Editora: Autêntica
ISBN: 978-65-8823-981-0
Opinião: ★★★☆☆
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Páginas: 288
Sinopse: Neste
livro, o leitor poderá acompanhar como o modo de produção neoliberal construiu
uma nova forma de sofrimento que se entranhou em nossas vidas ao modo de uma
moralidade indiscutível. Baseado em um conjunto de práticas de gerenciamento do
mal-estar – por exemplo, a individualização da culpa, o repúdio ao fracasso
depressivo, o louvor maníaco do mérito e a criação de um estado de crises e
reformulações, bem como de anomia e mudanças permanentes –, o neoliberalismo
consegue extrair um a-mais de produtividade das pessoas.
O livro funciona como antídoto e resposta aos manuais de
gerenciamento e motivação, às narrativas de sucesso e coaching, bem como
aos discursos que produzem sujeitos estruturados como uma empresa.
Artigos:
A economia neoliberal e seus descontentes
- “A economia é a
continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o
neoliberalismo como economia moral”, de Vladimir Safatle
- “O sujeito e a
ordem do mercado: gênese teórica do neoliberalismo”, de Fábio Franco, Julio
Cesar Lemes de Castro, Ronaldo Manzi, Vladimir Safatle e Yasmin Afshar.
- “Matrizes
psicológicas da episteme neoliberal: a análise do conceito de liberdade”,
de Daniel Pereira da Silva, Heitor Pestana, Leilane Andreoni, Marcelo Ferretti,
Marcia Fogaça, Mario Senhorini, Nelson da Silva Junior, Paulo Beer e Pedro
Ambra.
A produção neoliberal do sofrimento
- “A psiquiatria
sob o neoliberalismo: da clínica dos transtornos ao aprimoramento de si”,
de Antonio Neves, Augusto Ismerim, Fabrício Donizete da Costa, Luckas Reis
Pedroso dos Santos, Mario Senhorini, Nelson da Silva Junior, Paulo Beer, Renata
Bazzo, Sonia Pitta Coelho e Viviane Cristina Rodrigues Carnizelo.
- “A hipótese
depressiva”, de Christian Dunker.
Neoliberalismo à brasileira
- “Para uma
arqueologia da psicologia neoliberal brasileira”, de Christian Dunker,
Clarice Paulon, Daniele Sanches, Hugo Lana, Rafael Alves Lima e Renata Bazzo.
- “O Brasil da
barbárie à desumanização neoliberal: do “Pacto edípico, pacto social”, de Hélio
Pellegrino, ao “E daí?”, de Jair Bolsonaro”, de Nelson da Silva Junior.
Introdução
“Há relações profundas entre os experimentos
de engenharia social do neoliberalismo e a reconstrução das estruturas
categoriais clínicas, reconstrução que se expressa, principalmente, com o
apagamento das neuroses, com a hegemonia da depressão, com a redução da psicose
à forma unitária da esquizofrenia, com a consolidação dos transtornos borderline
e, finalmente, com a substituição da clínica tradicional, restrita ao
tratamento de doenças, pela lógica do enhancement, que começa a explorar
cada vez mais os fármacos, inicialmente concebidos para o sofrimento psíquico,
em um novo objetivo, aquele da potencialização de performances no trabalho. O
que esse conjunto de transformações torna manifesto é que categorias clínicas
dependem de sistemas de valores sociais exteriores à clínica. (...)
Nesse sentido, a noção de “gestor” do
sofrimento psíquico ganha importância em dois sentidos, a saber, como aquele
que gera e aquele que gerencia. Pois o sofrimento psíquico é não apenas
produzido, mas também gerido pelo neoliberalismo. Por isso, cabe compreender o
neoliberalismo como uma forma de vida nos campos do trabalho, da linguagem e do
desejo. Como tal ele compreende uma gramática de reconhecimento e uma política
para o sofrimento. Enquanto liberais clássicos, descendentes de Jeremy Bentham
e Stuart Mill, consideravam que o sofrimento, seja do trabalhador, seja do
cidadão, era um problema que atrapalhava a produção e criava obstáculos para o
desenvolvimento e para o cálculo da felicidade, como máximo de prazer com mínimo
de desprazer, a forma de vida neoliberal descobriu que se pode extrair mais
produção e mais gozo do próprio sofrimento. Encontrar o melhor aproveitamento
do sofrimento no trabalho, extraindo o máximo de cansaço com o mínimo de risco
jurídico, o máximo de engajamento no projeto com o mínimo de fidelização recíproca
da empresa, torna-se regra espontânea de uma vida na qual cada relação deve
apresentar um balanço e uma métrica.
É por tais razões que este livro aborda o
neoliberalismo não apenas como uma teoria sobre o funcionamento da economia,
desenvolvida entre 1930 e 1970, por Von Mises, Hayeck, Friedman e Becker, mas
também como uma forma de vida definida por uma política para a nomeação do
mal-estar e por uma estratégia específica de intervenção com relação ao
estatuto social do sofrimento. Essa forma de vida articula moral e psicologia,
economia e direito, política e educação, religião e teologia política, propondo
um tipo de individualização baseado no modelo da empresa. Uma vida que deve ser
apreendida, dirigida e avaliada como se o faz com uma empresa. Mas essa análise
de risco, esse cálculo de decisões e essa administração de si presume uma
psicologia implícita. A arqueologia dessa psicologia nos levará ao problema da
instauração da vida psíquica no interior do liberalismo, envolvendo premissas
sobre a determinação do sofrimento psíquico e seu consequente tratamento.
Podemos falar em “instauração” porque a força
do neoliberalismo é performativa. Ela não atua meramente como coerção
comportamental, ao modo de uma disciplina que regula ideais, identificações e
visões de mundo. Ela molda nossos desejos, e, nesse sentido, a performatividade
neoliberal tem igualmente efeitos ontológicos na determinação e produção do
sofrimento. Ela recodifica identidades, valores e modos de vida por meio dos
quais os sujeitos realmente modificam a si próprios, e não apenas o que eles
representam de si próprios. Se admitimos que uma forma de vida tende a manter
sua unidade extraindo produtividade de suas contradições, determinadas e
indeterminadas, de acordo com estratégias provenientes do trabalho e do
mercado, do desejo e da linguagem, poderemos localizar os efeitos estruturais
da dimensão performativa da gestão neoliberal do sofrimento.”
“A forma como uma cultura escolhe nomear e
narrativizar o sofrimento psíquico, a maneira como ele é incluído ou excluído
por determinados discursos, o modo como ele reconhece sujeitos para certas
demandas e estados informulados de mal-estar possuem valor etiológico, tanto
quanto as determinações orgânicas. A maneira como interpretamos o sofrimento,
atribuindo-lhe causalidade interna ou externa, imputando-lhe razões naturais ou
artificiais, agregando-lhe motivos dotados ou desprovidos de sentido, muda
literalmente a experiência mesma de sofrimento. Isso é crucial na determinação
dos sintomas e condiciona eventualmente sua reversibilidade clínica. O corpo
sempre foi essencialmente plástico frente à cultura, e hoje é claro que mesmo
os processos neurodesenvolvimentais, os moduladores químicos e os
neurotransmissores não continuam a agir da mesma maneira em diferentes situações
sociais, alterando e modulando seus processos de acordo com diferentes discursos.”
____________________
“A
economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e
o neoliberalismo como economia moral”, de Vladimir Safatle
“Quando Stuart Mill afirmou, no final do século
XIX, que a economia política era “‘a ciência que trata da produção e distribuição
da riqueza na medida em que elas dependam das leis da natureza humana’ ou ainda
‘a ciência relacionada às leis morais ou psicológicas da produção e distribuição
da riqueza” (Mill, Da definição de
economia política e do método de investigação próprio a ela, 1973, p. 303),
a referência às leis morais ou psicológicas era vaga o suficiente para se
referir simplesmente à racionalidade de um pretenso “desejo de riqueza”
inscrito no coração das paixões humanas. A economia política analisaria assim
as dinâmicas coordenadas socialmente a fim de realizar o desejo humano de
enriquecimento, ou antes a obtenção da: “maior soma de coisas necessárias, de
conveniências e de luxos com a menor quantidade de trabalho e abnegação física
exigidas para poder obtê-los no estado existente de conhecimento” (Mill, 1973,
p. 304).
No entanto, Stuart Mill ainda tinha o cuidado
de afirmar que tal princípio de racionalidade era uma “premissa” que poderia não
ter nenhum fundamento nos fatos, embora pudesse ter efeitos na dimensão
concreta, com “concessões apropriadas”. Isso significava, entre outras coisas,
que a redução da estrutura da motivação humana ao desejo de riqueza era uma
abstração útil, e não uma explicação geral sobre o comportamento humano, com
sua multiplicidade de variáveis singulares e efeitos imprevistos.
Mas o que vemos atualmente é algo de outra
ordem, a saber, a justificação de ações econômicas e a paralisia da crítica
através da mobilização massiva de discursos psicológicos e morais. O que pode
nos levar a questões sobre a efetiva natureza epistemológica do discurso econômico,
isso em um momento no qual ele arroga para si autonomia operacional completa em
relação à esfera do político, como antes ocorrera quando enfim a economia
ganhou autonomia em relação ao sagrado.4 Pois podemos nos perguntar
sobre o quanto essa autonomia do discurso econômico em relação à política é ela
mesma a mais clara expressão de uma decisão política violenta.
Nesse sentido, devemos meditar a respeito do
significado dessa relação inesperada entre autonomia da economia em relação ao
político e sua transmutação em psicologia moral. Como se um processo só fosse
possível através do outro. A autonomia da economia, sua posição de discurso de
poder ilimitado na definição das orientações de gestão social, caminha
juntamente com a legitimação cada vez mais clara de suas injunções como uma
psicologia moral, ou seja, como um discurso no qual se articulam injunções
morais e pressuposições a respeito de desenvolvimento e maturação. O que nos
leva a afirmar que o império da economia é solidário da transformação do campo
social em um campo indexado por algo que poderíamos chamar de “economia moral”,
com consequências maiores não exatamente para os modos de produção e circulação
de riqueza, mas para a eliminação violenta da esfera do político enquanto espaço
efetivo de deliberação e decisão, com a redução da crítica à condição de
patologia. Uma eliminação que, como gostaria de mostrar, tem consequências
maiores para os modos de sujeição psíquica e sofrimento social.”
4 Ver Dupuy (L’avenir de l’économie, 2014).
“Como sabemos, falas constituem seus
ouvintes. Um discurso construído como “ofensivo” visa produzir um sujeito que
reagirá como “ofendido”. A fala ofensiva é astuta. Ela procura, inicialmente,
quebrar uma espécie de solidariedade genérica diante de uma injustiça feita não
apenas contra um, mas contra todos ou, antes, contra todos através de um. A
fala ofensiva visa quebrar a emergência da reação de “todos”, pois ela
singulariza, ela ofende um, ela escarnece um. Não falamos: “Você ofendeu a
sociedade brasileira em mim”. Antes, dizemos: “Você me ofendeu”. O problema
parece algo entre “você” e “ela/e”. O problema não parece mais político, mas de
respeito à integridade psicológica.”
“Assim, a ideia de que o advento do
neoliberalismo seria solidário de uma sociedade com menos intervenção do
Estado, ideia tão presente nos dias de hoje, é simplesmente falsa. Em relação
ao liberalismo clássico, o neoliberalismo representava muito mais intervenção
do Estado. A verdadeira questão era: onde o Estado efetivamente intervia? De
fato, não se tratava mais da intervenção na esfera da coordenação da atividade
econômica. Para os neoliberais, mesmo a regulação de moldes keynesianos era tão
insuportável quanto qualquer forma de Estado socialista, embora valha a pena
lembrar que o nível de regulação econômica aceito pelo ordoliberalismo alemão e
sua “economia social de mercado” é maior do que aquele pregado, por exemplo,
pela Escola Austríaca, que dará o tom do neoliberalismo norte-americano. Na
verdade, o que o neoliberalismo pregava eram intervenções diretas na configuração
dos conflitos sociais e na estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que um
modelo econômico, o neoliberalismo era uma engenharia social.
Ou seja, o neoliberalismo é um modo de
intervenção social profunda nas dimensões produtoras de conflito. Pois, para
que a liberdade como empreendedorismo e livre-iniciativa pudesse reinar, o
Estado deveria intervir para despolitizar a sociedade, única maneira de impedir
que a política intervisse na autonomia necessária de ação da economia. Ele
deveria bloquear principalmente um tipo específico de conflito, a saber, aquele
que coloca em questão a gramática de regulação da vida social.13
Isso significava, concretamente, retirar toda a pressão de instâncias, associações,
instituições e sindicatos que visassem questionar tal noção de liberdade a
partir da consciência da natureza fundadora da luta de classe.
Mas o aprofundamento desse processo exigia
uma destituição completa da gramática do conflito e da contradição objetiva. Ou
seja, tratava-se de passar do social ao psíquico e levar sujeitos a não se
verem mais como portadores e mobilizadores de conflitos estruturais, mas como
operadores de performance, otimizadores de marcadores não problematizados.14
Para tanto, seria necessário que a própria noção de conflito desaparecesse do
horizonte de constituição da estrutura psíquica, que uma subjetividade própria
a um esportista preocupado com performances se generalizasse, e para isso a
mobilização de processos de internalização disciplinar de pressupostos morais
era fundamental. Por isso, as modalidades neoliberais de intervenção deveriam
se dar em dois níveis, a saber, no nível social e no nível psíquico. Essa
articulação se explica pelo fato de os conflitos psíquicos poderem ser
compreendidos como expressões de contradições no interior dos processos de
socialização e individuação. Eles são as marcas das contradições imanentes à
vida social.15
Assim, em um primeiro nível, o Estado
neoliberal agia de forma direta para desregular a vida associativa e sua força
de pressão na partilha dos bens e das riquezas. Esse ponto foi explicitado de
maneira precisa nas pesquisas de Grégoire Chamayou a respeito dos vínculos
entre neoliberalismo e fascismo.16 Por exemplo, pode parecer
estranho para alguns que um dos pais do neoliberalismo, o economista Frederick
Hayek, seja defensor explícito da tese da necessidade da ditadura provisória
como condição para a realização da liberdade neoliberal. Lembremos um
significativo trecho de uma entrevista dada ao jornal chileno El Mercurio,
em 1981:
Eu diria que, enquanto instituição de longo termo, sou totalmente contra
ditaduras. Mas uma ditadura pode ser um sistema necessário durante um período
de transição. Às vezes, é necessário para um país ter, durante certo tempo, uma
forma de poder ditatorial. Como vocês sabem, é possível para um ditador
governar de maneira liberal. E é possível que uma democracia governe com uma
falta total de liberalismo. Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um
governo democrático sem liberalismo.”
13 A esse respeito, lembremos uma colocação
precisa de Theodor Adorno, que compreendera rapidamente a natureza meramente
gestionária de certas teorias do conflito social: “As atuais teorias do
conflito social, que não podem mais negar sua realidade, atingem apenas o que
nele é articulado e coisificado em papéis e instituições, aquém da perene
violência que se oculta por trás da reprodução da sociedade.
Implicitamente, já é considerado o controle
social dos conflitos, os quais deveriam ser ‘regulados’, ‘inerferidos’,
‘dirigidos’ te ‘canalizados’“ (ADORNO, Soziologische Schriften, 1972, p.
81). Isso pressupõe a aceitação forçada de uma gramática comum: “Os
participantes deveriam ter reconhecido o sentido e a inevitabilidade dos
conflitos e previamente concordado com as regras de conciliação do jogo – uma
condição que elimina operacionalmente o caso crítico de os conflitos quebrarem
as regras vigentes do jogo” (ADORNO, 1972, p. 81). Mas não estamos a falar de
regras de um jogo aceito “consensualmente”. Estamos a falar da sedimentação de
relações de poder e força.
14 Em um movimento claramente descrito em
Ehrenberg (La fatigue d’être soi, 2000).
15 A esse respeito, ver Safatle; Silva
Junior; Dunker (Patologias do social, 2018).
“A generalização da forma-empresa no interior
do corpo social abriu as portas para os indivíduos se autocompreenderem como “empresários
de si mesmos” que definem a racionalidade de suas ações a partir da lógica de
investimentos e retorno de “capitais”24 e que compreendem seus
afetos como objetos de um trabalho sobre si tendo em vista a produção de “inteligência
emocional”25 e otimização de suas competências afetivas. Ela
permitiu ainda a “racionalização empresarial do desejo” (Dardot e Laval, La
nouvelle raison du monde, 2010, p. 440), fundamento normativo para a
internalização de um trabalho de vigilância e controle baseado na autoavaliação
constante de si a partir de critérios derivados do mundo da administração de
empresas. Essa retradução total das dimensões gerais das relações inter e
intrasubjetivas em uma racionalidade de análise econômica baseada no “cálculo
racional” dos custos e benefícios abriu uma nova interface entre governo e
indivíduo, criando modos de governabilidade muito mais enraizados
psiquicamente.”
24 Fundamental para isso foi a consolidação
do uso da noção de “capital humano”, tal como podemos encontrar em Becker (A
Theoretical and Empirical Analysis with a Special Reference to Education, 1994).
25 Ver Goleman (Inteligência emocional, 1996).
“Note-se ainda como esse tópico da generalização
da forma-empresa é, ao mesmo tempo, a descrição das formas hegemônicas de violência
no interior da vida social. Pois a empresa não é apenas a figura de uma forma
de racionalidade econômica. Ela é a expressão de uma forma de violência. A
competição empresarial não é um jogo de críquete, mas um processo de relação
fundado na ausência de solidariedade (vista como entrave para o funcionamento
da capacidade seletiva do progresso), no cinismo da competição que não é competição
alguma (pois baseada na flexibilização contínua de normas, nos usos de toda
forma de suborno, corrupção e cartel), na exploração colonial dos
desfavorecidos, na destruição ambiental e no objetivo monopolista final. Essa
violência pede uma justificação política, ela precisa se consolidar em uma vida
social na qual toda figura da solidariedade genérica seja destruída, na qual o
medo do outro como invasor potencial seja elevado a afeto central, na qual a
exploração colonial seja a regra.”
“Lembremos inicialmente que modelos socioeconômicos
são animados não apenas por proposições a respeito do modo de funcionamento de
sistemas econômicos de produção e consumo. Como eles devem também determinar a
configuração de seus agentes racionais, definindo com isso um conjunto de
comportamentos, modos de avaliação e justificativas a serem internalizados
pelos agentes que se queiram reconhecidos, tais modelos não podem ser abstraídos
da força de produção de uma psicologia que lhe seja própria, quer dizer, de uma
figura antropológica, fortemente reguladora, a ser partilhada por todos os
indivíduos que aspiram a ser socialmente reconhecidos. Tais modelos definem
padrões de individuação a partir da racionalidade que eles procuram realizar.
No interior de tais padrões encontramos sistemas profundamente normativos de
disposição de conduta, de produção de afetos e de determinação das formas de
sofrimento. Nesse sentido, podemos dizer que modelos socioeconômicos são
modelos de governo e gestão social de subjetividades, por isso, não podem ser
compreendidos sem sua capacidade de instauração de comportamentos e modos
subjetivos de autorregulação. Eles não podem ser elucidados sem a gestão de uma
psicologia que lhes é inerente.
Isso significa dizer que não se sofre da
mesma forma dentro e fora do neoliberalismo. Essa modificação implica a eliminação
de dimensões dinâmicas da doença. Pois o sofrimento psíquico guarda uma dimensão
de expressão de recusa e de revolta contra o sistema social de normas.28
Uma revolta que se expressa nas três dimensões do que entendemos comumente por
forma de vida, a saber, o desejo, a linguagem e o trabalho. Já Hegel insistia,
em sua Fenomenologia do espírito, nos vínculos orgânicos entre a lei do coração e o delírio da presunção,
ou seja, entre a revolta contra a ordem social que sai ao mundo em vista de
grandes transformações e o delírio de quem vê suas intenções serem
continuamente invertidas pelo curso social.
A disciplina social neoliberal deve anular
tal dimensão de revolta que se exprime no sofrimento psíquico. Por isso, ela
deve reconstruir completamente o que podemos chamar de “gramática social do
sofrimento”.”
28 Lembremo-nos de Adorno, a afirmar: “as
neuroses deveriam, de fato, segundo sua forma, ser deduzidas da estrutura de
uma sociedade em que elas não podem ser eliminadas. Mesmo a cura bem-sucedida
carrega o estigma do danificado, da vã adaptação pateticamente exagerada. O
triunfo do eu é o da ofuscação pelo particular. Este é o fundamento da
inverdade objetiva de toda psicoterapia, que incita os terapeutas à fraude. Na
medida em que o curado se assemelha à totalidade insana, torna-se ele mesmo
doente, mas sem que aquele para quem a cura fracassa seja por isso mais saudável”
(ADORNO, Ensaios de psicologia social e psicanálise, 2016, p. 43).
“Não devemos esquecer como há uma vasta
literatura que procura evidenciar aquilo que poderíamos chamar de “a natureza não
realista” de conceitos em operação no saber próprio às clínicas do sofrimento
psíquico.29 Normalmente, tais pesquisas visam mostrar como estamos
diante de problemas que vão além de questões de cunho estritamente epistemológico,
pois se referem também à análise do sistema de valores que estaria presente em
modalidades de intervenção clínica, assim como do seu impacto na produção dos
objetos que deveriam descrever. Pois devemos nos perguntar se as orientações
que guiam perspectivas hegemônicas de intervenção clínica são neutras em relação
a valores. Se elas não são neutras, então é o caso de se perguntar se a gênese
de tais valores que dirigem nosso horizonte de cura não exigiria uma
perspectiva ampliada de análise na qual modalidades de orientação clínica são
compreendidas no interior de sistemas de influência compostos por discursos de
forte teor normativo advindos de campos exteriores a práticas terapêuticas,
como a cultura, a moral, a estética, a política e a racionalidade econômica.
Trata-se, nesses casos, de não fornecer às questões clínicas o estatuto de
problemas autônomos, mas de reinscrevê-las no interior do sistema de circulação
de valores que compõem as várias esferas da vida social como um sistema de
implicação constante.
Isso traria como consequência, entre outras,
a compreensão de que categorias clínicas não são “tipos naturais” (natural
kinds), mas tecnologias de intervenção na estrutura psíquica a partir de
valores. Ou seja, a configuração e o limite de uma categoria clínica não é
resultado da identificação de predicados diferenciais naturais acessíveis em um
campo independente da estruturação de nossa linguagem. Na verdade, eles
resultam das tecnologias que temos para produzir modificações na estrutura psíquica
a partir de valores que procuramos implementar. Categorias clínicas não são
estruturas descritivas, mas processos performativos.
Essa é a consequência de aceitarmos a
produtividade de perspectivas caracterizadas como “nominalistas dinâmicas”, ou
seja, fundadas na defesa de o campo de intervenção clínica diante do sofrimento
psíquico ser animado pela instauração de categorias classificatórias com força
performativa capaz de organizar retroativamente fenômenos no interior de
quadros descritivos que servem não apenas como quadros de produção de sentido
para as experiências singulares de sofrimento, mas também como quadros
indutores de efeitos posteriores, processo de performatividade retroativa
chamado de “efeito de looping”. Nesse sentido, lembremos Ian Hacking,
para quem uma patologia mental não descreve uma espécie natural, como talvez
seja o caso de uma doença orgânica como câncer ou mal de Parkinson. Ela cria
performativamente uma nova situação na qual sujeitos se veem inseridos.30
Fato compreensivo se aceitarmos que categorias clínicas ligadas à descrição do
sofrimento psíquico são objeto de elaboração reflexiva e discursiva por parte
dos próprios sujeitos que elas visam descrever. Tal reflexão é capaz de
produzir um nível significativo de reorientação de ações e condutas, sejam elas
conscientes, sejam involuntárias. Nesse sentido, classificações de sofrimento
psíquico não são “espécies indiferentes”, como são aquelas usadas para
descrever fenômenos do mundo físico, mas “espécies interativas”, ou seja, há
uma interação entre categorias e objetos através da apropriação autorreflexiva
e da posterior modificação dos objetos. Por fim, como o fundamento atual da
nossa tecnologia de intervenção clínica é farmacológica, a configuração das
categorias tenderá a ter a conformação do espectro de atuação do fármaco em
questão.”
29 Essa literatura é extensa e tem seu
momento fundador, entre outros, em Foucault (Histoire de la folie, 1962). Para desdobramentos contemporâneos,
ver, principalmente, Kincald; Sullivan (Classifying
Psychopathology, 2014), assim como Zachar, (A Metaphysics of
Psychopathology, 2014), Cooper (Classifying Madness, 2005) e Murphy
(Psychiatry in the Scientific Image, 2012).
30 Esse é um importante ponto defendido por
Hacking (Historical Ontology, 2004, p. 106), para quem, no que se refere
a classificações de doenças mentais, “um tipo [kind] de pessoa vem à existência
ao mesmo tempo que a própria categoria clínica [kind] foi inventada. Em
alguns casos, nossas classes e classificações conspiram para aparecer uma
suportada pela outra”. A respeito desse nominalismo dinâmico, ver também
Davidson (The Emergence of Sexuality, 2004).
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