sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Neoliberalismo como gestão do sofrimento psíquico, de Vladimir Safatle, Nelson da Silva Junior, Christian Dunker (Orgs.) (Parte I)

Editora: Autêntica

ISBN: 978-65-8823-981-0

Opinião: ★★★☆☆

Análise em vídeo: Clique aqui

Link para compra: Clique aqui

Páginas: 288

Sinopse: Neste livro, o leitor poderá acompanhar como o modo de produção neoliberal construiu uma nova forma de sofrimento que se entranhou em nossas vidas ao modo de uma moralidade indiscutível. Baseado em um conjunto de práticas de gerenciamento do mal-estar – por exemplo, a individualização da culpa, o repúdio ao fracasso depressivo, o louvor maníaco do mérito e a criação de um estado de crises e reformulações, bem como de anomia e mudanças permanentes –, o neoliberalismo consegue extrair um a-mais de produtividade das pessoas.

O livro funciona como antídoto e resposta aos manuais de gerenciamento e motivação, às narrativas de sucesso e coaching, bem como aos discursos que produzem sujeitos estruturados como uma empresa.


Artigos:

A economia neoliberal e seus descontentes

- “A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral”, de Vladimir Safatle

- “O sujeito e a ordem do mercado: gênese teórica do neoliberalismo”, de Fábio Franco, Julio Cesar Lemes de Castro, Ronaldo Manzi, Vladimir Safatle e Yasmin Afshar.

- “Matrizes psicológicas da episteme neoliberal: a análise do conceito de liberdade”, de Daniel Pereira da Silva, Heitor Pestana, Leilane Andreoni, Marcelo Ferretti, Marcia Fogaça, Mario Senhorini, Nelson da Silva Junior, Paulo Beer e Pedro Ambra.

 

A produção neoliberal do sofrimento

- “A psiquiatria sob o neoliberalismo: da clínica dos transtornos ao aprimoramento de si”, de Antonio Neves, Augusto Ismerim, Fabrício Donizete da Costa, Luckas Reis Pedroso dos Santos, Mario Senhorini, Nelson da Silva Junior, Paulo Beer, Renata Bazzo, Sonia Pitta Coelho e Viviane Cristina Rodrigues Carnizelo.

- “A hipótese depressiva”, de Christian Dunker.

 

Neoliberalismo à brasileira

- “Para uma arqueologia da psicologia neoliberal brasileira”, de Christian Dunker, Clarice Paulon, Daniele Sanches, Hugo Lana, Rafael Alves Lima e Renata Bazzo.

- “O Brasil da barbárie à desumanização neoliberal: do “Pacto edípico, pacto social”, de Hélio Pellegrino, ao “E daí?”, de Jair Bolsonaro”, de Nelson da Silva Junior.


 

Introdução

 

“Há relações profundas entre os experimentos de engenharia social do neoliberalismo e a reconstrução das estruturas categoriais clínicas, reconstrução que se expressa, principalmente, com o apagamento das neuroses, com a hegemonia da depressão, com a redução da psicose à forma unitária da esquizofrenia, com a consolidação dos transtornos borderline e, finalmente, com a substituição da clínica tradicional, restrita ao tratamento de doenças, pela lógica do enhancement, que começa a explorar cada vez mais os fármacos, inicialmente concebidos para o sofrimento psíquico, em um novo objetivo, aquele da potencialização de performances no trabalho. O que esse conjunto de transformações torna manifesto é que categorias clínicas dependem de sistemas de valores sociais exteriores à clínica. (...)

Nesse sentido, a noção de “gestor” do sofrimento psíquico ganha importância em dois sentidos, a saber, como aquele que gera e aquele que gerencia. Pois o sofrimento psíquico é não apenas produzido, mas também gerido pelo neoliberalismo. Por isso, cabe compreender o neoliberalismo como uma forma de vida nos campos do trabalho, da linguagem e do desejo. Como tal ele compreende uma gramática de reconhecimento e uma política para o sofrimento. Enquanto liberais clássicos, descendentes de Jeremy Bentham e Stuart Mill, consideravam que o sofrimento, seja do trabalhador, seja do cidadão, era um problema que atrapalhava a produção e criava obstáculos para o desenvolvimento e para o cálculo da felicidade, como máximo de prazer com mínimo de desprazer, a forma de vida neoliberal descobriu que se pode extrair mais produção e mais gozo do próprio sofrimento. Encontrar o melhor aproveitamento do sofrimento no trabalho, extraindo o máximo de cansaço com o mínimo de risco jurídico, o máximo de engajamento no projeto com o mínimo de fidelização recíproca da empresa, torna-se regra espontânea de uma vida na qual cada relação deve apresentar um balanço e uma métrica.

É por tais razões que este livro aborda o neoliberalismo não apenas como uma teoria sobre o funcionamento da economia, desenvolvida entre 1930 e 1970, por Von Mises, Hayeck, Friedman e Becker, mas também como uma forma de vida definida por uma política para a nomeação do mal-estar e por uma estratégia específica de intervenção com relação ao estatuto social do sofrimento. Essa forma de vida articula moral e psicologia, economia e direito, política e educação, religião e teologia política, propondo um tipo de individualização baseado no modelo da empresa. Uma vida que deve ser apreendida, dirigida e avaliada como se o faz com uma empresa. Mas essa análise de risco, esse cálculo de decisões e essa administração de si presume uma psicologia implícita. A arqueologia dessa psicologia nos levará ao problema da instauração da vida psíquica no interior do liberalismo, envolvendo premissas sobre a determinação do sofrimento psíquico e seu consequente tratamento.

Podemos falar em “instauração” porque a força do neoliberalismo é performativa. Ela não atua meramente como coerção comportamental, ao modo de uma disciplina que regula ideais, identificações e visões de mundo. Ela molda nossos desejos, e, nesse sentido, a performatividade neoliberal tem igualmente efeitos ontológicos na determinação e produção do sofrimento. Ela recodifica identidades, valores e modos de vida por meio dos quais os sujeitos realmente modificam a si próprios, e não apenas o que eles representam de si próprios. Se admitimos que uma forma de vida tende a manter sua unidade extraindo produtividade de suas contradições, determinadas e indeterminadas, de acordo com estratégias provenientes do trabalho e do mercado, do desejo e da linguagem, poderemos localizar os efeitos estruturais da dimensão performativa da gestão neoliberal do sofrimento.”

 

 

“A forma como uma cultura escolhe nomear e narrativizar o sofrimento psíquico, a maneira como ele é incluído ou excluído por determinados discursos, o modo como ele reconhece sujeitos para certas demandas e estados informulados de mal-estar possuem valor etiológico, tanto quanto as determinações orgânicas. A maneira como interpretamos o sofrimento, atribuindo-lhe causalidade interna ou externa, imputando-lhe razões naturais ou artificiais, agregando-lhe motivos dotados ou desprovidos de sentido, muda literalmente a experiência mesma de sofrimento. Isso é crucial na determinação dos sintomas e condiciona eventualmente sua reversibilidade clínica. O corpo sempre foi essencialmente plástico frente à cultura, e hoje é claro que mesmo os processos neurodesenvolvimentais, os moduladores químicos e os neurotransmissores não continuam a agir da mesma maneira em diferentes situações sociais, alterando e modulando seus processos de acordo com diferentes discursos.”

 

____________________

 

A economia é a continuação da psicologia por outros meios: sofrimento psíquico e o neoliberalismo como economia moral”, de Vladimir Safatle

 

“Quando Stuart Mill afirmou, no final do século XIX, que a economia política era “‘a ciência que trata da produção e distribuição da riqueza na medida em que elas dependam das leis da natureza humana’ ou ainda ‘a ciência relacionada às leis morais ou psicológicas da produção e distribuição da riqueza” (Mill, Da definição de economia política e do método de investigação próprio a ela, 1973, p. 303), a referência às leis morais ou psicológicas era vaga o suficiente para se referir simplesmente à racionalidade de um pretenso “desejo de riqueza” inscrito no coração das paixões humanas. A economia política analisaria assim as dinâmicas coordenadas socialmente a fim de realizar o desejo humano de enriquecimento, ou antes a obtenção da: “maior soma de coisas necessárias, de conveniências e de luxos com a menor quantidade de trabalho e abnegação física exigidas para poder obtê-los no estado existente de conhecimento” (Mill, 1973, p. 304).

No entanto, Stuart Mill ainda tinha o cuidado de afirmar que tal princípio de racionalidade era uma “premissa” que poderia não ter nenhum fundamento nos fatos, embora pudesse ter efeitos na dimensão concreta, com “concessões apropriadas”. Isso significava, entre outras coisas, que a redução da estrutura da motivação humana ao desejo de riqueza era uma abstração útil, e não uma explicação geral sobre o comportamento humano, com sua multiplicidade de variáveis singulares e efeitos imprevistos.

Mas o que vemos atualmente é algo de outra ordem, a saber, a justificação de ações econômicas e a paralisia da crítica através da mobilização massiva de discursos psicológicos e morais. O que pode nos levar a questões sobre a efetiva natureza epistemológica do discurso econômico, isso em um momento no qual ele arroga para si autonomia operacional completa em relação à esfera do político, como antes ocorrera quando enfim a economia ganhou autonomia em relação ao sagrado.4 Pois podemos nos perguntar sobre o quanto essa autonomia do discurso econômico em relação à política é ela mesma a mais clara expressão de uma decisão política violenta.

Nesse sentido, devemos meditar a respeito do significado dessa relação inesperada entre autonomia da economia em relação ao político e sua transmutação em psicologia moral. Como se um processo só fosse possível através do outro. A autonomia da economia, sua posição de discurso de poder ilimitado na definição das orientações de gestão social, caminha juntamente com a legitimação cada vez mais clara de suas injunções como uma psicologia moral, ou seja, como um discurso no qual se articulam injunções morais e pressuposições a respeito de desenvolvimento e maturação. O que nos leva a afirmar que o império da economia é solidário da transformação do campo social em um campo indexado por algo que poderíamos chamar de “economia moral”, com consequências maiores não exatamente para os modos de produção e circulação de riqueza, mas para a eliminação violenta da esfera do político enquanto espaço efetivo de deliberação e decisão, com a redução da crítica à condição de patologia. Uma eliminação que, como gostaria de mostrar, tem consequências maiores para os modos de sujeição psíquica e sofrimento social.”

4 Ver Dupuy (L’avenir de l’économie, 2014).

 

 

“Como sabemos, falas constituem seus ouvintes. Um discurso construído como “ofensivo” visa produzir um sujeito que reagirá como “ofendido”. A fala ofensiva é astuta. Ela procura, inicialmente, quebrar uma espécie de solidariedade genérica diante de uma injustiça feita não apenas contra um, mas contra todos ou, antes, contra todos através de um. A fala ofensiva visa quebrar a emergência da reação de “todos”, pois ela singulariza, ela ofende um, ela escarnece um. Não falamos: “Você ofendeu a sociedade brasileira em mim”. Antes, dizemos: “Você me ofendeu”. O problema parece algo entre “você” e “ela/e”. O problema não parece mais político, mas de respeito à integridade psicológica.”

 

 

“Assim, a ideia de que o advento do neoliberalismo seria solidário de uma sociedade com menos intervenção do Estado, ideia tão presente nos dias de hoje, é simplesmente falsa. Em relação ao liberalismo clássico, o neoliberalismo representava muito mais intervenção do Estado. A verdadeira questão era: onde o Estado efetivamente intervia? De fato, não se tratava mais da intervenção na esfera da coordenação da atividade econômica. Para os neoliberais, mesmo a regulação de moldes keynesianos era tão insuportável quanto qualquer forma de Estado socialista, embora valha a pena lembrar que o nível de regulação econômica aceito pelo ordoliberalismo alemão e sua “economia social de mercado” é maior do que aquele pregado, por exemplo, pela Escola Austríaca, que dará o tom do neoliberalismo norte-americano. Na verdade, o que o neoliberalismo pregava eram intervenções diretas na configuração dos conflitos sociais e na estrutura psíquica dos indivíduos. Mais do que um modelo econômico, o neoliberalismo era uma engenharia social.

Ou seja, o neoliberalismo é um modo de intervenção social profunda nas dimensões produtoras de conflito. Pois, para que a liberdade como empreendedorismo e livre-iniciativa pudesse reinar, o Estado deveria intervir para despolitizar a sociedade, única maneira de impedir que a política intervisse na autonomia necessária de ação da economia. Ele deveria bloquear principalmente um tipo específico de conflito, a saber, aquele que coloca em questão a gramática de regulação da vida social.13 Isso significava, concretamente, retirar toda a pressão de instâncias, associações, instituições e sindicatos que visassem questionar tal noção de liberdade a partir da consciência da natureza fundadora da luta de classe.

Mas o aprofundamento desse processo exigia uma destituição completa da gramática do conflito e da contradição objetiva. Ou seja, tratava-se de passar do social ao psíquico e levar sujeitos a não se verem mais como portadores e mobilizadores de conflitos estruturais, mas como operadores de performance, otimizadores de marcadores não problematizados.14 Para tanto, seria necessário que a própria noção de conflito desaparecesse do horizonte de constituição da estrutura psíquica, que uma subjetividade própria a um esportista preocupado com performances se generalizasse, e para isso a mobilização de processos de internalização disciplinar de pressupostos morais era fundamental. Por isso, as modalidades neoliberais de intervenção deveriam se dar em dois níveis, a saber, no nível social e no nível psíquico. Essa articulação se explica pelo fato de os conflitos psíquicos poderem ser compreendidos como expressões de contradições no interior dos processos de socialização e individuação. Eles são as marcas das contradições imanentes à vida social.15

Assim, em um primeiro nível, o Estado neoliberal agia de forma direta para desregular a vida associativa e sua força de pressão na partilha dos bens e das riquezas. Esse ponto foi explicitado de maneira precisa nas pesquisas de Grégoire Chamayou a respeito dos vínculos entre neoliberalismo e fascismo.16 Por exemplo, pode parecer estranho para alguns que um dos pais do neoliberalismo, o economista Frederick Hayek, seja defensor explícito da tese da necessidade da ditadura provisória como condição para a realização da liberdade neoliberal. Lembremos um significativo trecho de uma entrevista dada ao jornal chileno El Mercurio, em 1981:

Eu diria que, enquanto instituição de longo termo, sou totalmente contra ditaduras. Mas uma ditadura pode ser um sistema necessário durante um período de transição. Às vezes, é necessário para um país ter, durante certo tempo, uma forma de poder ditatorial. Como vocês sabem, é possível para um ditador governar de maneira liberal. E é possível que uma democracia governe com uma falta total de liberalismo. Pessoalmente, prefiro um ditador liberal a um governo democrático sem liberalismo.”

13 A esse respeito, lembremos uma colocação precisa de Theodor Adorno, que compreendera rapidamente a natureza meramente gestionária de certas teorias do conflito social: “As atuais teorias do conflito social, que não podem mais negar sua realidade, atingem apenas o que nele é articulado e coisificado em papéis e instituições, aquém da perene violência que se oculta por trás da reprodução da sociedade.

Implicitamente, já é considerado o controle social dos conflitos, os quais deveriam ser ‘regulados’, ‘inerferidos’, ‘dirigidos’ te ‘canalizados’“ (ADORNO, Soziologische Schriften, 1972, p. 81). Isso pressupõe a aceitação forçada de uma gramática comum: “Os participantes deveriam ter reconhecido o sentido e a inevitabilidade dos conflitos e previamente concordado com as regras de conciliação do jogo – uma condição que elimina operacionalmente o caso crítico de os conflitos quebrarem as regras vigentes do jogo” (ADORNO, 1972, p. 81). Mas não estamos a falar de regras de um jogo aceito “consensualmente”. Estamos a falar da sedimentação de relações de poder e força.

14 Em um movimento claramente descrito em Ehrenberg (La fatigue d’être soi, 2000).

15 A esse respeito, ver Safatle; Silva Junior; Dunker (Patologias do social, 2018).

 

 

“A generalização da forma-empresa no interior do corpo social abriu as portas para os indivíduos se autocompreenderem como “empresários de si mesmos” que definem a racionalidade de suas ações a partir da lógica de investimentos e retorno de “capitais”24 e que compreendem seus afetos como objetos de um trabalho sobre si tendo em vista a produção de “inteligência emocional”25 e otimização de suas competências afetivas. Ela permitiu ainda a “racionalização empresarial do desejo” (Dardot e Laval, La nouvelle raison du monde, 2010, p. 440), fundamento normativo para a internalização de um trabalho de vigilância e controle baseado na autoavaliação constante de si a partir de critérios derivados do mundo da administração de empresas. Essa retradução total das dimensões gerais das relações inter e intrasubjetivas em uma racionalidade de análise econômica baseada no “cálculo racional” dos custos e benefícios abriu uma nova interface entre governo e indivíduo, criando modos de governabilidade muito mais enraizados psiquicamente.”

24 Fundamental para isso foi a consolidação do uso da noção de “capital humano”, tal como podemos encontrar em Becker (A Theoretical and Empirical Analysis with a Special Reference to Education, 1994).

25 Ver Goleman (Inteligência emocional, 1996).

 

 

“Note-se ainda como esse tópico da generalização da forma-empresa é, ao mesmo tempo, a descrição das formas hegemônicas de violência no interior da vida social. Pois a empresa não é apenas a figura de uma forma de racionalidade econômica. Ela é a expressão de uma forma de violência. A competição empresarial não é um jogo de críquete, mas um processo de relação fundado na ausência de solidariedade (vista como entrave para o funcionamento da capacidade seletiva do progresso), no cinismo da competição que não é competição alguma (pois baseada na flexibilização contínua de normas, nos usos de toda forma de suborno, corrupção e cartel), na exploração colonial dos desfavorecidos, na destruição ambiental e no objetivo monopolista final. Essa violência pede uma justificação política, ela precisa se consolidar em uma vida social na qual toda figura da solidariedade genérica seja destruída, na qual o medo do outro como invasor potencial seja elevado a afeto central, na qual a exploração colonial seja a regra.”

 

 

“Lembremos inicialmente que modelos socioeconômicos são animados não apenas por proposições a respeito do modo de funcionamento de sistemas econômicos de produção e consumo. Como eles devem também determinar a configuração de seus agentes racionais, definindo com isso um conjunto de comportamentos, modos de avaliação e justificativas a serem internalizados pelos agentes que se queiram reconhecidos, tais modelos não podem ser abstraídos da força de produção de uma psicologia que lhe seja própria, quer dizer, de uma figura antropológica, fortemente reguladora, a ser partilhada por todos os indivíduos que aspiram a ser socialmente reconhecidos. Tais modelos definem padrões de individuação a partir da racionalidade que eles procuram realizar. No interior de tais padrões encontramos sistemas profundamente normativos de disposição de conduta, de produção de afetos e de determinação das formas de sofrimento. Nesse sentido, podemos dizer que modelos socioeconômicos são modelos de governo e gestão social de subjetividades, por isso, não podem ser compreendidos sem sua capacidade de instauração de comportamentos e modos subjetivos de autorregulação. Eles não podem ser elucidados sem a gestão de uma psicologia que lhes é inerente.

Isso significa dizer que não se sofre da mesma forma dentro e fora do neoliberalismo. Essa modificação implica a eliminação de dimensões dinâmicas da doença. Pois o sofrimento psíquico guarda uma dimensão de expressão de recusa e de revolta contra o sistema social de normas.28 Uma revolta que se expressa nas três dimensões do que entendemos comumente por forma de vida, a saber, o desejo, a linguagem e o trabalho. Já Hegel insistia, em sua Fenomenologia do espírito, nos vínculos orgânicos entre a lei do coração e o delírio da presunção, ou seja, entre a revolta contra a ordem social que sai ao mundo em vista de grandes transformações e o delírio de quem vê suas intenções serem continuamente invertidas pelo curso social.

A disciplina social neoliberal deve anular tal dimensão de revolta que se exprime no sofrimento psíquico. Por isso, ela deve reconstruir completamente o que podemos chamar de “gramática social do sofrimento”.”

28 Lembremo-nos de Adorno, a afirmar: “as neuroses deveriam, de fato, segundo sua forma, ser deduzidas da estrutura de uma sociedade em que elas não podem ser eliminadas. Mesmo a cura bem-sucedida carrega o estigma do danificado, da vã adaptação pateticamente exagerada. O triunfo do eu é o da ofuscação pelo particular. Este é o fundamento da inverdade objetiva de toda psicoterapia, que incita os terapeutas à fraude. Na medida em que o curado se assemelha à totalidade insana, torna-se ele mesmo doente, mas sem que aquele para quem a cura fracassa seja por isso mais saudável” (ADORNO, Ensaios de psicologia social e psicanálise, 2016, p. 43).

 

 

“Não devemos esquecer como há uma vasta literatura que procura evidenciar aquilo que poderíamos chamar de “a natureza não realista” de conceitos em operação no saber próprio às clínicas do sofrimento psíquico.29 Normalmente, tais pesquisas visam mostrar como estamos diante de problemas que vão além de questões de cunho estritamente epistemológico, pois se referem também à análise do sistema de valores que estaria presente em modalidades de intervenção clínica, assim como do seu impacto na produção dos objetos que deveriam descrever. Pois devemos nos perguntar se as orientações que guiam perspectivas hegemônicas de intervenção clínica são neutras em relação a valores. Se elas não são neutras, então é o caso de se perguntar se a gênese de tais valores que dirigem nosso horizonte de cura não exigiria uma perspectiva ampliada de análise na qual modalidades de orientação clínica são compreendidas no interior de sistemas de influência compostos por discursos de forte teor normativo advindos de campos exteriores a práticas terapêuticas, como a cultura, a moral, a estética, a política e a racionalidade econômica. Trata-se, nesses casos, de não fornecer às questões clínicas o estatuto de problemas autônomos, mas de reinscrevê-las no interior do sistema de circulação de valores que compõem as várias esferas da vida social como um sistema de implicação constante.

Isso traria como consequência, entre outras, a compreensão de que categorias clínicas não são “tipos naturais” (natural kinds), mas tecnologias de intervenção na estrutura psíquica a partir de valores. Ou seja, a configuração e o limite de uma categoria clínica não é resultado da identificação de predicados diferenciais naturais acessíveis em um campo independente da estruturação de nossa linguagem. Na verdade, eles resultam das tecnologias que temos para produzir modificações na estrutura psíquica a partir de valores que procuramos implementar. Categorias clínicas não são estruturas descritivas, mas processos performativos.

Essa é a consequência de aceitarmos a produtividade de perspectivas caracterizadas como “nominalistas dinâmicas”, ou seja, fundadas na defesa de o campo de intervenção clínica diante do sofrimento psíquico ser animado pela instauração de categorias classificatórias com força performativa capaz de organizar retroativamente fenômenos no interior de quadros descritivos que servem não apenas como quadros de produção de sentido para as experiências singulares de sofrimento, mas também como quadros indutores de efeitos posteriores, processo de performatividade retroativa chamado de “efeito de looping”. Nesse sentido, lembremos Ian Hacking, para quem uma patologia mental não descreve uma espécie natural, como talvez seja o caso de uma doença orgânica como câncer ou mal de Parkinson. Ela cria performativamente uma nova situação na qual sujeitos se veem inseridos.30 Fato compreensivo se aceitarmos que categorias clínicas ligadas à descrição do sofrimento psíquico são objeto de elaboração reflexiva e discursiva por parte dos próprios sujeitos que elas visam descrever. Tal reflexão é capaz de produzir um nível significativo de reorientação de ações e condutas, sejam elas conscientes, sejam involuntárias. Nesse sentido, classificações de sofrimento psíquico não são “espécies indiferentes”, como são aquelas usadas para descrever fenômenos do mundo físico, mas “espécies interativas”, ou seja, há uma interação entre categorias e objetos através da apropriação autorreflexiva e da posterior modificação dos objetos. Por fim, como o fundamento atual da nossa tecnologia de intervenção clínica é farmacológica, a configuração das categorias tenderá a ter a conformação do espectro de atuação do fármaco em questão.”

29 Essa literatura é extensa e tem seu momento fundador, entre outros, em Foucault (Histoire de la folie, 1962). Para desdobramentos contemporâneos, ver, principalmente, Kincald; Sullivan (Classifying Psychopathology, 2014), assim como Zachar, (A Metaphysics of Psychopathology, 2014), Cooper (Classifying Madness, 2005) e Murphy (Psychiatry in the Scientific Image, 2012).

30 Esse é um importante ponto defendido por Hacking (Historical Ontology, 2004, p. 106), para quem, no que se refere a classificações de doenças mentais, “um tipo [kind] de pessoa vem à existência ao mesmo tempo que a própria categoria clínica [kind] foi inventada. Em alguns casos, nossas classes e classificações conspiram para aparecer uma suportada pela outra”. A respeito desse nominalismo dinâmico, ver também Davidson (The Emergence of Sexuality, 2004).

Nenhum comentário: