdade pesa sobre ele com máximo vigor
uma lei externa, a lei da valorização do capital. Ao internalizá-la, é o próprio
indivíduo que passa a exigir de si mesmo ser um empreendedor bem-sucedido,
buscando “otimizar” o potencial de todos os seus atributos capazes de ser “valorizados”,
tais como imaginação, motivação, autonomia, responsabilidade. Essa
subjetividade ilusoriamente inflada provoca inevitavelmente, no momento de seu
absoluto esvaziamento, frustração, angústia associada ao fracasso e
autoculpabilização; a patologia típica nesse contexto é a depressão.1
A “autonomia”, no sentido de dar a si mesmo o princípio de sua ação,
converte-se na mera internalização das injunções do mercado, tal como a “liberdade
de empreender”, que envolve “transformar os trabalhadores em empreendedores de
suas próprias tarefas. É na figura do empreendedor, no homem empreendedor, que
se focaliza a autonomia. O espírito de empresa, a ação de empreender, é a pedra
de toque da transformação da gestão de recursos humanos, ou seja, da gestão das
relações entre a empresa e seus empregados” (EHRENBERG, 2010, p. 86).
Mas é importante sublinhar que a concepção de
sujeito neoliberal guarda elementos de contradição, inflexão e ambivalência,
sendo impossível traçar uma linha evolutiva contínua, sem quebras, de seu
desenvolvimento. Na medida em que seus teóricos preconizam o mundo como um
grande mercado, onde sujeitos racionais agem livremente em busca de satisfação,
essa suposta ação espontânea corresponde sempre à lógica da valorização do
capital, do qual cada sujeito é portador. Dessa forma, a “razão humana”, que
caracteriza esse agir, é concebida como a razão dos mercados, sendo o
capitalismo o resultado natural desse agir espontâneo. No entanto, essa exaltação
da liberdade humana corre em paralelo com a elaboração de modos de controle
cada vez mais sofisticados. Sob o neoliberalismo, a coerção é internalizada, de
modo que os sujeitos se autorreificam sob a égide da lógica da mercadoria. Essa
forma de autogoverno é, como diz Ehrenberg, a mais efetiva, pois “só são
eficazes os sistemas de governo que nos ordenam ser nós mesmos, saber empregar
nossas próprias competências, nossa própria inteligência, ser capazes de
autocontrole. A gestão pós-disciplinar é uma tentativa de forjar uma
mentalidade de massa que economiza ao máximo o recurso às técnicas coercivas
tradicionais” (EHRENBERG, 2010, p. 89).”
1 Ver “A hipótese depressiva”, de Christian
Dunker, neste volume.
___________________________
A psiquiatria
sob o neoliberalismo: da clínica dos transtornos ao aprimoramento de si, de Antonio Neves, Augusto Ismerim, Fabrício Donizete da Costa, Luckas
Reis Pedroso dos Santos, Mario Senhorini, Nelson da Silva Junior, Paulo Beer,
Renata Bazzo, Sonia Pitta Coelho e Viviane Cristina Rodrigues Carnizelo
“É nesse sentido que se pode argumentar que
quando o neoliberalismo altera nossa relação com o sofrimento psíquico, tal
como ele o faz com os ideais, conforme demonstrado no capítulo anterior, ele
produz performaticamente novos sujeitos (SILVA JUNIOR, Epistemologia psiquiátrica e marketing farmacêutico, 2016). Assim,
temos de compreender a psiquiatria hoje nessa nova produção de subjetividades,
na qual os indivíduos tomam a si próprios como empresas a serem geridas. Esse é
o argumento deste livro: as formas de expressão e produção do sofrimento são
implicadas pela transformação dos próprios sujeitos realizada pelo
neoliberalismo. Claro está que a psiquiatria a um só tempo atuou como
beneficiária dos sofrimentos gerados pela reorganização neoliberal da sociedade
e também os produziu, inaugurando uma nova etapa em sua relação secular com a
doença mental: não apenas descrever, compreender e tratar os sofrimentos psíquicos,
como também produzi-los para então tratá-los. Mas pode-se dizer que, mesmo
nesse caso, a psiquiatria continua a se organizar e se definir a partir dos
sofrimentos e seus tratamentos. Ora, nas últimas duas décadas, pode-se dizer
que, aprofundando cada vez mais suas articulações com o neoliberalismo, a
psiquiatria se emancipou dessa definição de si própria baseada em sua relação
com o sofrimento.”
“Como vemos, com a psiquiatria biológica não
podemos mais pensar, como fez Freud, o sofrimento psíquico no conflito entre as
exigências sociais de uma sociedade e as inclinações imorais do paciente, no
atrito entre normas sociais hegemônicas e a sexualidade disruptiva (FREUD, Moral sexual “cultural” e o nervosismo,
[1908] 2015). Com a biologização da psiquiatria, o sofrimento psíquico é
equalizado como um déficit biológico desvinculado do entorno social. Aqui vem
um segundo aspecto importante da psiquiatria biológica: esse desarranjo orgânico
é visto como objeto de correção objetiva sem maiores compromissos políticos. Reificada
no orgânico, a doença deixa de ser pensada como fenômeno político comprometido
com questões como a da adequação às exigências sociais que circundam o indivíduo.
Em uma palavra: a disorder, em sua reificação orgânica, toma como
natural a order à qual faz oposição e, assim, retira a psiquiatria do
campo da política e do conflito.”
“É verdade que, à primeira vista, a
fundamentação da intervenção médica no patológico seria extinta junto com o
desaparecimento da noção de doença como baliza da prática clínica. Porém, o
impulso que leva o sujeito doente em busca de tratamento médico não é,
fundamentalmente, distinto do impulso que move aquele que busca por tecnologias
de enhancement humano. Os dois encontram-se num desarranjo entre as
expectativas de autorrealização como sujeito e as condições disponíveis para
efetivá-las. Nesse sentido, ambos partem de um fundo patológico no sentido
original desse termo: aquele de sofrimento. A mudança fundamental, porém,
ao nosso ver, é como o pathos ganha uma nova condição com o
neoliberalismo. Em uma fórmula rápida: se o sofrimento no liberalismo e no
capitalismo industrial de produção era por privação, ou seja, dava-se no
conflito entre as normas sociais vigentes e os desejos impedidos do sujeito, o
sofrimento no neoliberalismo e no capitalismo de consumo pode ser melhor
entendido na dinâmica do gozo, em que a questão não é a da adequação a
normas sociais postas, mas a da autossuperação dos limites do sujeito a todo
momento (SAFATLE, Cinismo e a falência da crítica, 2008).
O que está em jogo aqui é a busca por um
bem-estar, com toda carga fantasiosa de um estado de vida melhor do que aquele
que se vive no presente. Trata-se de viver uma vida melhor, da busca por uma wellness
que está para além da cura e de sua promessa de reestabilização de uma
pretensa normalidade do funcionamento orgânico. Mas no campo do gozo, as definições
do que seria uma vida melhor já não são oriundas dos desequilíbrios internos de
cada sujeito. Essas definições são marcadas por dinâmicas e interesses que lhes
escapam, mas que lhes chegam como ideais a serem buscados. Ora, o conjunto
desses ideais, tal como vimos no caso do ideal de liberdade presente nas
matrizes psicológicas do neoliberalismo, é definido segundo os interesses econômicos
da lógica neoliberal.
Esse é o novo horizonte a partir do qual
intervenções médicas não mais focadas na noção de doença retiram seu sentido.
Ainda que isso não seja novidade (a cirurgia plástica e a dermatologia cosmética
estão aí para nos lembrar disso), essa tendência na medicina parece ter se
acentuado nos últimos anos e ganhou maior atenção da comunidade médica. Existe
hoje toda uma sorte de demandas em saúde que explicitam não uma vontade do
paciente em se livrar de uma doença devidamente classificada, mas sim de uma
insatisfação mais etérea com a própria existência, uma vontade de estar melhor.
Em uma tentativa de dar conceitos para essas mudanças, podemos dizer que essa
prática médica para além da doença se apoia em um mal-estar não relacionado a
uma nosologia. O tema da utilização de soluções médico-tecnológicas para a
resolução de conflitos dessa natureza e sua interface com a economia já foi
trabalhada em relação às modificações corporais.19”
19 Os primeiros movimentos acerca dessa
compreensão já foram realizados na última publicação do Latesfip, Patologias
do social: arqueologias do sofrimento psíquico. Desenvolvidos no terceiro
capítulo, sob a dicotomia: corpos commodities x corpos capital-fixo,
articulam a busca pela eliminação de uma falta constitutiva do sujeito através
de modificações corporais com uma nova face da mais-valia. Desse modo, como um
autoinvestimento financeiro a fim de multiplicar o próprio capital humano, o
sujeito faz uso de soluções do mercado para aumentar, sua eficiência e seu
valor “no mercado”. No texto, observa-se que as mudanças corporais supostamente
ofereceriam uma solução do impasse neurótico. Ao nosso ver, essa mesma
dicotomia presente na apropriação dos corpos pelo neoliberalismo, a saber,
entre corpos commodities e corpos capital-fixo, também pode ser
reencontrada em sua apropriação do psiquismo.
“Formulando de uma maneira sintética e
radical: estamos diante de uma medicina sem pacientes e sem médicos, que recebe
diuturnamente ofertas supostamente promotoras de melhoramento humano como
artigos de mercadoria. Tais mercadorias agem como intervenções biológicas para
esses indivíduos, mesmo aqueles classificados como saudáveis pela medicina
tradicional, mas que ainda assim desejam mudar a si mesmos, não necessitando,
contudo, da chancela dos saberes médicos para ter acesso a toda tecnologia médica,
pois a acessam como consumidores. Aqui se desnuda uma íntima relação entre
economia e ciência, mais especificamente, entre a psiquiatria com seus saberes
e o neoliberalismo com sua lógica de produção de tamponamentos para as
fragilidades, inconsistências e precariedades humanas segundo o critério da
produtividade máxima a todo momento.”
“Ora, a mudança descrita da medicina moderna
para medicina contemporânea, a diluição da noção de doença e a intensificação
das práticas médicas de aprimoramento, parecem obedecer à mesma estrutura que
essa mudança vista no mundo empresarial. Aqui não existe mais o braço de ferro
entre norma e desvio, saúde doença, trabalho e anseios pessoais etc. Há, antes,
uma busca de performance e autossuperação através das tecnologias
disponíveis, em que podemos ser sempre uma versão melhor de nós mesmos: mais
saudáveis, mais dispostos, mais inteligentes ou criativos. O enhancement humano
parece ser uma marca, presente na psiquiatria contemporânea, de sua íntima relação
com a lógica neoliberal de gestão do sofrimento, cujo denominador comum entre
os saberes psis e a prática neoliberal seria o processo de esvaziamento e
de dissolução dos conflitos.
Mais especificamente, é possível depreender
que não se trata, em tal política de dissolução dos conflitos, somente de uma íntima
relação entre psiquiatria e neoliberalismo, mas justamente da psiquiatria
enquanto um campo de efetivação do projeto neoliberal. Se tomarmos o caminho
percorrido nesta apresentação e o articularmos ao que já foi exposto nos capítulos
anteriores deste livro, veremos que as modificações que a psiquiatria têm
sofrido nas últimas décadas obedecem a uma dupla inscrição da lógica neoliberal.
Por um lado, vê-se que há uma correspondência naquilo que poderia ser
reconhecido enquanto dimensão valorativa da atuação social, em que é delineado
um horizonte cada vez mais calcado na valorização do caráter individual da
produtividade e num regime de compensação baseado na indiferenciação entre os
objetivos demandados do trabalhador e aqueles que seriam por ele desejados. É
isso que foi possível demonstrar no direcionamento da psiquiatria a uma prática
de aperfeiçoamento e seu efeito de apagamento da dimensão conflitiva, uma vez
que realiza a efetiva adaptação do horizonte desejante da força de trabalho aos
interesses dos detentores dos meios de produção. Esse apagamento recobre a
clivagem entre os interesses das diferentes classes, como se ao fim fosse
realmente possível tomar como verdade que o sucesso dos proprietários dos meios
de produção corresponderia ao bem dos trabalhadores. Exemplo de aplicação
imediata daquilo que por tanto tempo foi defendido por autores como Ayn Rand,
Milton Friedman e Friedrich Hayek sobre a busca do sucesso individual e da
maximização do lucro como o melhor meio de se chegar ao bem comum.
Por outro lado, o segundo momento da inscrição
da lógica neoliberal que se realiza na psiquiatria consiste na naturalização
dos pilares da ideologia neoliberal como ponto de partida da reflexão sobre a
experiência social. Prática comum a autores do neoliberalismo canônicos, como
Hayek ou Becker, que não partem em seus textos de uma discussão sobre uma
teoria do sujeito, mas que apresentam suas teorias do sujeito enquanto dados
estabelecidos e inquestionáveis.27 Nesse sentido, a psiquiatria pode
ser tomada enquanto um campo de realização da lógica neoliberal na medida em
que efetiva, a partir de seus saberes e práticas, um modo específico de experiência
que não se apresenta enquanto questionável. Não por acaso, uma discursividade
calcada em ideais como liberdade e autonomia parece paradoxalmente produzir
como efeito uma redução intensa das possibilidades de atuação e de experiência
dos sujeitos. Se podemos ver em Freud ([1908] 2015) o reconhecimento de
articulação entre conflito psíquico e moral civilizada e o apontamento de que a
diminuição do sofrimento deve ser pensada a partir de atuações sobre o social,
o que se vê na psiquiatria contemporânea enquanto efetivação da lógica
neoliberal é justamente o seu oposto, uma lógica em que a adequação desenfreada
aos ideais culturais é tomada enquanto horizonte necessário, isto é, sem
alternativa possível.
Finalizando essa reflexão, há de se insistir
no caráter não fortuito do direcionamento da psiquiatria para esse horizonte. Não
é surpresa que a produção de conhecimento nesse campo não goze de autonomia em
relação a seu contexto e às demandas do poder. De fato, embora travestida de um
discurso de cientificidade que se apresenta enquanto uma produção
desinteressada por influências exteriores às suas questões epistemológicas ou
clínicas, a inseparabilidade entre o caminho traçado pela psiquiatria e o
desenvolvimento das práticas sociais neoliberais nas últimas décadas parece
inegável. Inquietante confirmação de posições como a de Isabelle Stengers (As
políticas da razão, 2000)
sobre a inseparabilidade entre ciência e política.
Claro está que esse movimento recente da
psiquiatria não deve ser tomado somente enquanto um efeito de um modo de
organização neoliberal, mas sim como uma importante frente estratégica de
implementação dessa racionalidade a partir da definição e do tratamento do
sofrimento psíquico, dado o seu alto potencial crítico e contestatário. De
fato, a adaptação do horizonte geral de expectativas aos interesses do poder
econômico não pode prescindir do controle, da produção e da condução da experiência
do sofrimento. O deslocamento da dimensão conflitiva do sofrimento para aquela
de uma necessidade de aperfeiçoamento adaptativo, capaz de retroalimentar
incessantemente o funcionamento do consumo, não deve ser assim subestimado como
peça estratégica exemplar do discurso neoliberal.
Sabe-se que os modos de sofrimento não
somente dependem de seu reconhecimento social, mas que também são produzidos e
expressados a partir de elementos simbólicos disponíveis na cultura*. Mais do
que isso, como bem define Hacking (Ontologia
histórica, 2009), os saberes produzidos sobre indivíduos exercem um efeito
retroativo sobre esses mesmos indivíduos, modificando as possibilidades de
experiência de sua existência. Nesse sentido, a psiquiatria não somente cria
produtos psicoativos e ministra tratamentos, como também produz uma
discursividade sobre um modo de subjetividade indispensável ao funcionamento
neoliberal, precisamente aquela que diz respeito à sua capacidade de gestão do
sofrimento. A fragilidade das bases psicológicas do pensamento neoliberal
encontra na psiquiatria do aprimoramento de si um aliado institucional e uma prática
insubstituível, capaz de amparar com prescrições médicas e soluções identificatórias
aquilo que a bidimensionalidade de seu discurso não pode oferecer, notadamente,
um suposto saber sobre o sofrimento (DUNKER, 2015; BEER, A questão da
verdade na produção de conhecimento sobre sofrimento psíquico 2020).
Eventualmente, o fracasso desse modo de gestão
do sofrimento talvez seja um ponto de potencial ruptura. Os recorrentes
fracassos da psiquiatria (ROSE, Our Psychiatric Future, 2018) carregam, de alguma maneira, essa tensão: por um lado reforçam a
impossibilidade desse projeto, mas por outro são um ponto exemplar de como o
horizonte normativo neoliberal consegue reduzir seus enunciados normalizantes
ao máximo, a saber, à sua mera enunciação prescritiva. O que parece, de fato,
ser o funcionamento geral dessa lógica, que esconde aquilo que é precisamente
ao mostrar todo o tempo aquilo que verdadeiramente é (SAFATLE, 2008). No caso
da psiquiatria do aprimoramento de si, esse funcionamento se encarna em um
discurso que apresenta como estando à mão a experiência de liberdade, fruição e
aperfeiçoamento, que esconde a finalidade servil e alienante de tal liberdade
para empreender e enfrentar riscos individualmente e assim gerar lucros sem
risco aos investidores. Redução cínica e radical das possibilidades de ser, de
sofrer e, principalmente, de transformar o mundo.”
*: FREUD, Conferências introdutórias à
psicanálise, [1917] 2014; HACKING, Making
Up People, 2000; Mad Travelers, 1998; Ontologia histórica,
2009; DUNKER, Mal-estar, sofrimento e sintoma, 2015; SILVA JUNIOR, Fernando
Pessoa e Freud, 2019b.
Nenhum comentário:
Postar um comentário